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© C opyright de L uis A lberto D e Boni

D278f De Boni, Luis Alberto


Filosofia Medieval : textos / Luis Al­
berto De Boni. — Porto Alegre : EDI-
PUCRS, 2000.
418p. ; (Coleção Filosofia, n° 110)

ISBN: 85-7430-096-9

1.Filosofia 2.Filosofia Medieval I.Título

CDD: 189.4

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da


BC-PUCRS

Capa: Lucas Sgorla


Diagramação: Isabel Cristina Pereira Lemos
Revisão: O Autor
Impressão: Gráfica EPECE, com filmes fornecidos
Coordenador da Coleção: Dr. Urbano Zilles
A. C. R. Souza (org.) Pensamento Medieval. São Paulo, SUMA TEOLÓGICA I, Q. 75-89'
1983. p. 99-125; C. A. R. do Nascimento. “O comentário de
Tomás de Aquino à ‘Política’ de Aristóteles e os inícios do [Questões de antropologia]
uso do termo ‘Estado’ para designar a forma de poder polí­
tico”. In: Ventas 38 (1993) n. 150. p. 243-252; A. M. Lor- Questão LXXV
ca. “El concepto de ‘civitas’ en la teoría política de Tomás
de Aquino”. Ibid. p. 253-262; J. S. Silveira. “Os pressu­
ARTIGO I - Se a alma é corpo.
postos antropológicos do racionalismo tomista”. In: Ventas
39 (1994) n. 155. p. 425-434; O. Moura. “O ato e a potência
como princípios fundamentais da síntese tomista”. In: L. A. O prim eiro discute-se assim: Parece que a alma é corpo.
De Boni (org.). Lógica e Linguagem na Idade Mèdia. Porto
Alegre, 1995. p. 103-112; C. A. R. do Nascimento. “A con­ 1.- Pois, a alma é o motor do corpo. Ora, não há motor
signação do tempo pelo verbo no comentário de santo To­ não movido. Primeiro, porque, parece, só pode mover aquilo que
más ao ‘Peri hermeneias’”. Ibid., p. 113-126; id. “A justiça é movido, pois ninguém dá a outrem o que não tem; assim, o que
geral em Tomás de Aquino”. In: L. A. De Boni (org). Ètica não é quente não aquece. Segundo, porque o que move sem ser
e Política na Idade Mèdia. Porto Alegre, 2a ed. 1996. p. movido, causaria o movimento sempiterno, sempre atuante do
213-218; O. Moura. “A doutrina do direito natural em To­
mesmo modo, como o prova o Filósofo2; ora, tal não se vê no
más de Aquino”. Ibid. p. 219-232; J. I. Saranyana. “La ci­
movimento do animal, proveniente da alma. Logo a alma é um
encia política de Tomás de Aquino” . Ibid. p. 233-258; M.
Camello. “A felicidade como bem supremo: Tomás de motor movido. Mas, como todo motor movido é corpo, logo a
Aquino lê Aristóteles” . Ibid. p. 277-286; N. B. Rezende. alma também é corpo.
“Da contemplação aristotélica segundo São Tomás”. Ibid. 2. Demais.- Todo conhecimento se realiza por alguma
p. 305-314; W. B. Lisboa. “A unidade do fim como condi­ semelhança. Ora, nenhuma semelhança pode haver entre um cor­
ção do discurso moral e político”. Ibid. p. 315-322; A. C. po e um ser incorpóreo; se, pois, a alma não fosse corpo, não po­
Storck. “O indivíduo e a ordem política na dimensão da ‘ci­ deria conhecer as coisas corpóreas.
vitas” ’. Ibid. p. 323-330. 3. Demais.- É preciso haver algum contato do motor com
o movido. Ora, o contato só há entre corpos. Logo, como a alma
move o corpo, resulta que é corpo.
Mas, em contrário, diz Agostinho, que “a alma é dita
simples por comparação com o corpo, porque não se difunde pela
massa no espaço local”3.

1 Os textos aqui apresentados tomaram por base a tradução de Alexandre Corrêa.


Tomás de Aquino: Suma Teológica (L. A. De Boni e R. Costa, org.). Porto Ale­
gre, 1980-81. v. II. Introduziram-se inúmeras correções, a fim de tornar o texto
mais fiel ao original.
2 VIII Física 6, 259b 32.
3 VI Sobre a T rindade 6; PL 42, 929.
Solução. - Para discutir a natureza da alma, é necessário E há, ainda, outro motor movido por si, e que é o corpo. E como
pressupô-la como o primeiro princípio da vida dos seres vivos; os antigos filósofos da natureza pensavam que só o corpo existe,
assim, dizemos que os seres animados são vivos e as coisas ina­ ensinavam que todo motor é movido e que a alma, movida por si,
nimadas carecem de vida. Ora, a vida se manifesta maximamente é também corpo.
pela dupla operação do conhecimento e do movimento, cujo prin­ Resposta à segunda. - Não é necessário que a semelhança
cípio os antigos filósofos, não podendo transcender a imaginação, da coisa conhecida esteja em ato em a natureza do conhecente;
consideravam como corpo; pois, diziam, só os corpos são coisas e mas, se há algo que conhece, primeiro em potência e, depois, em
o que não é corpo nada é. E então, consideravam a alma como um ato, não é necessário que a semelhança do conhecido seja atual,
certo corpo. Ora, embora se possa mostrar, de múltiplos modos, a senão apenas potencial, em a natureza do conhecente; assim, a
falsidade dessa opinião, empreguemos só um argumento com o cor está na pupila, não atual mas só potencialmente. Por onde, não
qual mais comum e certamente se patenteará que a alma não é é necessário que, em a natureza da alma, haja a semelhança atual
corpo. É manifesto que a alma não é um princípio qualquer da das coisas corpóreas, mas sim que ela seja potencial em relação a
operação vital; pois, se o fosse, então os olhos, princípio da visão, tais semelhanças. Como, porém, os antigos filósofos da natureza
seriam a alma; o mesmo devendo dizer-se dos outros instrumentos não sabiam distinguir entre o ato e a potência, diziam que a alma é
desta. Mas, chamamos alma ao princípio primeiro da vida, pois, corpo para poder conhecer todos os corpos; e que é composta dos
embora algum corpo possa ser um certo princípio da vida, como o princípios de todos os corpos.
coração o é no animal, contudo, nenhum corpo pode ser o princí­ Resposta à terceira. - Há um duplo contato: o da quanti­
pio primeiro da vida. Ora, é manifesto que o princípio da vida ou dade e o da virtude. Pelo primeiro, o corpo só pode ser tocado
vivente não cabe ao corpo como tal; do contrário todo corpo seria pelo corpo; pelo segundo, pode ser tocado por um ser incorpóreo
vivo ou princípio da vida. Logo, ser vivo, ou ainda, ser princípio que o mova.
da vida só cabe a um certo corpo, pelo fato de ser tal corpo. Ora, o
que torna esse corpo atualmente tal é algum princípio, chamado o ARTIGO II - Se a alma humana é algo de subsistente.
seu ato. Por onde, a alma, princípio primeiro da vida, não é corpo,
mas o ato dele, assim como o calor, princípio da calefação, não é O segundo discute-se assim: Parece que a alma humana
corpo, mas um ato do corpo. não é algo de subsistente.
Donde a resposta à primeira objeção. - Como tudo o que
se move é movido por outro, e como não se pode continuar assim 1.- Pois, o que é subsistente é algo determinado (hoc ali-
até o infinito, é necessário dizer que nem todo motor é movido. iluid). Ora, a alma não é algo determinado, pois um algo determi­
Ora, como ser movido é passar da potência para o ato, o motor dá nado é o composto de corpo e alma. Logo, a alma não é ela algo
o que tem ao móvel, na medida em que o faz estar em ato. Mas, de subsistente.
como o demonstra o Filósofo4, há um certo motor absolutamente 2. Demais.- Tudo o que é subsistente pode ser considerado
imóvel, não movido nem por si nem por acidente, e tal motor rapaz de operação. Ora, a alma não é assim considerada, pois, se-
pode mover o movido sempre uniformemente. Há, porém, outro >·.iindo o Filósofo5, “dizer que a alma sente ou intelige é o mesmo
motor que não é movido por si, mas por acidente e que, por isso, que dizer alguém que ela tece ou edifica”. Logo, a a lm a não é algo
não move o movido sempre uniformemente; e tal motor é a alma. de subsistente.

4 VIII F ísica 6, 259b 32. ' I Sobre a alm a 4, 408b 11.


3. Demais.- Se a alma fosse algo de subsistente, haveria humana, chamada intelecto ou mente, é algo de incorpóreo e sub­
alguma operação dela, independente do corpo. Mas nenhuma das sistente.
suas operações é assim, nem mesmo o inteligir, porque não é pos­ Donde a resposta à primeira objeção. - Algo determinado
sível inteligir sem fantasma e os fantasmas não existem sem o (.hoc aliquid) pode compreender-se de duplo modo: significando
corpo. Logo, a alma humana não é algo de subsistente. qualquer subsistente, ou um subsistente completo em a natureza
Mas, em contrário, diz Agostinho6: “Quem vê a natureza de alguma espécie. O primeiro modo exclui a inerência acidental
da mente, que é substância, mas não corpórea, vê que os que opi­ e a da forma material. O segundo exclui também a imperfeição da
nam ser ela corpórea erram por lhe adjungirem as fantasias dos parte. Assim, pode-se dizer que a mão é algo determinado, no
corpos, sem as quais não podem conceber nenhuma natureza”. primeiro sentido, não, porém, no segundo. E, portanto, sendo a
Logo, a natureza da mente humana não só é incorpórea, mas tam­ alma humana parte da espécie humana, pode chamar-se algo de­
bém é substância, isto é, algo de subsistente. terminado, segundo o primeiro modo, como algo de quase sub­
Solução - Necessário é admitir-se que o princípio da ope­ sistente; mas não conforme o segundo, pois neste chama-se algo
ração intelectual, a que chamamos alma do homem, é um certo de determinado o composto de alma e corpo.
princípio incorpóreo e subsistente. Pois, é manifesto que pela in­ Resposta à segunda. - Aristóteles7 usa dessas palavras,
teligência o homem pode conhecer a natureza de todos os corpos. não para exprimirem opinião própria, mas a dos que diziam que
Ora, o que pode conhecer certas coisas, necessariamente não deve inteligir é ser movido, como é claro pelo que afirma antes. - Ou
ter nada delas na sua natureza, porque se a coisa lhe fosse natu­ deve dizer-se que o agir por si convém ao que existe por si. Ora, o
ralmente inerente, impedir-lhe-ia o conhecimento das outras. As­ existir por si pode-se atribuir a alguma coisa que não seja inerente
sim, vemos que a língua do doente, afetada de humor colérico e como acidente ou como forma material, mesmo se for parte. Mas
amargo, nada pode sentir de doce, mas tudo lhe parece amargo. diz-se que é propriamente subsistente por si o que nem é inerente
Se, pois, o princípio intelectual tivesse em si a natureza de algum desse predito modo, nem é parte; e segundo este modo de dizer, o
corpo, não poderia conhecer todos os corpos, porque cada corpo olho ou a mão não se podem considerar subsistentes por si e, por
tem uma natureza determinada. Logo, é impossível que o princí­ conseqüência, nem como operando por si. Por onde, também as
pio intelectual seja corpo. E, semelhantemente, também é impos­ operações das partes se atribuem ao todo, por meio delas; assim
sível que intelija por meio de órgão corpóreo, porque também a dizemos que o homem vê com os olhos e apalpa com as mãos di­
natureza determinada desse órgão corpóreo impediria o conheci­ ferentemente de quando dizemos que o cálido aquece pelo calor,
mento de todos os corpos. Assim, se uma determinada cor esti­ pois, propriamente falando, o calor de nenhum modo aquece.
vesse não só na pupila, mas ainda num vaso de vidro, o líquido Logo, pode-se dizer que a alma intelige como o olho vê; mas é
contido neste seria dessa mesma cor. Por onde, o princípio inte­ mais próprio dizer-se que o homem intelige por meio da alma.
lectual chamado alma, ou intelecto, tem a sua operação por si, não Resposta à terceira.- O corpo é necessário para a ação do
comum com o corpo. Ora, só pode operar por si o que por si sub­ intelecto, não como órgão pelo qual tal ação se exerce, mas em
siste, pois operar só é próprio do ser atual. Por isso, uma coisa razão do objeto; pois os fantasmas estão para o intelecto como a
opera do mesmo modo pelo qual existe e, assim, não dizemos que cor para o sentido. Deste modo, o fato de precisar do corpo não
o calor aquece, mas que é cálido. Logo, conclui-se que a alma impede que o intelecto seja subsistente; do contrário, o animal não

6 X Sobre a Trindade 6; PL 42, 979. 7 1 Sobre a alm a 4, 408 b 1.


seria algo subsistente, por precisar dos sensíveis exteriores para abstrata ou mais simples do que a essência, da qual deriva. Logo,
sentir. também a substância do intelecto não é forma do corpo.
5. Demais. - O que tem o ser em si, não se une ao corpo
Questão LXXVI como forma; pois a forma é aquilo pelo qual alguma coisa existe,
e assim o ser mesmo da forma não é o ser da forma em si. Ora, o
ARTIGO I - Se o principio intelectivo está unido ao corpo como principio intelectivo tem o ser em si e é subsistente, como já antes
forma. se disse (ibid.). Logo, não está unido ao corpo como forma.
6. Demais. - O inerente a uma coisa em si, sempre existe
O prim eiro discute-se assim: Parece que o principio inte­ nela. Ora, é inerente à forma em si estar unida a matéria; e não por
lectivo não está unido ao corpo como form a. algum acidente, mas por essência, é o ato da matéria. Do contrá­
rio, a matéria e a forma não constituiriam unidade substancial,
mas acidental. Logo, a forma não pode existir sem a matéria pró­
1.- Pois, diz o Filósofos que o intelecto é separado e não é
pria. Ora, o principio intelectivo, sendo incorruptível, como antes
ato de nenhum corpo. Logo, não está unido ao corpo como forma. se demonstrou (q. 75, a. 6), permanece não unido ao corpo, quan­
2. Demais.- Toda forma é determinada pela natureza da do este se corrompe. Logo, não está unido ao corpo como forma.
matéria de que é forma; do contrário não seria preciso a proporção Mas, em contrário, segundo o Filósofo9, a diferença é de­
entre a matéria e a forma. Se, pois, o intelecto estivesse unido ao duzida da forma da coisa. Ora, a diferença constitutiva do homem
corpo como forma, como todo corpo tem uma natureza determi­ é ser racional, qualidade esta que se lhe atribui em virtude do
nada, seguir-se-ia que também o intelecto a teria e, então, não se­ principio intelectivo. Logo, este é a forma do homem.
ria cognoscitivo, como é claro pelo que já foi dito (q. 75 a. 2). Solução. - Deve-se admitir que o intelecto, principio da
j Ora, isto é contra a natureza dele. Logo, o intelecto não está unido operação intelectual, é a forma do corpo humano. Pois, aquilo que
ao corpo como forma. faz primariamente com que um ser opere, é a forma do ser ao qual
3. Demais. - Toda potência receptiva, que é ato de algum
se atribui a operação; assim, aquilo pelo que, primariamente, o
corpo, recebe a forma material e individualmente; porque o rece­ corpo é são é a saúde, e aquilo pelo que, primariamente, a alma
bido está no recipiente ao modo deste. Ora, a forma da coisa inte- sabe é a ciência; por onde, a saúde é a forma do corpo e a ciência
ligida não é recebida no intelecto, material e individualmente, mas é, de certo modo, a forma da alma. E a razão disto está em que
antes, imaterial e universalmente; do contrário, o intelecto não se­ nenhum ser age senão enquanto em ato; por onde, o que torna um
ria cognoscitivo do imaterial e do universal, senão só do singular, ser atual também fá-lo agir. Ora, é manifesto que a alma é o prin­
como os sentidos. Logo, o intelecto não está unido ao corpo como cipio primário da vida do corpo. E como a vida se manifesta por
forma. operações diversas nos diversos graus de viventes, aquilo que
4. Demais. - Ao mesmo ser pertencem a potência e a ação,
produz, primariamente, cada urna das obras da vida é a alma. Pois
pois é o mesmo ser que pode agir e que age. Mas, como i'esulta do é pela alma que, primariamente, nos nutrimos, sentimos, move-
já dito (q. 75, a. 2), a ação intelectual não pertence a um determi­
mo-nos localmente e, semelhantemente, inteligimos. Logo, esse
nado corpo. Logo, nem a potência intelectiva é potência de algum
principio pelo qual primariamente inteligimos, quer se chame in­
corpo determinado. Ora, a virtude ou potência não pode ser mais telecto, quer alma intelectiva, é a forma do corpo. E tal é a de-

9 VIII M etafísica 2, 1043a 2-19.


111 Sobre a alma 4, 429a 27 - b 5.
monstração de Aristóteles (II Sobre a alma 2, 414a 12). E quem lecto, como as cores para a vista. Pois, assim como as espécies
pretender que a alma intelectiva não é a forma do corpo, deverá das cores estão na vista, assim as dos fantasmas, no intelecto pos­
encontrar o modo pelo qual o ato de inteligir seja o ato de um de­ sível. Mas é evidente que, pelo fato de estarem numa parede as
terminado homem, pois, cada um de nós sente que é o nosso ser cores, cujas semelhanças estão na vista, não se atribui à parede o
mesmo que intelige. ato da visão; pois, não dizemos que a parede vê, mas antes, que é
Ora, uma ação pode ser atribuída a alguém de tríplice vista. Assim também, do fato de estarem as espécies dos fantas­
modo, como se vê claramente no Filósofo10. Assim, diz-se que um mas no intelecto possível, não se segue que Sócrates, em quem
ser move ou age totalmente, como o médico cura; ou parcialmen­ estão os fantasmas, intelija; mas antes, que ele ou os seus fantas­
te, como o homem vê com os olhos; ou acidentalmente, como se mas são inteligidos.
diz que o branco constrói porque acontece que o construtor é Outros ensinaram que o intelecto está unido ao corpo
branco. Quando, pois, dizemos que Sócrates ou Platão intelige, é como um motor, ambos constituindo uma unidade, de modo que a
manifesto que isso não lhe é atribuído por acidente; pois, o que ação do intelecto pode ser atribuída ao todo.- Mas esta opinião é,
dele essencialmente se predica é-lhe atribuído enquanto homem. de muitas maneiras, vã. - Primeiro, porque o intelecto não move o
: Então, forçoso é dizer-se que Sócrates intelige por si mesmo, na corpo senão pelo apetite, cujo movimento pressupõe a operação
sua totalidade, como ensinava Platão11, dizendo que o homem é a do intelecto. Pois, não é porque Sócrates é movido pelo intelecto,
alma intelectiva; ou deve-se dizer que o intelecto é uma parte de que ele intelige, mas antes, inversamente, porque intelige e que é
Sócrates. movido pelo intelecto. - Segundo, porque, sendo Sócrates um de­
Ora, a primeira posição não se pode sustentar, como já se terminado indivíduo da natureza, cuja essência é una, composta
demonstrou antes (q. 75, a.4), porque o homem que se percebe de matéria e forma, se o intelecto não for a forma dele, resulta que
inteligir é o mesmo que se percebe sentir. Mas, sentir não aconte­ lhe é algo estranho à essência; e, então, o intelecto se há de com­
ce sem o corpo. Portanto, é necessário que o corpo seja uma parte parar com todo Sócrates, assim como o motor com o movido.
do homem. Resta, portanto, que o intelecto, com o qual Sócrates Ora, inteligir é ação imanente no próprio sujeito e não transeunte
intelige, seja uma parte de Sócrates, a ponto que esteja, de certo para outro, como a calefação. Logo, inteligir não pode ser atribuí­
modo, unido ao corpo de Sócrates. do a Sócrates por que seja este movido pelo intelecto. - Terceiro,
E esta união, diz o Comentador12 se realiza pela espécie porque a ação do motor nunca se atribui ao movido senão como a
inteligível, que tem duplo sujeito: o intelecto possível e os fan­ um instrumento; assim, a ação do carpinteiro é atribuída à serra.
tasmas que estão nos órgãos corpóreos. Assim, pela espécie inte­ Se, portanto, inteligir é atribuído a Sócrates, porque é a ação do
ligível, une-se o intelecto possível ao corpo de tal ou tal homem. - motor deste, segue-se que lhe é atribuído como a instrumento; o
Mas esta continuidade ou união não basta para que a ação do in­ que vai contra o Filósofo, ao ensinar que o inteligir não se dá por
telecto seja a ação de Sócrates. O que se torna patente pela seme­ meio de um instrumento corpóreo. - Quarto, porque, embora a 1
lhança com o sentido, do qual Aristóteles parte para considerar as ação da parte seja atribuída ao todo, como a ação do olho ao ho­
coisas do intelecto. Ora, diz ele13, os fantasmas estão para o inte­ mem, contudo, ela nunca é atribuída a outra parte qualquer, a não
ser talvez por acidente, pois, não dizemos que a mão vê porque os
olhos vêem. Se, portanto, é do modo supradito que intelecto e Só­
10 V F isica 1, 224a 21.
11 A lcibiades, 25. crates constituem unidade, então a ação do intelecto não pode ser
12 III Sobre a alm a, com. V. atribuída a Sócrates. Se, porém, Sócrates é um todo composto da
13 III Sobre a alm a 5, 430a 10.
união do intelecto com tudo o mais que é de Sócrates; e, contudo, téria é somente ser em potência, de nenhum modo o que é com­
o intelecto não se une a este mais, senão como motor, então re­ posto de matéria e forma poderá ser, em si e totalmente, forma de
sulta que Sócrates não é simplesmente um; e, por conseqüência, outro ente. Se, porém, for forma só quanto a uma parte de si, en­
não é ser simplesmente, pois, uma coisa é ser do mesmo modo tão chamamos alma ao que é forma; e chamamos de primeiro
pelo qual é uma. animado, ao ser de que é forma, como antes já ficou dito (q. 75, a.
Resta, portanto, só o modo ensinado por Aristóteles, a sa­ 5).
ber, que tal homem intelige porque o princípio intelectivo é a sua Donde a resposta à primeira objeção.- Como diz o Filó­
forma. Assim, pois, da operação mesma do intelecto conclui-se sofo15, a última das formas naturais, com a qual termina a consi­
que o princípio intelectivo está unido ao corpo como forma. deração do filósofo natural, isto é, a alma humana, é certamente
Isso também pode ser deduzido da natureza da espécie separada; contudo, está unida à matéria. E a prova está em que “o
humana. Ora, a natureza de um ser é indicada por sua operação e homem, juntamente com o sol, gera outro homem, da matéria”.
a operação própria do homem é o inteligir, pelo qual transcende Porém, é separada quanto à virtude intelectiva; porque esta não é
todos os animais. Donde vem que Aristóteles14 faz constituir a fe­ virtude de nenhum órgão corpóreo, como a virtude visiva é ato do
licidade última nessa operação, como própria do homem. Ora, é olho; pois inteligir é ato que se não pode exercer por um órgão
necessário que o homem pertença a uma espécie determinada corpóreo, como se exerce a visão. Está, porém, na matéria, porque
através daquilo que é o princípio dessa operação, pois cada ser a alma mesma, a que pertence tal virtude, é forma do corpo e
pertence à espécie que lhe é determinada pela forma da mesma. termo da geração humana. Assim, pois, o Filósofo l6diz, que o
! Resulta daí, portanto, que o princípio intelectivo é a forma própria intelecto é separado por não ser virtude de nenhum órgão corpó­
do homem. reo.
Mas devemos notar que, quanto mais nobre for a forma, E daqui se deduzem as respostas à segunda e terceira
tanto mais dominará a matéria corpórea, tanto menos estará imer­ objeções. Pois, para o homem inteligir todas as coisas pelo inte­
sa nesta e tanto mais a excederá pela sua operação ou virtude. lecto, e também os seres imateriais e universais, basta que a virtu­
Assim, vemos que a forma do corpo misto tem uma certa opera­ de intelectiva não seja ato do corpo.
ção não causada pelas qualidades elementares. E quanto mais Resposta à quarta. - A alma humana, por causa da sua
avançarmos em a nobreza das formas, tanto mais veremos a virtu­ perfeição, não é forma imersa na matéria corpórea, ou por esta
de da forma exceder a matéria elementar; assim, a alma vegetativa totalmente compreendida; por onde, nada impede que alguma
é mais que a forma do metal e a alma sensível, mais que a vegeta­ virtude sua não seja ato do corpo, embora, na sua essência, seja a
tiva. Ora, a alma humana é a última em a nobreza das formas. Por forma deste.
onde, excede, pela sua virtude, a matéria corpórea, na medida Resposta à quinta. - A alma comunica à matéria corpórea
mesma em que tem uma operação e uma virtude, das quais de ne­ o ser no qual subsiste; e desta e da alma intelectiva constitui-se
nhum modo participa a matéria corpórea. E essa virtude se chama uma unidade, de modo que o ser de todo o composto é também o
intelecto. da alma mesma; o que não se dá com as outras formas não sub­
Deve-se, porém, observar que, se alguém disser que a sistentes. E por isso, a alma humana permanece no ser quando é
alma é composta de matéria e forma, de nenhum modo poderá di­ destruído o corpo; o que não acontece com as outras formas.
zer que ela é a forma do corpo. Pois, como a forma é ato, e a ma-
15 II F ísica 2, 194b 12.
16 III Sobre a alma, loc. cit.
14 X Ética 7, 1177a 17.
Resposta à sexta. - Em si, convém à alma estar unida ao convir a uma coisa, por princípio intrínseco quer material, como
corpo, assim como, em si, convém ao corpo leve o elevar-se. E quando dizemos que todo composto de elementos contrários deve
assim como este permanece certamente leve, quando separado do necessariamente corromper-se; quer por princípio formal, como
lugar próprio, conservando, contudo, a aptidão e a inclinação para quando dizemos ser necessário que todo triângulo tenha três ân­
esse lugar; assim a alma humana permanece em seu ser, quando gulos iguais a dois retos. E essa necessidade se chama natural e
separada do corpo, conservando a aptidão e a inclinação natural absoluta. - De outro modo, diz-se que uma coisa não pode deixar
para a união com o corpo. de ser, por um princípio extrínseco que é fim ou agente. Fim,
como quando alguém não pode, sem este, conseguir ou conseguir
Questão LXXXII bem qualquer outro fim; assim, diz-se que o alimento é necessário
à vida e o cavalo, para uma viagem. E essa é a necessidade de
ARTIGO I: Se a vontade deseja alguma coisa necessariamente. fim, chamada também, às vezes, de utilidade. Porém, a necessida­
de pode provir do agente, como quando alguém é por ele coagido
O prim eiro discute-se assim. - Parece que a vontade não de modo a não ser possível agir em sentido contrário. E essa é a
deseja nada necessariamente. necessidade de coação, que repugna absolutamente à vontade,
pois denominamos violento o que vai contra a inclinação de um
1. - Pois, como diz Agostinho17, se alguma coisa é neces­ ser. Ora, o movimento mesmo da vontade é uma certa inclinação
sária, não é voluntária. Ora, tudo o que a vontade deseja é volun­ para alguma coisa. Por onde, assim como se chama natural ao que
tário. Logo, ela nada deseja necessariamente. é conforme à inclinação da natureza, assim se chama voluntário
2. - Demais. - As potências racionais, segundo o Filóso­ ao que é conforme à inclinação da vontade. E como é impossível
fo18, se exercem sobre termos opostos. Ora, a vontade é uma po­ a simultaneidade do violento e do natural, assim também é impos­
tência racional, pois, como ele diz19, “a vontade reside na razão”. sível que o absolutamente coagido ou violento seja voluntário.
Logo, ela se exerce sobre os termos opostos e, portanto, não está Porém, a necessidade de fim não repugna à vontade, quando esta
determinada necessariamente a nada. não pode obtê-lo senão de um modo; assim, o desejo de atravessar
3. - Demais. - Pela vontade somos senhores dos nossos o mar faz com que a vontade queira necessariamente o navio. Se­
atos. Ora, não somos senhores do que é necessário. Logo, o ato da melhantemente, a necessidade natural também não repugna à
vontade não pode ter necessidade. vontade. Antes, é necessário que, assim como o intelecto necessa­
Mas, em contrário, diz Agostinho20 que “todos, com riamente adere aos primeiros princípios, assim a vontade adira ne­
vontade una, desejam a beatitude”. Ora, se este desejo não fosse cessariamente ao último fim, que é a beatitude, pois o fim está
necessário, mas contingente, falharia, pelo menos em alguns ca­ para a operação, como o princípio para a especulação, segundo já
sos. Logo, a vontade quer alguma coisa necessariamente. se disse''1. Por onde, é forçoso que o que convém a um ser, natural
Solução.- O vocábulo necessidade têm muitas significa­ e imovelmente, seja o fundamento e o princípio de todas as de­
ções. Assim, é necessário o que não pode deixar de ser. Tal pode mais conveniências, porque a natureza da coisa é, em cada ser, o
que é primário, e todo movimento procede de algo imóvel.
Donde a resposta à prim eira objeção. - A expressão de
17 V A cidade d e D eus 10; PL 41, 152.
Agostinho deve-se entender do que é necessário pela necessidade
18 VIII M etafísica 2, 1046b 5.
|() III Sobre a alm a 9. 432b 5.
21 Cf. II Física 9, 200a 21.
2(1 XIII Sobre a T rindade 4; PL 42, 1018.
de coação, pois a necessidade natural “não tira a liberdade da Mas, em c o n trá rio , diz Agostinho25 que “pela vontade pe­
vontade”, como eie pròprio o diz, no mesmo livro. camos e por ela vivemos bem ; e, então ela se exerce sobre ter­
R e sp o sta à segunda. - A vontade pela qual alguém quei mos opostos. Logo, não quer necessariamente tudo o que quer.
naturalmente mais corresponde ao intelecto dos princípios natu­ Solu çã o . - A vontade não quer necessariamente tudo o
rais do que à razão, que se exerce sobre os opostos. Por onde, des­ que quei. E isso se evidencia considerando que, assim como o in­
se ponto de vista, é uma potência mais intelectual do que racional. telecto adere aos primeiros princípios natural e necessariamente,
R e sp o sta à terceira. - Somos senhores de nossos atos en­ assim a vontade adere ao ultimo fim, como já se disse. Ora, há
quanto podemos escolher tal coisa ou tal outra. Ora,^a eleição não certos inteligíveis que não têm conexão necessária com os primei-
se refere ao fim, mas ao que leva ao fim, como se diz . Por onde, o íos princípios, como as proposições contingentes, de cuja remo­
desejo do fim último não se refere àquelas coisas das quais somos ção não resulta a remoção dos primeiros princípios. A essas o
senhores. intelecto não assente necessariamente. Há, porém, proposições
necessárias, que têm conexão necessária com os sobreditos prin­
ARTIGO II: Se a vo n ta d e q u e r n ecessa ria m en te tudo cípios, tais como as conclusões demonstráveis, de cuja remoção
q u a n to quer. resulta a remoção dos primeiros princípios. E a essas o intelecto
assente necessariamente, conhecida que seja a conexão necessária
O se g u n d o d iscu te-se assim : P a rece que a vo n ta d e q u er das conclusões com os princípios, pela dedução da demonstração;
n e c e ssa ria m e n te tudo qu a n to q u e r. não assente, porém, necessariamente antes de conhecer, pela de­
monstração, a necessidade da conexão. Ora, o mesmo se passa
] _ Pois, diz Dionisio23 que “o mal está fora do alcance da com a vontade. De fato, há certos bens particulares sem conexão
vontade” . Logo, a vontade busca necessariamente o bem a si pro­ necessária com a beatitude, porque, sem eles, alguém pode ser fe­
liz. E a tais bens a vontade não adere necessariamente. Há outros,
posto.
2. Demais. - O objeto da vontade está para a mesma, porém, que têm com ela conexão necessária e pelos quais o ho­
como o motor, para o móvel. Ora, o movimento do móvel resulta mem adere a Deus, em quem só consiste a verdadeira beatitude.
necessariamente do motor. Logo, o objeto da vontade move-a ne­ Contudo, antes de ser demonstrada a necessidade de tal conexão
pela certeza da visão divina, a vontade não adere necessariamente
cessariamente.
3. Demais. - Assim como o apreendido pelo sentido é o a Deus. Mas a vontade de quem vê a Deus em essência adere a ele
objeto do apetite sensitivo; assim o apreendido pelo intelecto é o necessariamente, assim como, nesta vida, queremos necessaria­
objeto do apetite intelectivo, chamado vontade. Ora, o apreendido mente ser felizes. Por onde é claro que a vontade não quer neces-'
sanamente tudo o que quer.
pelo sentido move necessariamente o apetite sensitivo, conforme
o dito de Agostinho24: “Os animais são movidos pelas coisas D o n d e a resposta à p rim e ira objeçã o .- A vontade não
vistas”. Logo, o apreendido pelo intelecto move necessariamente pode buscar nada a não ser sob a noção de bem. Ora, como este é
múltiplo, ela, por isso, não fica necessariamente determinada a um
a vontade. só.
R e sp o sta à segunda. - O motor causa necessariamente o
22 III É tica , loc. cit. movimento no móvel, só quando o poder do motor excede o mó-
' 1V O s nom es divinos 32; PG 3, 732.
5,1 IX Sobre o G ênesis a d litteram 14; PL 34, 402. I R etratações 9; PL 32, 596.
vel, de modo que toda a possibilidade deste fique sujeita ao mo­ mem o seu caminho, nem é do varão o andar e o dirigir os seus
tor. Ora, como a possibilidade da vontade refere-se ao bem uni­ passos”. Logo, o homem não tem livre-arbítrio.
versal e perfeito, a possibilidade dela não fica totalmente sujeita a 5. Demais. - O Filósofo diz27: “Tal é um ser, tal é o fim
nenhum bem particular. E, portanto, não é necessariamente mo­ que se propõe”. Ora, não por nós mesmos, mas pela natureza, é
que somos o que somos. Logo, vem da natureza, e não do livre-
vida por este.
Resposta à terceira. - A virtude sensitiva não compara arbítrio, o buscarmos um determinado fim.
noções diversas, como a razão, mas apreende absolutamente o seu Mas, em contrário, diz a Escritura (Eclo 15, 14): “Deus
objeto como uno. E por isso, por esse objeto uno, move determi­ criou o homem desde o princípio e deixou-o na mão do seu con­
nadamente o apetite sensitivo. Mas a razão compara muitas no­ selho”, isto é, conforme a Glossa, na liberdade do arbítrio.
ções, e por isso o apetite intelectivo ou vontade pode ser movido Solução. - O homem tem livre-arbítrio, pois do contrário
por muitos objetos, e não por um só, necessariamente. seriam inúteis os conselhos, as exortações, os preceitos, as proibi­
ções, os prêmios e as penas. E isto se evidencia considerando que
Questão LXXXIII certos seres agem sem discernimento, como a pedra, que cai e,
semelhantemente, todos os seres sem conhecimento. Outros, po­
ARTIGO I: Se o homem tem livre-arbítrio. rém, agem com discernimento, mas não livre, como os brutos.
Assim, a ovelha, vendo o lobo, discerne que deve fugir, por dis­
O prim eiro discute-se assim: Parece que o homem não tem cernimento natural, mas não livre, porque esse discernimento não
provém da reflexão, mas do instinto natural. E o mesmo se dá
livre-arbítrio.
com qualquer discernimento dos brutos. - O homem, porém, age
1.- Pois, quem tem livre-arbítrio faz o que quer. Ora, o com discernimento, pois, pela virtude cognoscitiva, discerne que
homem não faz o que quer, como se vê pela Escritura (Rm 7, 19): deve evitar ou buscar alguma coisa. Mas esse discernimento, ca­
“Porque eu não faço o bem que quero: mas faço o mal, que não paz de visar a diversas possibilidades, não provém do instinto
quero” . Logo o homem não tem livre-arbítrio. natural, relativo a um ato particular, mas da reflexão racional,
2. - Demais. - Quem é livre pode querer e não querer, pois, a razão, relativamente às coisas contingentes, pode decidir
operar ou não. Ora, isso não está no poder do homem, conforme a entre dois termos opostos, como se vê nos silogismos dialéticos e
Escritura (Rm 9, 16): “Não pertence ao que quer” , o querer, “nem nas persuasões retóricas. Ora, os atos particulares são contingen­
ao que corre”, o correr. Logo, o homem não tem livre-arbítrio. tes e, portanto, em relação a eles, o juízo da razão tem de se avir
3. Demais. - “E livre quem é causa de si”, como diz com termos opostos e não fica determinado a um só. E, portanto,
Aristóteles26. E não é livre o que é movido por outro. Ora, Deus é forçoso que o homem tenha livre-arbítrio, pelo fato mesmo de
ser racional.
move a vontade, conforme a Escritura (Pr 21, 1): “O coração do
rei se acha no amor do Senhor” e: “Ele o inclina para qualquer Donde a resposta à primeira objeção. - Como já se disse
parte que quiser”; e: “Deus é o que opera em vós o querer e o per­ untes (q. 81, a. 1 ad 2), o apetite sensitivo, embora obediente à ra­
fazer” (Fl 2, 13). Logo, o homem não tem livre-arbítrio. zão, pode contudo recalcitrar, desejando o que a razão proíbe.
4. Demais. - Quem é livre é senhor dos seus atos. Ora, o ( )ra, o bem que o homem não faz quando quer é o que consiste
homem não o é, como diz a Escritura (Jr 10, 23): “Não é do ho­
v III Ética 5, 1114a 32.
26 I M etafísica 2, 982b 26.
em “não ser concupiscente contra a razão”, como diz a Glossa de berdade do arbítrio. - Mas as qualidades supervenientes são como
Agostinho a esse passo. que hábitos e paixões pelos quais alguém se inclina mais a uma
Resposta à segunda. - Não se deve entender esse passo do que a outra coisa, dependendo também essas inclinações do juízo
Apóstolo no sentido em que o homem não quer e não corre por li- da razão. E tais qualidades são, do mesmo modo, subordinadas à
vre-arbítrio; mas como significando que o livre-arbítrio não e su­ razão, enquanto de nós depende adquiri-las, causal ou dispositi­
ficiente para isso, se não for movido e ajudado por Deus. vamente, bem como excluí-las de nós. E assim, pois, é que nada
Resposta à terceira. - O livre-arbítrio é causa do seu mo­ há de repugnante à liberdade do arbítrio.
vimento, porque o homem, pelo livre-arbítrio, é levado a agir.
Contudo, não é necessário, para a liberdade, que o livre seja a Questão LXXXIV
causa primeira de si mesmo; assim como não é necessário, para
uma causa ser causa de outra, que seja sua causa primeira. Ora, ARTIGO I: Se a alma conhece os corpos pelo intelecto.
Deus é a causa primeira motora, tanto das causas naturais como
das voluntárias. E assim como, movendo-as, não faz com que os O prim eiro discute-se assim. - Parece que a alma não co­
atos delas deixem de ser naturais; assim também, movendo as nhece os corpos pelo intelecto.
voluntárias, não faz com que os seus atos deixem de ser voluntá­
rios, mas antes, causa-lhes essa qualidade, porque obra em cada 1.- Pois, diz Agostinho2'' que “os corpos não podem ser
ser conforme a propriedade dele. compreendidos pelo intelecto, porque só os sentidos podem per­
Resposta à quarta. - Diz-se que não está no homem es­ ceber o que é corpóreo”. E diz29 também que a visão intelectual é
colher o seu caminho, quanto à execução das eleições, nas quais o só daquelas coisas que estão pela sua essência na alma. Ora, essas
homem pode ser impedido, queira ou não. Mas as eleições em si não são corpos. Logo, a alma pelo intelecto não pode conhecer os
mesmas dependem de nós, suposto contudo o auxílio divino. corpos.
Resposta à quinta. - Dupla é a qualidade do homem: uma
2. Demais. - O sentido esta para os inteligíveis, como o
natural; outra, superveniente. - A natural pode ser da parte inte­ intelecto para os sensíveis. Ora, a alma, pelo sentido, de nenhum
lectiva ou do corpo e das virtudes anexas ao corpo. Assim, por ter modo pode conhecer as coisas espirituais, que são inteligíveis.
tal qualidade natural intelectiva é que o homem deseja o último I ,ogo, de nenhum modo, pelo intelecto, pode conhecer os corpos,
fim, que é a beatitude, cujo desejo é natural e não depende do li­ que são sensíveis.
vre-arbítrio, como resulta do sobredito (q. 82, a 1, 2). E é por ter 3. Demais. - O intelecto se refere às coisas necessárias e
tal qualidade natural, quanto ao corpo e às virtudes anexas ao cor­ que existem sempre do mesmo modo. Ora, todos os corpos são
po, que o homem tem tal compleição ou tal disposição, em virtude móveis e não existem sempre do mesmo modo. Logo, pelo inte­
de determinada impressão das coisas corpóreas, que se não podem lecto, a alma não pode conhecer os corpos.
aplicar à parte intelectiva, por não ser esta ato de nenhum corpo.
Mas, em contrário, a ciência esta no intelecto. Se, pois, o
Assim, pois, cada um se propõe o fim conforme a sua qualidade
Intelecto não conhece os corpos, resulta que não há nenhuma ci-
corpórea, porque, em virtude desta disposição é que o homem se
inclina a eleger ou repudiar alguma coisa. Essas inclinações, po­
rém, são dependentes do juízo da razão, à qual obedece o apetite
inferior, como já se disse (q. 8 1 a . 3). Por onde, não tolhem a li­ II Solilóquios 4; PL 32, 888.
M l Sobre o G ênesis a d litteram 24; PL 34, 474.
ência deles. E, então, desaparecerá a ciência natural, que é a do semelhança, pensava que a forma do conhecido está necessaria­
corpo móvel. mente no conhecente, do modo pelo qual ela está no conhecido.
Solução. - Para evidenciar esta questão, deve-se dizer que Assim, considerou que a forma da coisa inteligida está no inte­
os primeiros filósofos que pesquisaram as naturezas das coisas, lecto de modo universal, imaterial e imóvel, coisa que ressalta da
pensavam que no mundo só existe corpo. E como viam que todos própria operação do intelecto, que intelige universalmente e como
os corpos são móveis e julgavam estarem num fluxo contínuo, por uma certa necessidade, pois o modo da ação é dependente do
concluíram que nós não podemos ter nenhuma certeza da verdade modo da forma agente. E então, concluiu pela necessidade de as
das coisas. O que, porém, está em fluxo contínuo não pode ser coisas inteligidas subsistirem em si mesmas imaterial e imovel-
apreendido com certeza porque, antes de ser discernido pela mente. Mas isto não é necessário, pois, mesmo nos seres sensí­
mente, já desapareceu: e, por isso, Heráclito disse que “não é pos­ veis, vemos que a forma está num dos sensíveis, de modo diverso
sível tocar duas vezes a água de um rio que corre”, como refere o que em outro; por exemplo, num a brancura é mais intensa, nou­
Filósofo30. tro, mais remissa; num a brancura vai com a doçura, noutro, sem
Platão, porém, que veio depois, para poder salvar o co­ ela. Ora, é também assim que a forma sensível está, de um modo,
nhecimento certo da verdade adquirida por nós por meio do inte­ na coisa exterior à alma e, de outro, no sentido, que recebe as
lecto, introduziu, além desses seres corpóreos, outro gênero de formas sensíveis sem matéria, por exemplo, a cor do ouro sem o
entes, separado da matéria e do movimento, a que chamou espéci­ ouro. E, semelhantemente, o intelecto recebe, ao seu modo, imate­
es ou idéias. E, pela participação destas, cada um dos seres sin­ rial e imovelmente, as espécies móveis e materiais dos corpos,
gulares e sensíveis se chama homem, cavalo ou coisa semelhante. pois o recebido está no recipiente ao modo deste. - Logo, deve-se
Assim, pois, dizia que as ciências e as definições e tudo o que concluir que a alma, pelo intelecto, conhece os corpos por um co­
pertence ao ato do intelecto, não se referem aos corpos sensíveis nhecimento imaterial, universal e necessário.
que vemos, mas a esses seres imateriais e separados. Deste modo Donde a resposta à primeira objeção. - O passo de Agos-
a alma não intelige esses seres corpóreos, mas sim as espécies se­ línho deve entender-se daquelas coisas pelas quais o intelecto co­
paradas deles. nhece, e não daquelas que ele conhece. Ora, ele conhece os cor­
Ora, de duplo modo se mostra a falsidade desta opinião. - pos, inteligindo, mas não por meio de corpos nem de semelhanças
Primeiro porque, sendo essas espécies imateriais e imóveis, seria materiais e corpóreas, mas por espécies imateriais e inteligíveis
excluído das ciências o conhecimento do movimento e da matéria, que, por essência, podem estar na alma.
o que é próprio da ciência natural, bem como a demonstração pe­ Resposta à segunda. - Como ensina Agostinho31, não se
las causas motoras e materiais. - Segundo, seria risível que, procu­ ileve dizer que, assim como o sentido conhece só as coisas corpó­
rando conhecer as coisas que nos são manifestas, introduzamos reas, assim o intelecto, só as espirituais; porque, então, resultaria
outras intermediárias, que não podem ser as substâncias das pri­ i|uq Deus e os anjos não conheceriam os seres corpóreos. E a ra-
meiras por diferirem delas essencialmente, de modo que, conheci­ /;lo desta diversidade é que a virtude inferior não se estende ao
das essas substâncias separadas, nem por isso poderemos julgar domínio da virtude superior, mas a virtude superior opera, de
das coisas sensíveis. modo mais excelente, o que pertence à inferior.
E a causa de Platão ter-se desviado da verdade está em Resposta à terceira. - Todo movimento supõe algo imó­
que, julgando que todo conhecimento se dá em virtude de certa vel. Quando, pois, a transmutação é qualitativa, a substância per-

III M etafísica 5, 1010a 14. " X X I M cidade de D eus 29; PL 41, 800.
manece imóvel; e quando se transmuda a forma substancial, a Solução. - Os antigos filósofos ensinaram que a alma,
matéria permanece imóvel. Ora, os modos de ser das coisas mó­ pela sua essência, conhece os corpos. Pois, era ínsito em comum
veis são imóveis; assim, embora Sócrates nem sempre esteja sen­ às mentes de todos eles que o semelhante conhece pelo seme­
tado, contudo é imovelmente verdade que, quando está sentado, lhante. Assim, pensavam que a forma do conhecido está no co-
permanece num lugar. Por isso, nada impede haver uma ciência nhecente do modo pelo qual está na coisa conhecida. Porém os
imóvel das coisas móveis. platônicos pensavam de modo contrário, pois Platão, conhecendo
que a alma intelectual é imaterial e conhece imaterialmente, ensi­
ARTIGO II: Se a alma, pela sua essência, nou a subsistência imaterial das formas das coisas conhecidas, ao
intelige os seres corpóreos. passo que os primitivos filósofos naturais, considerando que as
coisas conhecidas são corpóreas e materiais, ensinavam ser neces­
O segundo discute-se assim: Parece que a alma, pela sua sário que elas estejam materialmente na alma conhecente. E como
essência, intelige as coisas corpóreas. atribuíam à alma o conhecimento de tudo, diziam que a natureza
dela é comum com a de todos os seres. E ainda, como a natureza
dos principiados é constituída pelos princípios, atribuíram à alma
1. - Pois, diz Agostinho32, a alma “revolve as imagens dos
a natureza de princípio, de modo que, quem admitia o fogo como
corpos e as tira feitas em si mesma, de si mesma; porquanto dá,
princípio de tudo, admitia que a alma é de natureza ígnea; e, se­
para a formação delas, algo de sua substância”. Ora, pelas seme­
melhantemente, em relação ao ar e à água. Porém Empédocles,
lhanças dos corpos é que os intelige. Logo, pela sua essência, que
que admitia quatro elementos materiais e dois motores, ensinou
dá para a formação de tais semelhanças e da qual as forma, co­
que também a alma é composta deles. Assim, pois, introduzindo
nhece os seres corpóreos.
as coisas na alma, materialmente, concluíram que todo conheci­
2. Demais. - O Filósofo33 diz que “a alma, de certo modo,
mento da alma é material, sem discernirem entre o intelecto e o
é tudo”. Ora, como o semelhante se conhece pelo semelhante, re­
sentido.
sulta que a alma, por si mesma, conhece os seres corpóreos.
Mas tal opinião não se sustenta provas. - Primeiro, porque
3. Demais. - A alma é superior às criaturas corpóreas.
no princípio material, do qual falavam, os principiados existem
Ora, as inferiores estão nas superiores de modo mais eminente
só em potência. Ora, nada é conhecido enquanto potencial, mas
que em si mesmas, como diz Dionísio34. Logo, todas as criaturas
enquanto atual, como se evidenciou36. Por onde, nem a potência
corpóreas existem de modo mais nobre na essência mesma da
mesma se conhece senão pelo ato. Portanto, não basta atribuir à
alma do que nelas próprias. Portanto, pela sua substância, a alma
alma a natureza dos princípios, para que ela conheça tudo, sem
pode conhecer as criaturas corpóreas.
existirem nela as naturezas e as formas dos efeitos singulares, por
Mas, em co n trá rio , diz Agostinho35: “a mente colige os
exemplo, do osso, da carne e coisas semelhantes, como argumenta
conhecimentos das coisas corpóreas pelos sentido do corpo”. Ora,
Aristóteles contra Empédocles37. - Segundo, porque se fosse ne­
a alma mesma não é cognoscível pelos sentidos do corpo. Logo,
cessário que a coisa conhecida existisse materialmente no conhe­
não conhece os seres corpóreos pela sua substância.
cente, nenhuma razão haveria de carecerem de conhecimento as
coisas que subsistem materialmente fora da alma. Por exemplo, se
32 X Sobre a Trindade 5; PL 42, 977.
11III Sobre a alm a 8, 431b 21.
14 A hierarqu ia celeste 12; PG 3, 239. VIII M etafísica 9, 1015a 29.
n IX Sobre a Trindade 3; PL 42, 963. ' I Sobre a alm a 5, 409b 23 - 410a 13.
a alma conhece o fogo pelo fogo, também este, que existe fora da sentido em que se diz que um corpo torna-se colorido por ser in­
formado pela cor. E essa interpretação ressalta do que se segue no
alma, conheceria o fogo.
Conclui-se, portanto, pela necessidade de as coisas mate­ mesmo texto, pois, diz ele, que “conserva alguma coisa”, a saber,
riais conhecidas existirem no conhecente não de modo material, não formada com tal imagem, “pela qual julgará livremente da
mas imaterialmente. E a razão disto é que o ato do conhecimento espécie de tais imagens”. E a isso chama mente ou intelecto. Po­
se estende a coisas existentes fora do conhecente. Ora, nós co­ rém à parte informada por tais imagens, a saber, a imaginativa, diz
ser “comum a nós e aos animais”.
nhecemos também aquilo que está fora de nós, e como pela maté­
ria a forma de uma coisa é reduzida à unidade, fica manifesto que Resposta à segunda. - Aristóteles não ensinou, como os
a essência do conhecimento é oposta à da materialidade. E por antigos fisiólogos, que a alma é composta, atualmente, de todas as
isso, os seres que recebem as formas só materialmente, de ne­ coisas; mas disse que “a alma é de certo modo tudo”, enquanto
nhum modo são cognoscitivos, como as plantas, segundo diz está em potência em relação a tudo: pelo sentido, em relação aos
Aristóteles38. E quanto mais imaterialmente um ser tem em si a sensíveis; pelo intelecto, em relação aos inteligíveis.
forma da coisa conhecida, tanto mais perfeitamente conhece. Por Resposta à terceira. - Qualquer criatura tem o ser finito e
isso, o intelecto, que abstrai a espécie, não só da matéria, mas determinado. Por onde, a essência da criatura superior, embora te­
também das condições materiais individuantes, conhece mais per­ nha alguma semelhança da inferior, enquanto tem de comum o
feitamente que o sentido, que recebe a forma da coisa conhecida mesmo gênero, não tem, contudo, semelhança completa com ela,
sem matéria, por certo, mas em condições materiais. E dentre os pois é determinada a uma certa espécie, fora da qual está a espécie
próprios sentidos, a vista é o mais cognoscitivo, por ser o menos da criatura inferior. Mas, a essência de Deus é a semelhança per­
material, como antes se disse (q. 78, a 3). E, dentre os intelectos, o feita de tudo, quanto a tudo o que se encontra nas coisas, como o
princípio universal de todas elas.
mais perfeito é o mais imaterial.
Do sobredito resulta, pois, que, se há algum intelecto que,
pela sua essência, conheça todas as coisas, necessário é que a sua ARTIGO III: Se a alma intelige todas as coisas por meio de espé­
essência contenha em si, imaterialmente, a todas elas; e é assim cies que lhe são naturalmente inatas.
que os antigos ensinavam que a essência da alma é atualmente
composta dos princípios de todos os seres materiais, para conhe­ O terceiro discute-se assim: Parece que a alma intelige to­
cer todas as coisas. Ora, é próprio de Deus ter a essência imateri­ das as coisas p o r espécies que lhe são naturalmente ínsitas.
almente compreensiva de todas as coisas, enquanto que os efeitos
preexistem virtualmente na causa. Portanto, só Deus intelige, pela 1. - Pois, diz Gregorio 3<,que “o homem tem de comum
sua essência, todas as coisas; não a alma humana nem o anjo. m m o anjo o inteligir”. Ora, o anjo intelige tudo por formas que
Donde ci resposta à primeira objeção. - No passo aduzido llu· são naturalmente ínsitas; por onde, se diz no livro Das cau-
Agostinho fala da visão imaginária, que se faz por imagens corpó­ ví/.v7" que “toda inteligência está cheia de formas”. Logo, também
reas. Para a formação de tais imagens, a alma dá algo da sua i alma tem ínsitas em si as espécies das coisas naturais, pelas
substância, assim como o sujeito é dado para ser informado por >11111 is intelige as coisas corpóreas.
alguma forma. E assim faz, de si mesma, tais imagens; não que a
alma ou algo da alma se converta a ser tal ou tal imagem, mas no
Homilía 2 9 sobre o Evangelho; PL 76 P 1 4
prop. X.
18II Sobre a alm a 12; 424a 30.
2. Demais. - A alma intelectiva é mais nobre que a maté- por isso Platão ensinava que o intelecto do homem está natural­
ria-prima corpórea. Ora, esta foi criada por Deus com formas, era mente cheio de todas as espécies inteligíveis, mas, pela união com
relação às quais está em potencia. Logo, com maior razão, a alma 0 corpo, é impedido de atualizar-se.
intelectiva foi criada por Deus com as espécies inteligíveis. E as­ Mas esta opinião não é conforme à verdade. - Primeiro,
sim, intelige as coisas corpóreas por espécies que lhe são natural­ porque, se a alma tem ciência natural de todas as coisas, não é
mente ínsitas. possível que se esqueça de tal modo dela que não tenha consciên­
3. Demais. - Ninguém pode responder a verdade senão do cia de a possuir. Pois, ninguém esquece o que naturalmente co­
que sabe. Mas, qualquer pessoa, sem ciência adquirida, pode res­ nhece, por exemplo, que qualquer todo é maior que a sua parte e
ponder à verdade atinente a cada assunto singular, contanto que coisas semelhantes. E, sobretudo, vê-se a incongruência de tal
seja habilmente interrogada, como narra Platão 41de um certo in­ opinião, se se admite como natural à alma estar unida ao corpo,
divíduo. Logo, antes de alguém adquirir a ciência, já tem conhe­ como antes ficou estabelecido (q. 76, a. 1), pois, é incongruente
cimento das coisas, o que não se daria, se a alma não tivesse espé­ que a operação natural a qualquer ser seja totalmente impedida
cies que lhe são naturalmente ínsitas. Logo, por tais espécies é |ior aquilo que é natural a ele. - Em segundo lugar, aparecerá ma­
que a alma intelige as coisas corpóreas. nifesta a falsidade de tal opinião no fato de, faltando algum senti­
Mas, em contrário, diz o Filósofo42, falando do intelecto, do, faltar a ciência daquilo que por esse sentido é apreendido; as­
que este “é como uma tábua na qual nada está escrito”. sim, o cego de nascença não pode ter nenhum conhecimento das
Solução. - Como a forma é o princípio da ação, necessário cores. Isso não se daria se ao intelecto da alma fossem natural­
é que uma coisa esteja para a forma, seu princípio de ação, como mente ínsitas as noções de todos os inteligíveis. - E, portanto,
está para a ação. Assim, se o ser movido para o alto provém da le- ileve-se concluir que a alma não conhece as coisas corpóreas por
vidade, aquilo que só potencialmente é levado para cima é leve só espécies que lhe sejam naturalmente ínsitas.
em potência; o que, porém, é levado em ato é leve em ato. Ora, Donde resposta à primeira objeção. - O homem tem de
vemos que o homem conhece, às vezes, só em potência, tanto comum com os anjos o inteligir, mas não tem a eminência do in-
quanto ao sentido como quanto ao intelecto. E de tal potência é iflecto deles. Do mesmo modo os corpos inferiores, que apenas
reduzido ao ato: para sentir, pelas ações dos sensíveis no sentido; existem, segundo Gregorio (loe. cit.), são deficientes em relação a
para inteligir, pelo estudo ou pela invenção. Por onde, deve-se di­ existência dos corpos superiores. Pois, a matéria dos corpos infe-
zer que a alma cognoscitiva está em potência tanto para as seme­ líores não é totalmente completa pela forma, mas é potencial em
lhanças, que são os princípios do sentir, como para as semelhan­ leluçáo às formas que não tem, ao passo que a matéria dos corpos
ças, que são os princípios do inteligir. E por isto Aristóteles (ibid.) i elestes é totalmente completa pela forma, de modo que não é
ensinou que o intelecto, pelo qual a alma intelige, não tem ne­ I" iloitcial em relação a outra forma, como já se demonstrou (q. 66,
nhumas espécies que lhe sejam naturalmente ínsitas, mas está, no 1 '). li, semelhantemente, o intelecto do anjo é perfeito, na sua
princípio, em potência em relação a todas essas espécies. iiulureza, pelas espécies inteligíveis; ao passo que o intelecto hu-
Mas, o que tem forma em ato não pode às vezes agir se­ iiHiiH) está em potência, em relação a tais espécies.
gundo essa forma, por causa de algum impedimento; assim se dá Resposta à segunda. - A matéria-prima tem o ser substan-
com um corpo leve, se ficar impedido de ser levado para cima. E ■ ml pela forma; por onde, era necessário que fosse criada sob al-
(Miina Ibrma, pois, do contrário, não existiria em ato. Porém, exis­
41 M enon 4. tindo sob uma forma, é potencial em relação às outras. Ao passo
12III S obre a alm a 4, 430a 1.
que o intelecto não tem o ser substancial pela espécie inteligível. sobre a qual o corpo opera; pois, de qualquer modo, o ser que
Por isso não cabe a comparação. opera é mais prestante que o ser do qual faz alguma coisa”. Donde
Resposta à terceira. - A interrogação ordenada procede de conclui que “não é o corpo que opera no espírito a sua própria
princípios comuns, conhecidos por si mesmos, para as noções imagem, mas o espírito que a causa em si mesmo”. Logo, o co­
próprias. E por tal processo é causada a ciência na alma do dis­ nhecimento intelectual não é derivado dos sentidos.
cente. Por onde, quando este responde à verdade a respeito da­ 3. Demais. - O efeito não se estende para além da virtude
quilo sobre o que é pela segunda vez interrogado, não é porque já da sua causa. Ora, o conhecimento intelectual, inteligindo o que o
a conhecesse de antemão, mas porque a apreende então pela pri­ sentido não pode perceber, vai além dos sensíveis. Logo, o conhe­
meira vez. E nada importa se quem ensina, propondo ou interro­ cimento intelectual não é derivado das coisas sensíveis.
gando, procede de princípios comuns, para a conclusão, pois de Mas, em contrário, como o prova o Filósofo45, o princípio
qualquer modo o espírito do ouvinte se certifica do que é posterior do nosso conhecimento provém do sentido.
pelo que é anterior. Solução. - Os filósofos se repartiram em três opiniões, no
tocante a este assunto. - Assim, Demócrito dizia, que “toda causa
ARTIGO VI: Se o conhecimento intelectivo dc qualquer conhecimento nosso está somente em que, dos corpos
é derivado das coisas sensíveis. em que pensamos, provêm imagens que entram em as nossas al­
mas”, segundo refere Agostinho46. E, como Aristóteles também
O sexto discute-se assim: Parece que o conhecimento in­ tvfere47, Demócrito ensinava que o conhecimento se opera por in-
telectivo não é derivado das coisas sensíveis. fluições das imagens. E a razão desta opinião é que tanto Demó-
ciito, como os outros antigos filósofos da natureza, não diferenci­
1. - Pois, diz Agostinho43, que “não se deve derivar a ple­ avam o intelecto do sentido, segundo Aristóteles48. E portanto,
nitude da verdade, dos sentidos do corpo”. O que prova de duplo c o m o o sentido é imutado pelo sensível, pensavam que todo o
modo. Primeiro, porque, “tudo o que o sentido corpóreo atinge, n o sso conhecimento se faz só pela imutação causada pelos sensí­
sofre comutação, sem nenhuma intermissão do tempo; ora, o que veis. E essa imutação Demócrito a explicava pelas influições das
não permanece não pode ser percebido” . De outro modo, porque Imagens.
“de todas as coisas que sentimos pelo corpo, conservamos as Platão porém, contrariamente, ensinava que o intelecto di-
imagens, mesmo quando já não estejam presentes aos sentidos; lere do sentido e é uma virtude imaterial, que não se serve, para o
como se dá no sono ou na loucura. Ora, pelos sentidos, não po­ '.rii ato, de órgão corpóreo. E como o incorpóreo não pode ser
demos discernir se sentimos os próprios sensíveis ou se as falsas imutado pelo corpóreo, concluía que o conhecimento intelectual
imagens deles. Mas, “nada pode ser percebido se não for discerni­ uno se faz pela imutação do intelecto, causada pelos sensíveis,
do do que é falso”. Donde conclui que dos sentidos não deve de­ ui.is sim pela participação das formas inteligíveis separadas, como
rivar a verdade. Porém, como o conhecimento intelectual é apre­ |n n o disse (a 4, 5). E também dizia ser o sentido uma virtude que
ensivo da verdade, não se pode derivá-lo dos sentidos. opera por si mesma. Por isso, segundo ele, o próprio sentido, por
2. Demais. - Agostinho diz44: “Não é admissível que o
corpo opere alguma coisa no espírito, como se este fosse a matéria 1 I Mt‘tt{f!sica 1, 981a 2; II A nalíticos P osteriores 15, 100a 3.
t 1'1 stola a D ióscoro 4; PL 33, 446.
41 Oitenta e três questões 9; PL 40, 13. Soh ir o sono e a vigília 464a 2.
44 XII Sobre o G ênesis a d litteram 16; PL 34, 467. "III Sobre a alm a 3 , 4 2 7 a 17-29.
ser uma virtude espiritual, não é imutado pelos sensíveis, mas os das outras coisas superiores, como queria Platão; mas, aquele
órgãos dos sentidos é que são imutados pelos sensíveis. E por esta agente mais nobre e superior, a que chamou intelecto agente, e de
imutação, a alma é, de certo modo, excitada de maneira a formar que já tratamos (q. 79. a. 3, 4), por meio de uma certa abstração
em si as espécies dos sensíveis. E parece que Agostinho49 alude a transforma os fantasmas, recebidos dos sentidos, em inteligíveis
esta opinião quando diz que “o corpo não sente; mas a alma sente em ato.
através do corpo, do qual usa, como de núncio, para formar em si Ora, segundo essa doutrina, a operação intelectual, quanto
mesma o que é anunciado de fora”. Assim, pois, segundo a opini­ aos fantasmas, é causada pelo sentido. Como, porém, os fantas­
ão de Platão, nem o conhecimento intelectual procede do sensível, mas não bastam para imutar o intelecto possível, mas é preciso
nem o conhecimento sensível procede totalmente das coisas sen­ que se tornem em inteligíveis em ato, por meio do intelecto agen­
síveis; mas, os sensíveis excitam a alma sensível para que sinta; e, te, não se pode dizer que o conhecimento sensível seja a causa
semelhantemente, os sentidos excitam a alma intelectiva para que perfeita e total do conhecimento intelectual, mas, antes e de certo
intelija. modo, é a matéria da causa.
Aristóteles, por fim, seguiu a via média. De um lado50, Donde a resposta à primeira objeção. - Pelas palavras
admite com Platão que o intelecto difere do sentido; mas, de ou­ citadas, Agostinho quer dizer que a verdade não deve ser buscada
tro, ensina que o sentido não tem operação própria, sem comuni­ lotalmente nos sentidos. Pois, é necessário o lume do intelecto
cação do corpo, de modo que sentir não é ato só da alma, mas do agente para que conheçamos imutavelmente a verdade nas coisas
conjunto. E o mesmo doutrina em relação a todas as operações da mutáveis, e discernamos as coisas mesmas, das suas semelhanças.
parte sensitiva. Como, pois, não há inconveniência em que os sen­ Resposta ci segunda. - Agostinho não se refere ao conhe­
síveis, exteriores à alma, causem alguma coisa no conjunto, Aris­ ci mento intelectual, mas ao imaginário. E como, segundo a opini-
tóteles concorda com Demócrito em que as operações da parte iU) de Platão, a virtude imaginária tem operação pertencente só à
sensitiva são causadas pela impressão dos sensíveis no sentido; .ilma, Agostinho, para mostrar que os corpos não imprimem as
não, porém, por influição, como Demócrito ensinara, mas por suas semelhanças na virtude imaginária, o que é feito pela própria
certa operação. Pois Demócrito ensinava que toda ação se dá por alma, usou da mesma razão de que usa Aristóteles para provai- que
influição dos átomos, como se vê em Aristóteles I51. Porém, o intelecto agente é algo de separado, a saber, que “o agente é
quanto ao intelecto, Aristóteles ensina52 que opera sem comunica­ mais nobre que o paciente”. E, segundo esta opinião, sem dúvida,
ção do corpo, pois nada do que é corpóreo pode imprimir-se num 0 forçoso admitir, na virtude imaginativa, não só uma potência
ser incorpóreo. Por onde, para causar a operação intelectual, se­ passiva, mas também uma ativa. Porém, se admitimos, conforme
gundo Aristóteles, não basta só a impressão dos corpos sensíveis, ii op inião de Aristóteles54, que a operação da virtude imaginativa
mas se requer algo de mais nobre, porque “o agente é mais nobre |HTlerçce ao conjunto, desaparece toda dificuldade; pois o corpo
que o paciente”, como ele mesmo o diz53. Não, porém, a ponto tal sensível é mais nobre que o órgão do animal, enquanto é compa­
que a operação intelectual seja causada em nós só pela impressão rado com este órgão como o ser em ato com o ser em potência, ao
m esm o modo por que o colorido em ato se compara com a pupila,
49 XII Sobre o G ênesis a d litteram 24; PL 34, 475.
t|iir é colorida em potência. - Mas também se ¡ ode dizer que, em-
511III Sobre a alm a 3, 427 b 6-14. 1ii ii a a primeira imutação da virtude imaginária se realize pelo
51 Sobre a geraçã o e a corru pção 8, 324b 25. movimento dos sensíveis, “por ser a fantasia um movimento sen-
52III S obre a alm a 4, 42 9 a 18-27.
" III Sobre a alm a 3, 430a 18. 11 I Sobre a alm a 1, 403a 5.
sfvel”, contudo, há no homem uma certa operação da alma que, Solução. - É cognoscível o que está em ato e não o que
dividindo e compondo, forma as diversas imagens das coisas, está em potência, como diz Aristóteles58; assim, um ser conhecido
mesmo as que não são recebidas dos sentidos. E nesta acepção é ente e verdadeiro, enquanto atual. O que manifestamente se vê
podem-se admitir as palavras de Agostinho. nas coisas sensíveis, pois a vista não percebe o colorido potencial,
Resposta à terceira. - O conhecimento sensitivo não é a mas só o atual. E, semelhantemente, é manifesto que o intelecto,
causa total do conhecimento intelectual. Por onde, não é de admi­ como cognoscitivo das coisas materiais, só conhece o que é atual;
rar se o conhecimento intelectual se estende para além daquele. donde vem que não conhece a matéria-prima, senão enquanto esta
lem proporção com a forma, como diz Aristóteles59. Por onde, as
Questão LXXXVII substâncias imateriais, na medida em que são atualizadas pela
própria essência, nessa mesma medida são inteligíveis por sua es­
ARTIGO I: Se a alma intelectiva se conhece a si mesma sência.
pela sua essência. Ora, a essência de Deus, que é ato puro e perfeito, é, em si
e perfeitamente, por si mesma inteligível. Por onde, Deus, pela
O prim eiro discute-se assim: Parece que a alma intelectiva sua essência, intelige, não só a si mesmo, como a todas as coisas.
se conhece a si mesma, pela sua essência. A essência do anjo, porém, pertence ao gênero dos inteligíveis,
como ato que é, mas não como ato puro e completo. Por onde, o
mleligir angélico não é completo pela essência do anjo, pois em­
1.- Pois, diz Agostinho33, que “a mente incorpórea co­ bora este se intelija a si mesmo pela sua essência, contudo não
nhece a si mesma por si mesma”. pode conhecer tudo por essa mesma essência, mas conhece as coi-
2. Demais. - O anjo e a alma humana convêm no gênero
.IX diferentes de si pelas semelhanças delas. - Ao passo que o in­
da substância intelectual comum. Ora, o anjo se intelige a si mes­
telecto humano se comporta, no gênero das coisas inteligíveis,
mo pela sua essência. Logo, também a alma humana. .miiente como ser potencial, assim como a matéria-prima se com­
3. Demais. - “Naquele em que não há matéria, o intelecto
poria no gênero das coisas sensíveis; e, por isso, ele se chama
se identifica com o que é inteligido”, como diz Aristóteles56. Ora,
possível. Assim, pois, considerado na sua essência, comporta-se
a alma humana não tem matéria, não sendo ato de nenhum corpo,
ruino potência inteligente. Por onde, tem de si mesmo virtude
como foi dito (q. 76, a. 1). Logo, nessa alma o intelecto se identi­ pina inteligir, não, porém, para ser inteligido, senão quando se
fica com o que é inteligido; e, portanto, ela se intelige pela sua es­ nliiiiliza. E assim, até os próprios platônicos admitiam a ordem
sência. il" entes inteligíveis como superior à dos intelectos, porque o in-
Mas, em contrário, como diz Aristóteles57, “o intelecto se
iHeclo não intelige senão pela participação do inteligível; ora, na
intelige tanto a si mesmo como as outras coisas” . Ora, estas ele as
i 'iimiao deles, o que participa é inferior ao que é participado.
intelige, não pela essência, mas pelas semelhanças delas. Logo,
Se, pois, o intelecto humano se atualizasse por participa-
também não se intelige a si, pela sua essência. i .ui ilas formas inteligíveis separadas, como ensinavam os platô-
nli o·,, por uma tal participação das coisas incorpóreas o intelecto
liiniiiino se inteligiria a si mesmo. Ora, como é conatural ao nosso
55IX Sobre a T rindade 3; PL 42, 963.
56 III Sobre a alm a 4, 430a 3. III M etafisica 9, 1 0 5 la 29.
57III Sobre a alma, loc. cit.. w l h \ i < n 7 , 191a 8.
intelecto, no estado da vida presente, referir-se às coisas materiais tado se acrescenta. De dois modos, porém, uma coisa pode ser
e sensíveis, como se disse antes (q. 84, a. 7), é conseqüente que considerada como conhecida por si mesma: porque lhe adquiri­
ele se intelija a si mesmo, na medida em que é atualizado pelas mos o conhecimento sem ser pelo intermédio de nenhuma outra e,
espécies abstraídas das coisas sensíveis, pela luz do intelecto assim, é que se consideram os primeiros princípios conhecidos
agente, que é o ato dos próprios inteligíveis e, mediante estes, ato por si mesmos; ou porque não é cognoscível por acidente, como a
do intelecto possível. Logo, não é pela sua essência, mas pelo seu cor é visível por si e a substância, por acidente.
ato, que o nosso intelecto se conhece a si mesmo. E isto, de dois Resposta à segunda. - A essência do anjo está, como ato,
modos. - Particularmente, enquanto Sócrates ou Platão percebe a no gênero dos inteligíveis e, portanto, se comporta como intelecto
si mesmo como tendo urna alma intelectiva, porque percebe que r coino coisa inteligida. Por onde, o anjo apreende a sua essência
intelige. - De outro modo, universalmente, enquanto considera­ por si mesmo. Não porém o intelecto humano que, ou é absoluta­
mos a natureza da mente humana pelo ato do intelecto. mente potencial, em relação aos inteligíveis, como intelecto pos­
É verdade, porém, que o juízo e a eficácia deste conheci­ sível; ou é o ato dos inteligíveis abstraídos dos fantasmas, como
mento, pelo qual conhecemos a natureza da alma, compete-nos iiilelecto agente.
pela derivação da luz do nosso intelecto, da verdade divina, na Resposta à terceira. - O passo citado do Filósofo é uni­
qual se contêm as razões de todas as coisas, como antes se disse versalmente verdadeiro de todo intelecto. Pois, assim como o
(q. 84, a. 5). Por onde, Agostinho diz60: “Contemplamos a verdade sentido em ato é o sensível em ato, por causa da semelhança do
inviolável, pela qual, tão perfeitamente quanto podemos, defini­ sensível, que é a forma do sentido em ato; assim o intelecto em
mos, não qual seja a mente de cada homem, mas qual deva ser iilo e a coisa inteligida em ato, por causa da semelhança da coisa
pelas razões sempiternas”. iiileligida que é a forma do intelecto em ato. Por onde, o intelecto
Ora, há diferença entre estes dois conhecimentos. - Pois, Immano, que se torna em ato pela espécie da coisa inteligida, é
para se ter o primeiro conhecimento da alma, basta a presença inleligido pela mesma espécie, como pela sua forma. Pois, dizer
mesma desta, que é o princípio do ato, pelo qual a alma se perce­ 11'ie, nos seres que não têm matéria, o intelecto é idêntico ao inte-
be a si mesma. - Mas, para ter da alma o segundo conhecimento, lipulo, é o mesmo que dizer que, nas coisas inteligidas em ato, o
não basta a presença da mesma, mas requer-se diligente e sutil in­ luí electo é idêntico ao que é inteligido. Porquanto, o que é inteli-
quisição. Donde vem que muitos ignoram a natureza da alma, e !'iiln cm ato o é porque não tem matéria. Mas a diferença está em
muitos erraram também sobre a natureza dela. Pelo que Agostinho que as essências de certos seres não têm matéria; assim, as subs-
diz61, falando de tal inquisição da alma: “Que a alma não procure lilueias separadas, a que chamamos anjos, das quais cada uma
considerar-se como ausente, mas cure de se discernir como pre­ imito é inteligida como inteligente. Há porém certas coisas das
sente”, isto é, conhecer a sua diferença das outras coisas, o que é ' I"1"·' as essências não existem sem matéria, mas só as semelhan-
conhecer a sua qüididade e natureza. Mi . abstraídas delas existem sem matéria. Por onde, diz o Co-
Donde a resposta à primeira objeção. - A alma se conhe­ 1,11 nliulor6“, que a proposição induzida só é verdadeira das subs-
ce a si mesma por si mesma, porque, afinal, chega ao conheci­ ....... separadas: nelas verifica-se, de certo modo, o que não se
mento de si mesma, embora por ato seu. Pois, é ela mesma que é 1i li tea em outros seres, como já se disse.
conhecida, porque se ama a si mesma, como no mesmo passo ci­

í,(l IX Sobre a T rindade 6; PL 42, 966.


61 X Sobre a T rindade 9; PL 42, 980. III \ i ‘hrr a alma, com. XV.
Questão LXXXIX se voltar para os fantasmas, como a experiência o prova. Se, po­
rém, como queriam os platônicos, não é pela sua natureza que a
ARTIGO I: Se a alma separada pode inteligir alguma coisa. alma assim intelige, mas só por acidente, enquanto unida ao cor­
po, então a questão pode resolver-se facilmente, pois, removido o
O prim eiro discute-se assim: Parece que a alma separada impedimento do corpo, a alma tornaria à sua natureza, inteligindo
não pode inteligir absolutamente nada. simplesmente os inteligíveis, sem se voltar para os fantasmas,
como acontece com as outras substâncias separadas. Mas, segun­
1.- Pois, como diz o Filósofo63, “corrompe-se o inteligir do tal opinião, não foi para a sua perfeição que a alma foi unida
de ficar com uma certa corrupção interna”. Mas, tudo o que é in­ ao corpo, desde que intelige menos, unida a este, do que separada
terno no homem corrompe-se pela morte. Logo, também há de do mesmo, mas só para a perfeição do corpo. O que é irracional,
coiTomper-se o próprio inteligir. porque a matéria existe para a forma e não inversamente. Se, po-
2. Demais.- A alma humana, como já se disse (q. 84, a. 7, ivm, admitirmos que a alma intelige, por natureza, voltando-se
8), pode ser impedida de inteligir pela obstrução dos sentidos e para os fantasmas, como essa natureza não se muda pela morte do
pela imaginação perturbada. Ora, pela morte, os sentidos e a ima­ corpo, resulta que a alma, então, nada poderá inteligir, natural­
ginação se corrompem totalmente, como resulta do sobredito (q. mente, por não lhe estarem presentes os fantasmas para os quais
77, a. 8). Logo, a alma, depois da morte, nada intelige. si* volte.
3. Demais. - Se a alma separada intelige, necessariamente Ora, para eliminar a dificuldade presente, deve-se consi­
há de inteligir por meio de certas espécies. Ora, não intelige por derar que, como nenhum ser opera senão enquanto está em ato, o
meio de espécies inatas, porque, a princípio, “é como uma tábua modo de qualquer coisa operar segue-se-lhe ao modo de ser. Ora,
na qual nada está escrito”. Nem por meio de espécies que abstraia um é o modo de ser da alma enquanto unida ao corpo, e outro,
das coisas, porque então não tem os órgãos do sentido e da imagi­ quando dele separada, permanecendo porém sempre a mesma a
nação, mediante os quais as espécies inteligíveis são abstraídas nalureza dela. Não que lhe seja acidental o estar unida ao corpo,
das coisas. Nem ainda por meio de espécies já anteriormente abs­ pois isso acontece em virtude de sua natureza; assim como tam-
traídas e conservadas na alma, porque, neste caso, a alma da cri­ Ihíii a natureza leve não se muda quando está no seu lugar pró-
ança nada inteligiria, depois da morte. Nem, enfim, por meio de prlo, como lhe é natural, e quando está fora desse lugar, o que lhe
espécies inteligíveis divinamente influídas, pois tal conhecimento ¡1 contra a natureza. Por onde, segundo o modo de ser pelo qual

não seria o natural, que é o de que agora se trata, mas o da graça. i .i,i unida ao corpo, à alma é próprio o modo de inteligir que con-
Logo, a alma separada do corpo nada intelige. ■.1'ilit cm voltar-se para os fantasmas dos corpos, que estão nos ór-
Mas, em contrário, diz o Filósofo6 , que “se a alma não fiios corpóreos. Quando, porém, estiver separada do corpo, ser-
tem nenhuma operação própria, não pode existir separada” . Ora, liic ii próprio o modo de inteligir consistente em voltar-se para o
ela pode existir separada. Logo, tem operação que lhe é própria e, • | i m · é absolutamente inteligível, como sucede com as demais
sobretudo, a de inteligir. Logo, intelige quando separada do corpo. ui« ¡tancias separadas do corpo. E, portanto, o modo de inteligir,
Solução. - Esta questão encerra dificuldade porque a *|io■ consiste em voltar-se para os fantasmas, é natural à alma,
alma, enquanto está unida ao corpo, não pode inteligir nada sem i nino natural lhe é o estar unida ao corpo; mas, como está fora da
rv.iMicia da sua natureza o existir separada do corpo, semelhante-
63 I Sobre a alm a 4, 408b 24. Miriiiti, e-lhe contra a natureza inteligir sem se voltar para os fan-
64 I Sobre a alm a 1, 403a 11.
tasmas. E é para operar conforme a sua natureza que está unida ao pois a perfeição do universo exigia que houvesse diversos graus
corpo. nas coisas. Por onde, se as almas humanas fossem instituídas por
Mas aqui surge ainda uma dúvida. Pois, como as coisas Deus de maneira que inteligissem pelo modo próprio às substân­
sempre se ordenam para o que lhes é melhor, e como é melhor cias separadas, elas não teriam um conhecimento perfeito, mas
modo de inteligir o que consiste em voltar-se para os puramente confuso e em comum. E portanto, para que pudessem ter das coi­
inteligíveis, do que o consistente em voltar-se para os fantasmas, sas um conhecimento perfeito e próprio, foram naturalmente ins­
Deus devia ter instituído a natureza da alma tal que lhe fosse natu­ tituídas de maneira a estarem unidas aos corpos, de modo que ti­
ral o modo de inteligir mais nobre, sem que ela precisasse, para rem dos seres sensíveis um conhecimento próprio deles, assim
isto, de estar unida ao corpo. como aos homens rudes não pode ser comunicada a ciência senão
Deve-se, pois, considerar que, embora inteligir, voltando- por meio de exemplos sensíveis. Por onde é claro que é para a sua
se para o que é superior, seja absolutamente mais nobre do que in­ perfeição que a alma se acha unida ao corpo e intelige voltando-se
teligir voltando-se para os fantasmas, contudo, aquele modo de in­ para os fantasmas, e contudo, pode existir separada e ter outro
teligir, conquanto possível à alma, seria mais imperfeito. O que as­ modo de inteligir.
sim se evidencia. Em todas as substancias intelectuais a virtude Donde a resposta à primeira objeção. - Discutidas dili­
intelectiva existe por influência do lume divino. Ora, este, no pri­ gentemente as palavras do Filósofo, ver-se-á que ele diz tal em
meiro princípio, é um e simples, e quanto mais as criaturas inte­ virtude de uma suposição anteriormente feita, a saber, que inteli-
lectuais distam do primeiro princípio, tanto mais se divide e diver­ jlir, assim como sentir, é um certo movimento do composto. Pois,
sifica esse lume, como se dá com as linhas que partem do centro. E .linda não mostrara a diferença entre o intelecto e o sentido. - Ou
daí vem que Deus, pela sua essência una, intelige todas as coisas. no pode dizer que fala do modo de inteligir que consiste em vol-
Porém as substancias intelectuais superiores, embora intelijam por i.ii se para os fantasmas.

meio de várias formas, contudo estas são em menor número, mais Donde também se origina a segunda objeção.
universais e mais aptas para a compreensão das coisas, por causa Resposta à terceira objeção. - A alma separada não inte-
da eficácia da virtude intelectiva dessas substâncias. Ao passo que, ll|'c por espécies inatas, nem por espécies que abstrai na ocasião,
nas substâncias inferiores, as formas são em maior número, menos ncin só por espécies conservadas, como afirma a objeção; mas por
universais e menos eficazes para a compreensão das coisas, porque i \|mvícs participadas pela influência do divino lume, das quais a
elas são deficientes em relação à virtude intelectiva das superiores. ui ma sc torna participante do mesmo modo que as outras substân-
Se, portanto, as substâncias inferiores tivessem formas da mesma ' 11r. separadas, embora em grau inferior. Donde, logo que ela ces-
universalidade que as das superiores, como tais substâncias não Ntt do sc voltar para o corpo, volta-se para o que é superior. Mas
têm a mesma eficácia no inteligir, não obteriam por meio dessas tu in por isso o seu conhecimento deixa de ser natural, porque
formas um conhecimento perfeito das coisas, mas um conheci­ I Viis e o autor não só da influência do lume gratuito, mas também
mento comum e confuso. O que, de certo modo, se manifesta nos il'i iinliira!.
homens. Assim, os de intelecto mais fraco não obtêm, pelas con­
cepções universais dos mais inteligentes, um conhecimento per­
feito, se não lhes explicarem cada questão em especial.
Ora, é manifesto que, entre as substâncias intelectuais,
conforme a ordem da natureza, as ínfimas são as almas humanas,

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