Marilena Chauí - Unid. 8 - Capítulo 10

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Marilena Chau Capitulo 10 A politica contra a servidao voluntaria A tradigao libertaria As teorias socialistas modernas sao herdeiras da tradigdo libertaria, isto ¢, das lutas sociais ¢ politicas populares por liberdade ¢ justiga contra a opressio dos poderosos. Nessa tradigdo encontram-se as revoltas camponesas ¢ dos artestios do final da Idade Média, do inicio da Reforma Protestante e da Revolugio Inglesa de 1644. Essas revoltas so conhecidas como milenaristas, pois, como vimos, as classes populares possuem como referencial para compreender ¢ julgar a politica as imagens biblicas do Paraiso, da Nova Jerusalém ¢ do tempo do fim, quando 0 Bem vencerd perpetuamente o Mal, instaurando o Reino dos Mil Anos de felicidade e justiga. Na Revolugdo Inglesa, os pobres tinham certeza de que chegara 0 tempo do fim ¢ se aproximava o milénio. Viam os sinais do fim: fome, peste, guerras, eclipses, cometas, prodigios inexplicéveis, que anunciavam a vinda do Anti-Cristo e exigiam que fosse combatido pelos justos e bons. Em geral, o Anti-Cristo era identificado @ pessoa de um governante tirénico: papas, reis, imperadores. Contra ele, os pobres se reuniam em comunidades igualitérias, armavamese e partiam para a luta, pois deveriam preparar 0 mundo para a chegada triunfal de Cristo, que venceria definitivamente o Anti-Cristo. A esperanga milenarista sempre viu a luta politica como conflagragio césmica entre aluze a treva, o justo € 0 injusto, o bem e o mal. Também na tradigdo libertiria encontrase a obra de um jovem filésofo francés, La Boétie, escrita no século XVI, depois da derrota popular contra os exércitos e fiscais do rei, que vinham cobrar um novo imposto sobre o sal. La Boétie indaga como é possivel que burgos inteiros, cidades inteiras, s submetam a vontade de um s6, em geral 0 mais covarde e temeroso de todos. De onde um $6 tira o poder para esmagar todos os outros? Duas sio as respostas. Na primeira, La Boétie mostra que ndo é por medo que obedecemos & vontade de um s6, mas porque desejamos a tirania, Como explicar que © tirano, cujo corpo é igual ao nosso, tenha crescido tanto, com mil olhos ¢ mil ouvidos para nos espionar, mil bocas para nos enganar, mil maos para nos esganar, mil pés para nos pisotear? Quem Ihe deu os olhos ¢ os ouvidos dos espides, as bocas dos magistrados, as mos e os pés dos soldados? O préprio povo. - 527 - Convite a Filosofia A sociedade é como uma imensa pirdmide de tiranetes que se esmagam uns aos outros: o corpo do tirano é formado pelos seis que o aconselham, pelos sessenta que protegem os seis, pelos seiscentos que defendem os sessenta, pelos seis mil que servem aos seiscentos e pelos seis milhdes que obedecem aos seis mil, na esperanga de conseguir o poder para mandar em outros. A primeira resposta nos diz que o poder de um s6 sobre todos foi dado ao tirano por nosso desejo de sermos tiranos também. A segunda resposta, porém, vai mais fundo. La Bostic indaga: De onde vem o proprio desejo de tirania? Do desejo de ter bens e riquezas, do desejo de ser proprietério. Mas de onde vem esse desejo de ter, de posse? Do desprezo pela liberdade. Se desejassemos verdadeiramente a liberdade, jamais a trocariamos pela posse de bens, que nos escravizam aos outros e nos submetem a vontade dos mais fortes e tiranos. Ao trocar 0 direito 4 liberdade pelo desejo de posses, aceitamos algo terrivel: a servidio voluntiria Nao somos obrigados a obedecer ao tirano e aos seus representantes, mas desejamos voluntariamente servi-los porque deles esperamos bens e a garantia de nossas posses. Usamos nossa liberdade para nos tornarmos servos. Como derrubar um tirano e reconquistar a liberdade A resposta de La Bostic ¢ espantosa: basta nao dar ao tirano o que ele pede ¢ exige. Nao & preciso tomar das armas e fazer-Ihe a guerra, Basta que nio seja dado 0 que este deseja e sera derrubado. Que quer ele? Nossa consciéncia e nossa liberdade, sob 0 descjo de posses e de mando, Se no trocarmos nossa consciéncia pela posse de bens e se no trocarmos nossa liberdade pelo desejo de mando, nada daremos ao tirano e, sem poder, ele caira como um idolo de barro. Das lutas populares e das tradigdes libertérias nascem as teorias socialistas modernas. As teorias socialistas Sao trés as principais correntes socialistas modernas. Vejamos, a seguir, 0 que cada uma defende, Socialismo utépico a corrente socialista vé a classe trabalhadora como despossuida, oprimida e geradora da riqueza social sem dela desfrutar. Para ela, os tedricos imaginam uma nova sociedade onde nao existam a propriedade privada, 0 lucro dos capitalistas, a exploragdo do trabalho ¢ a desigualdade econdmica, social ¢ politica, Imaginam novas cidades, organizadas em grandes cooperativas geridas pelos trabalhadores ¢ nas quais haja escola para todos, liberdade de pensamento ¢ de expressio, igualdade de direitos sociais (moradia, alimentago, transporte, vide), abundancia ¢ felicidade - 528 - Marilena Chau As cidades so comunidades de pessoas livres e iguais que se autogovernam. Por serem cidades perfeitas, que ndo existem em parte alguma, mas que serdo criadas pela vontade livre dos despossuidos, diz-se que so cidades ut6picas e as teorias que as criaram so chamadas de utopias". Os principais socialistas utépicos foram os franceses Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Louis Blane ¢ Banqui, ¢ 0 inglés Owen. Anarquismo O principal teérico dessa corrente socialista foi o russo Bakunin, inspirado nas idéias socialistas de Proudhon. Seu ponto de partida é a critica do individualismo burgués © do Estado liberal, considerado autoritério e antinatural. Como Rousseau, os anarquistas acreditam na liberdade natural e na bondade natural dos seres humanos e em sua capacidade para viver felizes em comunidades, atribuindo a origem da sociedade (os individuos isolados e em luta) a propriedade privada e a exploragdo do trabalho, e a origem do Estado ao poder dos mais fortes (os proprietarios privados) sobre os fracos (0s trabalhadores). Contra o artificialismo da sociedade e do Estado, propdem o retorno a vida em comunidades autogovernadas, sem a menor hierarquia e sem nenhuma autoridade com poder de mando e diregao, Afirmam dois grandes valores: a liberdade e a responsabilidade, em cujo nome propdem a descentralizagao social ¢ politica, a participagdo direta de todos nas decisdes da comunidade, a formagio de organizagées de baitro, de fébrica, de educagdo, moradia, saiide, transporte, etc. Propdem também que essas organizages comunitérias participativas formem federagdes nacionais e internacionais para a tomada de decisdes globais, evitando, porém, a forma parlamentar de representagio e garantindo a democracia direta. ‘As comunidades e as organizagées comunitarias enviam delegados as federagdes. Os delegados sdo eleitos para um mandato referente exclusivamente ao assunto que sera tratado pela assembléia da federagio; terminada a assembléia, 0 mandato também termina, de sorte que ndo ha representantes permanentes. Visto que o delegado possui um mandato para expor e defender perante a federagdo as opinides e decisées de sua comunidade, se no cumprir o que lhe foi delegado, seu mandato ser revogado ¢ um outro delegado ele! Como se observa, os anarquistas procuram impedir o surgimento de aparelhos de poder que conduzam a formagio do Estado. Recusam, por isso, a existéncia de exércitos profissionais e defendem a tese do povo armado ou das mili populares, que se formam numa emergéncia e se dissolvem to logo o problema tenha sido resolvido. Consideram o Estado nacional obra do autoritarismo © da opressio capitalista e, por isso, contra ele, defendem o internacionalismo sem fronteiras, pois “sé 0 capital tem patria” e os trabalhadores so “cidadios do mundo”, - 529 - Convite a Filosofia Os anarquistas so conhecidos como libertarios, pois lutam contra todas as formas de autoridade e de autoritarismo. Além de Bakunin, outros importantes anarquistas foram: Kropotkin, Ema Goldman, Tolstoi, Malatesta e George Onwell, autor do livro 1984 Comunismo ou socialismo cientifico Critico no sé do Estado liberal, mas também do socialismo utépico e do anarquismo. Encontra-se desenvolvido nas obras de Marx e Engels A perspectiva marxista Com a obra de Marx, estamos colocados diante de um acontecimento comparavel apenas ao de Maquiavel. Embora suas teorias sejam completamente diferentes, pois respondem a experiéneias histéricas e a problemas diferentes, ambos representam uma mudanga decisiva no modo de conceber a politica e a relagdo entre sociedade e poder. Maquiavel desmistificou a teologia politica e 0 republicanismo italiano, que simplesmente pretendia imitar gregos © romanos. Marx desmistificou a politica liberal. Marx parte da critica da economia politica. A expressio economia politica & curiosa. Com efeito, a palavra economia vem do grego, oikonomia, composta de dois vocdbulos, oikos ¢ nomos. Oikos & a casa ou familia, entendida como unidade de produgio (agricultura, pastoreio, edificagdes, artesanato, trocas de bens entre familias ou trocas de bens por moeda, ete.). Nomos significa regra, acordo convencionado entre seres humanos ¢ por cles respeitado nas relagdes sociais. Oikonomia 6, portanto, o conjunto de normas de administrago da propriedade patrimonial ou privada, dirigida pelo chefe da familia, o despotes. Vimos que os gregos inventaram a politica porque separaram o espago privado — a oikonomia — e 0 espago piblico das leis ¢ do direito - a polis. Como, entio, falar em “economia politica”? Os dois termos nao se excluem reciprocamente? A critiea da economia politica consiste, justamente, em mostrar que, apesar da afirmagdes greco-romanas e liberais de separagio entre a esfera privada da propriedade e a esfera piiblica do poder, a politica jamais conseguiu realizar a diferenga entre ambas. Nem poderia. O poder politico sempre foi a maneira legal € juridica pela qual a classe economicamente dominante de uma sociedade manteve seu dominio. O aparato legal e juridico apenas dissimula o essencial: que 0 poder politico existe como poderio dos economicamente poderosos, para servir seus interesses e privilégios e garantir-Ihes a dominago social. Divididas entre proprietarios e ndo-proprietarios (trabalhadores livres, escravos, servos), as sociedades jamais foram comunidades de iguais ¢ jamais permitiram que o poder politico fosse compartilhado com os nao-proprietérios. Por que a expresso economia politica torou-se possivel na modernidade e, doravante, visivel? Porque a idéia modema liberal de sociedade civil tomou - 530 - Marilena Chau explicita a significagdo da economia politica, ainda que a ideologia liberal exista para esconder tal fato. De fato, a economia politica surge como ciéneia no final do século XVIII ¢ inicio do século XIX, na Franga e na Inglaterra, para combater as limitagdes que 0 Antigo Regime impunha ao capitalismo. As restrigdes econémicas proprias da sociedade feudal e 0 controle da atividade mercantil pelo Estado monarquico eram vistos como prejudiciais ao desenvolvimento da “riqueza das nagdes”. Baseando-se nos mesmos principios que criaram o liberalismo politico, a economia politica é elaborada como liberalismo econdmico. Diferentemente dos gregos, que definiram 0 homem como animal politico, ¢ diferentemente dos medievais, que definiram 0 homem como ser socidvel, a economia politica define 0 homem como individuo que busca a satisfagdo de suas necessidades, consumindo © que a Natureza the oferece ou trabalhando para obter riquezas ¢ bemestar. Por ser mais vantajosa aos individuos a vida em comum, pactuam para criar a sociedade e o Estado. As idéias de Estado, de Natureza e de direito natural conduziram a duas nogdes. essenciais 4 economia politica: a primeira é a nogdo de ordem natural racional, que garante a todos os individuos a satisfagdo de suas necessidades e seu bem- estar; a segunda é a nogdo de que, seja por bondade natural, seja por egoismo, os homens agem em seu proprio beneficio ¢ interesse e, assim fazendo, contribuem para o bem coletivo ou social. A propriedade privada ¢ natural e itil socialmente, além de legitima moralmente, porque estimula o trabalho © combate 0 vicio da preguig: A economia politica buscara as leis dos fenémenos econémicos na natureza humana e os efeitos das causas econémicas sobre a vida social. Visto que a ordem natural é racional e que os seres humanos possuem liberdade natural, a economia politica deveré garantir que a racionalidade natural e a liberdade humana se realizem por si mesmas, sem entraves e sem limites. Para alguns economistas politicos, como Adam Smith, a concorréncia (ou lei econémica da oferta e da procura) é responsavel pela riqueza social e pela harmonia entre interesse privado ¢ interesse coletivo. Para outros, como David Ricardo, as leis econémicas revelam antagonismos entre os varios interesses dos grupos sociais. Assim, por exemplo, a diferenga entre o prego das mercadorias ¢ os saldrios indica uma oposigo de interesses na sociedade, de modo que a concorréneia exprime esses conflitos sociais. Em ambi ‘os, porém, a economia se realiza como sociedade civil capaz de se autoregular, sem que 0 Estado deva interferir na sua liberdade. Donde 0 liberalismo econémico fundando o liberalismo politico. os Marx indaga: O que é a sociedade civil? E responde: Nao é a manifestagdo de uma ordem natural racional nem o aglomerado conflitante de individuos, familias, grupos ¢ corporagées, cujos interesses antagdnicos serio conciliados -531- Convite a Filosofia pelo contrato social, que instituiria a agdo reguladora e ordenadora do Estado, expresso do interesse e da vontade gerais. A sociedade civil é 0 sistema de relagdes sociais que organiza a produgio econémica (agricultura, indistria comércio), realizando-se através de instituigdes sociais encaregadas de reproduzi-lo (familia, igrejas, escolas, policia, partidos politicos, meios de comunicagio, etc.). B 0 espago onde as relagdes sociais © suas formas econémicas ¢ institucionais sio pensadas, interpretadas e representadas por um conjunto de idéias morais, religiosas, juridicas, pedagégicas, artisticas, cientifico- filos6ficas e politicas. A sociedade civil ¢ © processo de constituigdo e reposigdo das condigdes materiais da produgiio econémica pelas quais so engendradas as classes sociais os proprietérios privados dos meios de produgdo e os trabalhadores ou ndo- proprietérios, que vendem sua forga de trabalho como mercadoria submetida & lei da oferta © da procura no mercado de mao-de-obra. Essas classes sociais sio antagénicas © seus conflitos revelam uma contradigio profunda entre os interesses irreconciliaveis de cada uma delas, isto &, a sociedade civil se realiza como uta de classes. Sem duvida, os liberais esto certos quando afirmam que a sociedade civil, por ser esfera econdmica, ¢ a esfera dos interesses privados, pois ¢ exatamente isso 0 que ela é. O que é, porém, o Estado? Longe de diferenciar-se da sociedade civil ¢ de separar-se dela, longe de ser a expressiio da vontade geral ¢ do interesse geral, o Estado € a expressio legal — juridica ¢ policial - dos interesses de uma classe social particular, a classe dos proprietirios privados dos meios de produgo ou classe dominante, E 0 Estado nao é uma imposigao divina aos homens, nem € o resultado de um pacto ou contrato social, mas ¢ a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominagdo sobre 0 todo social. O Estado é a expressio politica da luta econémico-social das classes, amortecida pelo aparato da ordem (juridica) e da forga publica (policial ¢ militar). Nao é, mas aparece como um poder piblico distante e separado da sociedade civil. Nao por acaso, © liberalismo define o Estado como garantidor do direito de propriedade privada e, ndo por acaso, reduz a cidadania aos direitos dos proprietarios privados (vimos que a ampliagdo da cidadania foi fruto de luta populares contra as idéias e priticas liberais) A economia, portanto, jamais deixou de ser politica. Simplesmente, no capitalismo, 0 vinculo interno e necessario entre economia e politica tomou-se evidente. No entanto, se perguntarmos as pessoas que vivem no Estado liberal capitalista se, para elas, é evidente tal vinculo, certamente dirdo que nao, Por que 0 vinculo - 532 - Marilena Chau intemo entre o poder econdmico e o poder politico permanece invisivel aos olhos da maioria? Marx faz duas indagagdes: 1. Como surgiu 0 Estado? Isto é, como os homens passaram da submissio ao poder pessoal visivel de um senhor 4 obediéneia ao poder impessoal invisivel de um Estado? 2. Por que o vinculo entre o poder econdmico ¢ o poder politico no é percebido pela sociedade e, sobretudo, por que nio é percebido pelos que nao tém poder econémico nem politico? Antecedentes da teoria marxista Antes de examinarmos as respostas de Marx a essas indagagdes, devemos lembrar um conjunto de idéias e de fatos, existentes quando ele iniciou seu trabalho teérico. Do ponto de vista dos fatos, estamos na era do desenvolvimento do capitalismo industrial, com a ampliagdo da capacidade tecnolégica de dominio da Natureza pelo trabalho ¢ pela técnica. Essa ampliago aumenta também o campo de ago do capital, que passa a absorver contingentes cada vez maiores de pessoas no mercado da mao-de-obra ¢ do consumo, rumando para 0 mercado capitalista mundial. A burguesia se organiza através do Estado liberal, enquanto os trabalhadores industriais ou proletérios se organizam em associagées profissionais e sindicatos para as lutas econémicas (salarios, jornada de trabalho), sociais (condigdes de vida) ¢ politicas (reivindicagdo de cidadania). Greves, revoltas e revolugdes eclodem em toda a parte, as mais importantes vindo a ocorrer na Franga em 1830, 1848 ¢ 1871. No Brasil, em 1858, eclode a primeira greve dos trabalhadores e, em 1878, a primeira greve dos trabalhadores do campo, em Amparo (Estado de Sao Paulo). Simultaneamente, consolida-se (em alguns paises) ou inicia-se (em outros paises) © Estado nacional unificado e centralizado, definido pela unidade territorial pela identidade de lingua, religido, raga e costumes. O capital precisa de suportes territoriais e por isso leva 4 constituigdo das nagdes, forgando, pelas guerras & pelo direito internacional, a delimitagao e a garantia de fronteiras e, pelo aparato juridico, policial e escolar, a unidade de lingua, religido e costumes, Em suma, inventa-se a patria ou nagio, sob a forma de Estado nacional. Como se observa, a nagio ndo é natural, nem existe desde sempre, mas foi inventada pelo capitalismo, no século XIX. Do ponto de vista das idéias, além das teorias liberais e socialistas e da economia politica, Hegel propde uma filosofia politica, a filosofia do direito. - 533 - Convite a Filosofia Hegel explica a génese do Estado moderno sem recorrer & teoria do direito natural e do contrato social. O Estado surge como superagdo nacional das limitagdes que bloqueavam o desenvolvimento do espirito humano: o isolamento dos individuos na familia e as lutas dos interesses privados na sociedade civil. 0 Estado absorve ¢ transforma a familia e a sociedade civil numa totalidade racional, mais alta e perfeita, que exprime o interesse ¢ a vontade gerais. Por isso, 6a realizagiio mais importante - ¢ a diltima — da razio na Histéria, uma vez que supera os particularismos numa unidade universal, que, pelo direito, garante a ordem, a paz, a moralidade, a liberdade e a perfeigdo do espirito humano. A Historia é a passagem da familia & sociedade civil ¢ desta ao Estado, término do processo histérico. Esse processo é concebido como realizagio da Cultura, isto é, da diferenga e da separagdo entre Natureza e Espirito e como absorgiio da primeira pelo segundo. O proceso histérico é desenvolvimento da consciéncia, que se torna cada vez mais consciente de si através das obras espirituais da Cultura, isto é, das idéias que se materializam em instituigdes sociais, religiosas, artisticas, cientifico-filos6ficas e politicas. O Estado é a sintese final da criagdo racional ou espiritual, expresso mais alta da Idéia ou do Espirito. Liberalismo politico, liberalismo econémico ou economia politica ¢ idealismo politico hegeliano formam 0 pano de fundo do pensamento de Marx, voltado para a compreenstio do capitalismo ¢ das lutas proletirias. Contra o liberalismo politico, Marx mostraré que a propriedade privada no ¢ um direito natural ¢ © Estado no resultado de um contrato social. Contra a conomia politica, mostrar que a economia nio é expressio de uma ordem natural racional. Contra Hegel, mostrard que o Estado nao é a Idéia ou o Espirito encamnados no real e que a Histéria nao é 0 movimento da consciéncia e suas idéias. Génese da sociedade ¢ do Estado Dissemos acima que Marx indaga como os homens passaram da submissio ao poder pessoal de um senhor 4 obediéncia ao poder impessoal do Estado, Para responder a essa questio, é preciso desvendar a génese do Estado. Os seres humanos, escrevem Marx e Engels, distinguem-se dos animais no porque sejam dotados de consciéncia — animais racionais -, nem porque sejam naturalmente socidveis e politicos — animais politicos -, mas porque so capazes de produzir as condiges de sua existéncia material e intelectual, Os seres humanos so produtores: sio 0 que produzem e sio como produzem, A produgio das condigdes materiais e intelectuais da existéncia nio sio escolhidas livremente pelos seres humanos, mas estio dadas objetivamente, independentemente de nossa vontade, Eis porque Marx diz que os homens fazem sua propria Histéria, mas nfo a fazem em condigdes escolhidas por cles. Sdo historicamente determinados pelas condigdes em que produzem suas vidas. -534- Marilena Chau A produgio material e intelectual da existéncia humana depende de condigées naturais (as do meio ambiente e as biolégicas da espécie humana) e da procriagao, Esta nao é apenas um dado bioldgico (a diferenga sexual neces para a reprodugao), mas j4 é social, pois decorre da maneira como se di intercdmbio e a cooperagao entre os humanos e do modo como ¢ simbolizada psicolégica e culturalmente a diferenga dos sexos. Por seu turno, a maneira como os humanos interpretam e realizam a diferenga sexual determina 0 modo como fario a divisio social do trabalho, distinguindo trabalhos masculinos, femininos, infantis e de velhice A produgio ¢ a reprodugio das condigdes de existéncia se realizam, portanto, através do trabalho (relago com a Natureza), da divisio social do trabalho (intercdmbio ¢ cooperagio), da procriagdo (sexualidade e instituigdo da familia) ¢ do modo de apropriagao da Natureza (a propriedade). Esse conjunto de condigdes forma, em cada época, a sociedade ¢ o sistema das formas produtivas que a regulam, segundo a divisdo social do trabalho, Essa divisdo, que comega na familia, com a diferenga sexual das tarefas, prossegue na distingao entre agricultura ¢ pastoreio, entre ambas ¢ 0 comércio, conduzindo a separacio entre o campo e a cidade. Em cada uma das distingdes operam novas divisdes sociais do trabalho. A divisio social do trabalho ndo é uma simples divisdo de tarefas, mas a manifestagio da existéncia da propriedade, ou seja, a separagio entre as condigdes ¢ os instrumentos do trabalho ¢ o proprio trabalho, incidindo, a seguir, sobre a forma de distribuigdo dos produtos do trabalho. A propriedade introduz. a existéncia dos meios de produgio (condigGes ¢ instrumentos de trabalho) como algo diferente das forgas produtivas (trabalho). Analisando as diferentes formas de propriedade, as diferentes formas de relagdo entre meios de produgao e forgas produtivas, as diferentes frmas de diviso social do trabalho decorrentes das formas de propriedade e das relagdes entre os meios de produgdo e as forgas produtivas, & possivel perceber a seqiiéncia do processo hist6rico e as diferentes modalidades de sociedade. A propriedade comega como propriedade tribal e a sociedade tem a forma de uma comunidade baseada na familia (a comunidade é vista como a familia ampliada a qual pertencem todos os membros do grupo). Nela prevalece a hierarquia definida por tarefas, fungdes, poderes e consumo, Essa forma da propriedade se transforma numa outra, a propriedade estatal, ou seja, propriedade do Estado, cujo dirigente determina 0 modo de relagdes dos sujeitos com ela: em certos casos (como na {ndia, na China, na Pérsia) 0 Estado é 0 proprietario unico € permite as atividades econdmicas mediante pagamento de tributos, impostos ¢ taxas; em outros casos (Grécia, Roma), o Estado cede, mediante certas regras, a propriedade as grandes familias, que se tornam proprietirias privadas. - 535 - Convite a Filosofia A sociedade se divide, agora, entre senhores ¢ escravos. Nos grandes impérios orientais, os senhores se ocupam da guerra e da religido; na Grécia e em Roma, tomam-se cidadios e ocupam-se da politica, além de possuirem privilégios militares ¢ religiosos; vivem nas cidades ¢ em luta permanente com os que permaneceram no campo, bem como com os homens livres que trabalham nas atividades urbanas (artesanato © comércio) € com os escravos (do campo e da cidade). A terceira forma de propriedade é a feudal, apresentando-se como propriedade privada da terra pelos senhores ¢ propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesdos livres, membros das corporagdes dos burgos. A terra é trabalhada por srvos da gleba e a sociedade se estrutura pela divisdo entre nobreza fundidria ¢ servos (no campo) ¢ artesios livres e aprendizes (na cidade). Entre elas surge uma figura intermedidria: o comerciante, As lutas entre comerciantes ¢ nobres, 0 desenvolvimento dos burgos, do artesanato e da atividade comercial conduzem & mudanga que conhecemos: a propriedade privada capitalista. Essa nova forma de propriedade possui caracteristicas inéditas e é uma verdadeira revolugdo econémica, porque realiza a separagdo integral entre proprietirios dos meios de produgdo ¢ forgas produtivas, isto ¢ entre as condigdes ¢ os instrumentos de trabalho ¢ 0 proprio trabalho. Os proprietarios privados possuem meios, condigdes e instrumentos do trabalho, possuem o controle da distribuigo e do consumo dos produtos. No outro pélo social, encontram-se os trabalhadores como massa de assalariados inteiramente expropriada dos meios de produga0, possuindo apenas a forga do trabalho, colocada & disposigao dos proprietérios dos meios de produgdo, no mercado de compra e venda da mio-de-obra. Essas diferentes formas da propriedade dos meios de produgio ¢ das relagdes com as forgas produtivas ou de determinag@es sociais decorrentes da divisio social do trabalho constituem os modos de produgio Marx e¢ Engels observaram que, a cada modo de produgdo, a consciéncia dos seres humanos se transforma, Descobriram que essas transformages constituem a maneira como, em cada época, a consciéncia interpreta, compreende e representa para si mesma o que se passa nas condigdes materiais de produgio ¢ reprodugdo da existéncia, Por esse motivo, afirmaram que, ao contririo do que se pensa, no so as idéias humanas que movem a Historia, mas so as condigdes historicas que produzem as idéias. Na obra Contribui¢éo a critica da economia politica, Marx escreve: © conjunto das relagées de produgio (que corresponde ao grau de desenvolvimento das forgas produtivas materiais) constitui a estrutura econémica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura juridica e politica e 4 qual correspondem determinadas formas de consciéncia social. © modo de reprodugdo de vida material - 536 -

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