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A Psicanalise na Mira dos Cientificamente Corretos Por Luis Francisco Camargo O conceito de ciéncia possui certo grau de vaguidade COSTA, 2018. ‘A psicandlise mais uma vez é atacada pelos cientificamente corretos, gratuitamente ou em vista de objetivos obscuros e esplirios? Desta vez é por Nathalia Pasternak ¢ Carlos Orsi, cujos ctitérios de demarcagao sobre o que é ou ndo é ciéncia sequer sao explicitados. Quantas bobagens se podem esperar daqueles que se autorizam a falar sobre um assunto que desconhecem? 0 debate sobre a relagdo entre a psicandlise e a cigncia ndo é de hoje. A acusagao feita a psicandlise de pseudociéncia sempre foi sustentada, salvo excegdes, por falacias do tipo “invengao de fatos”, “explicagdo incompleta ¢ superficial”, “petigdo de principio”, “erros de definigdo” e, principalmente, pela ecolalia da critica popperiana dos anos 50, que atacava no s6 a descoberta de Freud, mas outras ciéneias como a biologia evolucionista, a economia, a sociologia ¢ fodas as psicologias clinicas, heranga kantiana na “Critica da Razo Pura”. ise critic Apsicanilise fora objeto de uma andi de Popper devido aos seus lagos de amizade com Alfred Adler e a simpatia que seu pai tinha pelas ideias de Freud, “Meus encontros com a psicologia individual de Alfred Adler ¢ com a psicanilise de Freud foram semelhantes a0 meu encontro com © marxismo, mas muito significativos embora tudo ocorresse mais ou menos simultaneamente. [..] Com efeito, foi nessa mesma época que entrei em contato com as ideias de Einstein, que se tornaram a influéncia dominante em meu proprio pensar [...] (POPPER, 1986, p. 43). Popper tinha como modelo para todas as ciéncias a fisica einsteiniana, Os critérios de demareagdo de Popper incidiam sobre dois pontos: (1) 0 abandono do método indutivo ¢ sua respectiva solugdo por meio da demarcagao (2) do seu critério de falseabilidade, sobretudo ligado a teoria decorrente dos experimentos, © critério de demarcagdo foi uma escolha arbitréria de Popper ¢ implacavel com todo conhecimento construido sobre o método indutivo. O problema era solucionar a indugo ¢ elimind-la de uma légica da pesquisa cientifiea, Assim, todo 0 conhecimento construido sobre a indugdo era cientificamente incorreto, Tratava-se de criar um ideal de ciéncia na tradigo decorrente do idealismo alemao. O que sobraria se todo conhecimento indutivo fosse considerado pseudocientifico? Restaria somente a matemitica, a fisica einsteiniana ea alguns segmentos da quimica. Mesmo os estudos clinicos epidemioldgicos, fundamentados em estratégicas de amostragem, principios estatisticos, estudos de coorte, casos-controle e ensaios clinics randomizados, que tém como prinefpio hipéteses construfdas pela indugdo, continuariam entre 0 rol das ciéncias ditas indutivas e, portanto, classificados de pseudociéncias, haja vista ndo conseguirem atingir o grau de verdade semelhante ao de uma lei fisica e matematica, salvo probabilisticamente, 0 que nao implica numa lei universal. Pseudociéneia sr. Nathdlia Pasternak? Se formos rigorosos, boa parte da medicina seria pscudociéncia aos olhos destes principio. A critica de Popper sobre a irrefutabilidade das interpretagdes da psicanilise j4 foi contestada pelo fil6sofo norte-americano Adolf Griinbaum no capitulo “A degeneragdo da critica de Popper psicandlise” em seu livro “Validagdo da teoria clinica da psicandlise” (1993), onde demonstra um Freud contra Freud (p.ex.: teoria da sedugdo vs. teoria da fantasia), a partir de teses psicanaliticas refutadas pelos proprios psicanalistas. Como exemplo, 0 reducionismo da teoria da biogenética de Haeckel realizado por Freud para explicar os mecanismos da heranga simbélica, ctiticado por Emest Jones ¢ subvertide por Jacques Lacan por uma abordagem légico- estruturalista, Vale lembrar que Griinbaum no deixou de criticar a psicandlise, demonstrando os problemas encontrados na validagdo externa da teoria da clinica, prineipalmente no que diz respeito a abordagem do fendmeno da transferéncia ¢ aos limites éticos colocadas na publicagao de estudos de caso em psicanilise, por serem interditados em revelar as ditas “evidéncias” Pul ar a histéria clinica de um paciente, suas intimidades e sua vida pessoal, ¢ completamente diferente de publicar o nivel de serotonina do seu sangue. Ha um consenso entre os estudiosos do método de estudos de caso sobre a forga da validade interna ¢ a fraqueza sobre a validade externa dos construtos. Um estudo de caso tinico ndo é propicio para generalizar teorias, mas isso nao implica na sua desvalorizagio como etapa na construgao do conhecimento. O modelo de ciéncia construido por Popper, do qual ¢ herdeira a sra. Pasternak, foi contestado por diversos epistemologistas, entre cles, Rudolph Carnap, que defendeu o método indutivo em Logical Foudantions of Probability (1950); Thomas Kuhn, que problematizou tal paradigma em As estruturas das revolugdes cientificas (1962); Paul Feyeraband (2011, p. 204), que demonstrou que “um principio estrito de falseamento, ou de “falseacionismo ingénuo”, como Lakatos 0 denomina, eliminaria a ciéncia como a conhecemos e jamais teria permitido que comegasse”. De fato, a maioria das grandes descobertas tiveram como principio o método indutivo. Nao foi diferente com a psicandlise. Por isso, a st. Pasternak sonha com a universalizagio de um paradigma e método de construgdo do conhecimento que remonta a metade do século passado e atinge o seu proprio campo de trabalho. Provavelmente desconhece as Igicas hodiemas (I6gica paraconsistente ¢ intuicionista) rivais da légica classica, base paradigmatica das ciéncias ditas positivistas (ef, COSTA, 2019). Para Newton da Costa (2018, p. 206), “o que est pressuposto, ao se fazer ciéncia, & que nossa atividade, de algum modo, vingaré. Sem tal suposigdo, seria absurdo alguém se dedicar a desenvolver a ciéncia, (Por isso, psicologicamente, 0 falsificacionismo de Popper nao traduz a atitude do cientista, em conformidade com muitos pesquisadores, pois estes no perseguem teorias para provar que so falsas, mas teorias que procuram demonstrar que so verdadeiras). Deste modo, para Costa a psicandlise € uma cigncia desde que se submeta aos padrées das logicas hodiemas (ndo-clissicas) ¢ explicite suas estruturas pragmaticas que, em tese, & factualmente possivel, se considerarmos os problemas decorrentes dos seus dominios de aplicagio. Nao existe nem “O” método cientifico e nem “A” ciéncia sra. Pasternak. A orientagdo de Costa aos psicanalistas € condizente com as propriedades do objeto da psicandlise, as quais ferem 0 “principio da ndo-contradigdo” e 0 “principio do terceiro excluido”. Em outras palavras, o dominio cientifico da psicandlise ndo se adapta ao paradigma da Sra. Cientificamente Correta. A construgo do conhecimento na psicandlise coloca em questéo a verdade universal e, assim como outros campos do conhecimento, um modelo de ciéneia para todos. Vitoria, 21 de julho de 2023 Luis Francisco Camargo é psicanalista, Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espirito Santo. Pés-Doutorado em Filosofia da Ciéneia (UFSC), Doutorado em Psicologia (UFSC/Universidade de Paris 8), Mestrado em Psicandlise (Universidade de Paris 8), Mestrado em Linguistica (UFSC) e Graduagao em Psicologia (UFSC). Membro da Escola Brasileira de Psicanélise e da Associacaio Mundial de Psicanélise. Membro do GT Psicopatologia e Psicandlise na Associagio Nacional de Pesquisa ¢ Pés-graduagdo em Psicologia (ANPEPP). REFERENCIAS COSTA, Newton da. Légica indutiva e probabilidade. Séo Paulo: Hucitec, 2019. COSTA, Newton da. O conhecimento cientifico. Sao Paulo: Paulus/Discurso Editorial, 2018. FEYERABEND, Paul. Contra 0 método. Sao Paulo: Editora Unesp., 2011. GRI BAUM, Adolf. Validation in the clinical theory of psychoanalysis. A study in the philosophy of psychoanalysis. Madison, Connecticut: International Universities Press, Ine., 1993. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluges cientificas. Sao Paulo: Perspectiva, 1970. POPPER, K. Autobiografia intelectual. Sao Paulo: Cultrix, 1976. POPPER, K. Légica da pesquisa cientifica, Sio Paulo: Cultrix, 2013.

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