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dossié belo horizonte O aprendizado do direito a cidade: Belo Horizonte —a construcio da cultura publica. Miguel G. Arroyo! “As cidades sdo sistemas vivos, feitos, transformados e experimentados por seres bumanos (...) os cidadéos sao as raizes da cidade” M. Castells Resumo Este artigo trata da questo do aprendizado do direito a cidade, como um dos elementos chaves para a com preensto € vivencia da cidadania. Ten- do como foco central a cidade de Belo Horizonte, 0 autor busca situar, neste contexto € ao longo da histéria cidade, as dimensées educativas dos movimen- tos, bem como, por outro lado, a consti- tuicao da cidade-cidadania que se di nos contextos destes movimentos, particular- mente naqueles movimentos-momentos relacionados & educagio escolar. Palavras-chave Modemidade, cultura piiblica, direito a cidade. Abstract ‘This article is about “the appren- ticeship of the right to the city", as one of the key elements to the comprehen- sion and living of the citizenship, Fo- cusing the city of Belo Horizonte, the author aims to put, in this context and along the history of the city, the educa- tional dimension of the movements, as well as, on the other hand, the constitu- tion of the city-citizenship that happens in the context of these movements, par- ticularly in those movements-moments related to the school education. Key-words Modemity, Public Culture, Right to the City. Epucagao tm Revsra, Beto Homzonre, N° 26, 02/97 * miguel G. Acoyo, Professor Titular da Faculdade de Educagso a UNG, 23 Nas comemoragées do Centenario tem sido destacado que Belo Horizonte nascey moderna, porque foi pensada € planejada no seu tragado, na distribuigao € fluxo da populagio, na alocagao dos servigos. Cidade marcada pela logica do progresso, da razio, do universalismo. Mas qual 0 sentido em celebrar essa modiemnidade? Onde encontrar suas mar- cas? Qual a modernidade a celebrat? Mi, Stella Bresciani (1992) lembra- os que © inicio dos tempos modemos pode ser encontrado na capacidade poli tica de acolher € incorporar os diversos sujeitos sociais como sujeitos de direito, incependente de serem proprietirias de bens. Organizar a sociedade como o lu- ‘gar dos assuntos humanos € a idéia ma- triz de sociedade politicamente moderna, civilizada, através das lutas potiticas e dos movimentos sociais. Pode set esta a idéia matriz da cidade civilizada tornando-se politicamente moderna. Quando é capaz de incorporar as reivindicagGes e os reitos dos diversos grupos sociais. Pode mos encontrar marcas desta cidade mo- ema na Belo Horizonte cotidiana? Qual a modetnidade construida? Supomos que a cidade ndo nasce moderna, mas se constréi moderna nos embates sociais € culturais. F um movi- mento que vai acontecendo na medida em que ela vai se tornando capaz de aco- ther © processar politicamente as re dicagdes ¢ lutas pelos direitos. Nao foi ‘essa a matca do inicio dos tempos mo- demos? A cidade torna-se civilizada, quando regida pela cultura do piblico, Essa cultura do publico, do coletivo, da cidade civilizada, espago social € politico tem sido uma construgao lenta ¢ tensa. Em que medida Belo Horizonte avangou no seu primeiro século nesta diregdo como espago de assuntos huna- nos, de convivio dos seus cidadios? A construgio dessa cultura urbana piiblica ndo tem muito a ver com o movimento mais recente em prol dos direitos? Com a consolidacao de leis, medidas e politicas piblicas que protejam os cidadlios, que garantam seu direito a espagos € a servi- ‘G0 inclependentemente de serem proprie- tarios de bens? B na passagem de uma representaclo da cidade como mero abri- g0, espago de reprodugio biolégica das camadas populares para a cidade como espaco de igualdade, de convivio entre fguais que acontece a civilizagio da cidade Esta construgao € recente. Sem des- considerar reivindicagdes de décadas passadias, esse processo se intensifica da década de 70 para cf, quando se dé uma participagio mais marcante dos movi- mentos sociais, Podemos afirmar que as Uiltimas décadas esse processo moder- nizador se acelerou e foi se consolidando uma nova sensibilidade politica de dir gentes © cidadaos perante a fungao da cidade, Se a capacicade da politica em acolher “os pobres" e processar as reivin- dicagdes das massas empobrecidas mar- cou 0 inicio dos tempos modernos, a ¢a- pacidade politica de Belo Horizonte de acolher € processar as manifestacdes “novas" € a nova consciéncia dos traba~ Ihadores empobrecidos poderi significar que a cidade foi se fazendo modema Teri havido um avanco na construgao de uma nova cultura urbana, mais publica? © que temos a comemorar? Novas representagdes da cidade A tealidade social de Belo Horizon- te tem se mantido bastante inquieta nos ‘dkimos vinte anos: manifestagdes coletivas de varios setores tém ocupado os espagos piiblicos, as ruas, as pracas. Tensdes e rei- vindicagdes destacadas pelos meios de co- municagio sobre satide, transporte, terra, educaglo, seguranga, As vezes essas mani- festagSes nfo tém caréter reivindicativo. S10 eventos que atraem a presenca cla popula fo nas ruas, pracas, espacos pablicos, nas cleigées, comicios, festvais. Manifestagdes que deixam marcas na consciéncia social, que trazem & tona questes contempor’- reas da democracia, de igualdade ¢ clver- sidade, da cidadania, da fungio social do cespago urbano, ca gestdo do pablico, dos direitos da mulher, do trabalhador, do ne- ‘gf0, dos meninos de rua. Trazem 2 tona um espectro renovado de questoes e repre- sentagdes sobre sua condigao de sujeitos da cidade modema. Novos grapos deixa- Epucacao em Revista, Brio Homzonte, N° 26, 082/97 ram de ser atores menores na trama urba- na: trabalhadores, professores, profissionais da sate, da limpeza, mulheres, negros, ci- angas ¢ adotescentes, trabalhadores de rua. Como nunca antes, todos eles marcaram sua presenga na cidade Os serores populares subsmetidos & rotina da reproducio da sobrevivéncia, fe- chados por décadas nesse estreito circulo das necessicdades mais prementes, subme- tidos a um estilo de politica clientelistica, cesses setores vao crescendo como membros de grupos, se associam, reivindicam, dis- cutem politicamente suas condigses de vida € buscam canais de representaca dlucio dos servigos e espagos priblicos. Vao redefinindo a politica clientelistica. Pres- jam pot uma politica de cidadania. As las silenciadas por décadas, disan- ciadas dos mociernos espacos urbanos € ds festividades do poder deixam ouvir sua voz na sua cidade. Seriam os antincios de uma Belo Horizonte politicamente mais mo- ema, civilizada? Quando a cidade e a poli na conseguem incorporar € processar essas pressoes pela cidadania as velhas reivindicagdes sc politizam € comegam a ser pensadas numa nova logica, nova cul- tura. Onde as demandas de servigos se constituer e1n processos politicos para ar ticulagio de diteitos, para construgao de espagos humanos para os humanos, para a produgao digna da existéncia, da cultu- ra, das culturas, clas historias sociais € culturais de cada coletivo de cidadaos, urba- ssa inquicta vida social mexcu em valores, concepgdes, identidades de gru- pos, nas representagdes da cidade e de seu papel social. Teria feito avancar uma nova cultura urbana? A cidade ¢ seus ci- dadlaos estariam se formando e transfor- mando nessa dindmica social? Estariam constrvindo uma nova mentalidade e consciéncia coletiva? Qual o peso peda- gogico dessa dinimica séciocultural de que Belo Horizonte foi paleo no final de seu primeiro centendrio? Esta subjacente a essas questoes 0 suposto de que a dindmica urbana, as mudangas demogtificas, econémicas € politicas (a eleicao democritica ce gover- nos populares), as formas de ocupagao do espaco € sobretudo os fendmenos de protesto social, a mobilizacao cultural agem como formadores de novos valo- tes, percepgdes, nova consciéncia civica Ecucam os cidadaos ¢ a propria cidade Educam os dirigentes, invertendo as pri oridades das politicas urbanas ¢ 0 pré- prio estilo de governar. Supomos que o processo educative do acontece apenas € nem principalmen- te nos baneos de nossas escolas. A dina mica urbana como um todo € educativa ou deseducativa, forma novos padrdes de condita, civiliza ou embrutece, dependen- do das virtualidades humanizadoras ou desumanizadoras inerentes as formas de produgho da existéncia « que a ciclade sub- mete seus habitantes. Quando governos ou coletives fazem avangar 0 cariter hu- mano das formas de produgao da existén- cia e de gestio do piblico, estio sendo cclucadores do direito a cidade. Consol dam uma nova cultura urbana. Este pro- cesso, no entanto, € tenso, calice com a cultura privada, 0 aprendizado do direito {cidade pasta por esse embate cultura Cultura Privada, Cultura Ptiblica Henri Lefebvre (1968) ¢ Manuel Castells (1883) nos tém lembrado que ha uma relagao estreita entre a cidade e os cidadios, Nao ha cidade sem cidadaos € nem cidadaos sem cidade. S6 podemos entender estes ¢ aqueles em uma relagao iitua, tensa, Quando os cidados se mo- bilizam para transformar a cidade, essas relagdes se tornam mais explicitas. Trans- Formar os interesses € os valores sociais presentes nas formas ¢ fungées de uma Cidade historicamente determinada é uma > cultural pelos valores e interesses tens: que regema producio do espago, dos ser- vigos € sua ocupagio. Umea tensio entor- no da cultura que legitima formas e fun- goes urbanas, Os mo explicitando as formas espaciais, as fungoes econémicas, as instituigdes politicas ¢ 0 significado cultural do processo de urbani- zagio. Que valores, que I6gica governam a sntos cidados terminam Eoucagso en Rewsta, 8:0 Horzonte, N° 26, 0&2/97 25 rodugio das cidades modemas? Os movie mentos cidacios se contrapdem a esses va- lores € a essa l6gica? Explicitam um novo significado cultural para a cidade? ‘A vida urbana tem sido denunciada por estar regida por valores privados e no por valores coletivos. As condigies de vida €.05 valores que regem a existéncia nas ci- dades modernas nao levam ao isolamento? Leandro Konder (1994) lembra que Marx, descrevendo @ movimento dos londrinos na rua, escrevia: ‘(..) a brutal indiferenca 4 insensibilidade do isolamento com que ‘cada um se concentraem seus interesses pri- dos (...) 0 egotsmo empobrecedor const tuem um privilégio basico da sociedade atual, em nenbum lugar se manifesta do desavergonhadamente esse principio e com tanta desenvoltira como na multidao da cidade grande.” MB Stella Bresciani (1994) tem mos- trado que a visio negativa da cidade, a avaliagao tenebrosa do potencial destru- tivo das massas urbanas € 0 emaranhado das metiforas elaboradas para expressar cesses medos desde o século XIX tém se mantido como uma constante no discur- s0 sobre a cidade, Até hoje 0 quadro que os meios de comunicagio descrevem, € noticiam cada dia a respeito da vide nas cidades, confirma essa cultura urbana que introjeta em cada moracior valores de isolamento. Os conflitos, a violencia, a extrema pobreza dos trabalhadores em contraste com a extrema riqueza de pou- cos € sobretudo a ineficiéncia dos servi- os publicos, tudo obriga ao reforgamento da cultura privada que esta tio enraizada em nossa tradigio politica A légica de ocupagio do solo regida pela especulagio imobiliaria, pe- Jas leis do mercado, pelo valor finan 10 da terra. Os interesses privados gover- nam a cidade ¢ terminam por governar os seus moradores € a cultura urbana Essa I6gica é proclamada como garantia do progresso. Até o planejamento dos Orgios governamentais tem se submeti- do frequentemente a essa légica privada ‘na ocupagio do espago e na alocagio dos servigos pttblicos. Como pode avangar a cultura do ptiblico nessa resistente cultu- ra urbana governada por valores priva- dos? A experiencia urbana estaria refor- cando © imagindrio social que considera © privado como mais eficiente, mais confidvel do que o puiblico. O piblico nao esta legitimado na nossa cultura social. E um campo a ser usado a servigo dos inte~ resses privados. Tudo parece nos levar a concluir que a experiéncia de vida da multidao amorf dos transeuntes de rua, ras grandes cidades, reforca a cultura pri- vada € dificulta a construcao de uma cul- tura do pablico Um olhar superficial e desatento so bre o cotidiano da vida urbana nos levari a essa conclusio de que no hi lugar para outa logica na construgio das cidades. Entretanto € possivel outto olhat € reco- nhecer que elas permitem que individuos € coletivos sociais vivam uma experiéncia, cura sem dtivida, mas estimulante para lu- tar por espagos coletivos. A experiéncia urbana cria possibilidades novas de encon- 10, de comunicagao, de confronto de con- digdes de vida, € consequentemente de construgao de uma consciéncia mais uni- versal de igualdade, diversidade, liberda de, enfim de direitos humanos, Leandro Kondler (1994) ponclera que a cidade se tor- nou, desde 0 Renaseimento, cada vez mais decisivamente, 1 matrix das principais ten- déncias da cultura moderna ¢ conterpor’- nea. A cidade niio engendra automaticamen- te a cidadania, mas passa a ser o lugar onde pode ser travada com melhores possibili- dades a luta pela efetivagto da cilacania € da cultura piiblica, Guiados para esse olhar, podere- mos nos voltar para os elementos clinami- ‘cos formaclores de uma cultura do pablico, do direito do cidadao a propria cidade, Que sinais podemos desvendar dessas poten- cialidades transformadoras da cultura pie blica, na dindmica de nossas cidades? O campo da educacio ea cultura publica Limitamos nossa reflexio a0 cam- po da educagio, suas propostas, reivin- dicagdes ¢ avancos, Partimos do suposto de que nesse proceso amplo de apren- dizado do dircito & cidade, de ampliagao © consolidagao de uma cultura urbana EoucacAo em Revista, Brio Homzonte, N° 26, 012/97 mais pablica, 0 dinamismo havido no espaco da educagio tem sido um fator significativo de humanizagio HA um consenso de que a escola & educadora da cidade. Como isso acontece? A primeira resposta, a mais ficil, seria pen- sar na escola formando cidacaos orceiros, instruindo as criangas, inculcando nelas habitos de cooperagito, de higiene, de con- vivio social para garantirem, quando adul tos, a ordem € o progresso da cidade. Da escola tem-se esperido essa fungio mora- lizadora € insirutiva, sobretudo quando pensada para os setores populares. Desde © século XIX, a escolarizagio das massas urbanas tem sido pensada como uma instincia de moralizagio para reverter © medo das elites, aliviar a ava- liagao temerosa de seu potencial destru- tivo. Pensa-se na escola como antidoto para violencia das massas urbana, *Cackt escola que se abre, uma caceia que se fe- cha” diz o ditado que sintetiza essa visio. Seri por ai que a escola educa 0 direito cidade e tomna esta mais civilizada? A historia de mais de um século de expansio da escola urbana mostra como é precéria essa funcao moralizante da escola. Por qué? Porque os valores que ela inculea nem sempre so 08 valo- res da sociedade.Tem pouca forca ‘educativa inculear valores de igualdade a criangas que padecem no seu dia-a-dia desigualdade, os preconceitos de raga, género, classe: inculear valores de coo- peraclo numa cidade regicta por valores competitivos ¢ excludentes. ‘Temos de reconhecer que as "boas" ligdes moralizantes, que a escola transite as criangas como cooperagio, ecologia, cordem, higiene, tém sido pouco eficientes para se contrapor as ligdes ¢ valores priva- dos que a cidade inculea © que terminam se impondo como os valores ¢ saberes que regem as condutas dos adultos na conflitiva sobrevivéncia urbana: os valores da con- comréncia, cla primazia do privado sobre © piiblico, do salve-se quem puder no transi- to louco, da ocupagio privada do espago, da destruigio da natureza, ete. ‘Os educadores, a sociologia da edu- cago ea pedagogia jd perceberam os li- mites dessa fungio moralizante esperada Eoucacko em Resta, BELO HORZon! da escola e 1ém buscado novos vinculos enire a escola ea cidade. Nas tiltimas dé- cadas a preocupagio por adestrar as mas- sas urbanas, por formar 0 trabalhador or deiro vem sendo substituida pela preocu- pago em formar cidadaos conscientes de seus direitos e criticos frente & injustiga, 2 desigualdade, a exclusto, aos preconcei- tos sociais que sofrem. Foram redefinidos curticulos, livros ¢ material diditico, A pos- tra dos professores ¢ cada vez, menos mo- talizadora € mais cienmtfica, explicativa ¢ indagaciora frente a realiciade. A origem social dos professores mudou, ¢ sua cons- cigneia politica também, © que no deixou de condicionar sua vi- sio da cidade e da ordem social, Sua sen- sibilidade pedagogica esté mais proxima da formacio de cidados criticos ¢ da con- solidagao de uma nova cultura urbana. Os ptdprios professores mostraram sua nova consciéncia dos direitos. A escola esti passando por proces- sos sérios de renovagio de sua funcio social. Tenta acompanhar a dindmica cul- tural da sociedade, Pretendle dar conta dos avangos democraticos, incorpora novos valores de igualdade ¢ de respeito as di- versidades culturais. Torna-se uma insti- tuicio de inclusto social de apropriacao de cultura. Na Rede Municipal de Belo Horizonte foram incentivadas as expe- riéncias inovadoras das escolas, dos pro- fessores ¢ das familias. O Programa Pol tico-Pedagégico da Escola Plural, no go- verno popular do prefeito Patrus Ananias, colocou como preocupasao central fazer com que a escola se encontre com a fun- lo social ¢ cultural que a sociedade de- ‘mocritica moderna espera dela, Uma pro- posta ousada para Belo Horizonte no fi- nal de scu primeito centenério. Uma ten- tativa de sintonizar a escola urbana com os esforgos da cidade, para acolher € in- corporar todos os seus moradores na sua diversidace: como sujeitos sociais e cul- turais, como cicladaos de dircito, Na medida em que se reorganiza a escola como lugar de assuntos educa- tivos, ela se renova como espago huma- no de incluso € nao de exelusie social € cultural. A escola esti se redefinindo para ser um tempo digno de vivéncia da infincia cicada. Esti preocupada nao tanto NP 26, 062/97 27 ? Ver nesta publicagao 0 testo de GIOVANETT, M, Ae COSTA. MC). 28 em formar para cidadania futura, mas em potencializar a vivéncia da cidadania no presente, para as criangas, jovens, e adul- tos, professores ¢ funcionarios que nela conviver. ‘Temos de reconhecer que nestas Gltimas décadas a escola puiblica ver se tomando cada vez mais piblica, tendo um papel relevante na consolidagio de uma cultura do pablico. Esse movimento cle renovagho pe- dagégica pode fazer com que a escola, no seu cotidiano, seja uma instituicao educadora do direito & cidade, Esse mo- derno movimento tem levado & pritica co- tidiana de nossos professores a cumprir de mancira mais consciente € eficiente esse papel: educar os cidadaos, possibi- litar a vivéncia dligna da cidadania, para criangas, adolescentes € jovens. Podemos avangar € pensar se 0 ‘campo da educagao escolar tem-se somma- do aos movimentos cidadaos, tem-se mostrado a cidade ¢ tem feito avangar cultura do pablico, para além das ligdes de cidadania que sio dadas as criangas nas salas de aulas. Iniclamos a nossa reflexto desta- cando 0 carter educativo do movimento social urbano, das agdes € gestos coleti- vos. A escola educa a cidade € os cida- dios quando se conecta com essa dina- mica urbana E neste campo que pensamos tam- bem a escola, 2 comunidade escolar, os seus profissionais como formadores de novos valores ¢ nova cultura urbana, por meio de suas lutas pela educagao, pelos espagos puiblicos, pelo direito 3 cidade. © peso educative das ligoes aprendidas na escola quando criangas depende do avango de uma nova cultura urbana, de uma nova cultura dos direitos: escola € cidade se reeducando mutuamente. Nos Gltimos vinte anos, 0 campo da educacao escolar tem sido um dos mais dindmicos. Tem-se projetado na cidade, nas suas ruas € pracas, Tem sido noticia € provocado confronto. Tem redefinido estilos de governo e as politicas e sua 16- gica, Tem-se tomado fronteira na cons trugdo de uma nova consciéncia e repre- sentagio da cidade € do piblico. A esco- la saindo dela mesma, projetando-se na dinamica da cidade, participando das ten- sbes sociais, politicas e culturais teve um papel relevante na educagao da cidade, na sua modemizacao politica e cultural Entre outros campos, satide, trans- porte, terra, na educagio se instalou a tensio, o dissenso na capital das Minas Gerais, tio marcada pela conciliagao e por estilos de cultura politica que tanto embassaram a cidadania, a igualdade de direitos, a cultura publica ‘Tentamos refletir sobre © papel da educagao escolar no aprendizado do di: feito A cidade em tomo de dois fatos marcantes nas tiltimas décadas: as lutas dos professores organizados ¢ 0 movi mento reivindicat6rio popular por esco- las, ampliagao de séries, condigbes ma- teriais, merenda, biblioteca, professores, material didat mais verbas, Modernizando a cultura urbana As lutas populares por educagio em Belo Horizonte € a participagao dos professores nesse movimento tém sido pesquisadas € registradas em varios ¢s- tudos?. Na paisagem urbana de Belo Hori- zonte nunca faltaram as presengas incd- modas, freqilentemente reprimidas ¢ si- lenciadas, de diversos sujeitos sociais que reivindicavam novos ou mais dignos ser vigos urbanos. Nas Gitimas décadas es- sas presengas se tornaram mais freqiicn- tes, mais visiveis e mais radicais em suas reivindicagdes, Entre essas presengas s¢ destacaram 08 funcionérios péblicos e, entre eles, os professores da educacio piiblica, as associagdes comunitérias, 05 movimentos étnicos. Em que media con- Uibuiram para a construgdo de uma cule tura urbana do publico? Fizeram esses sujeitos sociais avancar 0 aprendizado do direito & cidade? Podemos responder ponderando alguns pontos. Primeiro porto, o apren- dizado do direito & cidade avangou na medida em que a cidade foi exposta ao priblico. Os moradores descobriram 0 ver- dadeiro rosto de sua cidade. Esse se tor EbucAGKO em Revista, Belo Homzonte, N° 26, 082/97 nou exposto ao debate € 2 critica pabli- ca. As manifestagdes freqiientes dos pro- Fessores e de outros grupos urbanos agi- ram como um espelho no qual a propria cidade teve de se contemplar com agra- do ou desagrado. Como coletivo. Como cidade. Este debate da cidade sobre ela mesma nio teria sido a maneira pedag6- gica de constituir uma cultura pablica? Nesse debate pablico travado nos meios de comunicagao, nas ruas © pri 25, a cidade foi redefinindo sua auto-ima- gem, ao menos a imagem que o discurs0 oficial apresentava sobre Belo Horizon te: cidade-jardim, cidade-oportunidade, ci- dade-moderna. Os movimentos sociais — ‘© movimento dos professores especifica- ‘mente —confrontam essa imagem € mos tram a cidade-problema... Problemas de moradia € transporte, de emprego, de infra-estrutura basica, de servigos elemen- tares de satide ¢ educacao, de preconcei- tos e exclusdo. O planejamento urbano foi sensivel a esses problemas € tentou administré-los na l6gica de uma racio- nalidade mais econémica do que social. Muitos dos problemas foram deixados 2 mercé das possibilidades de cada imi- grante, de cada familia, de cada grupo so- cial e da lei do mercado € da exploracio imobiliéria, Eram mantidos no campo do privado e do mercado. Dos anos setenta para ca, a cid: de teve manifestagdes diversas de inconformismo ¢ pressio social. Varios movimentos trazem 2 tona seus proble- mas em outra perspectiva, Mostram que eles sto coletivos, sto da cidade € nao privados. $40 politizados, passam a ser expostos em praga ptiblica, mostra- dos aos transeuntes andnimos, aos governantes pelos prdprios suicitos que os padecem. ‘Os meios de comunicagio contri buiram para tomar os problemas mais expostos a0 olhar coletivo. E um proces- so de grande forga edueativa e por isso a tentativa de oculté-los, equaciond-los em gabinctes ou relegi-los a0 Ambito do pri- vadio vai sendo questionada. Os proble- mas foram mostrados como paiblicos, co- letivos, exigindo solugdes do péblico na Logica do puiblico, Foram levados a0 ‘campo da politica Nessa nova l6gica pablica € politi ca a cidade foi exposta ¢ repensada, criticada e denunciada: mudou sua ‘auto-imagemn. © campo da educagio, seus profissionais contribuiram significativa- mente para essa mudanga? Foram edu- cadres da cidade © segundo ponto que merece ser des- tacado € que a cidade passou a ser discuti- da e avaliada como espago de direitos. O rosto da sua cidade que a mulher, 0 ho- mem da periferia vivenciavam em tragos desconexos no seu bairro, vila, moradia ¢ trabalho, € reconstruido nao como uma conseqiiéncia inevitivel do ripido cresci- ‘mento urbano, da migragio descontrolada, da falta de recursos, das leis de mercado, ‘mas sobretudo como uma conseqiiéncia das relagdes socials e de poder, da concentra io da renda, da falta de vontade politica, dos valores que regem as politicas gover- namentais, da cultura excludente, Os novos sujeitos sociais trazem 03 problemas da cidade, suas causas © seu equacionamento para outra légica: a 16- agica dos direitos, da igualdade e diversi- dade, da inclusio social ¢ cultural, da democracia, Apenas trazidos os proble- mas a este campo € possivel equaciond- los a partir dos valores da cultura do par Dlico. Neste campo, os cidadaos nao se conhecem apenas como consumidores de servigos, de espacos, mas como sujeitos de direitos. © olhar sobre a cidade, so- bre os servigos piiblicos ¢ sobre os cida- dios dé um salto de qualidade. Temos de reconhecer que este foi ‘um avango significativo das dhimas déca- das. Um tempo em que a cumplicidade social e politica coma indignidace de vida urbana € desmascarada pelos préptios sujeitos urbanos que a padecem. A repres- sto frequente, por vezes brutal, no era pelas reivindicagdes que traziam os movi- mentos cidadios, mas pela ousadia de desmascarar essa cumplicidade social © politica, pela ousadia de tentar politizar ¢ publicitar problemas despolitizados e mercantilizados. A légica dos direitos € mais incémoda e revolucionaria do que a racionalidade do mercado. © tempo des- te nao coincide com o tempo dos direitos. O aprendizado do direito a cidade & mais perigoso do que o aprendizado Eoucasho em Resta, Beto Honzonte, n° 26, 062/97 30 das primeiras letras, das nogdes elemen- tares de ciéncias, de ecologia, sexualida- de, educagio para o trinsito... Teriam 08 professores extrapolado sua fungao pe- dagégica? Nao seria mais aconselhavel que se preocupassem com a qualidade total de sua pratica na sala de aula? Que prepatassem seus alunos para passar nas provas de gramatica e contas? Que geris- sem eficientemente os minguados recur: sos da caixa escolar? Que fossem gestores eficientes das demandas dos clientes da escola? Que ensinassem aos seus alunos ligdes de ordem e submissto? Nas itimas décadas, 0s professo- res avangaram como profissionais do sa- ber ¢ da cultura, nas salas de aula, fize- ram avangar a escola em qualidade social € cultural mas ousaram plantar sua catedra nos espagos da cidade e cont buir no aprendizado do direito a cidade, na construgio de uma nova cultura urba- 12, afinal ndo sto cles profissionais da cule tura? Esto onde devem estar, no seu pa pel social e cultural. Eduucam os ciclackios, agindo eles mesmos como cidadaos. Terceiro ponto que podemos des- tacar, 0 debate € confronto em torno do uso e da ocupagao privada do pitblico. A dinamica social havida nas tiltimas déca das em muitas cidades brasileiras, onde novos sujeitos entram em cena, coloca em debate nao apenas o direito a0 acesso aos servigos publicos mas sua ocupacao publica. A questio posta é de quem é a escola, 0 posto médico, o transporte, a seguranca, a Agua ¢ esgoto, a energia cl trica, 08 espagos culturais; quem os ocu- pa; quem se apropriou do péblico, do Estado, dos recursos publicos. Os movimentos socias tiveram pos turas diversas diante dessas questoes. Freqlentemente apenas reivindicavam o acesso aos servigos ¢ recursos, sem ques tionar sua ocupagio ¢ os ccupantes. Du- rante décadas, os ocupantes eram usados ‘como mediadores para que os servigos € recursos chegassem aos baitros ¢ vilas © povo teve de apelar para os ocupantes do publico, os partides, os politicos, 0 cabo eleitoral, as instituigdes assistén- ciais. Teve que pagar com seu voto e su- porte politico para receber em troca um bem piblico (M. Sposito - 1984. No campo da edhucacio se avangou além dessas barganhas. As comunidades escolares, as associagdes de bairro © so- bretudo os professores ¢ servidores pas- saram a questionar a gestio dos bens pa blicos, 2 ocupagao privada da escola por “proprietérios” externos ao magistério © a comunidade escolar: politicos, partidos, ecnocratas... Esse movimento pela auto- nomic gestio democritica da escola trou- xe uma contribuigio significativa na cons- trugao de uma nova cultura publica. Trou- xe A tona uma questio central em nossa tradi¢ao politica: a apropriagao privada do piiblico e seu gerenciamento na Iégica dos interesses privados. Questionou essa tra- digo € apontou para a afirmagao da esco- Ja como terreno publico, da comunidade ‘escolar, Os professores tiveram um papel central neste processo, somando com os pais, alunos, funciondtios ¢ com as asso- iagdes comunititias Descle o Império a criagio das ca- deiras de instrugio, depois na Repablica das escolas, dos grupos escolares, a no- meagio de delegados, diretores, prof sores, funcionarios foram manipuladas nos mecanismos de composicao € arti ago do poder central com os poderes locais. Nas Gitimas décadas, os professo- res ¢ a comunidade escolar reivindicam 2 escola como um terreno educative. Se apropriam desse terreno ¢ plantam a bandeira da autonomia. Reocupam essa terra € a demarcam como espago social com uma fungio séciocultural definida Sem diivida, um fato da maior importin- cia na configuracao do publico ¢ na cons- trugio da escola publica E importante constatar que a dina- mica havicla no campo da educaca0 €s- colar nao se limita a teivindicar constru- (Ao de escolas nos bairros e vilas, nem requer ampliagio de séries, melhoria das condiges fisicas, do material escolar, da merenda, etc.. As reivindicagdes si- tuam-se também no terreno da gestao de- mocritica da escola como um servigo pit blico, um bem coletivo, Os debates e confrontos havicos com os governos por formas mais partici: pativas de gestio da universidade, da es- cola, dos centros de formagio, da distsi- buigio dos recursos piiblicos tém sido uma EOUCAGAG Em REVISTA, Brio HORIZONTE, N? 26, 082/97 constante nos tims quinze anos nas ci- dades brasileiras: eleigoes diretas para reitor, diretor, colegiados, coordenacio pedagégica, elaboragio de projeto politi co-pedagdgico das escolas, orgamento participativo, gestio da caixa escolar, con- selhos de classe, reforma dos regimentos escolates, conselhos populares de educa- gio... Em todos esses debates e conquis- tas, participaram as professores, 0s pais, 08 alunos, associagSes e liderancas comu- nitirias. A escola foi reocupad pelos su- jeitos que nela estudam ¢ trabalham, Um movimento neve desconhecido de nossa tradigao politica tio marcada pela ocupa- so privada dos servigos piblicos Espagos piiblicos ou reprivatizados? Estamos trabalhando a idéia de que © campo da educagio tem-se constituido em fronteira de luta pelos direitos, contri- buindo para uma modermizagao da cultu- ra urbana. Uma cultura que poe como cen- tral o trato da educacio € dos servigos ur- anos como direitos, como espacos pti- blicos, de igualdade, de insercio social € cultural dos diversos grupos socia Nao faltardo duividas sobre esta anté- lise. Nao seria mais acertado olhiar todo esse processo de oposigao, lutas, reivindicag no campo da educagio € da cultura, ape- nas como reagdes corporativas dos protes- sores e funcionirios € consequentemente anti-modernas, distantes cle uma cultura do piblico, dos direitos? Nao estaria sendo apenas reproduzida a velha politica dos in- teresses privados pelo corpo dos profissio- nais da escola? FSsis questbes €S0 pos- tas nos meios de comunicagio, nas comu- nidades escolares € no interior da catego- ria do magistério. Mostram que o embate sobre o carter piblico ou privado dos ser- vicos urbanos esta posto e promete tensdes ainda no equacionadas. O fato dessas questdes estarem postas no debate é sinal de que ha sensibilidade sobre o cariter privado ou piblico da escola. Poderiamos retomar 2 acusagio que se Faz aos professores de terem conduzi- do suas lutas moviclos por objetivos me- ramente corporativos: saldtios, estabilida- Epucagao em Revsta, Beto Honzonne, n° 26, de, condigoes de trabalho, ete.. Essa pos: tura corporativa teria mantide © campo da ‘educagdo na I6gica do privado ¢ nao teria contribuido para o avango de uma cultura do pubblico. O que teria acontecido seria uma ocupagio da escola € dos recursos da educagio pelos professores como sua propriedade. Em suas formas de luta, eles nao terminaram por submeter o direito popular 8 educacio e ao tempo de escola dos cidadios 20s seus interesses privados? Os professores, com suas formas de rei- vindicagdes, nao tém ameagado anos leti- vos, férias, calendlarios, tempos de aula consequentemente o diteito 20 saber ¢ a cultura, sobretudo das camadas popula- re? Avangaram na consciéncia de serem profissionais do piiblico, dos direitos? Vem a escola como espaco social ou se fecha- ram na tradicional luta privada ¢ corporativa por suas necessidades? Estas questdes tém sido postas em relaglo a outras categorias de trabalha- dores que atuam em servicos basicos como transporte, agua, energia elétrica, gis, limpeza urbana, saiide, seguranga. Pensandio especificamente nas dimensdes que estamos destacando neste texto, a construgio de uma cultura do péblico, poderiamos levantar algumas reflexdes. Quanto a critica de que em reali dade a escola pouco teria avangado como espaco publico, pois apenas mudaram os ‘proprietarios* que a usam para seus in- teresses privados, antes a vereador, 0 poder local, o deputado mais votado, o partido no poder... e agora os professo- res, deveriamos pensar que as tensdes em torno da gestio da escola e esse proces- so de desocupacio/reocupacao propici- aram um debate sobre quem tem direito a esse espaco social ¢ cultural. Afinal, de quem é essa terra da escola? Por que foi sempre aptopriada para interesses nao educativos? Que interesses tinham os gru- pos dirigentes para manté-la sob seu con- trole, deixi-la abandonada, improdutiva, sem cumprir sua funcio social? O fato de que estas questdes tenham estado no debate por mais de uma década € inova- dor. Significa um avango. Essas questoes no se esgotaram, prometem conirontos, ‘o que é postivo para a construgio de uma nova cultura democritica. 5. 082/97 31 A postura dos professores que coincide com as demandas das comuni dades por servigos escolares de melhor qualidade teve ¢ tem 0 mérito de tazer a0 debate urbano a fungao social da es- cola, os usos @ abusos que dela sempre se fizeram o cariter privado de verdadei- 1a ocupagao em que ela se manteve du- zante décadas. Desse debate se passou facilmente 2 questionar a ocupasao pri- vada dos recursos e servigos piiblicos, do piiblico ¢ do Estado. Nio podemos ignorar a relevancia pedagogica desses debates e embates so- bre quem s2o os donos do piblico nestas, décadas na cidade. Nao se pode ocultar ingenuamente essa relevincia pedagdg ca na construgto de uma cultura pablica pichando de corporativas os professores © funcionatios, principais sujeitos desse embate. © processo vivido na construcio dessa cultura mostra que cla mio foi con- clufda, que a questo central: “quem sio os donos da escola”, levaria A questo mais funda, © publico pode ser privatizado? Poder ter donos? Esse debate permitira a consolidagio da escola publica, desde que seja assumico no interior da categoria dos seus profissionais. A cultura profissional tem raizes nos valores sociais € politicos marcadlos pela logica privada, Podemos apenas ter mudado de ocupantes ainda desprovidos de uma visio do publico da escola como espaco de direitos. Até onde avangou 0 corpo de professores, em suas lutas, nessa construgao de ums cu {ura profissional da escola como espaco piiblico? Da educagao como direito? Estas questéx Exigem um posicionamento politico, nao corporativo, Enquanto a escola tenha do- ros, no importa quem eles sejam, nao serd paiblica ¢ demoeritica no podem ser escamoteadas. Nos congressos de professores ¢ nas associagdes de pais estas questdes estio sendo debatidas, H4 consciéncia de que cultura profissional tem muifo a avancar para se tomar mais piiblica, Nao podemos dei- ar de reconhecer que ha distincias ¢ avan- 08 signficativos entre a légica social e poli- tica que moveu os tradicionais ocupantes da escola, as elites conservadoras, € 08 n0- vos "ocupantes”: os profissionais da educa 40, as familias € comunidades. Estes tlti- ‘mos tém outro enraizamento social, outra concepeio de sociedade, de Estado e dos direitos. Sem diivida que suas concepgoes ilo sfo unfinimes nem quando a categoria se apresenta coesa em suas teivindicagoes. ‘Os novos ocupantes da escola publica, como sujeitos sociaise culturais, carregam para suas lutas conceposes ¢ interesses nem sempre pblicos. Mais recentemente, novas tenses esto se manifestando no campo da edhuca- Gio escolar. Os professores avangaram na consciéncia de seus direitos, pressionam por ccondigées ce traballio € valorizac2o profis- sional, Os setores populares também avan caram, € muito, na consciéncia do direito 3 escola, a recursos piiblicos, a mais tempo ce cuicados ¢ educacio para seus filhos. 0 avango desses direitos tem sicio coinciden- te. Mas esses direitos tém chegado a impasses nas administragées pablicas, no reparto dos recursos piblicos, no equacio- namento dos tempos. Como adiministrar de- mocraticamente direitos legtimos, nem sem- pre coincidentes? A escola continuaré sen- clo uma fronteira avangada da luta por disei tos. Nao esperemas que haja sempre caine: déncia de interesses no interior da propria comunidade escolar. Entretanto temos que reconhecer que o fato de ter sido questionada a pritica tida como inquestionavel do direito das clites conservadoras a ocupar os espagos piibli- cos € 0 Estado a seu servigo é um grande avanco na construgio de uma nova cultura do publica. Neste avango, a escola, seus profissionais € os setores populares contri- buiram questionando o titulo de proprie- dade privada de um espago to central nas modernas sociedades democriticas. Por extensiio, terminaram questionando os ve~ Ihos valores politicos ca apropriagio pri vada do piiblico. Sem o questionamento € superagto dessa velha cultura, seré diffil avangar na consimugio de uma nova cult: ra urbana O direito a condigdes de humanidade A acusagio de que 0 movimento dos professores € outros movimentos sociais se mantém na defesa de interesses privados € corporativos pode ser ainda EbucagAo em Rewsra, Beio Honzonte, N° 26, 08/97 repensada sob outros angulos. De fato 0s grupos sociais mais reivindicatives, entre eles, professores ¢ funcionsrios, agicam premidos pela sobrevivéncia diante da situacao de exclusio social, de desemprego, salatios indignos, instabili- dade, auséncia de concursos, contratos temporitios, condigdes péssimas de tra- balho... Lutar por condigdes humanas de vida, de sobrevivéncia € lutar por dirci 10s, inclusive, pelo direito & educacio, & cultura € 2 cidadania. Essas motivagdes seriam menos dignas? Pré-po cas? Por tris da acusagao feita 20s pro- fessores, médicos € outras categorias de privilegiarem seivindicagdes ligadas as condigées materiais ¢ nao a qualidade da eclucaclo e da satide, 8 qualidade de vicla dos cidadaos, ha uma visio abstrata dos direitos de cidadania e do direito & cida- de, Uma das contribuigées dos movimen- tos sociais tern sido desmascarar esse tra- tamento abstrato dos direitos e da demo- cracia, mostrando que eles passam pela materialidacle, pelos processos concretos de produgio € reprodugao da existéncia. No caso da educagio, como garanti-la sem uma base material, sem espagos fisicos, salarios, estabilidade profissional, tem- pos de qualificagao, trabalho coletivo, material didtico, merenda, tempo de nao trabalho para a infaincia, ete.? direito real 8 educagao € a cultu- a, como A sate, seguranga, cidadania, enfim, supde condligoes materiais, espa- {G08 € tempos para stia produgio. O dirci- to & cidade se concretiza na humanizagio dos espagos ¢ da materialidade em que se ia vida humana, Essa é uma dimensio central no aprendizado do direito & cida- de. Até agora vinhamos destacando os as- pectos culturais, a mudanga de valores, re- presentagdcs, identidades. Mas a cidade so espacos ¢ estruturas. O diteito & cida- de passa pela reapropriagio desses espa- 905, por transformar as estruturas espaci- als. A 6nfase dos funciondtios paiblicos em reivindicar condigdes materiais, permitiu politizar € dar concretude ao direito & ci- dadania ¢ & democracia... Politizar a centralidade das condigdes materiais, que inviabilizaram por décadas a construgao de um sistema escolar ¢ mantiveram 2 edu- casio universal como um direito retérico, sempre proclamado, mas sempre adiado e inviabilizado por falta de hase material dos educandos, educadores e das escolas, Sem civida, um salto de qualidade no trato dos direitos ¢ do pablico. Tém sido ‘0s movimentos sociais 0s eriticos mais agu- dos da democracia € cidacania abstrata € os que mais tem contribuido na consiru- (ao da cidadania concreta. Temos que re- conhecer que o dito "corporativismo” per- mitt trazer as politicas urbanas para essa conretude, para esse tecido material no ‘qual se tecem as vivéncias humanas ou de- sumanas dos cidadaos. A retérica sobre os lireitos, sobre a importincia da escola para a democracia ¢ o desenvolvimento, se nao foi abandonada, perdeu bastante confiabilidade, O direito & cidade foi situa- do no que € mais constitutive da vida ur- bana: © espago, a materialidade, Lim gran- de avango. Poderiamos dizer que a centra lidace dada pelos movimentos sociais as condigbes materiais de producao da exis téncia questiona também a concepcao progressista de cidadania e de perten- cimento ¢ participacio na cidade Referimo-nos a uma concepgio que tem Insistido € quase reduzido a cidadania a0 dominio da consciéncia critica ou de sa beres argumentativos e erfticos para a par- ticipacdo. Os diversos grupos que se mani- Festaram nas tltimas décadas afitmaram ou- tra concepedo de cidadania como direito & vivéncia digna da existéncia, Digna nas condligdes materials, na moradia, no wans- porte, no trabalho, na escola, na inffncia, nna juventude, na vida adulta... Mudaram 2 Enfase. A fungao da escola nfo ficou redu- ica a formar um cidado imbuido por uma opinido € um conhecimento eritico, mas um Cidadlio interessado em desfrutar de uma qualidade de vida mais humana, Uma con- cepgio ¢ pritica de cidadania menos intelectualizada, e mais colada a diversida- de de experiéncias pela tansformagio das condigdes de vida a que sio submetides os diversos grupos sociais, Diriamos que a énfase dada pelos movimentos sociais as condigées mate- fiais de produglo e reprodugio de sua existéncia, seu trabalho, sua cultura, sats de ou educagio teve © mérito de situar a Epucacao em ReveTA, BELO Homzonne, N° 26, 082/97 33 cidacania no tecido do cotidtano. Nao em gestos extraordinarios de participacao politica. Trazer 0 direito & cidade para os processos da reprodugao digna do dia-a- dia nao significa vulgarizar a cidadania € os direitos humanos. H4 muito de extra- ordinario no ordinario da reprodugio dig- na da existéncia humana no cotidiano da cidade. A cidadania do dia-a-dia, da esco- la pela qual tantos lutaram: os professo- res, a Comunidade escolar e as Familias tem muito de extraordindrio, £ no cotidiano ‘que se do 0s processos socializadores de construgao do conhecimento, da cultura, cas identidades, enfim, neste ordinario acon- tece ou ndo a extraordindria fungio social € cultural da escola e da cidade. "Temos de reconhecer que devemos as familias dos setores populares € aos professores ter destacado essa centra- lidade. Foram necessérias muitas manifes- tagdes, protestos ¢ bragos parados para, de maneira sofrila, mostrar que o coticia- no € as condigdes materiais em que se re- produz a existéncia no podem ser sepa~ radas das grandes fongdes sociais sonha- das para a escola e para a cidade. £ como se tivéssemos descoberto as estreitas rela- ‘GGes entte 0 cotidiano € © extraordlinario, entre as condigdes em que reproduzimos nossa existéncia privada ¢ as possibilida- des de exercer nossos direitos priblicos, sociais e politicos. A experiéncia ow intui- ‘cho dessas relagdes levaram os setores populares € 05 professores ¢ familias a levantar a bandeira em defesa do publico, lado a lado com a bandeira da defesa por condigdes de vida privada: moradia, em- prego, salario, estabilidade, ete. Os professores mostraram que sua vida privada como a vida de todo cidadao esti diretamente conectaca com eventos piilicos: o regime ditatorial, a falencia do Estado, as politicas puiblicas, 0 compro misso dos governantes com os direitos ou com os privilégios, etc... Mostraram os ¢s- treitos vinculos entre o pequeno mundo de cada um e as grandes decisdes pabli- 25, 08 vinculos esireitos entre 0 pablico © © privado, ou a necessidade de cons- truir uma cultura do pablico para grantir uma vida digna de gente A consciéncia do piiblico emerge na medida em que o moracor da cidade ex- perimenta a estreiteza dos espagos priva- dos. Experimenta os limites de sua condi- gio de trabalhador, de negro, de jovern ‘escolarizado A cata de emprego, Nessa es- treiteza em que sio obrigados a reproduzit a existéncia propria ¢ de seus familiares tomam consciéncia da centralidade do pa blico. Quando este falta, € ineficiente ou exclidente, que outro horizonte se abre para reproduzir com dignidade sua satide, educagao, socidlizagio, seu preparo para © trabalho € sua garantia da cidadania? por esse denso processo que passa o apron dizado do direito a cidade, 0 pablico Aprender 0 direito @ cidade € rei- Vindici-la como espago, estruturas espa- ciais, moradia, transporte, escola, Agua, ¢5- goto, posto de saide, lazer A base mate- ial da maior parte de nossa experiéncia se d& nos espagos da cidade; € essa face menos destacada que os movimentos ur- anos nos mostra: 9 peso da materia~ lidade, da territoriedade na configuragao da identidade cultural urbana. 114 uma estreita relagio entre os espagas vividos & o imaginario dos moradores sobre a cidade. Toda a dindmica das nossas cidades nas Uitimas décadas traz essa marca: 08 cida- dios tentando tomar posse da teita, dos servigos urbanos, melhorar a qualidade de vida na cidade, A histéria de grandes con- tingentes de moradores est associada 4 procura de um espago onde morar € re produzir sua existéncia com um minimo de qualidade de vida. A defesa da escol: de sua estrutura fisica, sua base material € um componente a mais da centralidade que tem para os cidados a configuracao dio espaco social urbano. £ o embate en- ire pobreza ¢ dignidade expressas nos es- pagos de atengdo infantil, de lazer, ce sat de, nas ruas pavimentads, na colheita do lixo, na 4gua, esgoto, iluminagao. A vida na cidade se expressa pela qualidade das condigdes materiais espaciais em que venciada. Estas vivéncias espaciais so biisicas na produgio do significado urba~ no, Espago e cultura se interagem, As formas espaciais expressam as relagies € 0s valores sociais, politicos, ra- cistas, de classe, de exclusdo ou incl que permeiam a sociedade. Expressam as reagdes a esses valores ¢ as tentativas de afirmar outros valores € outras rela~ Eoucacio em RESTA, BELO HORZONTE, N° 26, 0&2/97 {ses sociais, A cidade & uma constru- sto social € cultural, que s6 acontece colada as formas em que se estruturam 98 espagos. Os movimentos cidadaos alertaram 05 goveinos € 6s formuladores de politi- ca que 0 direito & cidade passa tanto pelo direito a espacos e condigdes materiais de humanidade € inclusio, quanto pelo direito a cultura, & identidade, a valores sociais humanos, igualitérios, democri- ticos. Espaco € cultura interagem na pro- dugio ¢ vivéncia da cidadania As linguagens do cotidiano Como os setores populares, os fun- cionarios publicos, os professores fizeram avangat 0 aprendizado do direito & cida- de? Que recursos pedagégicos, que lin _guiagens € simbolos eles usaram? Durante os tltimos anos os tran. seuntes da cidade se deparavam com fre-

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