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FEB 70 anos – em defesa dos ideais de liberdade e democracia

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BIBLIOTHECA DO EXERCITO
Casa do Barão de Loreto
— 1881 —

Fundada pelo Decreto nº 8.336, de 17 de dezembro de 1881,


por FRANKLIN AMÉRICO DE MENEZES DÓRIA, Barão de Loreto,
Ministro da Guerra, e reorganizada pelo
General de Divisão VALENTIM BENÍCIO DA SILVA,
pelo Decreto nº 1.748, de 26 de junho de 1937.

Comandante do Exército
General de Exército Eduardo Dias da Costa Villas Bôas

Departamento de Educação e Cultura do Exército


General de Exército Ueliton José Montezano Vaz

Diretor do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército


General de Brigada Walter Milton Pina Stoffel

Diretor da Biblioteca do Exército


Coronel Eduardo Scalzilli Pantoja

Conselho Editorial
Presidente
General de Brigada Aricildes de Moraes Motta

Beneméritos
General de Divisão Ulisses Lisboa Perazzo Lannes
Coronel Nilson Vieira Ferreira de Mello
Professor Arno Wehling

Membros Efetivos
General de Exército Gleuber Vieira
General de Exército Pedro Luís de Araújo Braga
Embaixador Marcos Henrique Camillo Côrtes
General de Brigada Sergio Roberto Dentino Morgado
Coronel de artilharia César Augusto Araripe de Almeida Lacerda
Coronel de artilharia Luiz Sérgio Melucci Salgueiro
Professor Guilherme de Andrea Frota
Professor Paulo André Leira Parente
Professor Wallace de Oliveira Guirelli

Biblioteca do Exército
Palácio Duque de Caxias, 25 — Ala Marcílio Dias — 3º andar
20221-260 — Rio de Janeiro, RJ — Brasil
Tel.: (55 21) 2519-5716 — Fax (55 21) 2519-5569
Homepage: http://www.bibliex.ensino.eb.br

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Sirio Sebastião Fröhlich

Biblioteca do Exército
Rio de Janeiro
2015

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BIBLIOTECA DO EXÉRCITO Publicação 915
Coleção General Benício Volume 515
Copyright © 2015 by Biblioteca do Exército

Coordenação Editorial: Paulino Machado Bandeira

Capa: Leonardo Dessandes

Diagramação: Julia Duarte e Rafael Lopes

Revisão: Suzana de França

Tratamento de Imagens: Vladson Santos

F928 Fröhlich, Sirio Sebastião.


Vozes da Guerra / Sirio Sebastião Fröhlich - Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2015.
376 p.: il.; 23 cm - (Biblioteca do Exército; 915.
Coleção General Benício; v. 515)

ISBN 978-85-7011-551-5

1. Guerra mundial,1939-1945 – Brasil. 2. Brasil.


Exército. Força Expedicionária Brasileira, 1944-1945
I. Título. II. Série.

CDD 940.5381

Os relatos e opiniões expressos nesta obra refletem exclusivamente o


pensamento do autor, e não necessariamente os da Editora ou da Instituição.

Impresso no Brasil Printed in Brazil

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“Não chores, que a vida é luta renhida: viver é lutar.
A vida é combate, que os fracos abate;
que os fortes, os bravos, só pode exaltar.”
Gonçalves Dias

“Eu sou uma figura do passado, mas ainda estou presente.”


Veterano Rubens Leite de Andrade

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HOMENAGEM

Aos integrantes da Força Expedicionária Brasileira,


por terem nos legado um mundo de liberdade e democracia.

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DEDICATÓRIA

Aos pais, João e Cecília (em memória),


exemplos de coragem, fé e amor à verdade;
À esposa Miriam, amor e compreensão;
Aos filhos Gustavo Fernando e Ana Carolina,
esperança de um futuro melhor;
À família, fundamento para o convívio social; e
Aos amigos, colaboração e estímulo.

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AGRADECIMENTO

Aditância do Exército na Itália


Arquivo Histórico do Exército
Associação dos Ex-Combatentes do Brasil – Seção Brasília
Centro de Comunicação Social do Exército
Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército
Fundação Habitacional do Exército/POUPEX
Gabinete do Comandante do Exército
Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial
Sra. Wanda Reis Pedroso
Todos os depoentes

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Apresentação

N o ano que marca os setenta anos de participação da Força Ex-


pedicionária Brasileira (FEB) no teatro de operações da Europa
durante a Segunda Guerra Mundial, a Biblioteca do Exército traz
a seus leitores a obra Vozes da Guerra, de Sirio Sebastião Fröhlich.
Trata-se do testemunho de soldados brasileiros que participaram, na-
quele já longínquo ano de 1944, em conjunto com os mais experientes e
adestrados exércitos aliados, do conflito mundial que marcou o fim da pri-
meira metade do século XX. A epopeia narrada aqui por eles constitui-se
em uma das brilhantes páginas de nossa história militar.
O trabalho descreve a trajetória e o cotidiano dos militares desde sua
partida para o campo de batalha, passando pelo regresso ao Brasil e a re-
adaptação à vida civil. Os aspectos militares das operações desenvolvidas
nos Apeninos são apenas um fundo de pano para os relatos individuais.
A edição deste trabalho preenche uma lacuna na longa historiografia
da FEB: o foco nos aspectos humanos dos militares brasileiros participan-
tes do conflito e dos civis que habitavam as regiões onde foram desenvol-
vidas as operações. Os depoimentos são realistas e narrados sob a ótica de
cada um dos entrevistados a partir do próprio posto de observação.
O autor ingressou no Exército Brasileiro como soldado, em 1984, e foi
promovido às graduações de cabo e terceiro-sargento da arma de Infan-
taria. Em 1987, prestou concurso para a Escola de Sargentos das Armas
(ESA), em Três Corações-MG, onde concluiu o curso na arma de Comunica-
ções. Posteriormente graduou-se bacharel em Direito pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul.
Para a execução de sua pesquisa, peregrinou por cerca de 30 cidades
e vilas italianas no rastro de pessoas que tiveram contato com nossos

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14 VOZES DA GUERRA

militares durante as operações de guerra. Desse trabalho resultou um texto


constituído de vasto repertório de entrevistas de italianos, organizado em
ordem cronológica da seguinte forma: estruturação da FEB no Brasil, o
embarque para o teatro de operações, ações de combate, vitória e retorno.
Sirio Fröhlich retratou no livro, pela voz dos próprios protagonistas,
as virtudes, os defeitos, os sentimentos, “o medo de ter medo”, o choro, as
orações e as emoções dos pracinhas durante a guerra.
Centenas deles não voltaram.
No entanto, o sangue derramado em terra estrangeira adubou o sen-
timento de orgulho arraigado até os dias de hoje de pertencermos a um
exército que nunca foi derrotado.
Boa leitura!

BIBLIOTECA DO EXÉRCITO

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Prefácio

A participação brasileira na Segunda Guerra Mundial constitui-se


em uma das mais brilhantes páginas de nossa história militar.
Na vitória sobre o nazifascismo, a Divisão de Infantaria Brasi-
leira desempenhou papel de incontestável relevo entre as forças aliadas.
Seus feitos sobreviverão eternos no coração da nacionalidade, como sínte-
se do valor de nossa gente e símbolo de vocação democrática do povo bra-
sileiro. Por isso mesmo, nunca será demais falar sobre o mais importante
fator de toda a Campanha da Itália: o soldado brasileiro. Do sul, do centro,
do norte, do litoral ou do interior, lá estava ele sempre pronto — abnegado,
corajoso, dedicado, bravo e patriota. Jamais vacilou diante das missões,
por mais árduas que fossem, apesar do frio inclemente, do terreno hostil,
do fogo inimigo.
A organização, treinamento e transporte de um efetivo de 25 mil
homens para combater no Teatro de Operações da Itália foram verda-
deiros exemplos de superação e determinação de nossas Forças Arma-
das, mas, sobretudo, da coragem, espírito de sacrifício e adaptabilida-
de do soldado brasileiro diante de experiente e aguerrido inimigo e de
climática adversidade nunca antes enfrentada.
A saga da Força Expedicionária Brasileira (FEB) já foi exaustivamente
descrita por inúmeros autores — inclusive pela pena do próprio coman-
dante, o insigne marechal João Baptista Mascarenhas de Moraes —, os
quais descreveram, sob os mais variados enfoques, o desempenho da FEB
durante a Segunda Guerra Mundial.
Entretanto, faltava uma obra cujo foco enfatizasse os aspectos hu-
manos de militares brasileiros e também de civis que habitavam as regi-
ões onde se desenvolveram as operações da FEB.

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16 VOZES DA GUERRA

Nesse sentido, este livro diferencia-se dos demais, porque os persona-


gens comunicam-se diretamente com o leitor por meio de seus depoimen-
tos, sem intermediários, oferecendo-nos um relato em vívidas e realistas
cores, da percepção dos acontecimentos sob a visão de cada um dos entre-
vistados a partir do próprio posto de observação.
Essa é a função desempenhada pela obra do primeiro-tenente Sirio
Sebastião Fröhlich, que registrou de maneira extremamente fiel e isenta
uma viva noção do ambiente, das pessoas e de suas emoções no cotidia-
no daquele conflito, e onde os relatos de fatos verídicos vivenciados na-
quela ocasião ganham colorido pela maneira franca e espontânea como
são descritos.
Durante sua pesquisa, o autor visitou cerca de 28 cidades e vilas por
onde passaram os integrantes da FEB, e, em todas essas localidades, os
entrevistados tiveram total liberdade para expressar suas lembranças
e opiniões.
Vozes da Guerra é constituído de ricas entrevistas de participantes
envolvidos nas mais diversas situações. Os depoimentos estão organizados
em ordem cronológica, a partir da estruturação e dos preparativos da FEB
no Brasil e da viagem para o teatro de operações, passando pelas ações
de combate — quando aborda as vicissitudes da guerra e o contato com a
população local. E segue até finalizar com a vitória sobre o nazifascismo e o
retorno ao Brasil, onde foram recebidos como heróis pelo povo brasileiro.
No contexto das narrativas de militares brasileiros, além da partici-
pação dos pracinhas, destacam-se também os testemunhos das enfermei-
ras da FEB, recordando o dia a dia de sua relevante missão. Incansáveis
no atendimento e no amparo aos feridos, foram elas verdadeiros anjos de
branco, amenizando o sofrimento dos feridos com incondicionais carinho
e dedicação.
Contudo, para além dessas narrativas, a obra ainda contempla nume-
rosas entrevistas com civis italianos que conviveram com os pracinhas e
testemunharam sobre o relacionamento fraterno e o apoio humanitário
recebido naquele período crítico de suas vidas, justificando o motivo pelo
qual, passados quase 70 anos, os brasileiros ainda são lembrados com
gratidão e carinho.
É importante assinalar que, invariavelmente, as impressões colhidas
ressaltaram não só o valor do soldado brasileiro como combatente mas
também, e em especial, a sua solidária e generosa natureza evidenciada

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Prefácio 17

no apoio às sofridas populações deslocadas de suas casas pela guerra e


sobrevivendo em precárias condições, em razão da dificuldade de alimen-
tos, roupas e abrigo no rigor do inverno europeu. Daí porque os pracinhas
foram chamados de Liberatori pelos italianos, quando os alemães foram
expulsos das diversas localidades, e os habitantes puderam retornar em
segurança a seus lares.
O trabalho do tenente Sirio não tem a intenção de apresentar subsídios
à história da FEB. No entanto, retrata pela voz transparente e autêntica dos
próprios protagonistas as virtudes e os defeitos, bem como os sentimentos
e as emoções que animavam nossos pracinhas durante a guerra. Como na
palavra do general Mário Fernandes em sua obra Xavantes na Itália, “[...] Vi-
mo-los combatendo, folgando, chorando, rezando, praguejando, com medo,
sem medo, com medo de ter medo, heróicos, na ânsia de acabar com a guer-
ra e retornar ao Brasil”.
Para vencer nos campos de batalha, nossos pracinhas demonstraram
patriotismo, coragem, perseverança, espírito de sacrifício e vontade inque-
brantável. Tais virtudes, como sementes regadas pelo sangue generoso dos
heróis tombados em combate, germinaram no coração do soldado brasilei-
ro que se orgulha de pertencer a um exército jamais derrotado.
De minha parte, registro a ligação pessoal e de profunda afinidade
com a saga da Força Expedicionária Brasileira, por ser filho de militar que
participou ativamente das ações da FEB como capitão de artilharia e que
me transmitiu, com riqueza de detalhes inesquecíveis, aquela epopeia
protagonizada pelo soldado brasileiro. Por isso mesmo, considero-me em
condições de corroborar a autenticidade dos depoimentos prestados, to-
dos eles impregnados de densa e sincera emoção, e cumprimento o autor
por sua especial contribuição para o resgate da memória da atuação de
nossos pracinhas sob uma perspectiva ainda não devidamente explorada
até esta obra.

General de Exército Fernando Sérgio Galvão


Ministro do Superior Tribunal Militar

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Índice

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Índice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
A Segunda Guerra Mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
Brasil abandona a neutralidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Força Expedicionária Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Ações da FEB na Itália. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Chamado para a guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Voluntários para a guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Verificando a saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
Despedida da família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
Começa a longa jornada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
A caminho do Rio de Janeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
Preparativos para a guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
A travessia do Atlântico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
Chegada ao cenário de guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Começa a caminhada em solo italiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Adaptação e treinamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
A vida no acampamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
Seguindo para o front . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Contato com o inimigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
Ações em combate . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
Vítimas da guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166

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20 VOZES DA GUERRA

Contato com a população . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172


Cartas e notícias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180
A fé como suporte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186
Guerra e música . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
Salário e fontes de renda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
Enfim, a Vitória! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197
Andanças pela “velha bota” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Novamente o mar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206
De volta à Pátria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209
De volta à vida civil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
Notícias desalentadoras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218
Reaprendendo a andar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 220
Missão cumprida! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224
Separação e reencontros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228
Marcas da Guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 232
Aprendizado e ensinamentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237
A liderança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243
O legado da FEB... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
Brasileiras na guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 262
Apêndice I – Pracinhas, Ex-Combatentes e Veteranos . . . . . . . . . . . . . . . . . 282
Apêndice II – Monumentos e homenagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 286
Apêndice III – Histórias inusitadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291
Apêndice IV – A Marinha do Brasil na guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299
Apêndice V – A FAB na guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302
Apêndice VI – Liberatori . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305
Referências bibliográficas e fontes de consulta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 365
Relação de depoentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 367
Relação de abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 369

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Introdução

A origem deste trabalho remonta ao ano de 2008, quando dois


adolescentes — na plateia de um desfile cívico-militar, em Santa
Maria-RS — ao assistirem à passagem dos veteranos e ex-comba-
tentes da Força Expedicionária Brasileira conduzindo a Bandeira do Brasil,
em tom de curiosidade questionavam “Quem são esses velhinhos?” e “O
que eles fizeram para estar aí?”.
Desses questionamentos surgiu a ideia de dar àqueles “velhinhos” a
oportunidade de contarem suas experiências, sobretudo as relacionadas à
guerra, ao público jovem, que pouco ou quase nada sabe sobre essa página
de nossa história.
Com tal proposta, inicialmente foram ouvidos pracinhas da região
central do Rio Grande do Sul, e isso resultou na edição de Longa Jornada
— com a FEB na Itália. A aceitação pelo público-alvo superou a expectativa.
Contudo, havia uma certeza: o trabalho estava incompleto, e o tema mere-
cia ser aprofundado.
Usando o trabalho mencionado como base, foram ouvidos vetera-
nos de várias regiões do Brasil, residentes no Distrito Federal e nos es-
tados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Novas personagens,
muitas histórias novas e outras tantas repetidas. A reiteração consolidou
convicções anteriormente formadas. As novidades, apesar de não terem
suscitado dúvidas, eram dignas de serem mais bem exploradas no teatro
de operações.
Assim, nos caminhos percorridos pelos veteranos na Itália, forjou-se
a convicção de que os brasileiros não apenas merecem destaque em
solenidades ou desfiles cívico-militares mas também aplausos, segundo
atestam os italianos que privaram de seu convívio nos difíceis dias da

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22 VOZES DA GUERRA

guerra e fazem jus a verem seus nomes escritos na galeria de defensores da


liberdade mundial.
A pretensão deste trabalho não é aprofundar-se no contexto histórico
que envolveu a Segunda Guerra Mundial, tampouco procurar detalhar as
razões pelas quais o Brasil nela se viu envolvido. As causas que a ela con-
duziram e as consequências decorrentes já foram analisadas, em seus mais
variados aspectos, por rica e vasta literatura.
Ainda que amplamente discutido, o tema está longe de estar esgotado,
pois, dos mais de 25 mil protagonistas brasileiros, os que ainda estão entre
nós são quase desconhecidos pelo grande público. O propósito deste trabalho
é resgatar memórias daqueles que foram, além de testemunhas, personagens
da história da Segunda Guerra Mundial, valorizando sua contribuição para a
democracia, liberdade e paz, então postas em perigo pelo nazifascismo.
Depois de breves ambientação e cronologia, que visam tornar a leitura
mais dinâmica e compreensível, terão espaço relatos repletos de medo, in-
certeza, angústia e, em contraposição, de coragem, fé, confiança e abnegada
dedicação à Pátria, vividos pelos pracinhas durante a longa jornada de ida e
volta entre a terra natal e os campos de batalha, de onde trouxeram valores
que nortearam a evolução do Exército e contribuíram para o desenvolvi-
mento social e democrático do Brasil.

Acervo: Taltíbio Custódio

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A Segunda Guerra Mundial

A semente da Segunda Guerra foi lançada no Tratado de Versalhes, em


1919, e irrigada por diversos tratados posteriores à Primeira Grande
Guerra. A inobservância de questões étnicas e políticas na reestrutu-
ração do espaço geográfico e a supremacia do interesse dos vencedores em de-
trimento dos vencidos geraram profundo sentimento de injustiça entre estes.
Esses fatores colaboraram para que o período pós-guerra fosse de
penúria nos países derrotados, criando o cenário ideal para ascensão de
governos totalitários. A Itália controlou a situação semianárquica em que
se encontrava centralizando o poder na figura de Benito Mussolini. A Ale-
manha, após anos de crise econômica e desorientação política, concedeu
o poder a Adolf Hitler. Em pouco tempo, usando um discurso persuasivo
e enfatizando o resgate da honra alemã, o Führer transformou o país em
grande potência industrial e bélica.
O cenário de guerra começou a ser desenhado na década de 1930,
quando a Alemanha celebrou um tratado de não agressão com a Rússia e
assinou, com a Itália, um tratado conhecido por Eixo Berlim-Roma, poste-
riormente estendido a Tóquio.
A anexação da Áustria e sua conversão em província do III Reich, em
março de 1938, e da Tchecoslováquia, em setembro do mesmo ano, deram
início à expansão alemã no continente europeu. Contudo, o fato que efetiva-
mente marcou o início da Segunda Guerra Mundial foi a invasão da Polônia
pelo exército alemão, em 1º de setembro de 1939.
Deixando a neutralidade em vista do projeto de expansão alemã adota-
da quando das anexações anteriores, em 3 de setembro de 1939, Grã-Bre-
tanha e França comunicaram a Hitler que, caso não fosse imediatamente
interrompida a invasão da Polônia, declaravam-se em guerra.

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24 VOZES DA GUERRA

Estava assim deflagrado o conflito armado que envolveu mais de 60 na-


ções. Inicialmente o quadro da guerra contava, de um lado, com Alemanha
(nazista), Itália (fascista) e Japão (imperialista); do outro, França e Ingla-
terra (aliados). A União Soviética (comunista) continuava fora da guerra,
na Frente Ocidental.
Em seguida à invasão da Polônia, a Alemanha expandiu seu domínio a
diversos países, incluindo Noruega, Dinamarca, Holanda, Bélgica, Luxem-
burgo e França, chegando ao Norte da África, onde Mussolini tentara re-
compor o antigo Império Romano. Espanha, Portugal e Suíça mantinham
a neutralidade; a Inglaterra resistia. No decorrer da guerra, outros países,
entre os quais os Estados Unidos, aderiram às forças aliadas.
Essa situação perdurou até o desentendimento entre a Alemanha e a
Rússia, motivando a invasão desta por aquela, em 22 de junho de 1941. A
resistência russa exigiu o deslocamento de grandes efetivos alemães para
a gelada frente de combate ao leste, deixando mais vulnerável a Frente
Ocidental. Aos poucos, a resistência francesa, auxiliada pelo Reino Unido,
foi liberando áreas ocupadas pelos alemães na França. Com decisivo apoio
norte-americano, o Norte da África foi libertado, e os alemães, expulsos do
solo italiano, já com o apoio dos soldados brasileiros.
Atacada por todas as frentes, a Alemanha rendeu-se incondicional-
mente às Forças Aliadas em 8 de maio de 1945, pondo fim no continente
europeu ao conflito que, segundo estimativas, ceifou mais de 50 milhões
de vidas humanas e deixou mais de 20 milhões de mutilados. Levando-se
em conta os danos psicológicos, físicos e materiais por ela causados, fica
evidente que a Segunda Guerra Mundial é o mais triste capítulo da História.

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O Brasil abandona a neutralidade

O Brasil, pela posição geográfica privilegiada, relativamente pró-


xima da África Ocidental, era um parceiro cobiçado, tanto pelo
Eixo quanto pelos Aliados. Entretanto, por questões de ordem
política e econômica, manteve a neutralidade no início do conflito.
Em seguida ao ataque japonês à base naval norte-americana de
Pearl Harbor, no oceano Pacífico em dezembro de 1941, o Brasil anun-
ciou, em janeiro de 1942, o rompimento das relações diplomáticas com
a Alemanha, a Itália e o Japão, fundamentado na Carta do Atlântico, que
previa o apoio recíproco entre os países americanos em caso de ataque
a algum destes por qualquer potência extracontinental.
Depois disso, o Brasil, visando à segurança do litoral, aumentou sua
atividade militar e concedeu aos Estados Unidos o uso de bases aéreas
no Norte e no Nordeste para facilitar a ligação aérea entre a América e a
Europa, utilizando a África como escala. Em contrapartida, com o obje-
tivo de modernização das Forças Armadas do Brasil, os Estados Unidos
forneceriam equipamentos e armamento e auxiliariam na defesa do ter-
ritório brasileiro, caso fosse necessário.
Ao posicionar-se favoravelmente aos Estados Unidos, o Brasil tornou-se
alvo dos submarinos alemães e italianos, que passaram a atacar navios mercan-
tes brasileiros em rotas de abastecimento para a indústria dos Estados Unidos,
em águas internacionais e em navegação de cabotagem, ceifando a vida de cen-
tenas de brasileiros, inclusive mulheres e crianças.
O descontentamento em consequência do desacato à soberania bra-
sileira aumentou. O povo saiu às ruas para exigir que o Governo tomas-
se posição ativa diante dos atos hostis do Eixo. Atendendo ao crescente apelo
popular, em 22 de agosto de 1942, quando já haviam sido afundados quase

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26 VOZES DA GUERRA

20 navios da nossa Marinha Mercante, o governo brasileiro declarou guerra


à Alemanha e à Itália. Cumpre destacar que o Brasil decretou guerra ao Japão
somente em junho de 1945.

Navio Araraquara, afundado em 15 de agosto de 1942, pelo sub-


marino alemão U-507 – 131 mortos

No período anterior e durante o conflito, foram depredados consulados


e repartições ligadas aos países agressores, casas comerciais e residências de
descendentes de alemães e italianos. Nos jornais da época, sobretudo de regi-
ões de colonização europeia, são comuns notícias de perseguições a descen-
dentes de imigrantes que, havia mais de século ou décadas, adotaram o Brasil
por pátria e em muito contribuíam para desenvolvimento do País. José Marce-
lino de Holanda recorda que “em Recife, a população ficou revoltada; quem ti-
nha comércio ou escritório e era descendente de alemães perdeu tudo. A popu-
lação entrava nos escritórios, jogava máquinas pelas janelas; quebrava tudo!”.
Na maioria das vezes, as agressões eram infundadas contra pessoas e
empresas pelo simples fato de ostentarem em seus nomes ou fachadas a
descendência germânica ou italiana. Em inúmeras ocasiões, foi necessária
a utilização de forças federais e estaduais para evitar depredações e incên-
dios. Em alguns casos, a própria autoridade policial era a responsável pela
coação, que ia da proibição de conversas em idiomas estrangeiros ao con-
fisco de edições de jornais e até de radiorreceptores, pelo simples fato de
permitirem o acesso a notícias sobre o conflito, por meio de ondas curtas,
no idioma dos antepassados.

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Força Expedicionária Brasileira

A prudência indicava que as ações brasileiras decorrentes da de-


claração de guerra se limitassem à defesa do litoral, à concessão
de uso das bases militares durante o conflito e à colaboração
com as forças militares norte-americanas no patrulhamento do Atlântico
Sul. Na época, o Exército Brasileiro não possuía material de guerra mo-
derno, mas uma estrutura organizacional deficitária e instruía seu pessoal
com base em táticas de guerra defasadas. Além disso, o nível de preparo
técnico, físico e psicológico dos soldados não aconselhava a participação
em um conflito extracontinental.

O 1º distintivo usado pelos pracinhas era verde, com letras brancas

Apesar do precário — ou quase inexistente — poderio bélico, o Brasil,


com uma Força Expedicionária, optou por participar do conflito em solo euro-
peu ao lado das forças aliadas. Para que essa intenção se concretizasse, em 23
de novembro de 1943 foi criada a Força Expedicionária Brasileira (FEB), com
previsão de três Divisões de Infantaria Expedicionária. Vencendo todas as di-
ficuldades e superando expectativas, o Brasil foi o único país da América Lati-
na a contar com tropas diretamente envolvidas na Segunda Guerra Mundial.

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28 VOZES DA GUERRA

A tropa orgânica de uma Divisão de Infantaria Expedicionária (DIE),


constituída nos moldes do exército norte-americano, compreendia o co-
mandante; o Quartel-General (Estado-Maior Geral, Estado-Maior Especial
e Tropa Especial); Infantaria Divisionária (comandante e três Regimen-
tos de Infantaria-RI); Artilharia Divisionária (comandante e quatro Gru-
pos de Artilharia, destes, três de 105mm e um de 155mm); Esquadrilha
de Aviação (ligação e observação); Batalhão de Engenharia; Batalhão de
Saúde; Esquadrão de Reconhecimento e Companhia de Transmissões. A
Tropa Especial, integrada ao QG, era constituída por: Comando do QG e
da Tropa Especial, Destacamento de Saúde, Companhia do QG, Companhia
de Manutenção, Companhia de Intendência, Pelotão de Polícia, Pelotão de
Sepultamento e Banda de Música.
Na organização da 1ª DIE, foram aproveitadas unidades então existen-
tes, como o 1º RI, do Rio de Janeiro, o 6º RI, de Caçapava-SP, e o 11º RI,
de São João Del Rei-MG. Além dessas organizações militares, muitas outras
contribuíram com efetivos para a composição da DIE, resultando na trans-
formação de algumas e na criação de novas unidades do Exército Brasileiro.
No início da década de 1940, o Exército Brasileiro tinha a organização, os
regulamentos e os processos de combate baseados na escola francesa. A tare-
fa de constituir, instruir e adestrar uma Divisão de Infantaria (DI) de acordo
com a doutrina norte-americana era mais um dos grandes obstáculos a se-
rem transpostos. Para coordenar essas atividades, em dezembro de 1943 o
general Mascarenhas de Moraes foi nomeado para comandar a 1ª DIE.

Acervo: Vet. Jarbas Ferreira

6ª Companhia do 6º RI – 25 de maio de 1943. Jarbas é o primeiro militar à direita

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Força Expedicionária Brasileira 29

Para Ivan Alves, por conta da reestruturação do Exército e da adapta-


ção à nova situação, a preparação de sua unidade para a guerra foi compli-
cada. Não é difícil imaginar a logística necessária para alojar e alimentar os
novos efetivos. Um regimento, com cerca de mil homens, passou a ter cinco
mil. Conforme diz, não havia como acomodar todo mundo no quartel; foi
necessário ocupar outra instalação na cidade, além de barracas.
A odisseia descrita pelo cabo Altamir Mesquita do Amaral, do 7º RI, de
Santa Maria, extraída de várias cartas remetidas a familiares, dá uma noção
da dificuldade de alojar os contingentes que chegavam ao Rio de Janeiro.
Depois de sair de Santa Maria em 27 de outubro de 1943, em 4 do mês
seguinte, chegou ao Rio de Janeiro e permaneceu adido ao 2º RI. Em 28
de dezembro, deslocou-se para Caçapava e ficou adido ao 2º Batalhão do
6º RI. Depois de alguns dias, por não haver vagas, foi transferido para o 3º
Batalhão do 6º RI, em Pindamonhangaba, e lá permaneceu até 9 de março
de 1944, quando sua unidade foi deslocada para o Rio de Janeiro.

Acervo: Vet. Vasco Ferreira

Quarteis ficaram “pequenos” para acolher os novos efetivos. Na foto, o 13º RI

“Muitos falam que a FEB não foi para a Europa bem preparada. Dentro
das circunstâncias, eu acredito que até foi. Acompanhei toda a instrução
do Onze e vi chegar gente de tudo que é lugar do Brasil: do Rio Grande
do Sul, do Paraná, de Santa Catarina — de onde veio um grupo de mais
de 100 homens que não falavam português; falavam só alemão... eram de
origem alemã, mas eram bons soldados brasileiros. Eles aprenderam a falar
português no Onze; no começo não falavam nada, mas com o tempo, foram

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30 VOZES DA GUERRA

se achegando e, quando foram para o Rio de Janeiro, no início de 1944,


estavam bem entrosados ao regimento. A preparação inicial dava a entender
que iríamos para a África, pois tivemos até instrução de como conviver com
muçulmanos. O meu batalhão, o 3º, seguiu para o Rio de Janeiro em 12 de
março de 1944, mas teve um batalhão que foi antes”, conclui Ivan Alves.
O relato de Newton Lascalea esclarece como foi a formação do pessoal a fim
de fazer frente à nova estrutura organizacional: “Não havia um efetivo fixo de
sargentos por companhia. O Exército teve que se adaptar ao sistema americano,
em que cada pelotão de fuzileiros tem três sargentos mais um adjunto; cada
companhia tem três pelotões de fuzileiros e assim por diante. Em consequência,
o número de sargentos multiplicou várias vezes. Houve, então, cursos emergen-
ciais (de sargentos e de cabos) para que cada pelotão, cada companhia, tivesse
o efetivo completo.”
O mesmo processo de formação deu-se também nas outras unidades-ba-
se que seguiriam para a guerra. Em razão das dificuldades operacionais e do
término da guerra, as outras duas DIE previstas na composição da FEB não
chegaram a ser constituídas.

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Ações da FEB na Itália

C om a finalidade de situar o leitor, antes de partirmos para a his-


tória e as estórias narradas pelos protagonistas, é importante
descrever a participação brasileira em solo italiano. Apesar de no
roteiro abaixo constarem apenas os principais combates, cabe destacar que
dezenas de localidades foram libertadas pelas tropas brasileiras, como po-
derá ser constatado no relato dos pracinhas.
Entre os dias 2 de julho de 1944 (partida do 1º escalão do Rio de
Janeiro) e 22 de fevereiro de 1945 (chegada do 5º Escalão ao Porto
de Nápoles), 25.334 homens e mulheres cruzaram o Atlântico. Entre 16 de
setembro de 1944 e 2 de maio de 1945, os brasileiros participaram efetiva-
mente de ações de combate.
Quando o Brasil entrou na guerra, os exércitos aliados já haviam re-
tomado o Norte da África e o Sul da Itália. Os alemães estavam instalados
defensivamente na chamada “Linha Gótica”, frente que se estendia do mar
Tirreno ao Adriático, nas proximidades de Bolonha, onde às dificuldades
naturais do terreno acidentado os alemães acrescentaram casamatas de
concreto e um complexo sistema de túneis.
Naquele estágio da guerra, o objetivo estratégico era expulsar os ale-
mães da Itália antes da chegada do inverno. Americanos e ingleses tenta-
vam tomar Bolonha sem sucesso. Em ousados contra-ataques, as tropas
alemãs causavam severas perdas aos aliados. Assim, começou a tomar vul-
to o mito da inexpugnabilidade da Linha Gótica. Integrada ao 5º Exército e
subordinada ao IV Corpo de Exército, ambos dos Estados Unidos, a FEB foi
destacada para a mais difícil frente de batalha italiana.
Na Itália, quatro fases marcaram a atuação da FEB: 1ª fase — opera-
ções no vale do rio Serchio; 2ª fase — operações no vale do rio Reno; 3ª fase

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32 VOZES DA GUERRA

— operações no vale do rio Panaro; e 4ª fase — operações de perseguição


no vale do rio Pó.
Na primeira fase de atuação, entre setembro e outubro de 1944, a
FEB recebeu a missão de substituir as tropas norte-americanas em pontos
avançados da Linha Gótica. A primeira vitória ocorreu em Camaiore, em 18
de setembro. No dia 26 do mesmo mês, monte Prano foi conquistada. Até o
final de outubro, diversas vilas e cidades, entre as quais Massarosa, Fornaci
e Barga, foram libertadas do jugo alemão.

Roteiro da FEB na Campanha da Itália — “Resumo” em que constam as


principais cidades e os principais combates na Segunda Guerra Mundial

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Ações da FEB na Itália 33

Nas operações no vale do rio Reno, muitas vidas brasileiras foram cei-
fadas. Monte Belvedere, Monte Castelo e Castelnuovo eram pontos fortifi-
cados de difícil conquista. Sem a expulsão dos alemães desses redutos, as
forças do IV Corpo de Exército não conseguiriam prosseguir para o norte. A
partir de 24 de novembro de 1944, foram feitas quatro tentativas para con-
quistar Monte Castelo; contudo, a vitória somente foi alcançada em 21 de
fevereiro de 1945. Rompida a Linha Gótica, seguiram-se a conquista de La
Serra, em 24 de fevereiro, e Torre de Nerone e Castelnuovo, em 5 de março.
A terceira fase de atuação ocorreu no vale do rio Panaro. Em 14 de abril
de 1945, a 1ª DIE recebeu a missão de atacar as elevações de Montese e
Montello. A primeira era um maciço de vital importância para os alemães
após terem perdido Monte Castelo. Foi lá que a FEB travou a mais sangrenta
das batalhas em solo italiano. Prosseguindo em sua missão, chegou a Zocca,
importante entroncamento rodoviário.
A quarta fase da campanha da FEB aconteceu no vale do rio Pó. O ini-
migo, quase batido, retraía em direção à Alemanha. A perseguição às tropas
alemãs desenvolveu-se na direção de Vignola e Alessandria. Em 27 de abril,
as tropas brasileiras encontraram resistência alemã em Collecchio e Forno-
vo di Taro. Em 29 de abril, a 148ª Divisão de Infantaria Alemã foi alcançada
pela FEB. Depois da negociação da rendição, 14.779 prisioneiros de guerra,
cerca de 4 mil animais, 2.500 viaturas, além de grande quantidade de arma-
mento e equipamento restaram apreendidos.
Em ação de perseguição e limpeza do vale do rio Pó, a FEB prosseguiu
sua caminhada. Em 30 de abril, ocupou Alessandria e fez a junção com a
92ª Divisão do exército norte-americano. Em 1º de maio, após ultrapassar
a cidade de Turim, realizou a junção com as tropas francesas, em Susa.
A partir de então, a FEB permaneceu em missão de ocupação e ma-
nutenção da paz até 3 de junho de 1945, quando as tropas começaram a
retrair para o acampamento de Francolise, onde iriam aguardar o regresso
ao Brasil, concluído em 3 de outubro de 1945.
A missão estava cumprida após 239 dias de combate em prol da liber-
dade e da democracia. O Brasil perdeu 465 valiosas vidas; houve mais de
2.800 baixas, entre feridos, acidentados e extraviados. Contudo, ficou o le-
gado de heroísmo do sargento Max Wolff Filho, dos Três Bravos Brasilei-
ros e outros soldados anônimos, além do exemplo de abnegação e amor
à Pátria, proporcionado por todos os que lutaram pela restauração e pela
manutenção da paz.

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34 VOZES DA GUERRA

Insígnia usada pelo Vet. Ary Dal Pozzolo

Na representação, o fundo amarelo,


a cobra verde, as letras brancas
e o fundo do letreiro em azul
representam as cores da bandeira;
a borda vermelha significa a guerra.
A imagem da cobra fumando foi
adotada em resposta a setores da
política nacional, segundo os quais
seria mais fácil uma cobra fumar do
que o Brasil entrar na guerra. Com
a FEB atuando em solo europeu, a
pedido do general Mascarenhas de
Moraes foi desenhado o distintivo.
Os soldados brasileiros também
usavam o distintivo do 5º Exército
dos EUA, comando ao qual estava
engajada a FEB.

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Chamado para a guerra

Q uando o Brasil declarou guerra aos países do Eixo, o licencia-


mento dos soldados que estavam prestando o serviço militar foi
suspenso. Além disso, militares que haviam sido licenciados em
anos anteriores (reservistas) e jovens que ainda não haviam prestado o
serviço militar foram convocados, como parte dos esforços que visavam à
mobilização para a guerra.
Samuel Silva explica que a convocação para o Exército, naquela época,
não era feita como nos dias atuais: hoje se convoca uma classe pelo ano de
nascimento e selecionam-se os que prestarão o serviço militar; na época,
era realizado um sorteio depois de completarem os 19 anos. Ocorre que era
muito difícil alguém conseguir emprego sem estar quite com serviço mi-
litar. Por isso, vários pracinhas ingressavam no Exército voluntariamente,
aos 18 anos, a fim de obterem o Certificado de Reservista.
Ângelo França viveu essa situação. Pelo seu planejamento, serviria por
dois anos e daria baixa com 20: “Mas aí foi tudo diferente! O Brasil entrou
na guerra e eu tive que ficar por lá. O licenciamento foi sendo adiado de seis
em seis meses.” França encarou as prorrogações com naturalidade, mas, so-
bre ir para a guerra, é taxativo: “Não se vai voluntariamente para a guerra.
Isso é coisa de filme americano... A gente vai quando é escalado; eu estava
servindo numa unidade que foi escolhida para ir à guerra. Nesse caso, é
uma questão de honra; ninguém pode fugir.”
Entre os militares da ativa, Aribides Rodrigues Pereira, que incorporou
no 5º RAM, em Santa Maria-RS, em 1942, recorda como o comandante
do Regimento passou a notícia à tropa: “O Brasil está em guerra. Não se
surpreendam quando chamarem gente. É bom que estejam preparados.”
Certo dia, o comandante de sua bateria reuniu o efetivo e anunciou que havia

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36 VOZES DA GUERRA

chegado a hora de mandar gente para o Rio de Janeiro, onde o Exército


estava se preparando para a guerra. Queria voluntários. Aribides afirma
ter sido o primeiro integrante da Bateria a acusar-se.
Antonio André havia se incorporado no Exército, em janeiro de
1942, no 1º Batalhão de Engenharia, no Rio de Janeiro: “No final do ano,
o comandante da OM me chamou. Fui falar com ele, com receio, pen-
sando no que poderia ter feito de errado. Quando me apresentei, o co-
mandante meio enfezado declarou: ‘Agora você vai dizer que também
não pode ir para São Paulo...’ Eu lhe respondi: ‘Coronel, estou aqui há
quase um ano sem fazer quase nada. Para onde o senhor me mandar, eu
vou...’ Às 19h, eu estava na Central do Brasil pegando um trem para São
Paulo. Chegando lá, fui direto para a General Motors, onde fiz o curso de
mecânico.” Em 1943, retornou para sua OM e foi promovido a sargento:
“Em outubro de 1943, fui convocado, com outros 21 motoristas, para
integrar a FEB. Em janeiro de 1944, fui integrado à 1ª Companhia de
Transmissões, que havia sido criada para ir à guerra, como sargento me-
cânico. A companhia foi integrada à 1ª DIE, e embarquei para a Itália.”
Severino Oliveira era segundo-sargento no 16º RI, de Natal-RN. Re-
corda que a cidade passava a noite em blackout (escurecimento total);
as forças aéreas brasileira e americana sobrevoavam a cidade. No quin-
tal das casas, havia um abrigo para a defesa antiaérea. A comida era
racionada; havia poucas estradas, e ela era levada pelos navios. Muitos
destes haviam sido torpedeados, diminuindo a oferta de comida. “Cerca
de 300 homens do 16º RI haviam sido designados para ir à guerra. O
Severino não estava entre eles. Faltando apenas três dias para a parti-
da, outro sargento adoeceu... O capitão Fernando mandou me chamar e
disse: ‘Severino, o sargento fulano [nome mencionado, mas preserva-
do] adoeceu e não pode embarcar. Você pode ir no lugar dele?’ Como o
Severino não sabia dizer a palavra não, embarquei em três dias e nunca
mais vi o tal sargento.”
Vasco Duarte Ferreira inscreveu-se aos 18 anos, em abril de 1942,
após ler no jornal que o Exército abrira voluntariado. Apresentou-se e
foi incorporado no 1º Batalhão de Guardas (Rio de Janeiro). Cerca de
três meses depois, foi transferido para o 13º RI, de Ponta Grossa-PR, e,
em 1943, para o 3º Batalhão de Carros de Combate (BCC), cujo aquar-
telamento ocupava as instalações do Derby Clube, local onde foi cons-
truído o Estádio do Maracanã. Antes de o 3º BCC ser movimentado para

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Chamado para a guerrra 37

Santa Maria-RS, Vasco foi transferido para o 1º RI, OM designada para


a guerra, e lá foi incorporado ao efetivo do Pelotão de Reconhecimento
e Informações.

Soldado Vasco Ferreira, no 13º RI, com uniforme da época

Ary Roberto de Abreu era militar quando foi convocado para a guer-
ra. Apresentara-se com pouco mais de 17 anos, em Belo Horizonte. Vo-
luntário, serviu em Ouro Preto, em março de 1942, no 10º Batalhão de
Caçadores (BC), que, em maio de 1943, foi deslocado para Porto Segu-
ro-BA. Depois de muitas andanças, acabou embarcando para a Itália no
4º escalão. Cleir de Carvalho havia sido incorporado no 1º Batalhão de
Engenheiros, no Rio de Janeiro: “Fui voluntário para ir para o Exército;
mais tarde veio a guerra e fui convocado. Precisavam de 100 praças e
de alguns oficiais para completarem o contingente. Eu era cabo e fui um
dos escolhidos.”
Hélio Marques Gomes era reservista. Aos 23, estudante de Odon-
tologia, recebeu um telegrama da 1ª Região Militar, convocando-o para
compor o efetivo da FEB: “Na ocasião, minha família conhecia pessoas
influentes, que até poderiam me tirar desta convocação, mas eu era o
mais novo filho e tinha grande preocupação em preservar meus outros
irmãos, alguns já casados e com família constituída.”

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38 VOZES DA GUERRA

Jarbas Ferreira foi chamado em dezembro de 1942 por meio de carta


de convocação. Diz que já estava esperando por isso: “Meus pais não gosta-
ram muito porque fomos convocados eu e meu irmão. Isso não era comum,
tanto que eles escolhiam quem iria. Eu pedi para ir porque o meu irmão
estudava teologia. Quem sabe eu seria o escolhido de qualquer jeito, mas
eu me adiantei.”
Geraldo Antonio Sanfelice serviu no 7º RI, em 1940 e 1941. Portanto,
era reservista ao ser convocado. Recorda que recebeu a carta de convoca-
ção para integrar a FEB das mãos de um cabo que viria a ser seu cunhado
depois da guerra. Este lhe disse: “Tu vais ter de ir a Santa Maria, te apresen-
tar no quartel; foste convocado para a guerra.” Recebeu a notícia com na-
turalidade, sentimento compartilhado pelos seus pais. Afinal, era tempo de
guerra, e todos sabiam que, a qualquer momento, isso poderia acontecer.
Ewaldo Meyer havia terminado a instrução em Tiro de Guerra (TG) jus-
tamente naquele período, aos 18 anos, quando foi convocado: “Recebi em
casa uma carta de convocação. Foi uma surpresa e um desespero, princi-
palmente dos meus pais. A mãe ficou chorosa; como qualquer mãe, sentia
pelo filho. Ir para a guerra... A gente já sabia que quem fosse para a guerra
dificilmente voltaria. Esse era o pensamento geral de quem era convocado,
mas quis o destino que acontecesse tudo o que aconteceu, e eu voltei.”
Geraldo Campos Taitson também era reservista na época da convoca-
ção. Recebeu a notícia por meio da Rádio Inconfidência, em um programa
de notícias às 22h, no qual mencionaram o nome dos convocados e anun-
ciaram que a publicação sairia no Diário Oficial do dia seguinte. Os chama-
dos deveriam se apresentar no corpo de tropa mais próximo da residência.
Apresentou-se no 10º RI (hoje 12º RI), de Belo Horizonte: “A reação dos
meus pais foi de resignação: foi convocado, vai para o Exército; vai servir à
Pátria.” O veterano Osvaldo Carnevalli, que também era reservista, lembra:
“Quem levou a intimação foi uma pessoa que trabalhava na prefeitura; eu
deveria comparecer ao quartel do 6º RI, em Caçapava.”
Israel Rosenthal havia realizado a instrução militar em TG e, em 1943,
formou-se em Odontologia. Como sabia que seria convocado para a guerra,
apresentou-se para frequentar o Centro de Preparação de Oficiais da Reser-
va do Rio de Janeiro, onde concluiu o Curso de Infantaria, em 1944. Embar-
cou para a Itália no 5º escalão. Descendente de judeus, conta que somente
ao término da guerra soube do tratamento desumano a que eram submeti-
dos os judeus na Europa. O também ex-integrante de TG Francisco Arthur

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Chamado para a guerrra 39

Gomes, de Caçapava-SP, foi convocado em 15 de outubro de 1942: “A coinci-


dência é que dei a notícia da convocação exatamente no dia do aniversário
da minha mãe. A prefeitura se encarregou de distribuir os pedidos para
que a gente se apresentasse. Fui à prefeitura e recebi a notificação. Disse à
minha mãe: ‘Eu lamento muito por ter que lhe dar essa notícia justamente
no seu aniversário, mas fui convocado para me apresentar no Exército.’”
Paulo Pereira de Carvalho havia servido no TG de Mogi das Cruzes. Es-
tava desempregado quando da convocação: “Dei graças a Deus por ter sido
convocado para o Exército. Ninguém dizia que foi convocado para a guerra;
dizia que foi convocado para o Exército. A maior parte da população não
acreditava que a gente iria para a guerra; pensava que fosse para um trei-
namento ou para defender o Brasil em caso de invasão.”
Entre os que não haviam prestado o serviço militar, Pedro Solano Vidal
estava prestes a completar 22 anos quando foi convocado para a FEB. Ele
recorda que “o pessoal do Exército foi buscar os 18 convocados do muni-
cípio com um caminhão. Seguimos para Santa Maria, onde iniciaríamos a
preparação no 7º RI”. Para ele tudo era novidade. Relata que não aceitou de
bom grado a ideia de ir para a guerra. Foi contrariado, mas, enfim, tinha de
cumprir o seu dever: “‘Tu queres ir para a guerra?’, perguntavam. Ninguém,
em sã consciência, diria com convicção ‘Sim, eu quero!’. Saía um ‘É... quero’,
meio sem graça. Também não adiantava dizer que não, pois iria de qual-
quer modo. Então, era bom não se destacar negativamente.”
Nos depoimentos transcritos, estão retratados modos diferentes de
enfrentar a situação que levava aflição aos jovens pracinhas. A incerteza
do que os esperava, entretanto, não foi suficiente para que deixassem de
atender ao chamado da Pátria. Contudo, nem sempre era assim: muitos jo-
vens não atenderam à convocação; outros tantos, após se apresentarem,
deram um jeito para não terem de ir à guerra. Segundo Geraldo Sanfelice,
houve quem se escondesse no mato ao saber que estavam entregando a
carta de convocação para não terem de recebê-la. Outros, mesmo receben-
do o chamado, não se apresentaram no quartel. Alegavam que não iriam
para uma guerra que não lhes dizia respeito, menos ainda para morrerem
longe de casa. Um conhecido seu extraiu dois dentes incisivos superiores,
pois soubera que os convocados que apresentassem problemas médicos ou
odontológicos seriam dispensados na inspeção de saúde.
Conforme Pedro Vidal, as deserções podiam acontecer a qualquer
momento. Depois da parada para o almoço, no deslocamento ferroviário

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entre Santa Maria e Rio Grande, na Estação de Cacequi-RS, alguns não te-
riam retornado ao trem. Severino Oliveira diz que muitos dos 300 soldados
provenientes do 16º RI saltaram nas águas do rio Capiberibe e deserta-
ram enquanto o navio aguardava para desatracar do Porto de Natal. New-
ton Lascalea lembra que, ainda no Rio de Janeiro, muita gente desistiu: “Na
hora do embarque, estava só o saco no lugar do soldado.”
“As notícias sobre a guerra, divulgadas pela propaganda nazista,
impunham medo; mesmo assim, o sentimento de cumprir o dever
cívico foi mais forte, e muitos atenderam ao chamado da Pátria”, conclui
Taltíbio Custódio.

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Voluntários para a guerra

E ntre os motivos que levaram os pracinhas a se voluntariarem para a


guerra, tiveram destaque a luta pelos ideais de paz e liberdade, que
estavam ameaçados, a honra da Pátria e outros sentimentos nobres.
Sempre que ouvia falar em guerras, Aribides Pereira imaginava-se um
soldado de linha de frente. Quando sabia das barbáries do nazismo, dizia
para si mesmo que, se o Brasil precisasse dele, estaria pronto para defender
a Pátria: “Por um longo tempo amadureci essa ideia, e quando meu coman-
dante pediu voluntários para irem à guerra, não tive dúvidas de que havia
chegado a hora de ajudar a escrever as páginas da história.”
Acervo: Aribides Pereira

Aribides (e) com companheiros do 5º RAM

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Mário Machado dos Santos saiu do Brasil com a convicção de que iria
combater o nazismo e o fascismo, que representavam grande perigo para
a humanidade: “Não era só o Brasil que estava em perigo. Fomos lutar pela
liberdade universal.” Recorda que o presidente Getúlio Vargas declarou que
os pracinhas partiam para defender o porvir, a liberdade futura, não só do
Brasil mas do mundo todo.
Ivo Ziegler inspirou-se na tradição guerreira do povo gaúcho: “Meu avô
havia combatido na Revolução Federalista; meu pai, na Revolução de 1923;
e um tio, na Revolução de 1932.” A tradição de lutar pela liberdade e pelos
ideais estava no sangue. Tinha consciência do que o esperava na Itália, pois
outros companheiros do Regimento Mallet já se encontravam na guerra e
mandavam notícias de lá. Além disso, todos os dias havia notícias nos jor-
nais. Conta que foi à guerra pelo “dever cívico de lutar pelo Brasil e pela
liberdade; quando pediram voluntários, me prontifiquei na hora.”
Pacífico Pozzobon comenta que um dos irmãos e um primo haviam
sido combatentes na Revolução Constitucionalista; em 1932, estiveram em
São Paulo, ao lado das tropas do 7º RI. No retorno a Santa Maria, eles foram
recepcionados como verdadeiros heróis: “Na minha imaginação de criança,
desenvolvi a ideia de que, para ser herói, bastava participar de uma guerra.
Quando soube que precisavam de voluntários para a Segunda Guerra, senti
que havia chegado a minha vez de ir para o combate.” Para ser considerado
apto à guerra, precisou fazer tratamento dentário intensivo antes da inspe-
ção de saúde.
Vasco Ferreira recorda que, embora seu pai fosse português, toda a fa-
mília cultivava o patriotismo: “Antigamente, antes de começar a aula, a gen-
te cantava o Hino Nacional, da Independência, da Bandeira ou outro hino.
Acreditávamos no Brasil! Cultuávamos os heróis brasileiros como o almi-
rante Barroso, Tamandaré, Marcílio Dias, Duque de Caxias, general Osorio,
Ruy Barbosa, os costumes e as tradições; o Governo incentivava isso. Era o
nacionalismo; o Brasil acima de tudo. A gente tinha orgulho de ser brasilei-
ro... O padrinho de um dos meus irmãos, marinheiro da Marinha Mercante,
havia sido torpedeado por duas vezes e sobreviveu. Outra vez, um freguês
de meu pai, marinheiro também, ficou sem perna. Naquele ambiente, deci-
di ir para o Exército. Achava que ia cumprir meu dever de civismo.”
Miled Cury, filho de um libanês que emigrou para o Brasil no início do
século XX, conviveu com o patriotismo desde criança: “Meu pai era um pa-
triota! Ele achava que, estando no Brasil, vivendo no Brasil, nós tínhamos

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Voluntários para a guerra 43

que ser brasileiros. Entendo muito pouco de árabe; ele não admitia que se
falasse árabe quando havia brasileiros em casa. Meu pai foi sempre muito
consciente nesse sentido. Era muito culto; embora tivesse pouco estudo...”
Desse exemplo de patriotismo nasceu sua intenção de ir para a guerra e
defender os ideais de sua Pátria.
No mesmo sentido, Raul Kodama, nascido em São Paulo e filho de ja-
poneses que chegaram em 1908, no navio Kasato Maru, é enfático: “Eu sou
brasileiro com cara de japonês. De japonês não sei nada... Meu pai e minha
mãe não falavam japonês; na família ninguém falava japonês. Meus irmãos
se chamam Maria, Roberto, Eli Carlos, Helena. Tudo nome brasileiro; ne-
nhum nome japonês. Eu fui moleque de rua... você vê esses meninos pobres,
moleques de rua... eu era assim! Propriamente dito, brasileiro!”
Kodama sempre sonhou ingressar no Exército; queria ser sargento. No
entanto, quando serviu no TG, não foi muito bem sucedido: “Naquela época,
japonês não fazia diferença... não tinha valor... mas eu queria saber mais.” Ao
sair do Exército, começou a trabalhar como carregador na empresa de um
japonês que, reconhecendo seu potencial, estimulou-o a estudar: “Comecei
a trabalhar como motorista. Então o patrão disse que, pelo conhecimento
que eu tinha, não deveria ser só motorista... Ele estava me preparando para
ser um graduado na firma dele. Quando eu melhorei de vida, fui convocado
para o Exército. Fui convocado por carta. Eu queria ser soldado... Quando
fui convocado, fui com prazer.” Era a guerra mudando o destino.

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Verificando a saúde

O s voluntários e convocados que se apresentaram nos quartéis fo-


ram submetidos a rigoroso processo seletivo, visando à verifica-
ção da higidez física e da aptidão psicológica.
Alcides Basso, então soldado do 3º Batalhão do 7º RI, relata: “Tive-
mos de ir duas vezes, de trem, para a capital [Porto Alegre], onde fomos
submetidos a muitos exames médicos e clínicos. Só iria para a guerra quem
estivesse totalmente saudável.”
Pacífico Pozzobon, da mesma unidade, confirma que, para ser conside-
rado apto à guerra, o soldado precisava estar com a saúde perfeita. A saída
para quem não queria ir à guerra era ficar doente ou se fazer passar por
louco. Segundo ele, alguns soldados, com o intuito de se eximirem do de-
ver cívico, antes da consulta médica tomavam medicamentos para alterar
a pressão arterial; outros davam jeito de pegar doença venérea, infecção
respiratória e assim por diante. Por esses e outros motivos, muitos dos jo-
vens submetidos à inspeção de saúde foram considerados inaptos para o
serviço militar.
Logo após a realização dos exames, os soldados voltavam para suas
organizações militares e aguardavam a divulgação dos resultados. Para
quem havia forçado a dispensa usando os subterfúgios já mencionados, a
confirmação da doença era recebida com alegria, às vezes, contida; outras
vezes, explícita.
Ary Abreu ilustra essa situação ao lembrar que, quando estava em
Itaquena, na Bahia, alguns dos soldados procuravam profissionais que
prestaram serviços a todos: “Apesar das recomendações médicas, muitos se
sujeitavam àquilo para ver se arrumavam alguma doença.” Após o retorno
ao 10º RI, em BH, dos 11 militares que haviam sido promovidos a sargento

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Verificando a saúde 45

e que deveriam ir para guerra, integrados ao 11º RI, depois da inspeção


de saúde restaram apenas três. Em nova inspeção, no Rio, desses três
sargentos só Ary foi à guerra; os outros foram considerados incapazes: “O
‘x’ tomou um monte de comprimidos de Guaraína [estimulante] e teve um
acesso na fila da inspeção; o ‘y’ foi incapacitado por causa dos dentes. Só eu
não escapei!”, conclui Ary.
Já no Rio de Janeiro, em maio de 1944, Miled Cury sentiu falta de ar e
precisou ir ao Hospital Central do Exército para avaliação. Depois de gran-
de confusão dos atendentes, acabou internado na ala psiquiátrica. Foi es-
clarecido o assunto e conseguiu ser atendido: “O médico diagnosticou um
problema mitral que tenho até hoje. Fugi do hospital para ir para a guerra;
na verdade eu saí para fazer uns exames que o médico pediu e voltaria de-
pois. Recusei-me a fazer os exames; voltei para o quartel, falei com o meu
comandante, e disse a ele que não voltaria ao hospital. E não voltei até hoje.”
Em muitos casos, os soldados reprovados nos exames médicos foram li-
cenciados; aqueles que haviam sido convocados, mas considerados inaptos,
foram dispensados da incorporação ao Exército. Para os que estavam com
a saúde satisfatória, restava dar a notícia à família e aguardar o embarque.

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Despedida da família

A missão de dar a notícia para a família foi das mais difíceis.


Muitos não tiveram coragem ou preferiram não dizer aos pais
que iriam à guerra; outros nem tiveram a oportunidade de se
despedir dos familiares.
Os soldados Aribides Pereira e Eugênio Lombardo, ambos do primeiro
contingente oriundo do Regimento Mallet, não sabiam que estavam partin-
do para o conflito. Segundo Pereira, “disseram que estávamos indo para o
Rio de Janeiro e que, posteriormente, seguiríamos para guarnecer Fernan-
do de Noronha”. Lombardo não pôde transmitir a notícia para os pais pes-
soalmente, pois só no Rio de Janeiro ficou sabendo que iria para a guerra. O
jeito foi mandar um telegrama.
Neraltino Flores dos Santos prestava serviço militar no 6º RAM, em
Cruz Alta, e não teve a oportunidade de despedir-se pessoalmente dos pais.
A notícia de que estava indo para o Rio de Janeiro foi dada por carta. Recor-
da que a mãe ficou muito triste, pois pensava que ele não retornaria vivo
da guerra.
Hélio Marques diz: “Para dar a notícia à família foi muito complicado;
minha maior preocupação era com os pais, já idosos.” Pedro Vidal, antes de
seguir para a Itália, recebeu quatro dias para despedir-se da família: “Não
fui a São Sepé, pois sabia que minha mãe iria chorar muito e, sinceramente,
não queria vê-la triste.” Ivo Ziegler recorda que a mãe chorava e custava a
entender; o pai, mesmo não estando satisfeito com a notícia, sentiu orgulho
do filho e o encorajou.
Rubens Leite de Andrade relembra: “Minha mãe não queria que eu
fosse; sugeriu até que eu desertasse e fosse para a casa de um irmão
dela, em Minas Gerais. Imagina! Um desertor se escondendo na casa

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Despedida da família 47

de um capitão de polícia... Já o meu pai, me apoiou e ficou ainda mais


meu amigo.”
Nas cidades onde se localizavam os regimentos que formavam a base
da FEB, a notícia da ida para a guerra era encarada com maior natura-
lidade. Afinal, os regimentos haviam sido reforçados para isso. Enéas
Araújo diz que, em Caçapava, foi tudo muito normal: “Em setembro ou
outubro de 1943, soubemos que o 6º RI iria para a guerra. Quando con-
firmaram que o Regimento ia mesmo para a guerra, meu pai disse ‘Vai
meu filho, vai! Se você tiver de voltar, você volta’. Ele encarou isso como
uma coisa natural da vida. Já as mulheres, as minhas irmãs, reagiram
diferente.” Benedito Bernardino, órfão de pai, diz: “Minha mãe e meu
irmão receberam a notícia com apreensão, mas eles já sabiam que isso
poderia acontecer, pois estávamos em guerra.”
Samuel Silva, por carta, comunicou que iria para a guerra: “Depois
pedi licença para visitar os pais. Aí foi duro: estava me despedindo para
ir a uma viagem que poderia ser sem volta. A mãe é quem sofreu mais.
Eu a confortei, dizendo que precisava ir. Havia sido designado e não po-
dia me acovardar. Retornei para o quartel e já fui mandado para Caçapa-
va. Fui designado para o 3º Batalhão do 6º RI.”
De acordo com Pacífico Pozzobon, a fim de evitar deserções, mui-
tos comandantes restringiram as saídas do quartel. Recorda que obteve
uma concessão especial de seu comandante de companhia para despe-
dir-se da família. Na época, deslocar-se entre as cidades era difícil. Para
ir de Santa Cruz do Sul a Santa Maria era necessário fazer longo percur-
so ferroviário, passando por várias cidades, como Rio Pardo e Cachoeira
do Sul. Em cada estação, havia barreiras policiais. Seu pai queria os fi-
lhos sempre à sua volta e nem cogitava a hipótese de um filho seu ir para
a guerra. Por isso, não conseguiu dar a notícia aos pais. Despediu-se com
tristeza, depois de um dia que custou a passar. Somente ao irmão mais
velho, na despedida, confiou a decisão. Pediu que não desse a notícia aos
pais antes do embarque definitivo, no Rio de Janeiro.
Ivan Alves confirma essa restrição: “Antes de sairmos para o Rio,
meu comandante, o capitão Hugo de Andrade Abreu, não me deixou sair
para que eu me despedisse da família. Argumentei que era segundo-
sargento e que não faltaria ao embarque, mas não teve jeito. A ordem
que ele recebeu deve ter sido muito rigorosa, porque ele era gente muito
boa, amigo e companheiro. Fui ver meu povo na estação, na hora de

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48 VOZES DA GUERRA

embarcar. Para mim foi bom porque eu era da cidade, mas quem era de
outro lugar não teve a mesma sorte.”
Acervo: 11 o BI Mth

São João del-Rei – Despedida na Igreja Nossa Senhora das Mercês

Ângelo França deu a notícia à família com naturalidade: “Eu servia no


Rio e visitava a família em São José dos Campos. O comandante dava três ou
quatro dias de dispensa, e a gente podia passear. Isso antes da FEB; depois
de ela ser formada, a coisa ficou apertada.” Paulo Carvalho diz que sua mãe
ficou indiferente ao ser convocado, mas “quando soube que eu iria para a
guerra, ficou desesperada. Ela foi ao Rio falar com aos responsáveis que eu
era arrimo de família, mas não conseguiu convencer o comando”.
Miled Cury lembra que seu comandante o liberou para despedir-se
dos pais: “Ele tinha muita confiança em mim. Permitiu que eu viesse a
Mogi ver meus pais — já fazia dois meses que eu não vinha. Fiquei alguns
dias e voltei ao Rio, nas vésperas do embarque.” Israel Rosenthal afirma
que, na véspera do embarque, foi à casa da mãe para se despedir. Seu pai
falecera havia uns três anos. A mãe chorou muito na hora da partida. À
meia-noite, retornou para a Central do Brasil e, de trem, seguiu até o cais
do porto e embarcou.
Outros, além de darem a notícia à família, tinham de transmiti-la à mu-
lher amada. Dalla Costa recorda que ele e a noiva ficaram muito tristes, pois

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Despedida da família 49

a data do casamento estava marcada e se aproximava. Por isso, não fazia


questão de ir à guerra, mas, como a Pátria chamava, não impôs resistência.
Sua noiva, Amélia, chorou muito, e por mais que ele garantisse que voltaria
para se casarem ela não se conformava: “Despedir-me dela foi muito difícil,
apesar de ela prometer que me esperaria.” José Pereira não teve a mesma
sorte, pois, ao saber que se voluntariara para a guerra, sua noiva desfez o
compromisso. Em ambos os casos, o destino foi bondoso: ao retornarem da
guerra, acabaram casando com suas amadas.
João Gonzalez era terceiro-sargento no 4º RI, de Quitaúna, quando
foi convocado: “Eu não queria falar para minha mãe. Falei para meu pai, e
ele se encarregou de dar a notícia de que eu iria para Caçapava. Ela ficou
chocada, e eu lhe confirmei: ‘Eu vou para lá e depois vou para a guerra. É
a vida, mãe! Se eu não for, irá outro no meu lugar. Fui designado, preciso
ir.’ Eu tinha uma namoradinha desde a infância. Para ela foi mais difícil
contar. Quando lhe expliquei que iria para a guerra, ela se derreteu... Mas
voltei da guerra e casei com ela.”
Hélio Marques recorda que, por ocasião do embarque, disse à sua
mãe que estava “indo para um acampamento fazer treinamentos e que
daria notícias depois de 15 dias. Achei que era uma maneira de deixá-la
menos preocupada”.
Severino Oliveira declara: “Eu era casado religiosamente, e minha
esposa estava morando no interior, com minhas duas filhas. Não vi mais
minha mulher! Escrevi uma carta, informado sobre a partida, mas quan-
do a carta chegou ao destino, eu já havia embarcado.” Como ele era ca-
sado só no religioso, assim resolveu a situação: “Deixei uma procuração,
e um primo e cunhado meu casou a minha mulher e eu por procuração.
Recebi a certidão no Rio de Janeiro. Minha mulher ficou amparada, rece-
bendo um terço dos meus vencimentos.”
Concluídas as medidas de ordem administrativa e pessoal, os praci-
nhas estavam prontos para iniciarem a jornada que os levaria aos cam-
pos da Itália.

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Começa a longa jornada

Q ualquer caminhada, por mais longa que seja, invariavelmente co-


meça com o primeiro passo. Para a maioria dos pracinhas que
partiram de cidades do interior, esse passo era representado pela
distância que separava o quartel da estação ferroviária.

Acervo: Fundação Eny

Estação Ferroviária de Santa Maria – Foto do início do século XX

Aribides Pereira recorda que, em outubro de 1943, contingentes do 5º RAM


e do 7º RI marcharam até a estação: “Em Santa Maria, eu nunca tinha visto tanta
gente reunida. As pessoas tomavam os dois lados da rua, formando um corre-
dor. Faziam festa e aplaudiam; jogavam cigarros, chocolates e outros presentes.”
Tamanho apoio popular se justificava, pois o jornal A Razão, então integrante

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Começa a longa jornada 51

dos Diários Associados, fazia intensa campanha antinazista, ressaltando a nobre-


za da causa da FEB: a defesa da liberdade e da democracia.
Mário Machado dos Santos recorda que, na madrugada do dia 21 de de-
zembro de 1944, a tropa, acompanhada pela banda de música do 7º RI, seguiu
marchando até a gare: “A cidade estava toda acordada. As calçadas, tomadas pela
população; as janelas das casas, repletas de pessoas que nos incentivavam. A des-
pedida foi emocionante.”
Pedro Vidal percorreu igual trajeto, mas em 24 de dezembro do mesmo ano
integrou o último contingente de Santa Maria que, efetivamente, seguiu com a
FEB para a Itália. Para a ocasião, ele e outros companheiros haviam composto
uma marchinha, que cantaram durante o deslocamento: “Adeus, Sétimo de In-
fantaria; / até logo, Santa Maria; / nós vamos, mas voltaremos; / velho Sétimo de
Infantaria...”, relembra, cantarolando, em ritmo marcial.
Ivan Alves relata como ocorreu sua despedida, no 11º RI: “Deslocamos em
forma, em passo ordinário até a estação, onde havia muita gente; no meio da-
quele povo estavam meu pai, minha mãe, meu irmão e minha namorada.” Já em
Caçapava, segundo Enéas Araújo, não houve despedida da população: “A plata-
forma da estrada de ferro era do lado do quartel. Saímos do alojamento, embar-
camos no trem e seguimos para o Rio de Janeiro.”
Severino Oliveira, que servia no 16º RI, em Natal-RN, diz que ele, soma-
do a cerca de 300 integrantes de sua unidade, marchou até o cais do porto,
onde havia dois navios atracados: o Raul Soares e o Santarém. Em um deles
estava o 2º BCC, que havia sido transferido para o Sudeste: “Olha que presa
bonita!”, descontraí. “Embarcamos! Ficamos três dias no rio Potengi, aguar-
dando a partida para o Rio de Janeiro.”

Navio Santarém

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A caminho do Rio de Janeiro

E m sua viagem para o Rio de Janeiro, os pracinhas usaram basica-


mente os meios de transporte marítimo e ferroviário. Naquela épo-
ca, o transporte rodoviário era praticamente inviável, sobretudo
o interestadual, pois a malha rodoviária brasileira era de apenas cerca de
500km de estradas asfaltadas.
Para os pracinhas que partiram do interior do Rio Grande do Sul, o iní-
cio da viagem deu-se sobre trilhos. O primeiro e parte de outros contingen-
tes percorreram todo o trajeto de trem, passando por São Paulo. Contudo,
houve grupamentos que se deslocaram até o porto de Rio Grande e, de lá
até a Capital Federal, seguiram em navio de carga.

Viagem sobre trilhos

Aribides Pereira recorda que, em Santa Maria, o entusiasmo popular


havia tornado o deslocamento do quartel até a estação um verdadeiro pas-
seio: “Até ali havia sido uma festa só. Embarcamos no trem e, dos dois lados
do vagão, o povo continuava fazendo festa e jogando pequenos presentes
para nós.” Somente quando o trem se pôs em movimento, deixando para
trás o calor dos aplausos, é que muitos perceberam que estavam em trens
de carga, sem estrutura para o transporte humano, e com longa viagem
pela frente.
Segundo Aribides, em Cruz Alta embarcaram militares de unidades
sediados naquela cidade. Lá, a exemplo do acontecera em Santa Maria,
houve festa e distribuição de presentes. Isso se repetiu nas estações
de Carazinho, Getúlio Vargas e Marcelino Ramos, no Rio Grande do Sul.
A partir do ingresso em Santa Catarina, o cenário mudou: acabaram as

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A caminho do Rio de Janeiro 53

festividades, e ninguém sabia quem eram e nem para onde estavam indo
aqueles jovens fardados.
Entre os militares que embarcaram em Cruz Alta, estava Neraltino
dos Santos. Para ele a viagem também foi bastante cansativa: “A gente não
tinha nenhum conforto. Íamos sentados no assoalho do vagão, pois não
havia bancos. Nas estações ferroviárias, no Rio Grande do Sul, éramos re-
cebidos com festa, e nos serviam comida quente. Depois, acabaram as re-
cepções calorosas e, na hora das refeições, quase sempre, recebíamos um
sanduíche simples.”
Enéas Araújo diz que, em 12 de março de 1944, o 2º Batalhão e os ór-
gãos regimentais do 6º RI seguiram para o Rio de Janeiro: “O 3º Batalhão
já havia deslocado de Lins para Pindamonhangaba, e o 1º Batalhão havia
deslocado de Caçapava para Taubaté, pois não havia espaço no regimento
para todo o efetivo.”
Sérgio Pereira deslocou-se para o Rio de Janeiro, também em março de
1944, com o efetivo do 11º RI. Foram cerca de 10 horas de São João del-Rei
até o destino: a Vila Militar do Rio. Ivan Alves, que fez o mesmo trajeto,
comenta: “Depois que embarcamos na estação, seguimos até Juiz de Fora,
onde embarcou o pessoal do 12º RI. O túnel Oito, em Paulo de Frontin, ha-
via desmoronado. Ficamos aguardando a desobstrução do túnel; atraves-
samos a pé e pegamos outra composição, do outro lado do túnel. Seguimos
viagem, mas isso atrasou a nossa chegada ao Rio.”
Alcides Basso, Geraldo Sanfelice e Pacífico Pozzobon concordam
quanto ao desconforto da viagem, iniciada na véspera do Natal de
1944. De acordo com Pozzobon, o maior problema “eram os vagões
boiadeiros sujos, fedorentos, sem beliches e, sequer, bancos. Estávamos
amontoados no vagão como bichos”. Relata que, em Cruz Alta, houve
um princípio de revolta: os pracinhas exigiam mais respeito e melhores
condições para seguirem viagem.
Mesmo com o acréscimo de vários vagões, o conforto melhorou
pouco. Faltavam espaço e banheiros, o que produziu situações cômicas
e constrangedoras: buracos feitos no assoalho do trem eram latrinas;
os trilhos, as fossas. Para urinar, faziam malabarismos junto à porta
do vagão. As roupas sujas iam sendo descartadas. Quando o motivo do
descarte não era a sujeira, eram as brincadeiras entre os pracinhas que
despojavam os companheiros, fazendo a alegria dos agricultores que
trabalhavam ao longo da via férrea.

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54 VOZES DA GUERRA

Taltíbio Custódio complementa: “Quando chegamos a São Paulo, pa-


recia que o trem estava chegando de uma guerra. Tinha buracos para tudo
que era lado. Passamos um dia na Estação da Luz, aguardando um trem que
nos levaria até o Rio de Janeiro. No trecho entre São Paulo e o Rio de Janei-
ro, sim, fomos bem acomodados. O trem era de primeira!”

Acervo: Ari Gomes Filho

Soldados embarcados, no interior do Rio Grande do Sul

Viagem pelo mar

Pedro Vidal e Ivo Ziegler fizeram um percurso diferente: após partirem


de Santa Maria, passaram por Cacequi, Bagé e Pelotas — cidades em que
iam embarcando pracinhas daquela região — e chegaram a Rio Grande. Lá,
os pracinhas tomaram um navio a vapor que partira da Capital, conduzindo
soldados da Região dos Vales, de Porto Alegre e da Serra Gaúcha. Entre eles,
José João Pereira, que servia em Bento Gonçalves-RS: “Descemos a Serra
num trenzinho do Batalhão Ferroviário. Pernoitamos no Colégio Militar de
Porto Alegre e, pela manhã, seguimos até o cais do porto. Após solenidade
de despedida, que contou com maciça presença popular, embarcamos num
navio cargueiro, que tinha acomodações para o transporte de pessoal.”
Pereira lembra que para ele a viagem foi tranquila, pois foi acomodado
em uma cabine. No entanto, por falta de espaço para todos na área destinada

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A caminho do Rio de Janeiro 55

ao pessoal, muitos soldados viajaram no convés, expostos às intempéries


e ao balanço do navio. Não era raro que ficassem molhados quando o
mar se agitava mais.
Pedro Vidal recorda que o navio carregava cebola, batata, pimen-
ta e outros gêneros alimentícios: “Era um fedor só, além de ser muito
quente. Para mim, que era meio arisco, e só havia visto [navio a] vapor
no cinema, tudo era novidade. Assim que o navio se pôs em movimento,
começaram os enjoos.” Ivo Ziegler preferia ficar no convés porque nos
porões o cheiro das cebolas era muito forte, o que aumentava o mal-es-
tar: “Lá em cima, era melhor! Apesar do sol quente, sempre havia uma
brisa agradável.”
Depois de descarregar as mercadorias no porto de Santos-SP, o na-
vio seguiu até o Rio de Janeiro, chegando ao destino em 27 de dezembro.
Reprodução: Correio do Povo

Embarque em Porto Alegre

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Preparativos para a guerra

C oncentradas as tropas na Capital Federal, a partir de março de


1944 foi iniciada a preparação técnica e tática. Entre os muitos pro-
blemas enfrentados, havia a escassez de armamento e de outros
materiais de guerra, prejudicando sobremaneira a obtenção de um alto ní-
vel de adestramento, particularmente na instrução tática. Seria necessário, e
isso estava previsto, concluir o adestramento em solo europeu, no cenário da
guerra, o que possibilitaria maior êxito na instrução das unidades.

Acervo: Vet. Vasco Ferreira

Preparação para a guerra não se restringiu às tropas. O reaparelhamento


das Forças Armadas fez-se necessário. Na imagem, um lote de carros de combate
do 3º Batalhão de Carros de Combate, no Rio de Janeiro, em 1944

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Preparativos para a guerra 57

Na chegada, os pracinhas foram conduzidos à Vila Militar ou a quartéis.


Eugênio Lombardo recorda que inicialmente ficou alojado no 2º RI. Depois de
algum tempo, seguiu para Realengo, onde foi formado o Regimento de Obu-
ses Autorrebocado, destinado à guerra. Neraltino Santos diz que no quartel
as condições sanitárias eram muito boas; em Realengo, a situação piorou.
Aribides Pereira ficou adido ao 1º RAM, alojado em pavilhões novos
que haviam sido construídos entre Deodoro e o Campo dos Afonsos. Por
lá, começaram as instruções. Recebeu treinamento básico para guerra. No
Campo de Gericinó, os treinamentos eram intensivos, cansativos. Havia
muito gravatá e unha-de-gato: “Não queriam nem saber se havia mato ou
banhado; a gente tinha que encarar de qualquer jeito. Na guerra, não seria
diferente!” Geraldo Sanfelice participou de poucas instruções, pois havia
realizado exercícios específicos, no Campo de Instrução de Saicã, em Rosá-
rio do Sul. Lembra que os soldados novos treinavam mais: “Para eles, era
muita lama e água.”
Ângelo França diz que “a preparação para a guerra, segundo as regras
do exército americano, foi dura. A gente teve de esquecer quase tudo o
que a gente fazia para aprender de novo. A disciplina era muito rigorosa.
Coisas pequenas, como não jogar pontas de cigarro no chão, eram co-
bradas. A rotina de vacinas também foi puxada; algumas vacinas eram
muito doloridas; ficava com o braço duro. Às vezes o regimento inteiro
ficava por dois, três dias inerte, sem exercícios. A disciplina era perfeita.
O comandante do regimento tomava a injeção, depois os comandantes
de companhia; enfim, todo mundo tomava”. Jarbas Ferreira concorda que
eram mesmo muitas vacinas: “Era injeção para tudo: antitifoide, antitetâ-
nica, antitanque, anticarro etc.”, diz brincando.
Ivo Ziegler reforça que, além de inspeções, vacinas e exames mé-
dicos, os pracinhas eram submetidos a treinamento intensivo, visando
à preparação psicológica e ao condicionamento físico: “Os instrutores
reforçavam o patriotismo e o civismo que esperavam ver nos soldados
e nos deixavam a par do que ocorria na Europa. Na teoria, sabíamos o
que nos esperava e como deveríamos proceder em situações extremas.”
Ary Abreu acrescenta que, no Capistrano, assistiam a muitos filmes so-
bre como deveriam proceder na guerra e praticavam a correção dessas
ações em exaustivos treinamentos.
Severino Oliveira relata que “chegava gente todos os dias, de todos
os quadrantes da Pátria. Ficamos um mês no Morro do Capistrano, em

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58 VOZES DA GUERRA

treinamento. Eram instruções duras, cansativas. Além de participar de


todas as instruções, como pistas com gases, subida em escadas de cordas;
naquele calor do Rio de Janeiro, havia a ansiedade de não saber a hora do
embarque... Além disso, fui colocado na função de furriel. Fiquei quase
doido de tanto ver papel! Acabei tendo que levar aquilo tudo para a Itália.
Não gosto nem de lembrar”.
Vasco Ferreira confirma o ritmo de preparo intenso: “Em Geri-
cinó, era marcha de dia e à noite, exercício de combate, escalada em
muros, exercício de tiro, rastejo, corrida, cavar fox hole...” No 1º RI
houve várias mudanças: “O cardápio para quem estava previsto para
ir à guerra mudou. No café da manhã, tinha pão com manteiga e pre-
sunto, leite e frutas. Era alimentação tipo americana. Passamos a co-
mer bem, mas era só o pessoal da FEB — era um preparo especial... O
uniforme foi alterado. Era mais folgado e mais moderno. O capacete
mudou: não era mais o modelo inglês, tipo prato; passou a ser o mo-
delo americano. Não usávamos mais culote, mas calças compridas;
não usávamos mais botinas, mas sapatos...”
Um dos problemas enfrentados pelos pracinhas diz respeito à alimentação.
Ary Abreu diz: “Fomos muito mal alimentados no Rio de Janeiro. Gosto de res-
saltar que a alimentação que nos serviam no Rio era de difícil consumo, porque
era mal feita. O material era bom, mas feito por gente despreparada.” Alcides
Basso recorda que, como a comida era ruim, iam jantar nas redondezas e, por
vezes, chegavam atrasados para a revista do recolher. Na hora de conferir os
grandes efetivos, as contagens sempre fechavam, mesmo que faltasse alguém.
No escuro, era difícil reconhecer as pessoas, e quem estava lá respondia por
quem estava atrasado.
Aribides recorda que os treinamentos de embarque e desembarque
eram cansativos. Depois de muitas simulações em uma torre construída no
campo de instrução, composta por escadas de cordas de sisal, chegara o
dia de fazer o treinamento final, no navio de verdade. Além do armamento
e equipamento, os soldados levavam o saco com o material individual. Os
deslocamentos entre o acampamento e a Vila Militar eram realizados de
caminhão ou de trem. O embarque para a guerra se aproximava.
Muitos pracinhas que moravam mais perto do Rio de Janeiro arruma-
vam um jeito de fugir do acampamento para visitar a família. Ivan Alves
permaneceu no morro do Capistrano de março a setembro de 1944. Nesse
tempo, encontrava-se uma solução para evadir-se do acampamento a fim

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Preparativos para a guerra 59

de visitar a família e a namorada em São João Del Rei: “Minha preocupação


era que o batalhão embarcasse de uma hora para outra, e eu perdesse o
navio; mas sempre deu tempo.” Ary Abreu não teve a mesma sorte em uma
de suas escapadas: “Na hora de embarcar, o contingente estava pronto; na
minha Companhia, só faltávamos eu e outro companheiro. Eu tinha feito a
tocha a Belo Horizonte para ver a família. O capitão ficou muito meu ‘ami-
go’... Na verdade, ele queria me prender, mas, como não sabia se no navio
isso seria possível, me encarregou da faxina do compartimento.”
Acervo: Vet. Pacífico Pozzobon

Pacífico Pozzobon
Preparação no Rio de Janeiro – 1945

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A travessia do Atlântico

O deslocamento dos mais de 25 mil brasileiros participantes da Se-


gunda Guerra pelo Atlântico foi realizado em escalões, que saí-
ram do Rio de Janeiro e chegaram a Nápoles.
O 1º escalão — que partiu em 2 de julho de 1944, a bordo do navio Ge-
neral Mann — foi composto pelo 6º RI, elementos de estado-maior, grupo
de artilharia, companhia de engenharia e outros elementos, como manu-
tenção, comunicações, saúde etc.
Em 22 de setembro, partiram o 2º e o 3º escalões a bordo dos navios
General Meigs e do General Mann, respectivamente. O 2º escalão foi com-
posto pelo 1º RI; o 3º, pelo 11º RI. Além das tropas de infantaria menciona-
das, outros elementos seguiram nos moldes do 1º escalão.
O 4º escalão partiu em 23 de novembro do mesmo ano; o 5º escalão,
em 8 de fevereiro de 1945. Conduziram os componentes do Depósito de
Pessoal, cujo propósito era o de recompletar o efetivo dos regimentos que
estavam na linha de frente, à medida que fossem ocorrendo baixas. A tra-
vessia foi concluída em 22 de fevereiro de 1945.

O embarque

Enfim, chegara a hora da travessia do Atlântico. Enéas Araújo, que se-


guiu para Itália no primeiro escalão, recorda: “Saímos da Vila Militar num
trem todo fechado, trancado. Não era permitido abrir nem as janelas. O
meu batalhão foi o segundo a deslocar; no dia anterior, já havia deslocado
o 1º Batalhão. A gente não sabia se era exercício ou outra coisa. Quando
chegamos ao porto, aquele colosso de navio, de mais de 100m... Antes de
embarcarmos, o presidente Getúlio Vargas compareceu ao navio e fez um

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A travessia do Atlântico 61

discurso. Do local em que eu estava, eu podia ver e ouvir a voz emitida pelo
alto-falante. Lembro que ele disse que podíamos ir despreocupados, pois
nossas famílias não ficariam desamparadas. Em parte tinha razão, por cau-
sa de nossos vencimentos [a família recebia um terço].”
Acervo: AHEx

Embarque no porto do Rio de Janeiro

Severino Oliveira confirma o sigilo que envolveu a operação de embar-


que: “Na Vila Militar, não se via um civil sequer; a área estava isolada. Fize-
ram um serviço bem feito! Uns 30 vagões estavam encostados na estação.
Em fila indiana, embarcamos no trem, que nos conduziu ao cais do porto.”
Samuel Silva justifica a preocupação com o sigilo, dizendo que, “naquele
tempo, havia muita influência de estrangeiros; tínhamos descendentes de
árabes, italianos, espanhóis, portugueses, alemães... Estava proibida qual-
quer comunicação com agentes externos”.
No depoimento de Vasco Ferreira, que seguiu para a Itália a bordo
do General Mann, percebe-se que o sigilo do embarque era — e não ti-
nha como não ser — relativo. “Eu não ia para casa havia umas duas se-
manas, mas meu pai soube que embarcaríamos; ele tinha um bar, perto
do cais do porto, que era frequentado pelos estivadores e marinheiros.
Disseram a ele que no cais estavam atracados dois navios americanos,
os que iriam levar a gente (1º RI) e o 11º RI.” Newton Lascalea confirma:
“Você não podia se comunicar com ninguém, mandar carta para família,

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62 VOZES DA GUERRA

nada. Consta que pediram para todo mundo que tinha barco sair da Baía
da Guanabara; dali a pouco, apareceu aquele monstro de navio... o sigilo
era difícil.”
Francisco Gomes diz que “o embarque deu-se em três períodos. Uma
parte do pessoal embarcou no dia 28 de junho; o 2º grupamento, ao qual
eu pertencia, em 29 de junho, e o último, em 30 de junho. Aí nos permane-
cemos no navio até 2 de julho, quando o navio desatracou. Nesse período,
entre o embarque e a desatracação, treinamos as medidas e procedimen-
tos para o caso de torpedeamento. Durante o dia, ficávamos no convés.
Assim que começava a escurecer, éramos obrigados a nos recolher para
nossos compartimentos”.
Lascalea esclarece como os pracinhas conduziam seus pertences para
a guerra: “No saco A levávamos as coisas de uso diário, como escova e
pasta de dentes, material de barba etc. No saco B, algumas outras coisas,
como cobertor e roupas mais pesadas.” Recorda ter sido um “dos primei-
ros a embarcar. Em consequência, fui para o quarto andar inferior. Íamos
entrando e vendo aquelas comportas... Se houvesse algum problema, fe-
chariam as comportas, e estaríamos em maus lençóis. Navio é assim: se
dá para salvar todo mundo, ótimo; se não, alguns pagam com a vida para
salvar a maioria. Eu estava numa grande desvantagem: em caso de torpe-
deamento, um ou dois andares seriam sacrificados para salvar os demais.
Como eu estava no último...”.
Aribides Pereira passou pela experiência do embarque em 20 de se-
tembro de 1944: “Seguimos de caminhão até São Cristóvão, onde dormi-
mos. De madrugada, tocou alvorada. No escuro, em silêncio, embarcamos
no trem e seguimos até o cais do porto, onde iniciamos o embarque no
navio General Mann.” Os primeiros a embarcar permaneceram o dia e a
noite seguintes no navio, enquanto os demais pracinhas (mais de cinco
mil) faziam o trajeto até o cais e embarcavam. Ivan Alves, também embar-
cado em 20 de setembro, mas no General Meigs, diz que “na entrada do
navio havia uma relação de embarque; a cada militar que ia embarcan-
do, tiravam a falta”. Taltíbio Custódio afirma que cada compartimento era
cheio de beliches de lona: “Para caminhar entre os beliches, tinha que ser
de lado. Se alguém sofresse de claustrofobia, teria sérios problemas.”
Pedro Vidal passou pela experiência em 8 de fevereiro de 1945. Lem-
bra que no dia da partida havia até escola de samba no cais: “Coisa linda!
A Estação Primeira de Mangueira e o Salgueiro tocando... A gente olhava

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A travessia do Atlântico 63

pela escotilha do navio de transporte americano General Meigs e via a


bateria das escolas tocando para nós. Dali a pouco, deu sono. Deitei no
beliche e adormeci. Quando fui perguntar para um marinheiro, este disse
que o navio já havia desatracado e estava se deslocando para a Itália.” Ivo
Ziegler ficou admirado com o tamanho do navio, cuja estrutura era mes-
mo impressionante: “Era como um grande edifício...”, destaca.
Enéas Araújo recorda: “A travessia foi até gostosa, pois eu nunca ti-
nha andado de navio. Eu havia embarcado no dia anterior; o navio saiu
muito cedo, pelas 6h. Eu acordei e senti que o navio estava andando. Eu
me aprontei e subi ao convés. Ainda deu para ver a praia de Copacabana.
O Corcovado estava envolvido pela neblina. Quando passou o navio, ela
desapareceu e apareceu o Cristo Redentor.” Hélio Marques conta que essa
imagem jamais saiu da memória: “Já no navio, seguindo pela Baía da Gua-
nabara, o Cristo Redentor sobre a névoa que envolvia o morro era uma
cena muito bonita. Parecia estar flutuando acima das nuvens.”
Ivan Alves relata: “A saída do Rio de Janeiro foi dolorosa. Saímos da
Baía da Guanabara; o Cristo Redentor no alto do morro, diminuindo de
tamanho... Aquilo deu um nó na garganta. Estava todo mundo amonto-
ado no convés; só ficavam livres os espaços em torno das armas antiaé-
reas. Mas logo nos trouxeram de volta a realidade, com um treinamento
para abandonar o navio. Todo mundo teve de voltar a seus comparti-
mentos e iniciaram o treinamento. Esse treinamento acontecia todos os
dias; a gente sempre levava a sério porque podia ser real, mas geralmen-
te avisavam que era treinamento.” Samuel Silva complementa: “O Rio de
Janeiro já estava ficando longe. A gente via as montanhas, o Corcovado;
a praia era apenas uma fitinha branca. Passamos a ver só céu e mar.
Rumo: desconhecido!”

A alimentação
Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos pracinhas dizia
respeito à alimentação servida a bordo. Com um efetivo de cerca de cin-
co mil militares embarcados, as refeições eram servidas em sistema de
rodízio. A cozinha funcionava 24 horas por dia, e não podia ser diferen-
te, pois eram duas refeições diárias para cada homem. “Sempre havia
filas para o rancho. Ao clarear o dia, já havia filas. Na hora de dormir,
elas continuavam lá”, recorda Alcides Basso.

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64 VOZES DA GUERRA

Acervo: Vet. Jarbas Ferreira

Bilhete para controle de refeições

Como a cozinha funcionava por 24 horas, cada compartimento tinha


horários diferenciados. Severino Oliveira recorda a rotina: “Três e meia da
madrugada... Alvorada! Todo mundo saltava do beliche e corria para o café.
Era uma maçã e café. Eu sou da região da Caatinga, no Rio Grande do Norte,
e nunca havia comido maçã...”. Ary Abreu confirma: “A alimentação era to-
talmente diferente daquela a que estávamos habituados. Ovo sintético; café
com leite e pouco açúcar — que é o certo —, mas nós consumíamos muito
açúcar; a manteiga era fatiada, igual ao queijo — a gente recebia uma fatia
de manteiga. O cartão de rancho era picotado a cada refeição.”
Pedro Vidal também estranhou a comida fornecida pelos norte-
americanos. Segundo ele, tinha um cheiro forte, mas era insossa, além
de ser servida meio fria: “Chegava a sonhar com o arroz e o feijão preto,
preparados pela minha mãe”, recorda. Pacífico Pozzobon sentiu no corpo
a não adaptação à comida. Recorda que, de tão debilitado que estava, para
realizar os treinamentos de evacuação rápida do navio, ia se segurando
nas paredes. Geraldo Sanfelice diz que nem conseguia ir até o refeitório,

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A travessia do Atlântico 65

tamanha era a fraqueza, que só não era maior porque os amigos traziam
as laranjas ou maçãs da sobremesa. Paulo Carvalho declara: “Abaixo do
nível do mar fazia um calor infernal; fiquei 15 dias sem ir ao banheiro;
só me alimentava com um pouco de leite e uma maçã.”
A falta de adaptação à comida, aliada ao balanço do navio, fez que
muitos dos pracinhas adoecessem logo após a saída do Rio de Janeiro.
Taltíbio Custódio lembra que “a viagem foi terrível; não parava nada no
estômago. Quando o navio subia e descia, parecia até que o estômago
ia sair pela boca”. Neraltino Santos faz graça ao recordar que “chegava
a juntar uns quatro ou cinco soldados em torno de um balde, fazendo
rodízio para vomitar. O calor, aliado aos enjoos, fazia que o mau chei-
ro fosse muito grande”. Contudo, o navio contava com bons exaustores,
e havia escalas de responsáveis pela limpeza e regras bastante rigo-
rosas, visando à não proliferação de doenças. Ary Abreu confirma: “A
faxina tinha que ser rigorosíssima; e eu, como castigo pelo atraso para
o embarque, havia sido encarregado pela faxina... O americano chegava
com um papel higiênico e, se não estivesse bom, dizia ‘It’s bad! Come
back!’. Ou seja, ‘Está ruim! Volte!’. Tinha que fazer tudo de novo. Eu pe-
gava junto: o soldado brasileiro... só mostrando! Até que o americano
dissesse ‘good’ — bom —, a gente repetia.”
Hélio Marques diz que, por falar inglês, no navio fazia a ligação dos
brasileiros com os cozinheiros norte-americanos. Recorda que os orien-
tou a colocarem mais sal na comida, a fim de diminuir os enjoos e o
mal-estar dos brasileiros.

A luta contra a ansiedade

Para a maioria dos pracinhas a travessia foi tensa e cansativa. José Pe-
reira lembra que, quando as coisas ficavam muito calmas, para deixar a tro-
pa em estado de alerta, davam-se alguns tiros de canhão. Era o sinal para os
treinamentos de evacuação das cabines e desembarque. Precisavam estar
preparados para o caso de torpedeamento ou afundamento do navio. Seve-
rino Oliveira recorda que por esse motivo muitos preferiam ficar no convés
em vez de irem para os compartimentos.
Pedro Vidal menciona que, pela manhã, seguindo a balaustrada, andava
da popa à proa do navio para fazer o tempo passar e diminuir a ansiedade:
“Havia dias em que o mar estava agitado, mas, em outros, era só calmaria.”

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66 VOZES DA GUERRA

Para ele a travessia foi desgastante; passou muito mal. Eugênio Lombardo
conta que para passar o tempo jogavam baralho e assistiam a sessões de
cinema. O ambiente era descontraído, e a viagem foi tranquila.
Acervo: AHEx

Soldados brasileiros a bordo do General Meigs, em alto-mar

Ewaldo Meyer afirma que cada um conduzia uma etiqueta indicativa da


cabine e do local para onde deveria ir em caso de torpedeamento. Samuel
Silva diz que durante toda a viagem tripulação e soldados faziam exercí-
cios: “A gente não sabia se era exercício ou se podia ser valendo. O tempo
todo, a gente andava de colete salva-vidas. Quando soava o alarme e se ou-
via ‘postos de combate’, a tripulação saía correndo e tomava seus postos na
metralhadora, no canhão, no posto de observação. Nós tínhamos ordem, a
disciplina correta de não atrapalhar, de deixar livre a passagem para que a
tripulação pudesse agir rápido. Quando vinha a ordem ‘abandonar o navio’,
era de modo ordenado. Saía um pelotão, depois outro. Todos os marinhei-
ros tinham lugar certo e missão definida.” Hélio Marques confirma: “Os nor-
te-americanos nos elogiavam muito; éramos uma tropa disciplinada, que
seguia todas as regras de conduta a bordo.”

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A travessia do Atlântico 67

Nos depoimentos seguintes, estão algumas impressões sobre a situação


que mais atormentava os pracinhas. Para Ewaldo Meyer: “O meu alojamento
era bem no fundo do navio. Em caso de torpedeamento, acredito que poucos
escapariam vivos. A gente procurava nem pensar nisso. Vários companheiros
tiveram ataque de nervos, por estarem em lugar fechado. Era lastimável ver
um soldado caído, se debatendo... Vinha o pessoal de saúde e levava para a
enfermaria. Foram quatro ou cinco casos, só no meu compartimento.” Ivan
Alves sabia que caso algum compartimento fosse atingido outros seriam fe-
chados: “Ficaríamos submersos e morreríamos afogados. Havia medo, mas
estávamos indo para a guerra e, como se diz, guerra é guerra.” Samuel acres-
centa que os homens dos mesmos grupos ou pelotões geralmente ficavam
juntos nos compartimentos: “Nos compartimentos, parecíamos sardinha em
lata, dispostos em prateleiras... Se necessário seriam fechadas as escotilhas. O
lema era ‘melhor perder um compartimento do que, por causa dele, perder o
navio todo’. As regras eram duras, mas tinham de ser cumpridas.”
Acervo: Vet. Aribides Pereira

Música animava o ambiente a bordo

Ary Abreu relembra que todos, mesmo sabendo que estavam sendo
muito bem comboiados, tinham medo, pois os botes salva-vidas eram
poucos para o tamanho do efetivo a bordo. Ele concorda que os treinamentos
de evacuação eram organizados, mas, no interior do navio, tudo era escrito
em inglês; para quem não entendia, era complicado: “Pelos alto-falantes
davam a ordem de evacuação, por compartimentos; primeiro em inglês;
depois, em português. Em inglês, para a tripulação; em português, para nós,

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68 VOZES DA GUERRA

passageiros. A gente subia ao convés, entrava em forma e ficava lá por um


tempo; mas sempre era rebate falso, graças a Deus. Pela manhã, todos
os dias, todos subiam ao convés, para liberar o compartimento para a
faxina.”
Israel Rosenthal conseguia se comunicar em iídiche. Assim, foi in-
cumbido de ser o intérprete de um sargento americano que tinha a ta-
refa de entreter o pessoal a bordo. Entre as distrações estavam lutas de
boxe. Quem vencia, ganhava um prêmio (maço de cigarros, chocolates,
baralhos etc.); o segundo colocado também ganhava um prêmio muitas
vezes igual ao do vencedor: “Comigo aconteceu algo interessante! Um
cabo, que tinha mais ou menos o dobro do meu tamanho, e tinha acaba-
do de perder uma luta, me desafiou. Brincando, desconversei dizendo
que [lutar com um subordinado] era contra o regulamento.” Entreter
os pracinhas era considerado uma missão especial e como tal lhe dava
direito às mesmas três refeições diárias a que faziam jus os militares de
serviço: “Eu ia ao refeitório, preparava o farnel e voltava ao camarote,
onde dividia com os demais companheiros. No camarote, que tinha uns
16m2, havia 4 oficiais da ativa e 14 de CPOR. Um desses companheiros
era Celso Furtado, [que viria a ser] grande economista e ministro, com
quem mantive amizade ao longo da vida.”
Raul Kodama foi à Itália no 2º contingente, “com a artilharia e o
regimento de Minas. Na travessia do Atlântico, fui trabalhando como
marinheiro, fazendo faxina. O capitão Valmiki Ericksen era o encarre-
gado pela faxina no navio. Os soldados chamavam o Juca... Havia um
camburão, e todo mundo vomitava lá. No fim, só tinha outro soldado e
eu para fazer faxina... Camburão cheio, quando a noite chegava, tinha
que jogar no mar, na traseira do navio”.
Cleto Pellegrinelli diz que a travessia foi cansativa, mas que, “nos
momentos de calmaria, confirmava o aprendizado de escola, de que
a terra era redonda... Na prática, via-se um ponto no horizonte, que
ia crescendo à medida que o navio se aproximava. Havia também as
sessões de cinema, que ajudavam passar o tempo”. Das missas a bordo,
recorda os belos sermões do frei Orlando, nos diversos compartimentos
do navio, onde ele improvisava um altar e levava conforto aos soldados:
“Ele sempre destacava a seriedade do momento, de que estávamos indo
para a guerra, e não para um passeio. Muitos de nós vão morrer; outros
voltarão feridos ou aleijados. Não é brincadeira, como acham que parece

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A travessia do Atlântico 69

ser! Vamos para a guerra.” Frei Orlando veio a falecer em 20 de fevereiro


de 1944, vitimado por um tiro acidental de fuzil, em Bombiana, quando
se deslocava para prestar apoio espiritual aos soldados que atacariam —
e venceriam — os alemães, em Monte Castelo, no dia seguinte. Tornou-
se o patrono do Serviço de Assistência Religiosa do Exército.
Acervo: Vet. João Baptista Pedro Pozzobon

Missa a bordo ajudava a amenizar a tensão

Francisco Gomes confirma que o itinerário realizado pelo navio era


curioso e chamava a atenção: “De tempo em tempo, a cada 2km mais ou
menos, o navio mudava de direção, navegando em zigue-zague. Isso nos
custou alguns dias a mais no mar. A travessia foi desagradável. O calor
no convés era muito forte. Além disso, não sabíamos o nosso destino.”
Geraldo Sanfelice, ao perguntar para um tripulante, ficou sabendo que
havia fundadas suspeitas de que submarinos alemães estavam operando
na área. O navio mudava a rota, mas o destino continuava o mesmo.
Jarbas Ferreira afirma que “o momento de maior tensão foi quando
informaram que os alemães sobrevoariam o nosso comboio. As bate-
rias antiaéreas funcionaram. Depois tudo voltou à calma”. Para Geraldo
Sanfelice os momentos de maior tensão foram a aproximação do conti-
nente africano e a travessia do estreito de Gibraltar.
Samuel Silva diz que “a partir da entrada do Mediterrâneo, a segu-
rança era dos americanos e ingleses. A certa altura, o general Mascare-
nhas dirigiu-se à tropa e comunicou que nós iríamos desembarcar no
Porto de Nápoles, na Itália”.

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70 VOZES DA GUERRA

Foto: Wanda Pedroso

A fortaleza de Gibraltar, vista do mar Mediterrâneo

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Chegada ao cenário de guerra

F rancisco Gomes, quando era menino e cursava o 4º ano no grupo esco-


lar, tinha muita curiosidade em conhecer o mundo: “Eu desenhava os
mapas com muito capricho. Quando via o mapa da Itália, ficava olhan-
do aquela bota com vontade de, algum dia, conhecer aquilo tudo, para confir-
mar se, de fato, o terreno tem aquela formação. Quando nos aproximamos da
Europa, os soldados me perguntaram — eu era cabo — para onde iríamos. Eu
disse: ‘Bom! Se nós entrarmos no Mediterrâneo, iremos para a Itália; se subir-
mos pela orla do continente, nós iremos para Inglaterra ou França.’ O navio
entrou no Mediterrâneo. Chegamos a Nápoles pelas 10h da manhã. Eu estava
concretizando o que eu havia estudado no 4º ano. O Vesúvio, bem distante...
Eu sabia que ele não estava em erupção, mas ainda estava ativo. Nós ficamos
muito longe, mas, à noite, dava para ver o clarão na parte interna; de dia dava
para ver um filete de fumaça bem fininho. Desembarcamos às 2h da tarde.”
Acervo: Vet. João Baptista Pedro Pozzobon

A chegada a Nápoles marcou o fim da jornada marítima para muitos dos pracinhas.
Na linha do horizonte, o Vesúvio

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72 VOZES DA GUERRA

Orlando Camargo, que saiu de Salesópolis, imaginava que “estar em


Nápoles, na Itália, era uma coisa absurda, mesmo que, para um militar ir
para a guerra fosse algo normal, aquilo era novidade”. Ângelo França diz
que, mesmo sabendo que estava chegando ao cenário da guerra, ao sair
do navio a sensação foi muito boa, de alívio, pois “os enjoos, as náuseas
e a comida adocicada haviam ficado para trás”. Para Alfredo Dalla Costa,
após o longo período de travessia e ver somente céu e água, pisar em
terra firme foi mesmo um alívio. Contudo, a imagem que havia visto da
escotilha, enquanto o navio se aproximava, mudou ao deparar-se com a
realidade: “O porto de Nápoles, sob a luz do sol do amanhecer, era muito
bonito, mas, depois que vi os sinais da guerra e os navios destruídos, já
não parecia tão belo.”
Taltíbio Custódio teve a mesma impressão. Quando percebeu que o
General Meigs já não balançava mais e estava tudo em silêncio, do navio
assistiu à primeira cena da guerra: “Era um porto todo esbagaçado e
destruído. Havia muitos navios partidos ao meio, destroçados.” Ivo Zie-
gler destaca que “era difícil ver alguma construção que não estivesse da-
nificada ou com as paredes sem marcas de tiros; era triste ver o que a
guerra trazia”. Aribides Pereira destaca que os sinais da guerra eram evi-
dentes, mas comprovou que estava mesmo na guerra ao desembarcar do
General Mann, ao encontrar um sargento de Cruz Alta que havia sofrido
uma fratura, com afundamento do nariz, e estava sendo evacuado para
tratamento. Naquele momento, constatou que a guerra não só destruía a
infraestrutura de cidades e países, mas tirava vidas e mudava o rumo de
muitas outras.
Ewaldo Meyer chegou à Itália em julho: “Ainda não era frio. Pelo con-
trário, fazia um calor danado. Em Nápoles, estava tudo destruído; era uma
destruição chocante, indescritível, como nós não estávamos acostumados
a ver. Demoramos a desembarcar, acredito que mais de um dia. De longe,
era possível ver o Vesúvio soltando leve fumaça.” Para Enéas Araújo, a
chegada a Nápoles foi chocante: “O porto estava coalhado de pedaços de
navios que haviam sido postos a pique.” Recorda que os generais Mas-
carenhas de Moraes e Zenóbio da Costa viajaram no mesmo navio: “No
porto houve uma solenidade de recepção ao contingente brasileiro por
um general e uma banda de música americana.”
Francisco Gomes confirma que, ao descerem do navio, os pracinhas
foram confundidos com os alemães pelos italianos: “Por motivo de o far-

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Chegada ao cenário de guerra 73

damento ser mais ou menos parecido, eles se confundiram e acharam que


éramos parte de um contingente de prisioneiros alemães. Quando foi des-
feito o mal-entendido é que fomos verificar a pobreza, a miséria que havia
por lá.” Ivan Alves usa uma metáfora para reforçar a primeira impressão
negativa da guerra: “Você jogar uma ponta de cigarro ali era parecido a jo-
gar uma mão de milho num galinheiro. Se fosse algo de comer, então, nem
se fala!” Osvaldo Carnevalli viu muita destruição e situações degradantes
entre italianas e com soldados do exército americano: “Tudo ao ar livre!
Eu fiquei chocado, mas com o tempo acostumei com aquilo. Eu vi, mas não
vivi aquilo, porque fui para o front.”
Taltíbio relembra ainda que o contingente foi recepcionado por um
grupo de oficiais e por enfermeiras da FEB; ao darem as boas-vindas, já
separavam os que estavam em pior estado de saúde. Vários caminhões
Chevrolet 40, conduzidos por militares do 6º RI, esperavam pelos praci-
nhas que estavam chegando: “Perguntei a um dos condutores como era
estar na guerra. Ele respondeu, em tom irônico: ‘Aqui é bom! Vocês vão
ter tempo para descobrir.’”
Imagem VP.03.06.V02.109 - Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação

A destruição era visível na chegada ao porto

Os soldados que haviam ficado mais debilitados durante a travessia per-


maneceram no hospital, em recuperação. José Pereira relata: “As injeções
que tomei no Rio de Janeiro acabaram causando uma reação alérgica na

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74 VOZES DA GUERRA

pele. Isso, somado à água salgada dos banhos, me deixou em mau estado.
Tive de ficar baixado ao hospital até estar curado.” Pereira diz, ainda, que
o médico, quando não conseguia diagnosticar alguma enfermidade, costu-
mava dizer: “É a doença da água! Assim que você pisar em terra firme, a
doença cura por conta própria.” Como diz, na maioria dos casos, o diag-
nóstico restou comprovado. Geraldo Sanfelice se lembra desses efeitos: “De
tão fraco que eu estava, precisei ser apoiado pelos amigos, para descer do
navio. Em dois ou três dias, estava inteiro. Tanto é verdade, que fui para o
front na primeira leva.”
Hélio Marques recorda: “Antes mesmo de atracarmos no porto de Ná-
poles, alguns repórteres americanos subiram a bordo em busca de infor-
mações e relatos sobre a viagem... vieram conversar comigo. O trecho da
entrevista está no livro Os Brasileiros Chegam ao Front, editado pelo Minis-
tério do Exército:

O sentimento geral de todos os soldados de bordo parece ter


sido resumido com fidelidade nas palavras do sargento Hélio
Marques — um artilheiro de cabelos ruivos, que era estudante
de odontologia no Rio de Janeiro: — ‘Naturalmente estamos
muitos satisfeitos... Por que não? Boa comida, boa viagem,
muita camaradagem, nenhuma interferência do inimigo... E
depois esta grande recepção.’

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Começa a caminhada em solo italiano

A longa e cansativa travessia havia sido concluída. Para chegar ao


local onde as tropas brasileiras ficariam acampadas, foi necessá-
rio grande esforço logístico. O roteiro inicial seguido pelos praci-
nhas foi distinto, dependendo do escalão em que chegaram. Neste capítulo
serão descritas as rotas seguidas, sempre partindo de Nápoles até o acam-
pamento inicial de cada escalão.

Acervo: Vet. Taltíbio Custódio

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76 VOZES DA GUERRA

D e N ápoles a V ada
De acordo com Enéas Araújo, os integrantes do primeiro escalão deslo-
caram-se do navio até a estação, onde embarcaram no trem. Diz ter achado
muito interessante que logo na saída de Nápoles o trem passou por extenso
túnel. Depois de cerca de meia hora, a composição parou. Todos desceram
e foram a pé até Bagnoli, na cratera do vulcão Astrônia. A área não estava
preparada para receber a tropa: não havia barracas, e foi servida comida
enlatada. Além disso, havia incômoda camada de pó vulcânico, que tomava
conta do ar a qualquer movimento. Francisco Gomes complementa: “Em
Nápoles conheci o subway. Eu sabia que existiam estradas por dentro da
terra, mas nunca havia visto um trecho tão longo. A distância entre o porto
e o local onde desembarcamos não devia ter mais de 10km.” Cabe esclare-
cer que nem todo esse percurso era subterrâneo.

Reprodução: A FEB pelo seu Comandante

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Começa a caminhada em solo italiano 77

Newton Lascalea confirma que em Bagnoli não havia nada pronto:


“Chegamos ao local do acampamento pela manhã e comemos somente à
noite. Dormimos ao relento; só no dia seguinte chegaram as barracas e o
material para montar o acampamento. Nós mesmos montamos as barra-
cas, que eram para 12 a 14 homens. O primeiro escalão sofreu mais por
causa disso. Precisamos montar tudo; os outros [escalões] já receberam
o acampamento pronto.”
Samuel Silva afirma que naquele vaivém ouviu-se o toque de formatu-
ra: “Regimento em forma; general Marcarenhas presente; Hino Nacional; e
a Bandeira subindo... Era a primeira vez que isso acontecia... A bandeira bra-
sileira hasteada em uma missão de guerra, em um país estrangeiro. Senti a
emoção, a responsabilidade e o significado daquele momento... Talvez alguns
não tivessem se dado conta naquele instante, mas ainda hoje, ao relembrar
alguns fatos e algumas cenas de guerra, isso me traz grande emoção; ainda
faz meu coração acelerar. O general hasteou a Bandeira Nacional. Era 18 de
julho de 1944. Tive a honra de estar presente. Quando rompemos a marcha,
tocou o dobrado Saudade da Minha Terra”, recorda emocionado. Enéas Araú-
jo complementa que, como ainda não havia banda de música na guerra, uma
fanfarra de cornetas tocou a marcha batida para hastear o Pavilhão Nacional:
“Foi muito emocionante vê-lo tremular em solo italiano.”
Acervo: AHEx

Tropa brasileira em Bagnoli

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78 VOZES DA GUERRA

A tropa passou cerca de 15 dias nesse local. Enéas lembra que o lugar pos-
suía uma só entrada e era cercado pela boca do vulcão: “Sabe como é brasilei-
ro... Não demorou muito e havia soldado saindo de lá para ir até uma cidade-
zinha perto dali. Então o general Zenóbio fez uma coisa que até hoje o pessoal
detesta: um cercado de arame farpado. O sujeito que saísse e fosse preso iria
para aquele cercado. Eu e outro sargento combinamos de sair em um domingo
para nos divertirmos um pouco. Acabei caindo de serviço e não pude ir. Ele foi
e se perdeu por lá; na volta, já no escuro, veio um jipe, e o sargento pediu caro-
na. Na viatura estava o general Zenóbio. Que azar o dele! O Zenóbio deu lugar
a ele, mas em vez de seguir para o acampamento parou ao lado do cercado, e
o sargento ficou lá preso.” À meia-noite, como o amigo não havia retornado ao
acampamento, resolveu dar uma olhada no cercado: “Ele estava lá, encolhido
de frio, pois havia saído só com a roupa do corpo... Eu fui até barraca e peguei
uma manta para ele; mas só passou a noite lá. No outro dia, cedo, ele foi solto.
Essa é uma história que não consta em nenhum lugar”, confirma Enéas.
De Bagnoli o 6º RI seguiu de trem até uma estação perto de Roma, onde
havia centenas de caminhões. Todos já embarcados seguiram até o acampa-
mento de Tarquínia, de onde era possível avistar Civitavecchia. Enéas recorda
que antes de passarem ao lado de Roma foram por outra cidade onde os ame-
ricanos lutaram com os alemães por longo tempo. O lugar fora arruinado havia
cerca de um mês, e ainda era possível sentir o mau cheiro de gente insepulta. A
tropa permaneceu em Tarquínia por duas semanas: “Recebemos armamento
e equipamento, instruções de ataque, de defesa, enfim, de todo tipo; até ins-
truções de ouvir tiros tivemos. Levaram-nos para um morro e deram tiros de
canhões, de morteiros, de fuzil; era para nós identificarmos o tipo de arma e a
que distância eles estavam atirando.”
Francisco comenta que, em Civitavecchia, ocorreu a primeira baixa bra-
sileira: “O comando permitiu que descêssemos até o mar para tomar banho.
Nessa ocasião, desapareceu o primeiro soldado brasileiro [Antônio Aparecido,
natural de Mococa-SP]. Outro soldado, desportista, mergulhou várias vezes,
mas não conseguiu encontrá-lo. Foi dado como morto por afogamento.”
Depois de 15 dias, os integrantes do regimento deslocaram-se para
Vada. Porém, antes de chegarem ao acampamento, pernoitaram em um de-
terminado local, sem montar as barracas. Enéas relata que pela manhã o
comandante da companhia chamou alguns militares, todos com mais de
1,70m de altura: “Eu estava no meio dessa turma. Fomos deslocados até o
comando-geral; disseram para pegarmos o saco, colocarmos a melhor far-

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Começa a caminhada em solo italiano 79

da e engraxarmos o coturno. Pegamos o material e voltamos ao comando,


onde formaram uma companhia com três pelotões.”
Até então, ninguém sabia qual seria a misteriosa missão. Logo ficaram
sabendo que Winston Churchill, primeiro-ministro da Inglaterra, estava
na região para inspecionar as tropas aliadas. Uma companhia brasileira
havia sido convidada a participar. Enéas participou da atividade. Segundo
ele, o sofrimento foi muito grande, pois tiveram de se deslocar sem tomar
café. Para quem havia chegado às duas da manhã e levantado antes das
sete, o deslocamento até o campo onde seria a parada militar não foi fácil:
“Havia tropas de todo tipo: pelotão de enfermeiras, companhias america-
nas, inglesas e outras. Winston Churchill chegou e passou em revista às
tropas. Na tropa brasileira, ele se deteve mais porque era desconhecida
e acabara de chegar ao front. Eu estava na fileira da frente; éramos nove
sargentos. Ele cumprimentou cada um de nós; eu não entendia inglês, mas
compreendi que ele estava nos dando boas-vindas. Nunca tinha visto tan-
tos repórteres e fotógrafos juntos. Quando ele partiu, saíram caminhões
com repórteres atrás dele.”
Acervo: MNMSGM

Pracinhas leem carta em San Rossore. Atrás deles, o parreiral

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80 VOZES DA GUERRA

Depois dessa solenidade, os três pelotões seguiram para o acampamento


em Vada, de onde era possível escutar os tiros. Era fácil perceber que o front
não estava longe. Chamou atenção o local inusitado onde permaneceram
por vários dias: “Botaram todo o regimento em uma plantação de uvas,
que lá não davam em parreiras tradicionais, mas encostadas em cercas.
Ali montamos as barracas. Mesmo deitado dava para apanhar as uvas, que
estavam maduras. Além do regimento, havia o pessoal da engenharia e até
do Banco do Brasil. Deu pena dos italianos: naquele ano, eles perderam
quase toda produção”, diz Enéas.
Segundo Francisco, em Vada começaram as instruções propria-
mente ditas, ministradas por dois sargentos americanos: Era uma
espécie de prêmio por terem participado do desembarque de 6 de
junho, na França (Normandia): “Eram nossos orientadores. Certo dia,
um dos sargentos quis saber o que queria dizer A cobra está fumando.
Ele ouvia muitos brasileiros falando isso e estava curioso. Nessa épo-
ca eu era sargento. Ele perguntou isso em um italiano meio enrola-
do. No meu inglês ruim, consegui dizer You understand... Snake? Yes!
Ele entendeu que era cobra. And... smoking? Yes! Então, The snake is
smoking. Ele entendeu, mas não consegui explicar muito além disso.”
Samuel Silva acrescenta que fez muitos treinamentos de maneabili-
dade visando ao preparo para ações reais: “Correr com a metralha-
dora, armar o tripé, montar a metralhadora em cima, deitar, fazer
pontaria, atirar...”
Iniciada a instrução, começaram os indesejáveis acidentes; até o térmi-
no das operações, tiraram algumas centenas de brasileiros de ação. Francisco
recorda que em Tarquínia houve grave acidente ao final da instrução, quando
os soldados pegaram uma granada de bazuca e pediram ao capitão que fosse
realizada uma demonstração, a fim de verem seu efeito: “A gente não conhecia
o efeito das armas novas. O capitão autorizou que atirássemos em uma casa
velha, em ruínas, mas recomendou muito cuidado. Ficou todo mundo entu-
siasmado com o efeito que a arma produziu. A granada espatifou a porta da
casa. Havia mais munição por perto, e pediram ao capitão para dar mais tiros.
Ele autorizou. Antes do segundo tiro, que acabou não sendo realizado, naque-
la aglomeração um soldado pisou em uma mina abandonada pelos alemães.
Essa mina causou um desastre... O soldado que pisou na mina ficou sem uma
perna e sem um braço; durou mais 12 horas no hospital e veio a falecer. Foi o
segundo soldado a falecer na Itália, o primeiro como efeito direto da guerra...”

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Começa a caminhada em solo italiano 81

De Nápoles a Pisa
Diferentemente do primeiro escalão, os demais seguiram de Nápoles
a Livorno por via marítima. Aribides Pereira relembra que após o desem-
barque do General Mann os pracinhas se acomodaram em barcaças, nas
quais seguiram para Livorno. A flotilha era de cerca de 60 embarcações de
transporte de pessoal (LCI), mais a escolta de segurança: “Dormimos nas
barcaças. Partimos na manhã seguinte. Que viagem braba! O inverno esta-
va chegando. O mar muito agitado jogava as barcaças para todos os lados.”
As palavras de Neraltino Santos ilustram o desconforto do deslocamento:
“Essas barcaças pulavam como um zebu bravo, soltas no mar agitado.”
Acervo: AHEx

Tropa brasileira embarcada em uma LCI

Como os efetivos eram muito grandes, algumas subunidades permane-


ciam na cidade. Severino Oliveira diz que antes de seguir para Livorno dor-
miu em um colégio chamado Fondazione di Napoli, onde as paredes estavam
todas rabiscadas e decoradas com belas pin-up girls; os alemães haviam ocu-
pado o lugar. Dalla Costa comenta que logo na chegada à Itália eles foram
conduzidos de caminhão até um acampamento próximo a Nápoles. Depois de
dois dias em terra firme, recebendo vacinas e fazendo exames médicos, em-
barcaram com destino a Livorno. Segundo ele, voltaram a ver só mar e céu.

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82 VOZES DA GUERRA

De acordo com Taltíbio Custódio, o porto de Livorno estava bastante


avariado e não permitia que as embarcações chegassem até o cais: “Tivemos
que descer com a água pela altura dos joelhos”, salienta. Vasco Ferreira diz
que após o desembarque seguiram de caminhão até o acampamento de
San Rossore, nas proximidades de Pisa: “O acampamento era muito grande,
com milhares de barracas. Passamos ali por uns 20 dias, acostumando com
o clima e nos preparando para encarar o front.”
Aribides Pereira recorda que “o acampamento era enorme, repleto de
barracas, muito bem organizado e limpo”. A primeira atividade logo após
a chegada ao acampamento foi o banho: “Depois de muito tempo toman-
do banho com água fria e salgada, a sensação causada pelo banho de água
morna foi memorável.” Após deixarem San Rossore, percorreram cerca de
50km até Staffoli, ainda na província de Pisa, onde permaneceriam os inte-
grantes do Depósito de Pessoal.
A partir de então, foram adotadas as medidas administrativas que dei-
xariam os soldados brasileiros em condições de seguirem para o combate:
“Estávamos nos ambientando para a guerra. O front estava dali a 30km.
Dava para ouvir bem nítidos os sons da artilharia e da aviação. Apesar de
darmos muitos tiros na instrução, sabíamos que aquilo era real e que está-
vamos no ambiente da guerra, e isso impunha certo receio. Essa barbarida-
de era para valer mesmo!”, complementa Aribides.

Acervo: AHEx

Acampamento brasileiro em San Rossone – Pisa.

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Adaptação e treinamento

A o saírem do Brasil, os soldados sabiam que estavam indo de en-


contro a um inimigo muito mais bem preparado para o comba-
te e ambientado ao cenário da guerra. No entanto, ao chegarem
à Itália, descobriram que havia outros inimigos não menos implacáveis: o
frio e o medo. O primeiro — todos são unânimes em dizer — era muito
cruel; com o medo — é preciso coragem para admitir —, a grande maioria
dos pracinhas teve contato bastante íntimo.

Acervo: MNMSGM

Frio e neve – adversidades superadas pelos pracinhas


(à esquerda, tropa em deslocamento)

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84 VOZES DA GUERRA

Como os pracinhas seguiram para a guerra em escalões, chegaram à


Itália em condições climáticas diversas. Os integrantes do primeiro es-
calão, sob calor intenso, conheceram as agruras do inverno já nos Ape-
ninos, em ação; o segundo e o terceiro escalões, durante o período das
chuvas que antecede o inverno; os demais, quando o frio já era intenso.
Aribides Pereira saiu do Brasil com uma temperatura bastante alta;
ao chegar à Itália, “o frio era intenso, e a neve começava a se formar”.
Pedro Vidal confirma: “Saímos do Rio de Janeiro com temperatura supe-
rior a 30°C; na Itália, no Depósito de Pessoal, em Staffoli, a temperatura
era negativa. Nas barracas, que amanheciam cobertas de neve, o frio era
terrível. Nunca havia sentido frio parecido.”
Pacífico Pozzobon, com o intuito de ter água para fazer a barba pela
manhã, dormia sobre o cantil, pois se este ficasse fora da barraca, ama-
nhecia com a água congelada. Ivo Ziegler, por algumas vezes para beber
água, derretia neve no caneco. Israel Rosenthal diz que, depois de um
mês no acampamento sem banho decente, “em um frio de rachar, foi
montado um chuveiro com uma lata de 20 litros; era meia lata de água
morna por banho”.
Neraltino Santos recorda uma história engraçada: “Como fazia mui-
to frio, eu peguei um monte de capim seco e forrei o chão da barraca.
Quando o sargento viu o que eu estava fazendo, brincando disse que eu
estava parecendo um porco que dorme na palha. Cobri a palha com duas
mantas de lã e deitei. Parecia um colchão! No dia seguinte, o sargento foi
fazer a mesma coisa. Aí foi minha vez de brincar com ele, perguntando
se o porco velho ia dormir quentinho também.” Riram juntos e dormi-
ram em seus colchões improvisados.
Pedro Vidal comenta que quem era pego sem as luvas ou com pouca
roupa era repreendido e pagava multa — flexão de braço e polichinelo
— para aquecer o corpo. “Para espantar o frio, muitos de nós andáva-
mos com a manta (cobertor) sobre o corpo. Aquilo era desagradável!
Para a manta não cair, tínhamos de segurá-la, e aí os braços ficavam
ocupados. Eu, como bom gaúcho, resolvi dar um jeitinho naquilo: com
o canivete, cortei um buraco para passar a cabeça. Ficou uma beleza de
pala! Os companheiros, em princípio, diziam que eu seria punido: ‘Não,
gaúcho, faz isso não, que são capazes de lhe prender.’ Ao verem o suces-
so e a praticidade do meu pala, adotaram a ideia. Até o tenente, que não
era gaúcho, disse: ‘Pois olha, você sabe que até é bom esse tal de pala.’”

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Adaptação e treinamento 85

Vidal continua: “A gente caprichava nas meias, mas tinha que cuidar
para os pés não ficarem molhados de suor. Com a temperatura baixa,
os pés úmidos poderiam congelar. O pé de trincheira era um perigo a
mais, pois podia levar à necessidade de amputação dos pés. O frio gera-
va grande mal-estar; a roupa em excesso incomodava bastante. Com a
roupa grossa, o corpo esquentava. Aí vinham o calor, o suor e a coceira.
Em decorrência, vinha o mau humor. Por várias vezes, eu vi soldados
com arma na mão chorando de frio.”
Não demorou muito para os pracinhas aprenderem vários meios de
amenizar os efeitos das baixas temperaturas. Geraldo Sanfelice recorda
que “os gaúchos estavam mais acostumados, mas não a um frio como
aquele. O mais importante era manter os pés aquecidos. Para tanto, o
macete era pegar um combat boot maior do que os pés. Após forrá-lo
com feno ou palha de trigo seca, a gente colocava mais um par de meias
de lã e pronto. O frio não tinha vez”.
Vasco Ferreira ressalta que a adaptação à neve foi muito difícil: “Co-
nheci o frio e a geada em Ponta Grossa, mas nada se comparava à neve.
Era mesmo um frio danado! Ainda bem que nós recebemos agasalhos
americanos. As botas, as luvas de couro forradas de lã, a jaqueta e o ca-
pote forrados e a capa de camuflagem branca amenizavam o frio.”
O potiguar Severino Oliveira relembra que certa manhã, em San Ros-
sore, ao sair da barraca para tomar banho, “parecia que havia pisado em
uma brasa... O gelo também queimava a pele”. No front era ainda mais
difícil encarar o frio: “Fazíamos patrulhas quase todas as noites, com as
roupas brancas para neve. Manejar o armamento era muito complicado;
o frio encrenca a gente.”
Para Hélio Marques a adaptação foi extremamente difícil, especial-
mente no front: “Nos Apeninos, pegamos frio de -18°C, -19°C. Os dedos
de tão duros não fechavam. Por vezes precisamos apertar emendas de
fios telefônicos com os dentes. O inverno foi rigoroso, mas as roupas que
recebemos dos americanos tornavam o frio mais suportável. Em um ano
na Itália, não tive uma gripe sequer e nunca baixei à enfermaria.”
Orlando Camargo confirma as dificuldades enfrentadas na linha de
frente: “Como o batalhão estava sempre em movimento, precisávamos de
mobilidade; dormíamos na cama-rolo. Fazíamos um buraco do tipo para
defunto, um tanto raso; forrávamos e jogávamos a cama. Se caísse neve, era
só jogar mais um cobertor por cima.” Cleir de Carvalho diz que “era muito

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86 VOZES DA GUERRA

frio; abaixo de zero. O local onde dormíamos era um buraco que fazíamos
com nosso material. Forrávamos com papelão dos caixotes de ração, manta
e roupa. Banho não existia. Fiquei mais de um mês sem tomar banho”.
Acervo: MNMSGM

Posições defensivas na neve

Para Newton Lascalea “o frio no front foi terrível. Em muitos lugares,


ficamos a céu aberto. Estive em um local a -21C°. Na neve, -1°C ou -2°C
para mais ou para menos não fazem muita diferença: é muito frio!”. Desta-
ca também os meses que antecederam e sucederam ao inverno terem sido
ainda piores: antes choveu muito; depois, com o derretimento da neve, veio
o barro. Então, pior que a neve era o barro. Com o intuito de amenizar o frio,
receberam uma galocha, “que era quentinha”, luva de lã e uma luva de couro
para colocar por cima.
Para José Cândido, nordestino que morava no Rio de Janeiro, “o primei-
ro contato com a neve não foi fácil; o frio de -20°C era quase insuportável,
mas me aclimatei, apesar de não ter vivido em clima frio. Nas trincheiras,
o frio vinha pelos pés; a saída era forrar as botas com feno. Os banhos, no
front, eram muito raros; onde havia algum tambor cheio, com um canecão
d’água na cabeça, matava a vontade de tomar banho. Eu tinha um problema
a menos: era quase imberbe”.
Se o frio causava mal-estar, havia um inimigo ainda mais inquietante.
Pedro Vidal concorda que “o frio era coisa braba, mas o medo era ainda pior.

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Adaptação e treinamento 87

Paura, diziam os italianos. Eu diria que era superpaura, muito medo”. Em uma
escaramuça, seu grupamento aproximou-se de uma casa onde havia quatro
idosas: “Quando viram a gente e perceberam que estávamos assustados, disse-
ram algo como não tenham medo; o inimigo está distante. Havia sempre algum
soldado descendente de italianos, e isso facilitava a comunicação... O medo era
constante, mas era palavra proibida. ‘Tá com medo, soldado?’ ‘Não, senhor!’
era a resposta mais apropriada. Bom mesmo, mas muito difícil, era nem pen-
sar no medo. O problema é que o capacete alemão, mesmo sem soldado em-
baixo, impunha respeito; tirava sono até de criancinha”, conclui brincando.
Acervo: AHEx

Patrulha na neve – uniforme não apropriado denunciava a posição

Ângelo França declara: “Encarar o medo é difícil. É um problema sério!


A gente vai porque precisa ir mesmo; é a noção do dever que nos faz seguir
em frente. A pessoa vai mesmo sabendo que pode morrer ou tornar-se alei-
jada. Não tem outro jeito! A situação, pelo menos no meu grupo, era sem-
pre a mesma: a gente amanhecia sabendo que à noite teríamos patrulha. A
atividade principal era colher informações ou fazer prisioneiros; fazer pri-
sioneiros era muito difícil porque eles eram muito bem preparados... Era
até mais fácil para eles prenderem a gente, pois estavam escondidos, e a
gente devia se deslocar. Mesmo à noite, andando na neve com capas bran-
cas, só com os olhos de fora para não sermos vistos, eles percebiam nossa
presença.” Contudo, ressalta Ângelo, “o medo existia até a hora de sairmos

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88 VOZES DA GUERRA

para a missão; depois que saíamos, o medo não existia mais. Passávamos o
dia pensando na patrulha, e aquilo era desagradável. Mas quando chegava
a hora e vestíamos a roupa para partirmos em missão, o medo desapare-
cia. Durante a missão a gente precisava ter atenção em tudo: no inimigo, na
gente mesmo, em não errar o caminho; não dava nem tempo para pensar
no medo. E quando a gente voltava seguro se sentia muito bem”. Newton
Lascalea concorda que o medo existe, mas é preciso vencê-lo: “Depois que
começa o combate, o medo desaparece; é uma questão de sobrevivência!”
José Cândido confirma que “na hora do combate, tudo muda. Eu tive
muito medo, mas nunca demonstrei, nem aos superiores e nem aos subor-
dinados. Eu sempre animava o pessoal e, como alagoano, não admitia de-
monstrar o medo. Em muitas ocasiões, quando os soldados diziam ‘Cabo,
não vamos não, que nós vamos morrer’, mesmo sabendo que era perigoso,
eu nunca demonstrei medo; eu os encorajava e seguíamos em frente”.
Para Enéas Araújo o chefe precisa compreender que o medo é natural e
que cada um o enfrenta de modo diferente. Menciona o caso de um soldado
que, após recuperar-se no hospital, voltaria ao combate no dia seguinte:
“Ele havia saído do front em razão de cabeça ruim. Perto do lugar onde a
gente estava, havia uma bateria inglesa que ao atirar fazia tudo tremer. Eu
vi um inglês colocando uma bomba em um canhão e pus as mãos nos ou-
vidos. Quando deu o tiro, a casa sacudiu. Esse soldado que iria retornar à
frente de combate ficou igual a um louco: entrou embaixo da cama e tremia
de medo. Quando serenou, levei-o ao comandante de companhia e disse-
lhe que o soldado não tinha condições de voltar ao combate. Acabou não
indo.” Orlando Camargo acrescenta que não teve medo, mas na condição de
chefe “devia entender a situação de cada comandado e respeitá-la. Quando
alguém tinha muito medo, a gente precisava removê-lo para a retaguarda.
Isso era raríssimo; a maioria encarou o medo e foi para a guerra”.
Ivan Alves relata que, depois do duro revés sofrido pelo 1º Batalhão
(do 11º RI), em Bombiana, no dia 2 de dezembro, o 3º Batalhão, que estava
no sopé do Monte Castelo, teve que guarnece ainda mais sua posição. “O
comandante empregou todo mundo que estava disponível. Um soldado
corneteiro, com apelido de Mansinho, foi designado para guarnecer um
daqueles becos. Havia a possibilidade de aparecer alemão por qualquer
lado, e a ordem era não deixá-los passar. Havia outro soldado, Gilberto
Orlandi, do Paraná, que era do meu grupo. Gilberto vinha subindo, e
Mansinho mandou que ele parasse e se identificasse. Quando Gilberto se

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Adaptação e treinamento 89

identificou, Mansinho disse: ‘Agora é tarde. Já tirei o grampo! Tudo bem...


para quem conhece uma granada, se estiver com o grampo na mão, é só
recolocar’, mas ele era corneteiro e não sabia... Jogou a granada para outro
lado e, por sorte, não aconteceu nada grave. Isso hoje parece piada.”
Vasco Ferreira narra que certa noite estava de sentinela; fuzil Spring-
field com a baioneta calada: “Eu não enxergava nada, mas se chegasse al-
guém, estaria pronto. Em certo momento, ouvi barulho como se fosse um
homem se mexendo, em um monte de feno. O coração disparou! Chamei o
colega que dormia do meu lado e disse-lhe que havia alguém ali perto. Com
todo cuidado, fomos ver: era um coelho! Fatos simples, que agora parecem
engraçados, causavam um medo danado.”
Taltíbio Custódio diz: “A preparação no Rio de Janeiro revelou-se pou-
co útil, pois saímos de um calor escaldante e chegamos à Itália com frio e
neve; o terreno, o armamento e o fardamento eram totalmente diferentes.”
De início, a reciclagem da instrução coube ao pessoal do 6º RI, que havia
chegado antes à Itália. O treinamento muito puxado começava logo após o
café. A educação física também era bastante forçada, pois o preparo físico
era a base para um bom soldado.
Acervo: MNMSGM

Soldados brasileiros treinam com o novo equipamento

Custódio conclui: “Era instrução para tudo: como usar novos fardamentos
e armamentos, sobrevivência, proteção contra o frio etc. As primeiras
instruções foram ministradas por sargentos norte-americanos, que usavam

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90 VOZES DA GUERRA

o idioma espanhol para facilitar a compreensão. A missão inicial era nos


deixar a par dos riscos que corríamos se pegássemos ou tocássemos em
qualquer coisa. O cuidado e a cautela eram essenciais, ressaltavam. Qualquer
material poderia conter armadilhas fatais. Eles chegavam a exagerar ao
dizerem em tom de brincadeira que, antes de deitar, deveríamos levantar o
lençol bem devagarzinho e passarmos a mão por baixo, para ver se não tinha
uma booby trap escondida, armadilha para bobo, como nós traduzíamos. Em
15 dias, estávamos preparados para descobrir e desarmar qualquer mina.”
Acervo: Vet. João Baptista Pedro Pozzobon

Treinamento nas trincheiras

Ivo Ziegler recorda que, apesar de haver chegado à Itália um dia após a
tomada de Monte Castelo, a guerra continuava. Entre os preparativos para
o combate, estavam o treinamento físico e as instruções de tiro com novos
equipamentos e armamentos, tais como canhões, bazucas, metralhadoras,
morteiros, granadas etc. Esses treinamentos eram realizados com munição
real, o mais próximo possível do que encontrariam em combate. Essa era a
rotina dos pracinhas que permaneceram no Depósito de Pessoal para even-
tual reposição das tropas em ação na linha de frente: “A reserva devia estar
preparada em caso de necessidade.”
Para Alcides Basso os treinamentos foram rigorosos, cansativos. De dia
ou à noite eram sempre com munição real. Alega que não tinha medo, pois
sabia que era treinamento. Contudo, como a munição era real, tudo preci-
sava ser exercido com muita correção: “Nas pistas de progressão, devíamos
rastejar de costas para o chão, com o fuzil roçando no arame farpado. Acima
do arame, a bala ia comendo. À noite, a munição traçante impunha ainda

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Adaptação e treinamento 91

mais respeito. Era assustador!” Dalla Costa relembra que os treinamentos


simulavam a cruel realidade: “Rastejávamos por dentro de sangas e valetas,
e as balas passavam zunindo acima da cabeça.” Taltíbio Custódio acrescenta
que “não se economizava munição em treinamento. A prioridade era a vida
humana, e, para mantê-la, os homens tinham que estar em condições de
serem empregados em missões reais”.
Ivan Alves, após a chegada à Itália, ficou acampado perto de um bos-
que. Na orla desse bosque, havia muitas fitas indicando área minada. “No
período quando estávamos em San Rossore, muitos sargentos iam à linha
de frente, em sistema de rodízio, para fazer um estágio de três, quatro dias
com o pessoal do 6º RI, que já estava em posição desde setembro.”
Jarbas Ferreira, por ter chegado antes à Itália, ministrou várias instru-
ções a militares de outros grupamentos: “Nós, cabos, que conhecíamos bem
o armamento, fomos designados para dar aulas, inclusive para oficiais que
tinham chegado havia pouco tempo da escola. Não tivemos problemas por
isso. Houve um que disse: ‘Eu sei que vocês são de graduação inferior, mas
hoje nós somos alunos e vocês professores. Não escondam nada de nós’. E
nós fazíamos questão de ensinar o que era correto.”
Acervo: MCSHJC

Reprodução da Revista O Cruzeiro


Instrução com os novos armamentos

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A vida no acampamento

M uitos dos pracinhas que seguiram para a Itália no 5º Escalão


(fevereiro de 1945) passaram a maior parte do tempo em
Staffoli, pequena cidade retomada dos nazistas pelo exército
aliado. Era lá que estava localizado o Depósito de Pessoal. Pacífico Pozzobon
recorda que tal depósito era dividido em batalhões, e estes, subdivididos
em companhias. Cada companhia ocupava uma área de cerca de 50m de
frente por 100m de profundidade, ao longo de uma rodovia que cortava o
acampamento situado em uma floresta de pinus.
Acervo: Vet. Taltíbio Custódio

Acampamento do 2º Batalhão/12ª Companhia – Depósito de Pessoal

Em 27 de fevereiro, Pozzobon começou o treinamento para seu esca-


lão. Os exercícios seguiam dia e noite até o final da guerra, sempre com

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A vida no acampamento 93

uso de munição real: “Eram treinamentos com fundamento, que realmente


preparavam para o combate.” Em cada grupo de instrução, segundo diz, havia
um sargento que realizava a demonstração dos procedimentos. Na oficina
de maneabilidade, havia um sargento baiano que por suas feições recebeu o
apelido de “tatu peludo”: “Ele vivia com a roupa suja de terra, por demonstrar
como deveríamos rastejar. Além disso, tinha a pele do rosto bastante irregu-
lar, o que dificultava o barbear. Sujo e de barba mal feita, parecia mesmo um
tatu. Ele ficava furioso quando alguém o chamava pelo apelido.”
Israel Rosenthal, assim que chegou à Itália, foi designado para realizar
o curso de transporte em comboio. Como havia sido reprovado no exame de
visão, recebeu a missão de coordenar um curso de motoristas, na retaguarda.
A rotina consistia em acordar às 6h, tomar café e seguir para a instrução: “A
turma embarcava em um caminhão GMC e ia para a instrução de direção.
Depois de 15 dias, fiz o relatório e o entreguei ao coronel Travassos, o coman-
dante do Depósito de Pessoal. Ele determinou que me apresentasse ao major
chefe do serviço médico: eu estava designado para a área de saúde, pois eu
era dentista formado e havia falta de dentistas no acampamento.” A princípio
havia só dois dentistas; posteriormente outros três reforçaram a equipe.
Acervo: Vet. João Baptista Pedro Pozzobon

Treinamento de maneabilidade, em Staffoli

Rosenthal conta que no acampamento não havia luz elétrica, só no


comando existia pequeno gerador, e isso dificultava sua atividade: “O con-
sultório dentário era bastante precário; o motor dentário era acionado a
pedal; a cadeira tinha só uma posição e, para trabalhar, tinha que ser de

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94 VOZES DA GUERRA

pé, meio curvado; não havia água corrente; luvas não existiam na época; o
esterilizador era uma caixa metálica com uma lamparina embaixo.” A rotina
diária por seis meses foi levantar às 6h; das 7h ao meio-dia e das 13h às
17h atendia no consultório. A partir das 17h, no inverno escurecia. Por dia
atendia de 12 a 15 pacientes: “Apesar de ter ido à guerra para lutar contra o
inimigo, não dei um tiro sequer. O único sangue que tive nas mãos foi o dos
companheiros dos quais eu extraía os dentes.”
Relata que sua missão era atender os integrantes do 3º e 4º batalhões.
Porém, certa noite um soldado do 1º Batalhão estava com muita dor de
dente, e, mesmo não cabendo a ele o atendimento, um sargento de sua com-
panhia, que trabalhava no aprovisionamento, insistiu para que ele assis-
tisse o soldado, considerado irmão por tal sargento. Como o caso era de
urgência, à meia-noite fez uma cirurgia para extrair o dente, com a precária
iluminação de uma lanterna, em um frio terrível. Depois de atender o rapaz,
deu um laudo para que ele repousasse no dia seguinte. A partir do almoço
seguinte, o sargento, que havia ficado muito agradecido, convidou-o para
almoçar com os integrantes do aprovisionamento: “Lá havia ovo em pó que,
misturado à água e batido, dava uma omelete e tanto. O almoço era maravi-
lhoso! Depois de dois dias almoçando com eles, achei desagradável, porque
o pessoal da companhia ia almoçar de marmita, e eu comendo melhor do
que eles... Esse foi um fato pitoresco que vivi”, conclui Rosenthal.
No Brasil, Pozzobon havia tido instrução básica de comunicações. Co-
nhecia o Código Morse, no qual cada letra ou número equivale a um conjun-
to de pontos (sinais sonoros curtos) e traços (sinais sonoros mais longos).
Na Itália, estava preparado para trabalhar com as peças de artilharia como
observador avançado. Munido de binóculo, bússola, telégrafo e radiotrans-
missor, teria a tarefa de reorientar os tiros de artilharia no front. Por sorte,
segundo diz, nunca foi destacado para ir à frente de combate. Entre os me-
ses de abril e julho, realizou o curso de comunicações com o novo equipa-
mento, adquirido dos norte-americanos. Seu objetivo era permanecer no
Exército após o retorno ao Brasil.
Alguns veteranos, embora poucos, ainda fazem distinção entre os pra-
cinhas que efetivamente combateram os alemães e italianos e os que per-
maneceram no Depósito de Pessoal. Para Alcides Basso, “é injusto desme-
recer o trabalho de qualquer integrante da FEB. O fato de alguém não ter
ido para o front não o faz menos pracinha do que qualquer outro. Até diria
que teve mais sorte quem não precisou enfrentar o inimigo frente a frente.

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A vida no acampamento 95

O que realmente importa é que todos presentes lá desempenharam impor-


tante função. Quem estava na retaguarda trabalhava em funções adminis-
trativas, a fim de dar suporte a quem combatia no front; além disso, estava
se preparando para entrar em combate, se fosse necessário”.
Acervo: Vet. Pacífico Pozzobon

Instrução de Comunicações – bobinas e fios telefônicos

A evolução dos combates era divulgada aos soldados. Os comandantes


mostravam no mapa as vilas e regiões que iam sendo tomadas pela FEB.
Neraltino Santos recorda que os alemães tinham programas de rádio em
que transmitiam mensagens em bom português, voltadas aos soldados bra-
sileiros e intercaladas com música, e os convidavam a trocar de lado: “O
que vocês fazem aqui? Vocês sabem que os americanos tiraram os melhores
soldados do Brasil para morrerem nesta guerra que não lhes diz respeito...
Venham, juntem-se a nós.” Severino Oliveira relata que diariamente “os ale-
mães jogavam bombas que, ao estourarem, espalhavam folhetos sobre nós.
Eles elogiavam a gente e metiam o pau nos americanos”. Essas mensagens
e panfletos faziam parte da poderosa máquina de propaganda nazista, que
visava à desmobilização dos soldados adversários.
Era também em Staffoli que muitos feridos em combate iam terminar
sua recuperação de ferimentos ou moléstias adquiridos na frente de com-
bate. Alcides Basso confirma que ficar no acampamento gerava grande an-
siedade: “Os treinamentos eram desgastantes, e a maioria do pessoal que

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96 VOZES DA GUERRA

estava lá queria ir logo para o front e pôr em prática o que aprendera. Eu me


lembro de um sargento no Depósito de Pessoal, que havia voltado ferido da
linha de frente. Mesmo sem estar recuperado, queria retornar logo à frente
de batalha. Dizia que ficar parado era um tédio e que em combate, ajudando
os companheiros, ele se sentia realmente útil.”
Acostumado à agitação da linha de frente, Ary Abreu não gostava do
ambiente no acampamento. Depois de ter sido ferido em Montese, ser sub-
metido à intervenção cirúrgica e ter permanecido em tratamento nos hos-
pitais de Pistoia e Livorno, foi transferido para Staffoli: “No Depósito de
Pessoal, fui para uma tropa de cavalaria. Eu me apresentei corretamente
ao capitão Machado ainda com o braço na tipoia. Éramos mais de 120 feri-
dos que voltávamos juntos. Eu era o mais novo da turma, ainda imberbe. O
capitão disse: ‘Você vai ser o encarregado por essa turma toda’. Eu lhe per-
guntei: ‘Posso fazer uma observação?’ Ele me respondeu: ‘Pode! Se eu vou
aceitar, não sei.’ Comentei: ‘Aí no meio há segundo-sargento, auxiliar de pe-
lotão e terceiro-sargento mais antigo do que eu’ — no front não usávamos
divisas para não sermos alvos fáceis. Então o capitão lembrou: ‘Mas militar
por enquanto só tem você. Eles se apresentaram?’ E ele não arredou pé da
decisão: ‘Você ainda é militar; os outros não’. Aí tive que me acertar com os
mais antigos, dando-lhes liberdade de ação.”
Acervo: MNMSGM

Instrução de Comunicações – Equipamento rádio

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A vida no acampamento 97

Acervo: Vet. João Baptista Pedro Pozzobon

No acampamento, a instrução seguiu intensa até o final

Ary continua: “Fomos mal recebidos no Depósito de Pessoal. Tratavam


os que voltavam do front com descaso e humilhação. Deram uma manta
para cada um de nós. Dormíamos no chão; eu fardado de americano [o uni-
forme que ele usava no momento do ferimento havia sido retalhado por
ocasião da cirurgia]. Na hora das refeições, um ou outro companheiro da
cavalaria era caridoso e nos emprestava a marmita para que pudéssemos
comer. Depois com uns conhecidos de São João e Belo Horizonte, eu conse-
gui umas peças de uniforme e pude me fardar de brasileiro. O capitão Ma-
chado me deu um senhor elogio, muito bonito, pela minha conduta. Mas eu
mandei recado para meu comandante, capitão Olegário de Abreu Memória,
para que, pelo amor de Deus, mandasse buscar o pessoal da 7ª, que estava
na Companhia de Cavalaria, no Depósito de Pessoal.”
“Certo dia, o capitão Memória chegou com uma Dodge ¾ e no grito
chamou: ‘O pessoal da 7ª aqui comigo!’ Eu disse a ele que devia relacionar
o pessoal... ‘Você mandou me chamar e agora está com essa história de re-
lação...’. Eu lhe expliquei: ‘É, capitão! Ainda tem militarismo aqui. Nós esta-
mos agregados aqui.’ Ele disse: ‘Está bem. Dou 10 minutos! Se não, vou em-
bora sem vocês.’ Aí eu relacionei o pessoal da 7ª e levei ao capitão Machado:
‘Meu comandante de companhia veio buscar o pessoal dele.’ Ele questio-
nou: ‘Mas já pode sair daqui assim, sem ordem minha?’ Eu lhe respondi:
‘Capitão, conto com o senhor! Se eu esperar os canais competentes, demora

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98 VOZES DA GUERRA

muito. E o capitão me deu só 10 minutos. Estou lhe trazendo a relação para


o senhor mandar publicar em boletim.’ Ele disse: ‘Está bem, rapaz! Você me
foi muito útil prestando serviço aqui, e eu vou atender a seu pedido.’ Então
saí de lá oficialmente; ele mandou publicar em boletim e me deu um elogio
deste tamanho.”
Acervo: Antônio Carlos Mesquita do Amaral

Biblioteca no acampamento: livros para combater a ansiedade

Cleto Pellegrinelli passou por situação parecida: “O primeiro hospital


a que fomos conduzidos, após feridos em Montese, foi o hospital de evacu-
ação, em Pistoia, todo de lona, onde fizeram curativos. Depois deste, fomos
para Livorno.” Após passar algum tempo em Staffoli, Cleto foi falar com o
comandante do Depósito: “Eu não fico aqui, coronel. Se o senhor não me
liberar, eu vou fugir. Ele disse: ‘Então vamos fazer o seguinte: se você con-
seguir chegar à sua unidade, eu não tomo conhecimento. Agora, se você for
preso e voltar para cá, aí você vai ter que aguentar as consequências...’ Só
disse: ‘Perfeitamente, coronel!’ Saí e fui embora. Passei a noite inteira acor-
dado, esperando um caminhão. Fui informado de que iria um para onde
estava a minha companhia. Eram quatro da manhã! Quando o motor do
caminhão ligou para esquentar, cheguei lá, subi na carroceria e me deitei
escondido. Fui embora para a minha unidade; apresentei-me lá e segui a
vida. E nada disso consta nos meus assentamentos.”

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A vida no acampamento 99

João Gonzalez, mesmo contrariando o bom senso, não permaneceu no


Depósito: “Quem estava na retaguarda queria voltar para sua companhia.
Éramos amigos. Uma companhia se irmana; depois de certo tempo de
contato, éramos amigos de todo mundo; é lógico que há aqueles com quem
temos menos amizade. Também queria voltar ao front. Eu voltei! O capitão
Atratino, meu comandante, me recebeu muito bem. Eu vi lágrimas nos
olhos dele quando cheguei. Ele me disse taxativamente: ‘Achei que você não
voltasse mais!’ Eu não fiquei curado totalmente; escarrava muito sangue.
Quando tossia, expelia muito sangue [ainda hoje o estilhaço está em seu
pulmão]. Eu não sei quanto tempo depois ele me falou: ‘Você deve voltar
para o Brasil.’ Eu não queria; coisas da mocidade: era bobo! O ideal mesmo
era cair fora de lá porque aquilo era um inferno. Ele me mandou para o
médico, que não me deixou voltar mais para o front. Mas isso já era no
finzinho da guerra.”
Enéas Araújo passou por situação parecida. Após ser ferido em Torre
de Nerone, ficar no hospital e ser operado pela segunda vez, começou a
fisioterapia: “Quando faltava mais ou menos uma semana para completar
três meses baixado, completei 21 anos. Fui à junta médica no início de fe-
vereiro. Queriam me mandar para Nápoles, de onde eu deveria voltar para
o Brasil. Eu disse que não queria ser julgado incapaz. Os dois médicos con-
versaram e começaram a rir. Um disse que todos os que chegavam à en-
fermaria queriam voltar ao Brasil. Eu disse que eu também queria voltar
ao Brasil, mas não queria ser julgado incapaz. Eu queria que me dessem
alta; queria voltar ao front. Eles argumentavam que lá havia neve e que eu
não aguentaria nenhum dia por lá. Eu disse que isso era problema meu e
queria voltar para lá; só não queria ser julgado incapaz. ‘Mas por quê?’, ele
perguntou. Perguntei se ele conhecia Caçapava e ele disse que não. Disse
que eu era filho de Caçapava — que tinha cerca de 18 mil habitantes —, que
morava no centro e que todo mundo me conhecia. Se eu chegar lá com este
corpão — eu havia engordado no hospital —, o pessoal vai dizer que fugi da
guerra, argumentei. Eles me deram alta.”
Depois de sair do hospital, Pellegrinelli seguiu até Porreta: “Falei com o
secretário, capitão Bonorino, que publicou a minha apresentação, me pas-
sando à disposição da CCSv (Companhia de Comando e Serviços) para fins
de recuperação. Falei com o Ivo Serigato. Uma semana depois, chegou o co-
mandante do pelotão de transporte, que sabia da minha condição de mar-
ceneiro, me convidando para fazer uns trabalhos e montar uma espécie de

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100 VOZES DA GUERRA

PC móvel — cama, escrivaninha e outros móveis para colocar no caminhão.


Aceitei! Fui ao pelotão, e em uma semana estava tudo pronto. Naquela se-
mana, publicou a minha transferência para o Depósito de Pessoal. Eu não
quis ir, porque ninguém que saía do front e ia para lá gostava; o comando
era muito rigoroso, e a instrução, puxada.”
Enéas relata: “Falei para o comandante sobre a transferência, e ele per-
guntou se eu não preferia ficar no pelotão de transporte, pois com a ofensi-
va que estava prevista precisava montar um posto de distribuição de com-
bustível e ter um sargento para auxiliar nessa função. Ele foi falar com o
coronel e, passados uns 10 minutos, voltou dizendo que o boletim da tarde
publicaria a revogação de minha transferência para o depósito e me passa-
ria à disposição do pelotão de transporte. Fiquei no pelotão de transporte
até o final da guerra. Era até mais perigoso, pois íamos com o caminhão de
combustível a lugares atingidos por fogos de artilharia; éramos um cabo,
um soldado motorista e eu, que tomava conta; parávamos o caminhão, cor-
ríamos para o mato e voltávamos quando os tiros diminuíam.”
Acervo: Vet. Pacífico Pozzobon

Munição abandonada pelos alemães, próximo a Staffoli

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Seguindo para o front

A ntes de descrever a participação dos pracinhas em combate, cabe


destacar as atribuições de cada uma das armas básicas (Infan-
taria, Artilharia e Engenharia). A Cavalaria, que hoje integra a
estrutura básica do Exército Brasileiro, a partir da década de 1940 entrou
efetivamente na fase da motomecanização e teve participação na guerra
com alguns carros blindados sobre rodas, usados em missões de reconhe-
cimento. As comunicações eram encargo da Engenharia. A Companhia de
Transmissões, que tão relevantes serviços prestou à FEB, foi o embrião da
Arma de Comunicações.
Acervo: MNMSGM

Engenharia da FEB em ação

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102 VOZES DA GUERRA

A Engenharia da FEB, antes mesmo de os infantes e artilheiros entra-


rem em combate, já estava em ação com os norte-americanos e removia
minas, recuperava caminhos e reconstruía pontes. Aribides Pereira diz que
“o poderio e a eficiência da Engenharia eram impressionantes. Em uma
noite, ela lançava cabos de aço com pneus, montava a estrutura metálica e
concluía uma ponte para dar passagem à tropa”. Segundo Taltíbio Custódio,
“a Engenharia fazia um trabalho admirável. Os alemães bombardeavam as
estradas para dificultar o avanço dos comboios aliados, e a Engenharia ar-
rumava tudo em pouco tempo, com seus caminhões e patrolas”.
A missão da Artilharia, com seus canhões e obuses, era preparar o
terreno para a Infantaria. Eugênio Lombardo afirma que a Artilharia pres-
tava cobertura de fogos para as ações dos infantes: “Nossos tiros alcan-
çavam o inimigo a longas distâncias, em Monte Castelo, Montese e outros
combates. Ficávamos na retaguarda, sem contato pessoal com o inimigo.”
À Infantaria cabia o trabalho mais difícil: ir à frente, localizar o
inimigo, pedir com correção a concentração de fogos e, depois que a
Artilharia preparava a área, precisava enfrentar o inimigo no combate
aproximado, tomar dele o terreno e suas posições.
Na Segunda Guerra Mundial, a coordenação das ações das diferentes
armas passou a ser fundamental. Segundo Pacífico Pozzobon, “o êxito de
qualquer missão dependia da capacidade dos homens responsáveis pelas
transmissões, que acompanhavam a Infantaria, no contato direto com o ini-
migo, e faziam a ligação com a Artilharia, na retaguarda. De nada adiantaria
o infante localizar o inimigo se não pudesse transmitir ao artilheiro sua
localização exata, para que este bombardeasse as posições inimigas”. Taltí-
bio Custódio complementa, lembrando que “a coordenação das tropas em
movimento se dava por rádios usados pelos comandantes de regimentos,
batalhões e companhias”.
A FEB desembarcou em solo italiano em julho de 1944. Após o
período de ambientação e instrução, chegara a hora de o 6º RI ir à linha
de frente e receber o batismo de fogo. Francisco Gomes recorda que, em
15 de setembro de 1944, o Regimento Ipiranga iniciou essa caminhada: “A
partir de Vada, nosso deslocamento até as proximidades do front foi feito
de caminhão. Depois, próximo das posições inimigas, seguimos à noite. No
front, os batalhões foram distribuídos pelo setor que cabia a nós, brasileiros,
em substituição à tropa americana. Como precaução, a tropa substituída
deveria ficar três dias com a tropa substituta e dar orientações sobre as

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Seguindo para o front 103

possibilidades de ataques alemães. Depois do terceiro dia, era tudo por


conta do 6º RI, a primeira tropa brasileira a estar lá.”
Enéas Araújo recorda que nesse deslocamento pararam em um deter-
minado ponto, e o capitão alertou que estavam ao alcance da artilharia ale-
mã. Depois de cavarem uma toca individual, o fox hole, cada um montou
sua barraca, e todos pernoitaram: “No outro dia, deslocamos a pé até certo
ponto. O capitão reuniu os sargentos e oficiais, pouco antes de escurecer, e
disse: ‘Os alemães devem estar nesses morros; hoje à noite vamos passar
por lá. Se houver confronto, começará nossa guerra.’ Quando escureceu, co-
meçamos a deslocar... Foi um atrás do outro, pois era uma mata fechada. De
vez em quando, tropeçava em algum pau atravessado no caminho. Eu pen-
sava que podia ser um morto... Depois de várias horas andando naquela es-
curidão, saímos em uma estrada. De repente, escutamos tiros vindos da 4ª
companhia. O capitão saiu correndo (na direção do tiro), e os pelotões, tam-
bém. Ele mandou todo mundo parar e fez contato com a 4ª companhia. Era
um soldado que havia se assustado e fez um disparo; e os outros o acom-
panharam... Depois disso, passamos a noite encostados em um barranco.”
Acervo: AHEx

Artilharia em deslocamento nos Apeninos

A partir do início de novembro, a FEB mudou o rumo de sua atuação,


convergindo do vale do rio Serchio para o vale do rio Reno. Aribides
Pereira relata que, no dia 3 de novembro de 1944, receberam a ordem de

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104 VOZES DA GUERRA

seguir para o front: “Quanto mais o comboio subia os Apeninos cobertos


de neve, mais intenso era o frio. Ao chegarmos ao destino, encontramos
os integrantes do primeiro escalão, que já estavam por lá em combate.
Ali, sim, cerrou o fogo. O combate era para valer. Quando os alemães
abandonavam determinada posição é que podíamos ver o estrago que
a guerra causava. A artilharia alemã ainda usava muitas peças movidas
à tração animal. Havia muitos carros avariados ao longo do itinerário
de progressão, mas, Deus do céu, ver os corpos de soldados alemães e
cavalos destroçados era de arrepiar. Isso não esquecemos mais.”
Ivan Alves recorda: “No princípio de novembro, seguimos para Filetto-
le, perto de Lucca. Lá houve uma manobra muito grande, embaixo de mui-
ta chuva. Quando terminou o exercício, já à noite, retornei para a barraca.
Como estava chovendo, e a roupa estava toda encharcada, deixei-a pendu-
rada na chuva para limpar. De madrugada, tocou alvorada: tinha chegado a
hora de irmos para o front. A ordem foi embarcar nas viaturas e seguir até o
sopé do Castelo. Já estava bem frio, mas ainda não havia neve. Seguimos até
Silla. Quando desembarcamos, havia uma espécie de neblina escondendo a
ponte; na verdade era fumaça, e, entre os operadores da fábrica de fumaça,
estava o magro da dupla O Gordo e o Magro. Pernoitamos em uma casa
que tinha por lá e começamos os preparativos para entrar em linha, o que
aconteceu em 29 de novembro, quando o batalhão participou do ataque ao
Monte Castelo.”
Vasco Ferreira, depois de alguns dias se recuperando da viagem,
seguiu para o front com o regimento, inicialmente para Porreta Terme, nos
Apeninos. Nesse período, com seu pelotão, viveu amarga experiência, em
que a imprudência e a falta de cautela redundaram no que denomina sua
primeira tragédia na guerra: “Éramos de um pelotão de reconhecimento
e informações. O tenente ministrava instruções de como descobrir e
desenterrar minas, exercícios de reconhecimento e outros. Em uma dessas
instruções, saímos para um treinamento — ou já era reconhecimento
mesmo —, com seis a oito jipes. Depois que havíamos marchado uns 20km,
paramos em uma estrada. Do lado desta havia um pequeno rio, de uns
10m de largura; mais adiante, uma ponte bombardeada. Na beira desse
rio, sentado nas pedras, havia um italiano com um caniço de pescaria. O
tenente saiu do jipe e disse para nós: ‘Ninguém sai das viaturas!’ Ele saiu
da estrada e se dirigiu ao italiano. Mas nós não lhe obedecemos... Diversos
soldados, inclusive eu, saíram dos jipes e foram correndo para o rio. Nós

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Seguindo para o front 105

não sabíamos que a área estava minada... Várias minas explodiram por
pisada ou por indução. O cabo Ladeira pisou em uma; ficou despedaçado...
O soldado Orlando Martins também pisou. Eu saí correndo e bati nas costas
de um colega, o soldado Neri. Eu tinha só 19 anos... Na minha frente, houve
uma explosão. Aquilo tudo levantou... areia, pedras, uma nuvem horrível.
Conforme eu vinha correndo, me faltou o chão. Quando eu dei por mim,
estava dentro de uma cratera, com as pernas dobradas na posição que os
muçulmanos rezam... Atrás de mim, estava o Neri em pé, com o rosto todo
arrebentado e sangue escorrendo nos cantos dos olhos... Ele dizia: ‘Estou
cego! Estou cego!’ O tenente ficou de pé; estava com as costas arrebentadas
e com as orelhas ensanguentadas. Então ele disse: ‘Me dá a mão!’ Disse
a ele que não estava sentindo as pernas... Eu ouvia os companheiros me
animando: ‘Levanta, Vasquinho, levanta!’ De tanto me incentivarem,
levantei! O tenente disse para eu pisar onde ele pisasse. Devagar, saímos
do campo minado. Com esse ato heroico e anônimo, ele arriscou a vida
para me salvar. Era o primeiro-tenente Luiz Gonzaga de Moura, de Santa
Catarina. Eu fiquei com alguns fragmentos de pedra e areia cravados no
rosto... O soldado Neri ficou com o rosto todo inchado e foi para o hospital.
O tenente também foi para o hospital; a jaqueta dele ficou despedaçada nas
costas. Depois de algum tempo, o tenente e o Neri voltaram para o pelotão,
para participarem da guerra conosco. O Neri, depois da guerra, ficou cego
em razão das sequelas... Estranho é que todas as áreas minadas eram
demarcadas por fitas, mas aquela não.”
Geraldo Sanfelice, apesar de ter descido do navio carregado pelos ami-
gos, logo recompôs as forças e foi incluído no efetivo do 11º RI, de Minas
Gerais: “Nunca fui a Minas, mas conheci muitos mineiros, que eram gente
muito boa.” Com menos de duas semanas em solo italiano, por ser bastante
experiente foi escolhido para ir ao front. Recorda que encontrou o capitão
Henrique C. Cardoso, com o qual servira no 7º RI, em Santa Maria. Este lhe
disse: “Amigo, como é que tu ‘deixou’ te pegarem para vir para a guerra? E
agora tu ‘vai’ para a linha de frente...” Sanfelice respondeu-lhe que não podia
nem queria fugir da obrigação e que estava na Itália justamente para isso: “O
jeito foi me entrosar ainda mais com os amigos mineiros e seguir em frente.”
Rubens Andrade saiu do Brasil no 3º contingente, como tropa de re-
completamento: “Em janeiro de 1945, fui incluído no 11º RI. Havia falta
de padioleiros, pois dois deles haviam sido feridos em combate. Como eu
havia feito a preparação para ser padioleiro, pude optar; perguntei qual

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106 VOZES DA GUERRA

era a arma do padioleiro, e disseram que era a cruz vermelha. Preferi ficar
mesmo na infantaria, pois lá eu teria um fuzil para me defender. Na minha
primeira patrulha, abaixo de neve intensa, vesti um casacão de lã fornecido
pelos americanos. Quando vi os companheiros só com a farda, com poucos
agasalhos, achei estranho. Na volta da patrulha, percebi por que: o casacão
encharcado pesava uns 100kg, e eu nem podia jogá-lo fora.”
Alcides Basso diz que, no Depósito de Pessoal, era possível ouvir os
tiros de artilharia ao longe. Recorda que “o barulho produzido pelo bom-
bardeio de Montese, a partir de 14 de abril de 1945, era assustador até
para quem estava distante. Imagina para mim, que justo no dia 14 parti
para o front rumo ao norte da Itália. Com pouco mais de um mês e meio
de treinamento e preparação psicológica na Itália, havia chegado a minha
vez de conhecer o inimigo. Se pelo barulho dava para perceber que o com-
bate estava acirrado, ao passarmos por Montese o impacto foi ainda mais
chocante: o silêncio era total, tudo estava destruído e havia alguns focos de
fumaça. Pela primeira vez senti o cheiro da guerra e posso dizer, com toda
segurança, que não é nada agradável”.
Acervo: AHEx

Padioleiros e pessoal de Saúde em ação no front

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Contato com o inimigo

C omo relatado anteriormente, o contato pessoal e mais efetivo com


o inimigo cabia à Infantaria e podia acontecer a qualquer momen-
to. Seja no combate, seja no período de ocupação do terreno, era
um momento carregado de tensão.
Geraldo Sanfelice diz que “em combate, os enfrentamentos com os te-
descos eram sempre acirrados. Eles eram muito bem preparados e sabiam
o quê e como fazer. Por isso, devíamos estar sempre atentos. Nas horas de
folga, nosso ‘passatempo’ era cavar trincheiras. Quanto mais profundas,
melhor. A tropa precisava estar em segurança. Os alemães eram soldados
muito bem preparados, e, se nós estávamos lá para vencê-los, tínhamos
que ser melhores do que eles”.
Sanfelice, fora de combate, teve contato direto com um alemão, em uma
vila próxima a Fornovo: “Estávamos eu e o cabo Menna Barreto fazendo um
reconhecimento quando encontramos um sujeito alto e logo o identifica-
mos como alemão. Ele estava isolado e, ao perceber que não tinha saída,
largou o fuzil de lado, tirou a mochila e veio conversar conosco. Apesar de
não entendermos o que ele dizia, tiramos a munição do fuzil e o conduzi-
mos para a retaguarda, lugar onde permaneciam os prisioneiros. É bom
salientar que havia muito respeito com os inimigos capturados.”
Aribides Pereira confirma que, perto do final da guerra, os alemães se
entregavam espontaneamente: “Chegou a acontecer de não termos gente
para evacuá-los. A saída era fazer croquis para que seguissem desarmados
e por conta própria até o campo de prisioneiros. Eles sabiam que não havia
outra saída, que iriam perder a guerra e optavam pela vida. Participei da
prisão de vários italianos simpatizantes dos nazistas. Certo dia, quando ia
de jipe seguindo por uma ruela para levar um ofício até Pisa, nas montanhas

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108 VOZES DA GUERRA

ao longo do rio Arno havia um trator arrumando uma estrada bastante es-
treita: de um lado estava a montanha; do outro, o despenhadeiro. Como era
uma missão de estafeta, usava somente a pistola. Quando estava parado,
aguardando a passagem pelo trator, saltaram seis italianos do mato, arma-
dos de fuzil. Por sorte, estavam com braços levantados e o fuzil sobre a ca-
beça, prestes a se renderem. Foi um baita susto. Recolhemos o armamento
e entregamos os soldados a um major do exército norte-americano, que os
conduziu para a retaguarda.”
No relato de José Cândido, fica claro que, apesar do sentimento de re-
vanche, os prisioneiros de guerra, além de serem tratados segundo conven-
ções de guerra e recomendações do comando da FEB, recebiam tratamento
humanitário de nossos soldados: “Em uma patrulha antes de Monte Cas-
telo, meu grupo fez alguns prisioneiros. Os inimigos haviam se rendido e
estavam com as mãos para cima, após serem desarmados por nós. Alguns
soldados quiseram se vingar e fuzilar os alemães. Não permiti nenhuma
morte. Na volta dessa patrulha, já sob o comando do tenente, perguntei a
ele se podia dar um cigarro aos prisioneiros. Recordo como se estivesse fa-
lando isso hoje. O tenente disse: ‘Você sempre com essa bondade, seu Can-
dinho, ou melhor, cabo Cândido. Pode dar um cigarro a eles.”
Acervo: Vet. Wanda Pedroso

Respeito aos prisioneiros foi marca registrada dos brasileiros

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Contato com o inimigo 109

Ary Abreu relembra: “Recebemos instruções para vivenciarmos uma


guerra, para confrontarmos com um soldado excelente, digno de ser res-
peitado e que também nos respeitava. Nós aprendemos com os alemães a
coerência, a disciplina e o respeito. Quando aprisionávamos inimigos, nós
os respeitávamos; eles agiam da mesma maneira com os nossos, que eram
prisioneiros deles. Eu sempre elogiei o soldado alemão e não é de graça,
não. Vi no exército alemão muita ordem e disciplina, apesar de, quando
confrontamos com eles, já estivessem desfalcados de muitos recursos para
continuarem a guerra; a aviação deles já estava um pouco combalida e via-
turas com alguma deficiência de combustível.”
Ary diz que os soldados alemães, em regra, adotavam o mesmo proce-
dimento: “Logo que caíam prisioneiros, eram nossos amigos. Muitos nós
prendemos famintos; dávamos um chiclete, um biscoito, um caramelo ou
qualquer coisa que tivesse no bolso, e eles passavam a ser nossos amigos.
O tratamento entre o brasileiro e o alemão sempre foi muito cordial e dig-
no.” Foi assim que Ary procedeu no dia em que foi ferido em combate: “No
primeiro posto de socorro, embarcou conosco na ambulância um sargento
alemão, que havia perdido o pé em um campo minado por eles mesmos. Ele
tinha saído do front da Rússia para lutar contra as forças aliadas, na frente
brasileira. Na ambulância, eu conversava com o alemão que, se não me en-
gano, se chamava Robert e usava a Cruz de Ferro, a maior condecoração de-
les. Na enfermaria, um dos nossos enfermeiros quis tomá-la dele. O alemão
perguntou se era possível fazerem isso. Eu disse ao enfermeiro: ‘Negativo!
Você não vai tirar a medalha dele, não; ela representa o valor dele como
combatente, e nós temos que respeitar. Você quer uma? Vá buscar lá na
frente de batalha. Lá tem bastante alemão pra você enfrentar.’”

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Ações em combate

N este capítulo, os pracinhas relatam sua participação em pa-


trulhas e em combates propriamente ditos. É importante
destacar que, como são histórias ocorridas em diferentes
pontos do front, podem não estar em ordem cronológica, pois, como
relatam os protagonistas, muitos vilarejos por onde passaram não
possuíam placas com o nome da localidade. Além disso, em contato
com o inimigo, perdiam a exata noção de tempo; o passar dos dias
e das noites representava apenas mais um dia de vida. Entretanto,
utilizando fontes oficiais, foi possível ordená-las, deixando-as muito
perto da realidade.
O depoimento de Ewaldo Meyer, sargento-auxiliar da Seção de Ope-
rações, facilita a compreensão de como se processavam os movimentos
da FEB no terreno. Segundo ele, “a guerra andava como um todo; não era
feito um combate individualizado. O 5º Exército planejava e administra-
va todo o front da Itália. No 5º Exército, havia quatro corpos de Exército.
Cada corpo de Exército tinha quatro divisões. A 1ª DIE era uma das divi-
sões do 4º Corpo de Exército”. Assim, o 4º Corpo de Exército repassava
para FEB as diretivas de combate recebidas do 5º Exército. De posse das
diretivas a serem seguidas pela FEB, que incluíam missão, data, hora
etc, o coronel Castello Branco, chefe da Seção de Operações, e seus dois
assessores, os majores Luiz Mendes da Silva e Cunha Mello, planejavam
as ações da FEB no terreno. Desse planejamento resultava a diretiva de
combate da FEB, que era encaminhada para ser seguida pelos RI. Aos
RI cabia planejar, detalhar e executar as missões recebidas, definir
os batalhões em melhores condições de combate, fazer pedidos de
recompletamento de pessoal e munição etc.

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Ações em combate 111

Na bacia do Serchio
No dia 15 de setembro, Samuel Silva entrou em linha nos Apeninos,
“próximo à Linha Gótica, linha de defesa preparada por um exército que,
na época, era o melhor exército do mundo. Substituímos a tropa do 370º
Regimento de Infantaria Americano; só que, no meu caso, com meu pelotão,
com minha gente, não houve uma substituição com passagem de função.
Quando nós chegamos, eles já haviam saído. A rotina era subir morro, des-
cer morro, sem nenhuma experiência de combate em montanha. Os ale-
mães tinham soldados especializados no combate em montanha, os ameri-
canos tinham a 10ª Divisão de Montanha. Nós tínhamos uma infantaria de
planície, mas que era também de montanha, de selva, de neve, de calor... era
de tudo. A infantaria brasileira era de tudo!”

Reprodução: A FEB pelo seu Comandante

Samuel tinha expectativa de como seria o combate, quem tombaria


primeiro, como seria enfrentar metralhadoras e bombas: “Havia incer-

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112 VOZES DA GUERRA

teza e curiosidade em saber como eu iria me comportar diante de uma


situação de combate em frente ao soldado. Seria um covarde? A experi-
ência é que diria. Nos deslocamentos, encontrávamos casas com famí-
lias. As pessoas estavam lá e perguntavam dove andate voi, para onde
estávamos indo. Nós tínhamos ordem para não passar informação ne-
nhuma para os da terra, os civis. Respondíamos não sei, Io non lo so. Per-
guntávamos sobre os tedescos, e eles diziam que haviam passado por
ali havia três dias, tre giorni. Mais adiante, diziam que haviam estado ali
ontem à noite, ieri notte. Aí vinha aquela sensação de estar chegando a
hora... Experiência ninguém tinha, mas tínhamos coragem.”
Hélio Marques relata que o 5º Exército Americano decidira empregar o
escalão avançado da 1ª DIE na linha de frente, como força diretamente su-
bordinada ao comando do IV Corpo de Exército. A artilharia brasileira estava
em apoio direto ao destacamento do qual faziam parte o 6º RI, um pelotão
de carros americanos e um pelotão de reconhecimento brasileiro. Na noite
de 15 para 16 de setembro de 1944, o grupo iniciou deslocamento, em total
escuridão, para ocupar posição nas encostas do monte Bastione. A Unidade
aguardou em posição durante toda a madrugada e manhã seguinte. Depois
de determinar as posições do inimigo, o tenente Ramiro Moutinho, de seu
posto de observação, enviou a mensagem de tiro. Após as 14h, o cabo Adão
Rosa da Rocha acionou o dispositivo e realizou o primeiro tiro de artilharia
brasileiro na Itália, que atingiu com precisão o alvo previsto: Massarosa.
Acervo: MNMSGM

Soldados da FEB recepcionados festivamente em Massarosa

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Ações em combate 113

Hélio destaca sua participação nesse evento: “Eu era o chefe da equipe
de transmissões da 1ª Bateria, a que deu o primeiro tiro da artilharia bra-
sileira na guerra. O pessoal das transmissões sempre ia à frente. Munidos
de um croquis [esboço do terreno], levávamos a ponta do fio ao local deter-
minado, para que, quando a peça de artilharia chegasse à nova posição, já
estivesse estabelecida a comunicação com o PC. Eu era o sargento-chefe da
equipe de transmissões e levava o fio para que o tenente Ramiro, o obser-
vador avançado da bateria, pudesse repassar as orientações e as correções
necessárias ao tiro.”
Enéas Araújo comenta a dificuldade de recordar datas e nomes exatos
de vilas e comunas por onde passaram, pois a região era muito acidenta-
da. Feita essa ressalva, diz que o 1º Batalhão do 6º RI, no dia 16, enfrentou
os alemães e tomou Massarosa, e, no dia 18, Camaiore. Esclarece que, en-
quanto o 1º e o 3º batalhões ficaram na zona de baixo do rio Serchio, ele,
integrante do 2º Batalhão, precisou enfrentar a serra dos Apeninos: “Era
subir, subir, e, a cada cidadezinha que chegávamos, os italianos falavam
que os alemães já tinham passado por lá; só deixavam uma pequena tropa
para retardar o nosso avanço. Quando chegávamos perto, eles se afasta-
vam. Isso foi por vários dias; sempre colocando patrulhas para procurar
naquelas alturas.”
Depois que o Brasil entrou na guerra, Newton Lascalea sempre esteve
na linha de frente: “Meu primeiro combate foi em Massarosa; depois Bol-
zano, Zocca... Naquela cordilheira alpina, estive em muitos lugares, pois
em cima de cada pico daqueles tem uma cidadezinha. Castel d’Aiano, Pie-
tracolora, Belvedere, Monte Castelo, Torre de Nerone e outras que nem
lembro mais.”
João Gonzalez era integrante da Companhia de Petrechos Pesados do 1º
Batalhão do 6º RI, cujo comandante era o capitão Atratino Cortes Coutinho,
que se destaca por sua integridade. Conta Gonzalez: “Entrei em combate
em 15 de setembro. Nesse dia, substituímos uma companhia de america-
nos, cujo comandante era mexicano. Na passagem do comando, meu co-
mandante mandou me chamar, porque eu descendo de espanhóis. Eu falava
alguma coisa em espanhol e entendia muita coisa, mas o mexicano falava
um espanhol meio esquisito... Fiquei na companhia durante o dia; à noite,
fui para a linha de frente. A primeira noite foi triste: de madrugada, estava
tudo quieto. De repente, começou um tiroteio tremendo de metralhadoras.
Temíamos muito a metralhadora deles, que só depois fomos conhecer. Era

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114 VOZES DA GUERRA

uma arma com poder de fogo muito grande. Enquanto a cadência de tiro de
nossa metralhadora era de 250, a cadência da metralhadora deles era de
1.300 tiros por minuto. É quase inenarrável: nos assustou muito.”
Gonzalez era chefe de transmissões e, por isso, estava em constante
perigo. Assim narra sua última missão: “Fui ferido em Camaiore. Houve o
rompimento de uma linha telefônica pelos fogos da artilharia alemã. Nós
apoiávamos a 1ª, a 2ª e a 3ª companhias. O capitão falou: ‘Olha, você precisa
consertar essa linha.’ Eram 11h da noite. Eu falei: ‘Vamos tentar!’ Arrumei
quatro soldados, e pegamos algumas bobinas... Cada bobina tinha 500m de
fio. Saímos! Em um determinado momento, nós estávamos em um lugar
onde caía uma bomba a cada 20 segundos... mas isso é modo de dizer, por-
que caía uma atrás da outra... Eu telefonei para ele [capitão] — andávamos
com a linha na mão para ver onde o cabo estava rompido — e falei: ‘Capitão,
aqui o negócio está muito perigoso. Estou me arriscando e arriscando a
vida dos quatro soldados que estão comigo.’ Então ele disse: ‘O que é isso,
rapaz! Você está com medo? Você nunca demonstrou medo, como é que
agora você não quer seguir?’ Disse a ele: ‘Não é propriamente medo, estou
querendo me precaver e resguardar meus soldados.’ ‘Não, não... Vá em fren-
te’, insistiu o capitão. Ah, mas não andei mais 200m. O estilhaço de uma das
bombas me atingiu no pulmão direito e não vi mais nada. Só lembro que caí
e perdi os sentidos.”
Gonzalez continua: “Eu temia muito as patrulhas alemãs... Antes de sair,
eu havia dito para os soldados: ‘Se nós formos surpreendidos, que cada um
procure se safar, porque não tem como um ajudar o outro nessa hora.’ E o
atingido fui justamente eu... Eles correram, recuaram. Não sei quanto tem-
po depois eu tentei me levantar, mas a hemorragia era muito grande e me
enfraqueci muito; havia perdido muito sangue. Depois de algum tempo, eu
ouvi vozes — assim quando se ouve mal ao telefone... Parecia muito distan-
te, mas estavam próximos. Eu me ajeitando no mato, eles atiraram contra
mim, contra meus soldados, julgando que eu fosse um inimigo. Como eu
não reagi, chegaram perto e me encontraram. Então me carregaram até um
posto avançado de saúde, onde recebi soro ou sangue, e depois me levaram
para um hospital.”
Samuel Silva narra seu primeiro contato com o inimigo: “Íamos
caminhando, descendo um morro. Um soldado carregava a metralhadora;
outro, o reparo; os soldados que vinham atrás, as caixinhas de munição;
o fuzil em bandoleira, cruzado. O sargento vinha igual a um camelo:

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Ações em combate 115

cinto, cantil, binóculo, bússola, lanterna de mão, munição sobressalente,


granadas, capacete de aço, mochila... O cansaço era terrível! Fazíamos
rodízio, e todos acabavam carregando o mesmo peso. Era uma tarde chuvosa,
e nós acompanhávamos a 8ª Companhia e o pelotão do tenente Gelson
Machado. Em determinado ponto da estrada, rajadas de metralhadora!
Achamos até que eram brasileiros, mas as balas traçantes cor de prata,
meio azuladas, passavam riscando. Eu não via nenhum alemão, mas recebia
tiros. A cadência de tiro de nossa metralhadora era tárárárá tárárárá; a
deles parecia o rasgar de um pano. Lá eu conheci os efeitos da metralhadora
alemã, cujo apelido já pegou: Lurdinha!”
Samuel continua: “Rapidamente, o pessoal se abrigou. Eu estava de pé
procurando de onde vinham os tiros, para responder ao fogo. As balas pas-
sando por cima da cabeça. Mas quem disse que o pessoal respondeu ao
fogo? Estavam todos deitados no chão, estendidos. Nada de pegarem a me-
tralhadora. Não teve jeito! Dali a pouco, uma rajada de metralhadora cos-
turou o chão do meu lado; parece que estremeceu a terra. Como havia cho-
vido, respingou barro em mim. Tinha um soldado com fuzil-metralhadora,
que não era do meu grupo. Perguntei se ele tinha visto de onde vinham os
tiros. ‘Estou vendo, sargento! É lá daquele ponto.’ Perguntei se estava vendo
alguém. ‘Não, mas é de lá.’ Disse a ele: ‘Passa fogo para lá; toca tudo!’ Ele fez
isso. Nós estávamos desarticulados. O soldado disse para mim: ‘Sargento,
deita!’ Eu fiquei atrás de uma árvore, controlando os homens. Ninguém se
mexeu. Quando deu um momentinho de trégua, procuramos colocar as ar-
mas em posição, prontas para realizar o tiro. Esse lugar era monte Pedone.”
Samuel ainda destaca que a iniciativa de responder ao fogo foi de
suma importância, pois “se não os acertamos, deu para eles perceberem
que estávamos lá para atirar também e que eles não eram super-homens”.
Eles atenuaram um pouco o fogo de metralhadoras e passaram a lançar
granadas: “Todo mundo deitado, sem se mexer. Já ia começando a escu-
recer. Colocamos as metralhadoras em posição, apontados para o lado de
onde vinham os tiros e reunimos o pessoal para passar a noite... Deter-
minei que os soldados tomassem posição para fazer a segurança. Dali a
pouco, um soldado voltou ‘só para fazer uma pergunta’. Em pouco tempo,
estavam todos de volta. Minha preocupação era de que pudéssemos ser
metralhados todos juntos. Todos voltaram a seus postos, no escuro. Na
minha opinião, nas ocasiões de perigo, de risco de vida, há uma tendência
natural de querer estar próximo ao chefe. Naquela situação, eu mandava

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116 VOZES DA GUERRA

um soldado lá naquela casa para saber se o tenente ainda estava lá. Olha
só... eu também fiz o mesmo. Comecei a perceber isso, ali, no primeiro
contato com o inimigo.”
Enéas estava nas proximidades de Fiano, vilarejo de duas ruas e uma
igrejinha: “Foi ali nosso batismo de fogo. O capitão mandou o sargento Se-
rigato ir até lá com seu grupo. Ele foi e não encontrou ninguém; igreja fe-
chada, nenhum movimento. Voltou e fez o relato ao capitão. No outro dia,
o capitão mandou o mesmo grupo reconhecer o local; somente acrescen-
tou o sargento Onofre, que era o sargento orientador do pelotão. Antes de
tal grupo chegar lá, o capitão soube pelo rádio que os alemães estavam no
morro, mas não deu tempo de avisar a patrulha. Serigato conversou com
um italiano que lhe disse que o povo todo da vila estava escondido no mato,
com medo dos alemães. O italiano disse que tocaria o sino para avisar que
os brasileiros estavam chegando, pois, dependendo do tipo de toque, o
povo deveria permanecer fora ou poderia voltar para a vila; era uma con-
venção que haviam adotado. Quando ele saiu da igreja, após tocar o sino,
os alemães abriram fogo na praça... Foi uma correria daquelas! Serigato foi
atingido por um ricochete acima do olho. Voltaram correndo pela estradi-
nha, mas os alemães não atiraram na estrada, só na praça. Serigato estava
todo ensanguentado; pensou que estivesse cego.”
Enéas diz que faltaram dois soldados; no resto do dia, tudo permane-
ceu em silêncio. À tardinha apareceu um italiano para avisar ao capitão que
ele havia recolhido os dois feridos. Um deles, gaúcho, o Dorneles, havia le-
vado um tiro na perna; o italiano, tirado a bala e feito o curativo. O outro
levou um tiro que furou o capacete de aço; o projétil desviou no capacete de
fibra [o capacete de aço é afixado sobre o capacete de fibra] e saiu por trás e
para baixo, arrebentando suas costas e nádega; estava muito ferido; ambos
foram cuidados por uma senhora, em uma daquelas casinhas.
Enéas foi chamado pelo capitão, que lhe falou: “‘Você reúne seus
homens; eu vou pegar mais alguns para aumentar seu grupo, e vocês vão
buscar os feridos. Vocês vão se deslocar às 7h30min [da noite]. A artilharia
vai bater o morro. Às 8h, a artilharia vai diminuir os tiros, e, nessa hora,
vocês entram na vila e resgatam os dois, com padiolas.’ A artilharia
começou a bater o morro, e eu saí com a patrulha. Eu fui à frente com o
italiano, que ia mostrar o lugar. Quando eram 8h, diminuíram os fogos.
Foi tudo muito bem. O rapaz estava lá, e o pusemos na padiola. Saímos!
Quando entramos na estradinha, eles [alemães] começaram a bater de

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Ações em combate 117

morteiro. Os tiros pegavam todos na nossa frente. Ainda bem que tinha
uma valeta boa, protegida por um barranco. Ficamos mais de hora ali,
e os alemães atirando. O italianinho disse que mais à frente havia uma
curva e uma passagem pelo meio do mato. Fomos rastejando pela beira do
barranco. Depois que pegamos a curva, o difícil foi subir com as padiolas,
pelo meio do mato, mas conseguimos. Eu sei que quando chegamos ao
local onde estava a companhia, a mais ou menos 1km, eram quase duas da
manhã. Quando chegamos lá, já havia uma ambulância à espera. O capitão
nos liberou para dormir. No outro dia, cedo, veio ordem para avançar.
Passamos por Fiano, já sem tiros, pois os alemães haviam recuado.”
Enéas continua: “Passamos por várias cidadezinhas sem encontrar os
alemães. Fazíamos patrulhas, mas sempre nos informavam que os alemães
já haviam passado por lá. Chegamos a Trassilico. Quase no final de outubro,
o capitão me chamou: ‘Você vai fazer uma patrulha que é perigosa. Tem
um coronel partisano [cidadão armado, integrante do movimento de re-
sistência] mais no alto, que vai dar todas as coordenadas de onde estão os
alemães. Leve papel para fazer um croquis. Depois você volta.’ Saímos. Sobe
morro, desce morro, atravessa mata, riozinho... Chegamos ao local depois
das cinco. O coronel disse que estávamos atrasados e me levou até certo
ponto, perto de Garfagnana, onde havia um entroncamento ferroviário. To-
mei nota de tudo. Começou a escurecer, e o coronel perguntou se eu tinha
bússola. Quando disse que não, ele falou que seria perigoso voltar durante a
noite e me aconselhou a pernoitar ali. Reuni meu grupo e disse que era pe-
rigoso, pois podia haver tropa alemã. Eu era o mais ‘criança’, com 20 anos.
Os soldados todos eram mais velhos do que eu. Falei com eles, e disseram
que a decisão era minha. Resolvi pernoitar ali.”
Conforme Enéas, “o partisano arrumou uma espécie de bar, onde pernoi-
tamos. No bar, havia uma saída pelos fundos, na direção que deveria voltar.
Ele falou que todas as noites os alemães patrulhavam a cidade e passariam na
porta do bar onde estávamos. Fomos à casa do partisano, jantamos e toma-
mos vinho. Por volta das 10h, voltei ao bar, e já estava todo mundo dormindo,
menos a sentinela. Antes de clarear o dia, desloquei a patrulha. Quase uma
hora depois, chegamos a Trassilico. O capitão já havia montado outra patrulha
para nos procurar. Ele veio me dar uma bronca, mas eu tinha jeito de falar com
o capitão, e ele não conseguia ficar brabo comigo. Mostrei a papelada que fiz, e
ele pegou o jipe e foi ao comando. Nossa companhia foi até uma cidadezinha,
onde tivemos um descanso de três dias em casas. Até então, não tínhamos

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118 VOZES DA GUERRA

entrado em nenhuma casa. Os donos cederam um quarto para nós, e dormi-


mos lá por três dias.”
Samuel lembra que, ao amanhecer, chegou um reforço da 8ª compa-
nhia e a ordem de deslocamento para Barga. Em seu relato, é fácil perceber
porque nem sempre os pracinhas sabem definir o exato local por onde pas-
saram: “Muitas vezes passamos por lugares que não tinham placa, indican-
do o nome. Depois de passar por Fornaci di Barga, onde havia uma fábrica
de munição, o 6º RI ocupou Barga. Mas, para chegar até lá, perdemos alguns
homens. Entramos em Barga, coluna por um, reparo [da metralhadora] na
frente. O povo saía à rua, olhava, via que não éramos alemães. Eles batiam
palmas e diziam: ‘Liberatori! Liberatori!’ Poxa! Liberatori... Nós estávamos
libertando a cidade deles... Isso encheu nosso peito. Tivemos contato com
a população; as famílias estavam geralmente desfalcadas, pois os homens
se encontravam no combate. Por 10 dias passamos lá, em contato com as
pessoas que nos convidavam para tomar vinho.”
Samuel ressalta que, apesar da descontração, ficavam sempre atentos;
as metralhadoras em posição apontadas para onde estavam se deslocando:
“À noite, foi aquele bombardeio! Gente correndo, gritaria, choradeira. As
mulheres e crianças vinham dizendo: ‘Que medo! O que fazemos?’ Aconse-
lhávamos a entrarem no porão.” Espirituoso, Samuel diz que, “quando os
italianos diziam che paura, dava vontade de dizer eu também! Mas aquilo
não era de brincar não! Aquelas granadas arrebentavam tudo. Era parede,
telhado, pedaço de pau caindo e voando para tudo que era lado... E tínha-
mos que ainda cuidar das metralhadoras, pois sabíamos que depois do
bombardeio vem a infantaria. Isso foi pelo final de outubro. Aguentamos
firmes; ninguém abandonou o posto, e mantivemos a posição ocupada. Ali
eu vi o valor do soldado de infantaria: é aquele que disputa o terreno com
o inimigo, que suporta a pressão. Se ele entrar em pânico, acabou! Ele per-
de a vergonha e se manda; é instinto de preservação da vida. Ele quer é
viver. Nessa hora, ele precisa de firmeza e bom senso para que a coragem
supere o medo.”
Francisco Gomes relata que pararam em um lugar sempre visitado
pelos alemães: “Todo terreno era coberto por castanheiras... Chegamos
lá justamente na época quando as castanhas estavam amadurecendo.
Comemos muitas castanhas naquele lugar. Deslocamos um pouco mais para
frente. Não lembro mais o nome do lugar... Era um planalto — para chegar
até ele, subimos mais ou menos 1.000m. Depois havia uma planície onde

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Ações em combate 119

passamos alguns dias. Ali a chuva nos pegou! De jeito nenhum podia pôr
barraca. Nós tínhamos recebido dois cobertores: já estavam prevendo um
inverno rigoroso, mas não contavam com essa chuva... Um usávamos para
fazer uma espécie de barraca, estendendo-o a uns 30cm do chão. Nós nos
enrolávamos no outro e entrávamos embaixo. Não adiantava muito porque
o cobertor de cima encharcava. A água empossava e acabava molhando
tudo. Passamos uns oito dias naquela situação.”
Em Barga de Garfagnana, Paulo Carvalho sempre acompanhava o te-
nente na condição de mensageiro, com os grupos de combate: “Havia um
soldado chamado Alcebíades [Bobadilha da Cunha], do Mato Grosso; era
muito meu amigo; era aquela amizade gratuita, que não sabemos por que,
e não nos larga... Ele era assim: amigo! Falava guarani e queria me ensinar.
Eu era mensageiro, e ele fuzileiro, mas eu ia junto para todo lugar. Coitado!
Naquele dia, depois de eu ter deixado os prisioneiros alemães na retaguar-
da e voltado para junto da companhia, naquele ataque alemão, ele levou um
tiro na testa e caiu do meu lado; segurou minha mão e disse ‘Paulo...’ e caiu.
Foi uma coisa muito triste... Até hoje eu choro [emoção e lágrimas]. Alcebí-
ades... filho de índios... do Mato Grosso. São as passagens tristes da guerra.”
Paulo Carvalho recorda que, em 7 de novembro, em Barga di Garfag-
nana, dois alemães se renderam: “Eles estavam com duas metralhadoras
Lurdinha. O tenente deu a missão de levá-los para a retaguarda... A pro-
paganda nazista recomendava aos alemães que não se entregassem aos
brasileiros; que nós éramos selvagens, que os mataríamos e não fazíamos
prisioneiros... O tenente Carrão tirou as metralhadoras e os pentes de mu-
nição do peito deles. Eles me olharam meio assustados, e um disse: ‘Non
kaput!’ Quer dizer, ‘Não me mate!’ Eu lhe respondi: ‘Non kaput!’ Ele não
acreditou e repetiu: ‘Non kaput!’ Confirmei: ‘Non kaput!’ Quando os mandei
seguirem em frente, com gestos, eles insistiam: ‘Non kaput!’ Eu sempre con-
firmava... Eles estavam com medo que eu os matasse mesmo. Ofereceram
um cigarro, e eu aceitei para ficar um ambiente mais ameno, menos tenso.
Durante o deslocamento, eles repetiram várias vezes o Non kaput. Até que
chegamos a uma encruzilhada. Eu era meio ruim de caminho e ia virar à
direita. Eles disseram: ‘Non, non, germans, germans!’ Era o local onde estava
a companhia deles. Quer dizer: era para eu seguir à esquerda, se não iria
dar em cima da companhia deles, e eles não queriam voltar para lá. Eu não
sabia se podia confiar neles, mas resolvi acreditar. Se eu não tivesse ido por
onde eles disseram, eu teria sido prisioneiro... Eram dois mocinhos de 17,

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120 VOZES DA GUERRA

18 anos. Deviam estar cansados da guerra. Quando os entreguei ao capitão,


foi um alívio: meu medo era eles tentarem fugir e eu ter que atirar neles.”
Francisco Gomes diz: “Seguimos para Castelnuovo di Garfagnana.
Chegamos à noite e recebemos nosso setor. Passamos a noite ali... Quando
amanheceu, o comandante de nossa companhia achou por bem recuar um
pouco porque a região era muito difícil, com muitos barrancos. Recuamos
e ficamos em uma área onde era difícil até ficar deitado, tamanha era a in-
clinação do terreno. Se bobeássemos, rolaríamos morro abaixo. Passamos
mais uma noite. No terceiro dia nesse local, começou nossa ação. Fomos até
um lugarejo, onde permanecemos algum tempo. O local era muito bonito,
com relva verdinha, uma descida muito bonita; para quem era observador,
como eu, e que gostava daquilo, percebia que ela se estendia por uns 2km.”
Francisco continua: “Quando entramos na vilinha, os alemães já ha-
viam recuado. Cada vez que avançávamos, eles já haviam recuado, para
sorte nossa! Dali fomos até... Havia uma ponte de pedra, que os italianos
chamavam de Ponte do Diabo; era uma ponte estreita, de pedra, com gran-
de inclinação. Deveríamos atravessá-la para chegarmos ao local onde se-
ria nosso próximo ponto de parada: Borgo a Mozzano. Depois da Ponte do
Diabo, nós tínhamos um percurso de mais ou menos 4km para chegar ao
front. Do nada, apareceu um italiano perguntando se conhecíamos Ernani
Lippi... Passava por uns dois ou três e perguntava de novo. Quando pas-
sou por mim, perguntou: ‘O senhor conhece Ernani Lippi?’ Eu disse: ‘Eu
conheço! Conheço muito até!’ Perguntou se ele fazia parte de nossa tropa.
Eu disse: ‘Faz! Só que ele está mais para trás.’ Aí ele completou: ‘Ele é meu
sobrinho. O meu irmão mora no Brasil e escreveu me informando que o
filho dele está aqui.’ Disse a ele para continuar perguntando, pois assim
encontraria o sobrinho. Em uma dessas perguntas, coincidiu de pergun-
tar justamente para o Ernani: ‘O Ernani Lippi sou eu! Mas como é que o
senhor sabe o meu nome, se eu não sou italiano?’ O italiano falou para ele:
‘Eu sei seu nome porque sou seu tio. Sou irmão de seu pai.’ Aí fizeram as
confraternizações, se abraçaram. O tio o convidou para almoçar ou jantar
na casa dele. O Ernani pediu consentimento ao comando e foi autorizado.
Na guerra houve essas coincidências...”
Jarbas Ferreira diz que “os alemães tinham por hábito mudar de
posição; atacavam de um lado e seguiam noutra direção; precisávamos
andar procurando por eles. Depois fomos para Galicano. Ali foi duro,
pois estavam atirando com canhão 320mm; eles estavam nas alturas, e

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Ações em combate 121

nós embaixo. Ficava fácil para eles...”. Benedito Bernardino explica que os
brasileiros usavam uma técnica parecida: “Eu era cabo atirador de morteiro
60mm. Dávamos muitos tiros de inquietação. Assim que atirávamos, já
esperávamos a resposta. Saíamos da posição que estava o pelotão para não
denunciar a posição e para tirar a atenção sobre o deslocamento da tropa.
Fazíamos barulho de um lado, e o pelotão deslocava do outro. Assim que
começávamos a receber tiros, voltávamos para a posição, junto ao pelotão.”

Porreta Terme
Neraltino Santos relata que a artilharia estava acampada em Porreta após
o início de novembro e de lá fazia concentração de fogos sobre Monte Castelo:
“Eu era ordenança, sacristão e carpinteiro, mas no dia anterior ao ataque final a
Monte Castelo o tenente estava procurando voluntários para uma patrulha de
reconhecimento. Fui voluntário.” Na verdade, o tenente estava apenas testando
a coragem dos pracinhas, pois não haveria patrulha nenhuma. Assim, Neraltino
carregou muita munição para as peças de artilharia, que foram de suma impor-
tância para a vitória em Monte Castelo, em 21 de fevereiro. Em Monte Castelo,
os combates seguiam intensos e faziam aumentar o número de baixas. Estava
na retaguarda com a Artilharia, mas o movimento de padiolas com soldados
feridos e mutilados era grande. Segundo diz, seu conterrâneo João Moreira Al-
berto estava entre os heróis que perderam a vida durante as ações que culmina-
riam na tomada do Monte Castelo.
Acervo: AHEx

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122 VOZES DA GUERRA

Acervo: Gen. Ex. Fernando Sérgio Galvão

Comandante e Estado-Maior da AD da FEB, da esquerda para a direita: De pé – Maj


Molina, Cel Ribas, Gen Cordeiro de Farias, Ten Cel Penha Brasil, Maj Lebrão e Cap Gal-
vão. Agachados – Cap Edmundo, Cap Montagna, Maj Tavares, Cap Guterres e Cap Eneas

Neraltino comenta que, “em determinado dia, eu estava lendo um


livrinho de orações, quando as posições da bateria foram atingidas pela
artilharia alemã, em resposta ao nosso bombardeio. Rapidamente deitei
em uma vala rasa para me proteger. Só após cessar o tiroteio, percebi que
estava em uma valeta cheia d’água”.
Ele ainda afirma ter assistido aos episódios marcantes que envolveram
nossa aviação. Um avião brasileiro havia sido atingido e estava caindo. De
repente, viu o piloto pousando de paraquedas. Em outra situação, presen-
ciou aviões alemães perseguindo um avião brasileiro. Depois de muitas ma-
nobras para escapar do tiroteio, o brasileiro deu longo rasante por trás de
um morro. Por incrível que pareça, depois daquela manobra arrojada, os
alemães desistiram da perseguição. Outro momento que guarda nítido na
memória foi um embate travado entre a aviação alemã, que tentava bom-
bardear nossas peças de artilharia, e um ninho de metralhadoras, que pro-
curava rechaçar o ataque.
Raul Kodama narra uma história que comprova ter sido Porreta Terme,
mesmo distante das posições alemãs, alvo constante dessa artilharia, por
abrigar o QG da FEB: “Eu fazia o serviço de coleta de material de manuten-
ção e levava o pessoal do pagamento. O capitão falou: ‘Kodama, já que ama-

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Ações em combate 123

nhã você vai fazer coleta, poderia levar o pessoal para tomar banho...’ Eu lhe
respondi: ‘Ah, pode ser.’ No dia seguinte, preparei tudo e levei os soldados.
Enquanto fazia a coleta, eles foram para o banho. Quando cheguei, fiquei
esperando eles voltarem. Foi quando começou o bombardeio... Fui ferido.
Passava um jipe também. O estilhaço degolou o oficial — acredito que era.
O corpo ficou sentado no jipe, e a cabeça caiu. Como era em uma ladeira, a
cabeça do homem foi parar na beira da estrada. Vi aquele cenário... Eu quis
andar e não pude. Feriram minha perna, então saí rastejando. O soldado
Cortez disse que era para ir embora, porque viu o caminhão recolhendo os
feridos... Aí veio o caminhão e me levou para o hospital. Fui para Pistoia,
Livorno, Nápoles e depois Nova Orleans, nos Estados Unidos.”

Porreta Terme – Fios telefônicos chegam à cidade. Na base inferior, viatura da FEB,
com o emblema do Cruzeiro do Sul, junto a uma viatura norte-americana

Monte Castelo
A partir de 24 de novembro, foram feitas quatro tentativas infrutífe-
ras para conquistar Monte Castelo. Duas foram realizadas em conjunto
com o exército norte-americano e duas por tropas exclusivamente bra-
sileiras. Após longa pausa imposta pelo rigoroso inverno, durante o qual
não cessaram as atividades de patrulhas, a FEB partiu para a 5ª tentativa,
em 21 de fevereiro de 1945, conquistando o até então inexpugnável pon-
to de defesa alemão.

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124 VOZES DA GUERRA

Reprodução: A FEB pelo seu Comandante

A explicação de Francisco Gomes resume a importância do monte


que desafiou os brasileiros até 21 de fevereiro de 1945: “Monte Castelo
era uma fortificação natural. Os alemães estavam como que no cume de
um cone; de lá tinham comandamento [visão e possibilidade de fogos]
sobre o terreno à frente e à volta deles. O Monte Castelo proporcionava
uma vista perfeita de todo o vale.” Cabe acrescentar que o morro havia
sido fortificado pelos alemães e contava com uma rede de trincheiras
interligadas a várias peças de artilharia e a posições defensivas, locali-
zadas na encosta oposta à direção de ataque das tropas aliadas.
Ivan Alves ressalta: “De Silla até tomar posição na base do Castelo,
em Bombiana, foi muita chuva e muito barro. Para subir até lá, a turma
sofreu muito; caminhamos quase a noite inteira. Chegamos à base de
partida pelas quatro da madrugada e trocamos postos com os que esta-
vam lá [norte-americanos]. O pessoal estava completamente extenuado,
porque a subida era muito acentuada. Às cinco para as oito, a artilharia
começou a atirar e avisou aos alemães que iríamos atacar. Quando co-
meçou o ataque às 8h, o batalhão largou e foi para frente. Já no princípio
houve muitas perdas, com gente ferida pela metralha... Meu amigo Nil-
son Ramos, companheiro desde o grupo escolar, morreu lá...”
Ivan recorda que a 8ª Companhia do 3º Batalhão fez bonito nesse ata-
que: “Chegamos a subir parte do morro... Os alemães haviam retomado o

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Ações em combate 125

Monte Belvedere justamente na noite de 28 para 29 de novembro. No dia 29,


Abetaia, localizada na base do Monte Castelo, estava desocupada, tanto que
não tivemos dificuldade ao passarmos por lá. Aquilo era “terra de ninguém”,
ou seja, era uma área em que os alemães iam, e nós também, mas sempre
em patrulhas. Nesse ataque, muitos deixaram o capote de lã pelo caminho;
encharcado, ficava muito pesado e dificultava demais a progressão.”
Ivan continua: “Em 2 de dezembro, o 1º Batalhão do 11º RI entrou em
posição. Era sua primeira ação no front; todo mundo inexperiente. Nós já
estávamos lá desde o dia 29; já estávamos escolados, mas o 1º Batalhão ha-
via chegado naquele dia. Os alemães, de cima do morro, viam tudo e fizeram
um ataque violento durante a noite inteira. O 1º Batalhão estava à nossa
esquerda, porque depois do dia 29 mantivemos a posição. O capitão [nome
preservado] não teve moral para segurar sua tropa; se o comandante está
com medo, imagina como fica o soldado... Houve um recuo geral. Houve
gente que foi parar em Silla. Mas os alemães só queriam mesmo dar um
susto, porque eles não ocuparam a posição.”

Nesse esboço é possível visualizar os locais onde se passaram muitas das histórias
narradas neste capítulo

Sérgio Pereira participou dessa ação: “Eu era da 1ª Companhia do


11º RI. Era o meu primeiro combate em Monte Castelo, e fomos derrota-

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126 VOZES DA GUERRA

dos. O comandante da companhia largou a companhia e saiu correndo;


abandonou seu pessoal e deu no pé. Ali foi o verdadeiro “salve-se quem
puder”; houve uma debandada geral... Ele [o capitão] justificou a retirada
e alegou que não tinha munição, que não tinha peito de aço... mas foi medo
mesmo; em vez de enfrentar, ele se mandou. Ele foi covarde, pois deixou a
companhia e veio embora.” Divaldo Medrado estava próximo ao capitão: “Eu
lembro que ele disse para o tenente: ‘Olha! Vamos fugir daqui, porque se não
não sobra nenhum de nós para contar esta história.’” Entre os pracinhas a
companhia passou a ser chamada de Laurindo, alusão a um verso de um
samba: “Laurindo desceu o morro...”. Sérgio Pereira diz que, “perto dos inte-
grantes da companhia, ninguém tinha coragem de brincar sobre esse fato”.
Brincar com coisa séria e com homens armados seria no mínimo insensatez.
Geraldo Taitson, da 3º Companhia do 1º Batalhão do 11º RI, lembra:
“Minha primeira ação em combate foi em Casa Guanella, em 1º de dezembro.
Os alemães souberam pelos italianos que havia uma tropa recém-chegada no
terreno. Eles decidiram fazer grande patrulha para lutar contra nós. Lutamos
das 22h às 5h. Os alemães atacando, e nós defendendo. O capitão Hésio,
comandante da companhia, procedeu muito bem: lutou bravamente ao lado
de seus comandados. Nessa noite, eu, um atirador de morteiro 60mm, dei
mais de 100 tiros contra os alemães que estavam nos atacando, mas no fim
precisamos recuar, em razão do fracasso da 1ª e 2ª companhias, que acabaram
retraindo desordenadamente. Eles [os comandantes] abandonaram suas
companhias na linha de frente e retraíram. As duas companhias tiveram seus
comandantes substituídos e submetidos a Conselho de Guerra.”
Para Ewaldo Meyer “os alemães eram especialistas em inquietação.
Mesmo distantes, usavam a técnica de atirar no chão, o que dava a impres-
são de estarem bem mais perto do que estavam. Os brasileiros debandaram
em pânico”. Porreta Terme distava uns 6km do front: “Eu cheguei a pegar
um soldado na porta da casa. Nós estávamos com o QG, abaixados em po-
sição de tiro. Ele virou para mim e disse, com os olhos esbugalhados, em
estado de choque total: ‘Sargento, abaixe que o tedesco vem aí!’ Não foi fá-
cil, mas o comandante do RI precisou reorganizar tudo. A 3ª Seção também
colaborou; para os americanos não poderia parecer uma debanda. Aquilo
ficou restrito à nossa tropa; isso nem ressoou junto aos americanos.”
Cleto Pellegrinelli recebeu o batismo de fogo na noite de 2 para 3 de
dezembro. “Eu era do pelotão de petrechos da 3ª companhia [chamavam
de petrechinho, porque o armamento é de calibre menor]. Meu comandan-

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Ações em combate 127

te era o tenente Antonio Linhares, oficial R/2. Minha companhia estava na


reserva, pronta para apoiar o pessoal que estava na linha de frente, mas o
alemão descobriu que a tropa posicionada ali era nova e resolveu atacar.
Nesse ataque, o subcomandante de minha companhia foi ferido. Eu estava
junto ao tenente Linhares protegendo o comando. O tiroteio foi tremendo,
e ninguém estava esperando por aquilo. Para nós que estávamos chegan-
do, foi uma surpresa terrível. Tiroteio, correria. Houve até um fracasso lá
na frente... O comandante de minha companhia entrou em contato com o
comandante do batalhão e se dispôs a seguir para a linha de frente, para
reconquistar a posição, mas ele [comandante do batalhão] achou por bem
que não. Quando clareou o dia, percebemos que todas as posições à frente
haviam sido perdidas. Estava um caos! O tenente Linhares foi para o subco-
mando da companhia, para o lugar do capitão ferido, e eu fiquei no coman-
do do pelotão de petrechos desde aquele dia até meados de janeiro.”
Acervo: MNMSGM

O Monte Castelo coberto pela neve, ainda sob o domínio alemão

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128 VOZES DA GUERRA

Ainda segundo Ivan Alves, “no dia 12 de dezembro, em mais uma ten-
tativa brasileira de tomar o Castelo, os alemães fizeram um contra-ataque
ao 1º Batalhão do 11º e outro batalhão do 1º RI. Meu batalhão estava na
reserva. Era uma época de muita chuva e muita lama; era difícil progredir”.
Tal episódio ficou conhecido como “Os Dezessete de Abetaia”. Na verdade,
o número de brasileiros mortos foi maior. Os corpos não puderam ser res-
gatados, pois a operação poria mais vidas em risco, permanecendo insepul-
tos, cobertos pela neve, até a FEB tomar o Monte Castelo.
Divaldo Medrado integrava o 2º Pelotão da 1ª Companhia do 1º Bata-
lhão do 11º RI. Em suas palavras é fácil depreender a brutalidade do com-
bate em Abetaia: “Foi necessário um esforço muito grande para vencer o
frio, o barro e o fogo inimigo... Ver um companheiro tombando causa uma
dor sem explicação. É o pior momento da guerra! Um companheiro cai a
seu lado, pede socorro, e você não pode oferecer porque está com as vis-
tas voltadas para o inimigo. É uma dor muito grande estar nessa situação.
Fazíamos de tudo para atender a um companheiro ferido na medida do
possível, mas sabíamos que não podíamos tirar a atenção do que estava
à nossa frente, se não também seríamos eliminados. Devíamos acionar os
enfermeiros para cuidar daquele ferido.”
Medrado continua: “Quando tomei os tiros em Abetaia, nas raias do
Monte Castelo, a impressão que eu tive era de estar morto. Só quando al-
guém me chamou pelo nome é que eu percebi que continuava vivo. Foram
13 tiros que me acertaram... Arrebentaram a omoplata, a clavícula e o úme-
ro. Fiz o curativo, mas um ferimento nas costas não foi bem fechado, e per-
di muito sangue. Quando cheguei ao posto de atendimento médico, já não
conseguia andar. Fui amparado por companheiros que me levaram para
dentro. Os padioleiros fizeram o primeiro atendimento. Depois me levaram
para um posto médico, com maiores recursos. Credito isso a Deus; é ele que
nos dá a vida e pode tirá-la quando quiser.”
Sérgio Pereira participou também dessa tentativa de tomar o
Monte Castelo dos alemães. Assim narra sua participação na ação em que
seu comandante, o mato-grossense João Tarcísio Bueno, foi gravemente fe-
rido: “O capitão estava em combate, peito a peito, muito próximo do inimi-
go. Ele estava à frente da companhia, a meu lado quando caiu. Pegaram-no
feio mesmo! Arrebentaram as costelas com uma metralhadora... Os outros
voltaram. Eu enfrentei o desafio: não voltei; fiquei ao lado dele. Depois o co-
loquei nas costas e fui trazendo, até onde ele pudesse ser socorrido.” Sérgio

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Ações em combate 129

não sabe precisar a distância que carregou seu comandante, mas acredita
não ter sido muito; entregou-o aos padioleiros, que o conduziram ao hos-
pital. O capitão Bueno foi evacuado para o Brasil, onde se recuperou dos
ferimentos. O soldado Sérgio, pelo feito, não mais foi destacado para o front
e passou a trabalhar no posto de comando da companhia, na retaguarda.
Com humildade característica dos autênticos heróis, passadas quase
sete décadas, Sérgio lembra: “Foi uma ação normal! Era a missão a ser cum-
prida. Eu era ordenança dele, e era o meu dever!” Em poucas palavras, resu-
me um feito memorável, eternizado na seguinte Citação de Combate:

Soldado Sérgio Pereira — 11º RI — Várias tentativas se fize-


ram para reconduzir às nossas linhas o capitão João Tarcísio
Bueno, comandante da 1ª Companhia do 11º RI, gravemente
ferido. Em local tão perigoso, batido facilmente pelo inimigo,
essas tentativas frustraram, e as patrulhas organizadas re-
gressaram sem o ferido. Na madrugada do dia seguinte ao do
combate, silenciosamente, sozinho, parte o soldado SÉRGIO
à procura do seu comandante de companhia. Ordenança que
era do capitão Bueno, havia apenas poucos dias. Parte e vol-
ta transportando o oficial ferido até o ponto onde pudesse ele
ter assistência. Mais que a decisão pessoal, vejo nesse gesto do
nobre soldado SÉRGIO a dedicação de subordinado pelo seu
superior, qualidade primacial na tropa. Para que seu esforço
atinja o objetivo máximo, é magnífico exemplo de dedicação
ao chefe, que tenho a mais grata satisfação de apontar à FEB.
(Em 14-12-944).
Gen. Div. J. B. Mascarenhas de Moraes — Cmt. do 1º Esc. da
FEB e 1ª DIE.

José Cândido também sofreu o batismo de fogo em Monte Caste-


lo: “O combate de 12 de dezembro de 1944 foi feroz; o mais terrível dos
ataques...” Os alemães não davam trégua. Protegidos em suas casama-
tas, atrás de linhas de mina antipessoal, estavam sempre a postos para
recepcionar os brasileiros. Para Cândido a dor de perder amigos em
combate é incurável e latente: “Ver um pelotão sendo esfacelado é ter-
rível! Foi a maior tristeza que vivi. Enquanto eu viver não vou esquecer
daquilo. Foi de cortar o coração... A lembrança daquele dia permane-
ce viva; ela está gravada para sempre no coração de quem esteve lá.
Quem fez parte daquele combate e continua vivo há de se lembrar dele.”

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130 VOZES DA GUERRA

Abrigo alemão

Ivan prossegue: “No dia 29 de dezembro, uma patrulha do 2º Pelotão


da 8ª Companhia surpreendeu a guarnição de uma casamata alemã;
estavam todos dormindo. Levantaram o lençol branco que cobria a
entrada da casamata e jogaram uma granada. Quando saíram, prenderam
todos. Recolheram armamento e conduziram todos os alemães para a
retaguarda. Era o sargento Nilo, o cabo Gil e seus soldados. Foi um sucesso!
Fizeram cinco prisioneiros, e fazer prisioneiros era a maior glória para
uma patrulha.”
Há uma regra da física que demonstra ocorrer para cada ação uma rea-
ção equivalente. Acontece que os alemães não seguiam tal regra à risca: a rea-
ção veio muito mais forte! Ivan diz que “na madrugada de 2 para 3 de janeiro,
os alemães resolveram dar o troco. Vieram atacar o morro Dell’Oro — que
chamávamos de morro de louco — com uma patrulha forte. A turma resistiu,
mas o sargento Lírio foi ferido nesse ataque alemão; não morreu na hora,
mas foi para o hospital e morreu três, quatro dias depois”. Severino Oliveira,
que também permaneceu naquela temida região, afirma que lá havia uns oito
alemães mortos: “Os cadáveres eram preservados pelo gelo. Quando esquen-
tava, seus rostos apareciam, mas não apodreciam porque estavam no gelo.
Que oito dias difíceis aqueles...! Os italianos faziam comida, mas as moscas
sentavam nos cadáveres e vinham na comida... era difícil comer. Então falei
para o tenente para dar um jeito naquilo. Nós não podíamos sair dali; então
ligamos para o batalhão, e vieram um capelão e mais cinco padioleiros. Eles
movimentaram aqueles cadáveres, e nós permanecemos lá.”

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Ações em combate 131

O rigoroso inverno daquele ano trouxe providencial pausa nos comba-


tes. Contudo, José Cândido recorda não ter experimentado a satisfação de
comemorar o Natal de 1944: “Meu regimento estava na linha de frente; no
almoço serviram peru, e houve um bombardeio dos alemães. Depois do Na-
tal, sempre que tinha peru no almoço, fazíamos brincadeira, dizendo ‘hoje
tem confronto’. Naquele dia os alemães nos brindaram com fogos de arti-
lharia; em retribuição também receberam presentes da nossa.”
Cleto Pellegrinelli conta que a partir de janeiro de 1945 mudavam
de posição constantemente: “Nesse período, tivemos muito contato com
o inimigo em patrulhas. Minha primeira patrulha foi na região de Gag-
gio Montano, na fazenda Cá di Chei. Recebi a missão de tentar fazer pri-
sioneiros, na região de Guanella. Foi minha primeira missão importante
na guerra. Escolhi os homens que iriam comigo na patrulha, inclusive
um tenente italiano [partisano] que conhecia muito bem a região. Eu me
senti mal naquela situação, pois ele era oficial e estaria sob o meu co-
mando... Questionei com meu comandante, e ele disse: ‘Você é que vai
comandar a patrulha; ele vai apenas ajudar. Não tem problema, não!
Você é que está comandando.’ O tenente foi conosco... Avistamos uma
casa. Tomei todos os procedimentos; deixei os homens de segurança,
com as metralhadoras em posição, concentrando o poder de fogo. Cha-
mei o italiano e combinei que eu iria por um lado, e ele por outro. ‘Vamos
abrir as portas e entrar... Se houver resistência, fogo!’ Eu estava com uma
metralhadora de mão. Recomendei novamente os procedimentos para a
turma; arrombamos as portas. Não encontramos resistência nenhuma e
entramos. Assustamos muito porque tinha barulho lá dentro; achei que
fosse gente, mas eram carneiros. Não tinha ninguém em casa, mas havia
restos de comida na mesa...”
José Cândido relata que, em determinada patrulha, o capitão Ávila
Melo se despediu de cada integrante, pois sabia que a missão era muito
perigosa: “Os soldados não queriam ir, mas não tive a menor dúvida de
que iríamos cumprir bem a missão. Ficamos 24 horas em posição, vendo
os alemães diretamente, a menos de 1km de distância, com telefone ligado
e dando as coordenadas para a retaguarda. Ouvia-os falando e municia-
rem as armas; e eu ali, calado, não podia nem me mexer. Eu senti que eles
estavam atirando com os canhões sobre nossa retaguarda. Pelo telefone,
me informaram que uma granada havia atingido dois companheiros nos-
sos [Adalberto C. Melo, que morreu, e Eliaquim Araújo, que ficou ferido].

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132 VOZES DA GUERRA

Naquele momento, deu vontade de atacar os alemães; eu iria morrer, mas


mataria alguns... Mas os companheiros me acalmaram. Fiquei indignado
com aquela situação. Tinha medo, mas ele desaparecia nessas horas.”
Acervo: MNMSGM

Ação de patrulha na neve

Severino Oliveira confirma que esse foi um período de muitas patru-


lhas e também de captura de alemães, como relata: “Em uma estrada, vi
dois cidadãos alemães; entendi que estavam se rendendo. Falei com eles
em italiano: ‘Venire qua.’ Eles se aproximaram, e os conduzi até o tenente.
Para comer só tinham um pão velho, preto... Eu era sargento-auxiliar do
pelotão. O pior foi que o tenente mandou que eu fosse com esses dois até
o posto de comando... Eu fui! Não trocamos uma palavra sequer. Entre-
guei-os ao capitão Everaldo. Então este determinou que eu guiasse a 6ª
Companhia do 6º RI, que iria se deslocar à frente e à nossa esquerda...
Quando entramos na terra de ninguém, eu podia ver as casamatas deles
[alemães]... De repente, uma área demarcada por fitas: eram booby traps
deixadas pelos alemães. Atravessei aquilo, confiante de que Deus é mes-
mo brasileiro. Disse ao sargento: ‘Muito cuidado porque isso é perigoso.’
E ele: ‘Que nada, nós somos do 6º (RI).’ Quando todo mundo havia se aco-
modado, as granadas começaram a cair; a bomba estourava lá em cima,
abria o paraquedas e clareava tudo. De novo estava sozinho na estrada e à
noite... Ainda hoje tenho que rir quando me lembro do sargento que disse
ser do 6º... E eu era do Sampaio [1º RI]!”

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Ações em combate 133

Vasco Ferreira narra que o oficial substituto do tenente Moura era


inexperiente e nervoso: “Esqueceu uma porção de coisas na primeira
patrulha. Nem rádio nós levamos! Depois que chegamos ao destino, ele
percebeu que havia esquecido a carta topográfica. Mandou-me de volta,
sozinho, para entrar em contato com outra companhia de fuzileiros, a fim
de buscar uma carta. Eu voltei! Não sabia senha [sinal de reconhecimento],
nada... A minha sorte foi eu ter dado de frente com um grupo de combate,
cujo comandante era um sargento que eu tinha conhecido no 13º RI, em
Ponta Grossa, dois anos antes. Imagina! O tenente havia mandado que eu
fosse sozinho... Então, esse sargento pegou dois soldados de seu grupo, e
eles me levaram de volta ao meu pelotão.”
Ivan Alves diz que permaneceu por dois meses na base do Monte Cas-
telo, sem descanso: “Nesse front era bom, pois dava até para tomar banho,
na estrutura que os americanos montaram. Antes disso, nosso banho era
com neve derretida em uma lata. Em 17 de fevereiro de 1945, passamos
a posição para a 10ª Divisão de Montanha Americana, já com a intenção
de atacar o monte Belvedere. O batalhão não participou do ataque final ao
Monte Castelo; ficamos na reserva.”
Acervo: MNMSGM

Soldados brasileiros. No horizonte, o Monte Castelo

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134 VOZES DA GUERRA

Severino Oliveira declara que até a noite de 20 de fevereiro haviam pas-


sado oito dias na casa de um camponês, aguardando ordem para atacar o
Monte Castelo. Severino saía todas as noites para levar recados ao coman-
do, pois estavam sem ligações — o rádio portátil não estava funcionando.
Na madrugada de 21 de fevereiro, a 10ª Divisão de Montanha, pela esquer-
da, atacou Belvedere: “Rapaz! Os americanos soltaram cada bomba... o des-
locamento de ar quebrou os vidros de ‘nossa’ casa... Logo que andamos,
encontramos a primeira casamata. Os alemães começaram a nos metralhar,
mas, por motivo das dobras do terreno, conseguimos nos abrigar. Eram cin-
co alemães; esses nós aprisionamos; não matamos ninguém. Até ali tudo
bem; nossas armas ainda estavam puras.”
Em seguida, deslocaram-se até Mazzancana: “Cota altíssima... Paramos
nesse morro — capela de Ronchidos. Os alemães haviam perdido para os
americanos uma posição onde guardavam os mantimentos [comida e mu-
nição também]. Eles deixaram para trás o material de sapa e muito feno. A
turma chegou, tratou de cavar os buracos e se acomodou. Eu e o tenente
ficamos andando por lá... Vi um tiroteio com balas traçantes; me joguei em
um buraco. Imediatamente, um monte de feno pegou fogo e provocou um
incêndio em todo o paiol de munições e granadas alemão. Foi o maior car-
naval que já vi na minha vida...”
“Entre cinco e cinco e meia da madrugada do dia 21, o pelotão estava
pronto para partir para o ataque ao Monte Castelo... Foi um dia difícil; nunca
o esquecerei. Quantos tiros! Quantas Granadas! Elas explodiam e jogavam
terra e restos de troncos sobre nós. Só havia mais troncos sobre o Monte
Castelo. Chegou um momento que meu capacete de aço caiu em um abismo.
Aquilo era um morro do inferno mesmo. Fiquei só com o capacete de fibra...
O capitão Everaldo marchou com nosso pelotão... Chegou um momento de
discussão entre o major bambino — era como chamávamos o major Uzêda
— e o capitão, porque nós desviamos do eixo do Monte Castelo. Às cinco e
tanto da tarde, um dos soldados nossos deu um tiro para cima, com uma
granada verde, assinalando objetivo conquistado!.”
Conforme José Cândido, “em 21 de fevereiro de 1945, aconteceu uma
de nossas maiores vitórias, dessas que o nosso Exército pode se orgulhar e
precisa comemorar. O Regimento Sampaio foi designado para tomar parte
do ataque. Só quem estava lá pôde testemunhar a valentia do soldado
brasileiro e a coragem que Deus nos deu para enfrentar aquilo, e eu estava
lá. Fui com um tampão em um olho, pois dias antes, na explosão de uma

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Ações em combate 135

granada, fui ferido no supercílio. O capitão disse que eu não precisava ir


com a companhia, que me dispensaria. Mas insisti; queria ir e fui! Naquele
dia, o medo era grande, mas parece que Deus nos deu ainda mais coragem
e uma disposição ainda maior.”
Cândido continua: “Meu comandante de pelotão era o tenente
Jorge. Lembro que estávamos na encosta do morro... Parece que estou
vendo os aviões da FAB passando por cima do morro, bombardeando
as posições alemãs. Nós, devagarzinho, subimos o pé do morro... A
artilharia trabalhou bem, metendo fogo sobre as locas dos alemães...
Pelo rádio, o capitão disse para o tenente avançar, mas não dava,
porque a artilharia estava ‘batendo’ a área à nossa frente. Quando a
artilharia desviou os tiros, avançamos. Nessa ação, houve um caso
muito especial. O soldado Arlindo, de nossa Companhia (7ª), encontrou
uma metralhadora Lurdinha alemã abandonada. O soldado alemão
havia saído da posição para levar um recado a um oficial. O Arlindo a
virou para o lado dos alemães e ajudou a proteger nossa progressão.
Avançamos! Muitos alemães debandaram; os que lá ficaram foram
feitos prisioneiros”.
Acervo: MNMSGM

Soldados brasileiros fazem pausa na subida do monte Castelo

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136 VOZES DA GUERRA

Ewaldo Meyer assistiu ao ataque final ao Monte Castelo do posto de


observação da divisão, com os comandantes da infantaria, da artilharia e
de unidades americanas. Confirma a eficácia da aviação brasileira contra
as posições alemãs: “De onde eu estava dava para ver perfeitamente toda a
progressão do pelotão. O alemão atirava de metralhadora, e todos se abai-
xavam; era a técnica própria do pelotão. O drama era este: víamos o pesso-
al sendo metralhado... Abaixavam, levantavam e seguiam em frente... Uns
abaixavam e não subiam mais: haviam sido atingidos.”
Ivan Alves explica que, depois da tomada do Monte Castelo, seu bata-
lhão reforçou o 1º RI, que havia conquistado o morro e estava desfalcado:
“Ficamos lá pouco tempo. Depois de substituídos, fomos para o monte della
Torracia e capela de Ronchidos, onde os americanos tinham atacado.” Ru-
bens Andrade diz que, depois de Monte Castelo, voltou com a companhia
para Porreta: “Meu último banho havia sido em dezembro; portanto, há 60
dias. Como era muito frio, usava duas ceroulas e duas calças. Quando tirava
aquela roupa toda, precisava cuidar para não arrancar a pele. Tomei ba-
nho em uma banheira de mármore. Quando tinha terminado, aquela sujeira
toda estava na banheira... Foi preciso trocar a água, lavar a banheira e tomar
um segundo banho para ficar limpo.”
Acervo: AHEx

Patrulha brasileira em deslocamento na região de monte Castelo

Rubens descreve uma ação em Rocca Cornetta: “O ambiente era terrí-


vel; os alemães bombardeavam as posições brasileiras de dia e à noite, não
os deixando dormir e não permitindo a chegada de suprimentos. No quarto
dia, nos reunimos. Como não nos deixavam dormir, questionávamos: A que

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Ações em combate 137

hora será que eles dormem? De dia, era a resposta mais óbvia.” Então, re-
solveram fazer uma patrulha: “Chegando lá, estavam todos dormindo; não
havia nem uma sentinela. Íamos cutucando cada um com o fuzil; quando
acordavam, mandávamos com gestos — linguagem universal que todos en-
tendem — para se levantarem e ficarem quietos. O quinto alemão, que já
havia acordado, ao ser cutucado reagiu pegando o fuzil. Para não receber-
mos tiro dele, não nos restou alternativa... Com o tiro, todo mundo acordou.
Foi um alvoroço... Conseguimos voltar à nossa base. Informamos ao capitão
que tínhamos quatro prisioneiros. O capitão perguntou quem havia man-
dado fazer prisioneiros. A justificativa foi a de que havia quatro dias não
nos deixavam sossegados, e tínhamos resolvido acabar com o sossego deles
também. O capitão mandou buscar os prisioneiros, e eles foram evacuados
para a retaguarda.”
Rubens prosegue: “Nesse mesmo dia, fomos substituídos. Saímos da po-
sição e fomos até uma estrada. O pessoal do rancho estava lá. O cozinheiro
fritava ovos e os colocava em um tacho de cobre. Eu, morrendo de fome, olhei
de um lado e de outro, dei de mão em um ovo e o joguei na boca. O ovo estava
quente... Manobrar aquele ovo na boca não foi fácil... Ele batia em um lado
da boca e queimava; no outro, pelava... Engoli o ovo inteiro, sem mastigar.
Depois, entrei na fila... Eu era o último. Quando chegou minha vez de pegar
um ovo, o cozinheiro disse que havia fritado um para cada, que não estava
entendendo o que havia acontecido... Eu disse para ele: ‘Você não sabe, mas
eu sei!’ O castigo veio a cavalo, pois, em vez de ter apreciado um ovo, acabei
todo queimado.”
Nos fragmentos do relato da enfermeira Virgínia Maria de Niemeyer
Portocarrero, datado de 21 de fevereiro de 1945, é possível compreender
a crueldade dos combates em Monte Castelo: “Enfermaria cheia. Quanta
mutilação! Quanta miséria... Na sala de operações o aspecto é terrível. Pe-
daços humanos recolhidos em carrinhos de mão e enterrados em enormes
crateras nos fundos do hospital. Que coisa terrível é a guerra... As equipes
médicas se desdobram em operações sucessivas. Os sargentos enfermeiros
e nós, enfermeiras, trabalhando em horários cansativos e extenuantes... Es-
tou escrevendo estas notas depois da noite horrorosa que passei. Larguei
o serviço às 7h e já são 22h, e o sono não vem. As mutilações me tiraram
o sono... As chegadas foram em massa. Como sofri! São homens que nunca
vi. Entretanto, sofro por eles... Que competência mostraram os cirurgiões
brasileiros e americanos misturados na sala de operações salvando vidas!”

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138 VOZES DA GUERRA

Torre de Nerone
Torre de Nerone era a posição de vanguarda das tropas brasileiras,
onde o contato era direto e constante. Enéas Araújo diz que “a distância en-
tre nossa tropa e a tropa alemã era de menos de 200m em linha reta. Eram
dois morros separados por uma ravina. Aquele era o posto mais avançado
da FEB na região”. Enéas continua: “Em 2 de novembro, Dia de Finados,
saímos da região do vale do Serchio. Viajamos o dia inteiro de caminhão;
passamos por Lucca e Pistoia. À noite, chegamos a Porreta Terme. No outro
dia, seguimos de Caminhão até Silla. De lá, avistamos a serra onde ficam
Monte Castelo, Belvedere e outros. Quando descemos para o vale, os ale-
mães começaram a atirar de canhão em nossa tropa. Quando vi aqueles ti-
ros caindo, pensei: ‘A guerra é aqui mesmo!’ Quase não tinha guerreado até
então; havia feito muitas patrulhas, mas era diferente... Uma das granadas
caiu no 3º pelotão e matou um soldado nosso.”
Reprodução: Gli Eroi Venuti dal Brasile

A Torre de Nerone no início da década de 1940

“Mais adiante, quando chegamos às proximidades de Torre de Nerone,


chovia e estava tudo embarrado... Nosso comandante disse que devería-
mos subir o morro, mas estava difícil. Tentávamos subir, escorregávamos e
descíamos de novo. Lá em cima estavam os americanos. O tenente acertou
com o comandante da companhia para subirmos ao clarear o dia, pois no
escuro estava difícil. Quando começou a clarear, comecei a subir. O coman-
dante do pelotão distribuiu os grupos. Subi, e o sargento americano passou

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Ações em combate 139

o comando da área dele para mim. Eu só queria saber a direção do inimigo.


Ele compreendeu e mostrou onde estavam os alemães.”
Enéas continua: “Naquele lugar, nós passamos mais ou menos 15 dias,
e foram os piores dias de minha vida! Noite e dia, éramos batidos por tiros
de artilharia e de morteiro. Os tiros de artilharia pelo menos passavam por
cima de nós e caíam mais para trás [os brasileiros estavam na contraen-
costa]; a não ser os que batiam na torre, estes jogavam pedras para tudo
quanto era lado. Os de morteiro eram mais perigosos porque caíam em
nosso lado... Pela manhã, eu saía com um soldado, rastejando, para verifi-
car e reparar os cordões de tropeço com alarme, e os outros, com armadi-
lhas, que haviam sido danificados pelas granadas. Um pouco mais à fren-
te ficava um soldado, no posto de observação avançado; os demais, atrás,
tentando dormir. Certa noite, explodiu tudo aquilo... Acordei com nosso
soldado do posto avançado dando tiros; rastejei até o atirador, o soldado
Passarela, de São Paulo. Ele disse que havia visto alemães e abriu fogo...
Quando começamos a atirar de metralhadora, os outros pelotões também
fizeram isso. Foi um tiroteio a noite toda. Ao clarear o dia, rastejei até lá
para ver se havia algum morto. Tudo aquilo estava detonado, mas não deu
para ver se tinha alguém.”
Segundo Enéas, passados alguns dias desse tiroteio, o soldado do posto
avançado veio acordá-lo: “‘Sargento, sargento! Eu chamei o cabo Santana,
que ia entrar no posto de vigilância, e ninguém responde. Está um cheiro
danado de pólvora por lá...’ Fui até lá, chamei e ninguém respondeu. Pus
a mão, e no lugar do capacete não havia nada... Uma granada de morteiro
havia explodido no buraco, matando o cabo e mais um soldado. Mandei o
soldado avisar ao comandante do pelotão que havia dois mortos. Não de-
morou, e apareceram dois padioleiros; ajudei a pôr os dois em uma padiola.
Na descida, os padioleiros escorregaram, e os mortos caíram da padiola.
Desci e esculhambei com eles! Ajudei a recolocar os dois na padiola. No
outro dia, comecei a pensar: ‘Que culpa têm os pobres padioleiros?’ Foram
os primeiros mortos que vi lá no morro. Então, falei ao comandante do pe-
lotão que eu queria conversar com os padioleiros. Não demorou muito, e os
dois vieram rastejando. ‘Vocês viram... Eu esculhambei com vocês...’, falei.
‘Ah, sargento! Nós erramos ao deixar que eles caíssem; nós estávamos com
mais medo do que qualquer coisa. Mas justifica: o senhor está aí, e mor-
reram logo seu cabo e soldado. Nós compreendemos sua atitude.’ Mandei
chamá-los mais para me justificar, se não eu ficaria com aquilo na cabeça...”

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140 VOZES DA GUERRA

Acervo: MNMSGM

Vista do morro praticamente sem vegetação

Enéas continua: “Mas a vida da gente é engraçada... Passados mais dois


ou três dias, eu estava distribuindo comida — toda tarde, um soldado le-
vava uma caixa de escatoletas [latinhas de comida] para serem consumi-
das por nós... Em cima do feijão branco, havia uma camada de gordura que
tirávamos, e comíamos o feijão frio. Até vinha um envelope com café, mas
tomávamos frio, pois não podia fazer fogo para esquentar. Então, eu estava
distribuindo escatoletas... Levantei o peito para fora da toca, a fim de jogar
as latinhas para os soldados. Caiu uma granada de morteiro; não foi muito
longe, a uns 30m. Senti uma batida nas costas. Saí de minha toca e rolei...
Caí no buraco de um soldado do meu grupo: ‘Dá uma olhada aí atrás. To-
mei uma pedrada nas costas, e está começando a doer.’ Ele olhou e disse:
‘Ah, sargento! Tem só um furinho aqui, e está começando a sair sangue...’
Só disse: ‘Eu já sei o que é: estou ferido!’ Comecei a sentir dor de tudo que
era jeito. Pedi ao soldado: ‘Vá avisar ao tenente que estou ferido.’ O tenente
avisou o comandante da companhia, e o capitão perguntou se eu precisava
de uma padiola. Eu disse que não, que dava para correr e caminhar. Mas
então começou a doer muito; já não conseguia mais movimentar o braço,
pois o estilhaço pegou bem no músculo. Não mexia nem os dedos; estava
todo paralisado.”
Enéas prossegue: “Eu sabia onde estava o capitão. Desci o morro dando
lanços e caía só de um lado, sob fogo de morteiro. O instinto dava a impres-
são de que os tiros estavam me seguindo... Quando dei a volta no morro e
fiquei protegido dos fogos, o médico e o capitão estavam me esperando.

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Ações em combate 141

Quando viu o ferimento, o capitão disse que eu tinha sorte, pois havia sido
só de raspão... O médico disse que não, que o estilhaço estava no meu corpo
e que eu teria de ser evacuado. O capitão fez contato com o subtenente que
estava em Silla. Como já estava escurecendo, e a estrada, sob intenso bom-
bardeio, o subtenente não conseguiria chegar. Então, o capitão me deixou
onde estava o telefonista, com um cobertor. Logo chegou o enfermeiro e
me aplicou uma injeção contra a dor. De duas em duas horas, era mais uma
injeção, porque a dor era muito forte. Lá pela meia-noite, chegou um cabo,
auxiliar do subtenente, que foi designado para me substituir no comando
de meu grupo. Era meu amigo, de Caçapava, colega de escola. Eu lhe disse:
‘Olha, Chiquinho! Você não vai subir esse morro agora. Espere amanhecer,
se não você vai levar tiro...’ Ele já conhecia a área, pois sempre vinha trazer
comida. De madrugada, o jipe chegou, e fui evacuado para o hospital. Passei
por vários postos de atendimento. Verificavam o ferimento e me passavam
para o próximo.”
Acervo: MNMSGM

Soldado observa o gelo acumulado na encosta da montanha

Outro que enfrentou os horrores proporcionados pelo inverno e pelos


alemães naquele local foi Jarbas Ferreira, o então cabo Dias: “O desloca-
mento de Porreta para os Apeninos foi realizado de jipe. Peguei a primeira
neve já nos Apeninos. Em Torre de Nerone, nós substituímos os america-
nos. Lá não dava nem para pôr a cabeça para fora da toca porque eles atira-
vam mesmo. Entrávamos na cama-rolo e nos aquecíamos ali, na toca mes-
mo. Quando precisávamos sair, doía peito, doía nariz, doía tudo. No Natal de

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142 VOZES DA GUERRA

1944, segundo o que disseram, a temperatura de dois dias foi -20°C, -18°C,
-17°C, -15°C... Isso era normal.”
Jarbas lembra que deviam estar sempre atentos; os franco-atiradores
alemães eram muito precisos, e o menor descuido poderia ser fatal. Foi o
que aconteceu em 12 de dezembro de 1944, vitimando o soldado Alde-
mar Fernandes Ferrugem: “Esse é um daqueles momentos que jamais é
esquecido por quem o vivencia. Ver um amigo morrendo é muito triste.
Quando acertaram o Ferrugem, eram seis e meia da manhã. Lembro como
se fosse hoje: ele levantou na sua toca e gritou: ‘Cabo Dias, que horas são?’
Eu disse: ‘Seis e meia.’ Foi só um tiro, e ouvi o gemido dele. ‘Ih, acertaram
o Ferrugem’, pensei. Fui rastejando até lá, e ele estava quase nas últimas.
Ele falou para mim: ‘Me dá água!’” Nesse momento crucial surgiu a dúvida
entre seguir a orientação de não dar de beber a um ferido e atender ao
pedido do amigo. Inicialmente Jarbas negou, mas o amigo insistiu: “Estou
morrendo; não quero morrer com raiva de você... Estou sentindo que vou
morrer.” Jarbas enfim cedeu: “Já que ele ia morrer, era para morrer sem
raiva. Dei água! Foi só isso: dei água, e ele morreu. E isso quer dizer que
eu ajudei a matá-lo, porque eu dei água. Depois, tirei tudo do bolso dele, e
mandamos para a família.”
Depois que acertaram o soldado Ferrugem, “um mato-grossense fez
um buraco no morro e ficou por lá vários dias, esperando o franco-atirador
que aterrorizava os brasileiros. Certa manhã, lá veio o alemão...”. Jarbas con-
ta que, depois do tiro fatal, “o alemão ficou lá e foi coberto pela neve. Quan-
do avançamos, o corpo ainda estava lá. Havia sido descoberto [degelo]. Deu
para ver que era casado — usava aliança. No bolso, tinha documentos, uma
fotografia da mulher e da filhinha. Era um cabo, Hugo [preservado]”. Jarbas
descreve como reagiu diante dos horrores da guerra: “Nos primeiros dias,
nem comer direito comíamos. Não dá para comer... Depois de uns três ou
quatro dias, você começa a ficar que nem um animal... Nós acostumamos;
perdemos a noção.”
Francisco Gomes relata que, de 1º de novembro de 1944 até a tomada
do Monte Castelo em fevereiro de 1945, esteve em Soprassasso, que fica
praticamente ao lado da Torre de Nerone: “Enfrentávamos a neve ao ar li-
vre, em uma temperatura de até -18°C. Estávamos no fox hole, como o ame-
ricano chamava, e nos aquecíamos por ali mesmo como podíamos. No dia
que caía neve, se precisássemos sair para alguma patrulha, enterrávamos
as pernas até as coxas... Em uma camada de mais ou menos 1m de neve

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Ações em combate 143

acumulada, o grupo ficava em posição de combate. Antes de cair neve, de


dia, dividíamos o grupo em duas partes: uma ia para um local mais seguro;
a outra ficava na observação. À noite, todo mundo voltava para seus postos
de observação. Fazíamos rodízio entre graduados. Eu revezava com o cabo.
Um ficava até a meia-noite; o outro, até 6h. Depois que caiu neve, permane-
ci em meu fox hole em observação.”
Paulo Carvalho relata: “Andamos por toda região dos Apeninos. Era
morro depois de morro! Não tinha nada além de morros... Chegávamos ao
topo exaustos, sempre carregando a mochila. Para complicar, o frio era hor-
rível, quase -20°C. Caía neve noite e dia, sem parar. Nós ficamos no porão de
uma casa, em Soprasasso; de roupa, tínhamos a nossa e um capote. Minha
meia estava toda puída, e não me davam outra. Eu quase morri de frio...
Ficava deitado no feno, com aquele cheiro de bosta de vaca. Foi um sofri-
mento horrível! Não queira nem saber... De duas em duas horas, trocava a
guarda na frente da casa. Quando saíamos em patrulha ou ficávamos no
posto de guarda, voltávamos cobertos de neve. Na casa, tinha fogo na cozi-
nha. Era tanto frio que dava vontade de entrar no fogo. Às vezes, chegava a
sapecar a roupa.”

Reprodução: A FEB pelo seu Comandante

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144 VOZES DA GUERRA

Castelnuovo
Paulo Carvalho narra um fato ocorrido na região de Marano: “Depois
que voltei para junto do meu comandante com os telefonistas, os alemães
contra-atacaram. Eles haviam recebido uma ordem de Hitler para que todas
suas tropas atacassem os inimigos em todas as frentes. Foi um bafafá. A coisa
foi feia! O pelotão não conseguiu resistir; havia vários alemães com metralha-
dora e fuzis atrás das castanheiras. O tenente informou ao capitão, que mandou
recuar. Ele conseguiu retrair; eu e vários companheiros também. Nós descemos
rolando morro abaixo, e eles metendo fogo em cima da gente... Escapamos, mas
os alemães fizeram 10 prisioneiros só na minha companhia. Esses 10, quando
voltaram para a companhia depois que os americanos os liberaram em Berlim,
eram só pele e osso... Pareciam esqueletos. Eles passavam o tempo todo traba-
lhando e comiam só uma sopa de cascas de batata por dia... Se tivesse demo-
rado mais alguns dias [para serem libertos], acho que todos teriam morrido.”
Cleto Pellegrinelli já não comandava o pelotão quando os brasileiros
tomaram Castelnuovo em 5 de fevereiro, pois havia chegado um tenente
para assumir a função. Mesmo assim, participou da conquista: “Lá foi mais
fácil. Tivemos uma surpresa danada porque o alemão, ao ver que iria per-
der, saiu fora, mas deixou alguns soldados com metralhadora e munição à
vontade. Dava a impressão de que havia uma tropa enorme, em uma eleva-
ção grande, em uma frente bastante ampla. Nossa tropa subia a montanha,
e eles, de lá, metralhavam; dificilmente atingiam porque o terreno nos aju-
dava. A conquista foi muito bonita. Do lado de onde estávamos, assistíamos
aos nossos homens subindo. Os alemães resistiram enquanto puderam. Ao
final, se renderam, foram presos e conduzidos à retaguarda. Eu não subi até
lá, mas assisti a tudo.”

“Três Bravos”
Ao chegarem a Castelnuovo, as tropas brasileiras reencontraram três
pracinhas do 1º RI, até então dados como desaparecidos. Tratava-se do
cabo José Graciliano Carneiro da Silva e dos soldados Aristides José da Silva
e Clóvis da Cunha Paes de Castro, que haviam saído em missão de reconhe-
cimento, no ponto cotado 720, na região de Precaria.
Infelizmente, os três foram encontrados sem vida. Seus corpos repousa-
vam em uma sepultura simples. Sobre ela havia uma rústica cruz de madeira

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Ações em combate 145

com a inscrição “3 Tapfere — Brasil — 24-1-1945” (Três Bravos — Brasil —


24-1-1945). Consta que os alemães não costumavam enterrar adversários
em combate. O fato de o terem feito com esses corpos e a inscrição na cruz
fazem acreditar que os brasileiros tenham se portado com singular coragem
e destemor no cumprimento da missão. Entregaram suas vidas pelo ideal,
ganharam o reconhecimento dos algozes e o respeito de seus companheiros
de farda.
Acervo: MNMSGM

No arquivo do 1º Batalhão de Infantaria Motorizado, é possível veri-


ficar que o Boletim Interno do dia 29 de janeiro de 1945 publicou o desa-
parecimento dos militares desde 26 (posteriormente retificado para 24)
desse mês. O mesmo boletim divulgou a seguinte referência elogiosa, con-
signada aos três militares pelo comandante do 2º Batalhão, major Syzeno,
nos seguintes termos:
Como componente de uma patrulha lançada em plena luz
do dia na região da Cota 720, cuja missão era reconhecer e
ocupar, caso estivesse abandonada, apesar de consciente do
perigo que correria, acercou-se resolutamente de um ponto
suspeito, tombando ferido por granadas de mão e rajadas
de metralhadora. A referida praça portou-se com denodada
bravura; seu exemplo deve constituir estímulo e padrão de
conduta para as praças do Batalhão.

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146 VOZES DA GUERRA

O Boletim Interno do dia 1º de junho retificou o motivo da exclu-


são de tais militares, de “desaparecidos” para “mortos em ação, no dia
24 de janeiro de 1945”.
Outra vítima desse embate foi o sargento Inácio de Loyola de Freitas
Virgolino, que, pouco após ter recebido alta hospitalar por ter se ferido em
ação, voluntariou-se para comandar a fatídica patrulha. Em suas folhas de
alterações, consta que foi considerado desaparecido durante a ação de uma
patrulha de reconhecimento. O boletim de 29 de janeiro elogia-o pela cora-
gem e sangue-frio com que comandou seu grupo, mostrando-se, nas pala-
vras de seu comandante, possuidor de grande bravura e conduta exemplar.
Os mesmos alemães que reconheceram o feito dos bravos soldados que
perderam a vida no confronto conduziram o sargento para uma enfermaria
alemã, onde foi tratado e posteriormente recuperado pelas forças aliadas.1
Foto: Sirio S. Fröhlich

Homenagem aos “Três Bravos” que, “pela coragem e determinação foram


reconhecidos no campo de batalha até pelo adversário”

Vergato
Rubens Andrade diz que, após Monte Castelo, o comando brasileiro
não sabia exatamente onde os alemães se encontravam: “Estávamos em

1
Leia a carta do sargento Virgolino em Brasileiras na Guerra.

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Ações em combate 147

Vergato. Em 6 de março, o comandante da companhia reuniu o efetivo


dizendo que precisava compor uma patrulha que teria a importante mis-
são de fazer contato com o inimigo. Como todos os pelotões tiveram um
desgaste muito grande, ele só iria designar o comandante da patrulha, e
este deveria escolher os homens que o acompanhariam. O tenente esco-
lheu o sargento Perini para comandar. Perini escolheu o [sargento] Teles,
três cabos e ia dizendo os nomes, até formar o grupamento de uns 20
homens. Quando ele falou ‘Rubens!’, pensei que m., me deixa quieto... Eu
seria esclarecedor [soldado que vai à frente para reconhecer e sondar a
área], função que eu nunca exercera. Em outras palavras, eu seria a bucha
do canhão.
Saímos para a missão. Andamos a tarde inteira. À tardinha, avistei uma
casinha com vários montes de feno em volta. Parei e sinalizei para todos
se abaixarem. O sargento gesticulou que eu fosse à frente verificar a situ-
ação. Depois de analisar o ambiente, tracei minha rota. Iria até um monte
de feno, correndo. De lá iria até a casa... Quando eu dei os primeiros passos,
buuuuuum! Você veja; eu que sempre senti a proteção divina desde criança,
com o deslocamento de ar fui jogado para cima e caí de bruços. A primeira
impressão que tive era a de que havia um buraco na frente e um rombo
atrás, nas minhas costas, e a de que os alemães acertaram um tiro de bazu-
ca em mim. Passei a mão no peito e na barriga, e não havia nada; nas costas,
e nada! Foi só então que senti um friozinho na perna. Aí percebi que havia
pisado em uma mina.
No que levantei a perna, não vi meu pé. Minha calça parecia uma
saia havaiana, toda picotada. Atordoado, esfreguei os olhos para ter a
certeza: havia mesmo perdido o pé. Quando você recebe um ferimento,
enquanto não identifica o local, você não sente dor... Quando vi o estra-
go, parecia que alguém estava empurrando um ferro quente em meu
tutano... Que dor horrível! Senti muita sede e entornei o cantil de uma
só vez... Não conseguia me mexer. Nisso, apareceu o Teles dizendo que
o sargento havia mandado ver o que estava acontecendo comigo. Disse
que havia perdido um pedaço da perna, e ele falou que viria até mim. Eu
lhe disse para ter cuidado, pois o terreno estava minado. E ele: ‘Mas eu
vou aí!’ No que ele levou a perna, buuuuuum! Outra mina, outra perna...
Ficamos os dois ali, lado a lado. Quando o sargento Perini chegou, ajo-
elhou a meu lado, pôs a mão em minha cabeça e disse: a guerra acabou
para você.

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148 VOZES DA GUERRA

Eram mais ou menos 16h30min. Então, ele pegou o rádio para falar
com o comandante da companhia: ‘Capitão, estou com dois homens feridos
aqui. Quais são as ordens?’ O capitão disse que a ordem permanecia a mes-
ma: ‘Cumpra a missão! Siga em frente e faça contato com o inimigo. Deixe
os feridos que padioleiros irão até aí resgatá-los.’ Depois, o sargento reuniu
todo mundo e disse: ‘Eu vou à frente, e vocês só pisem onde eu já tiver pi-
sado.’ Nós ficamos ali, esperando os padioleiros. Estava escurecendo. Dali
a pouco, buuuuuum! Alguém pisara fora da pegada do sargento. Enquanto
progrediam, ouvi ainda alguns estouros de minas. Os padioleiros chegaram
pelas 18h. Já estava escuro. Como as explosões haviam denunciado nossa
aproximação, os alemães atiravam bombas que explodiam no ar; uma luz
descia de paraquedas, iluminando toda a área. Durante o deslocamento, os
alemães jogavam bombas sobre nós. Quando ouviam o sibilar de alguma
granada se aproximando, os padioleiros primeiro me largavam no chão, de-
pois deitavam. Eles me levaram até uma estrada, e de lá fui evacuado até um
hospital de campanha.
Acervo: AHEx

Atendimento médico, em hospital de campanha

No hospital, percebi que as coisas podem ser piores do que parecem: eu


não tinha as plaquetas de identificação, que trazem o tipo sanguíneo, e, an-
tes de receber sangue, tiveram que fazer o teste. Depois, fizeram a cirurgia
em minha perna, cortaram o osso e costuraram a pele. Lá tive contato com

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Ações em combate 149

as enfermeiras da FEB; eram como anjos, muito atenciosas. Quando acordei


da anestesia, uma enfermeira estava fazendo procedimentos de rotina em
mim. Perguntei se estava no céu, pois estava vendo um anjo de branco. Ela
me tranquilizou, dizendo que eu estava no hospital, na Terra mesmo.”
Depois de passar pelos hospitais de Porreta Terme, Pistoia e Nápoles,
em 13 de abril, com um grande grupo de brasileiros feridos, Rubens foi eva-
cuado para os Estados Unidos em um navio-hospital: “Eu me lembro bem
desse dia, pois os padioleiros e marinheiros americanos choravam a perda
do presidente Roosevelt. Havia soldados aliados de todo o mundo: mexica-
nos, indianos e até japoneses que serviam ao Exército dos Estados Unidos.”
Acervo: MNMSGM

Montese sob intenso fogo de artilharia

Montese
Montese, nas palavras do general Mascarenhas de Moraes, foi a mais
sangrenta das batalhas da FEB. Em quatro dias de combate, foram mais de
460 baixas, entre mortos e feridos.
Geraldo Sanfelice diz que participou de vários combates, desde peque-
nas escaramuças até enfrentamentos mais sérios: “Porreta Terme, Giulia,
Modena, Montese, Zocca, Marano, Vignola, Collecchio, entre outras. Foram
tantas cidades e vilas pelas quais passamos, que nem me lembro mais de
todas. Talvez esqueça alguma ou até misture a sequência. No mapa, onde
consta o roteiro da FEB, estão representadas as batalhas mais importantes,

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150 VOZES DA GUERRA

mas passamos por muitas vilas que não constam nele. Sempre que chegá-
vamos a algum lugar, a maior preocupação era cavar logo as trincheiras,
sempre mais profundas; a tropa precisava estar segura. A ordem era não
fazer algazarra, mesmo quando não havia iminência de combate. No entan-
to, descontrair era necessário. Sempre que havia uma folguinha, mesmo na
linha de frente, o velho e bom baralho entrava em cena.”
Sanfelice recorda que estava em Modena. O destino era Montese, pe-
quena cidade sobre uma elevação que os alemães se empenhavam muito
para manter pela importância que tinha para a defesa das demais posi-
ções que ocupavam: “Quando eles perceberam nossa aproximação, de-
sencadearam intenso fogo de artilharia. Era apavorante, mas nós seguía-
mos em frente, protegidos por uma cortina de fumaça lançada pela nossa
artilharia, ao mesmo tempo que desfechava intenso bombardeio sobre
eles. O barulho era ensurdecedor. A terra parecia tremer! Em Montese,
o cutuco foi forte. Os combates dentro de um centro urbano, e esse era o
caso: eram mais difíceis, mais acirrados, rua a rua, casa a casa... A tensão
e o perigo eram constantes. Não dava para relaxar. O inimigo podia es-
tar em qualquer esquina. Em qualquer casa ou ruína poderia haver uma
mina ou armadilha pronta para explodir.”
Neraltino Santos afirma que, durante o bombardeio a Montese, a or-
dem para a artilharia era atirar. Não havia tempo para rodízio de tiro en-
tre as baterias. Cada uma atirava o quanto podia. Como os alemães haviam
sitiado a infantaria da FEB, a missão da artilharia era descarregar o má-
ximo de granadas explosivas sobre eles. Ary Abreu diz que chegar a Mon-
tese foi complicado, pois, além de enfrentarem a artilharia alemã, tiveram
que encarar um terreno totalmente minado: “Eu tinha tomado café no dia
14, antes de sair da base de partida. Não almoçamos porque caíram duas
granadas em cima das marmitas. Saímos para Montese com a previsão de
chegarmos pelas 11h, mas a progressão foi lenta, e chegamos somente à
tardinha. A artilharia atirava e, a cada granada que caía, subia a fumaça
negra, característica da explosão de minas alemãs. O pessoal que me acom-
panhou na transposição de um terreno cultivado para chegar à cidade saiu
ileso. Era até estranho; caía uma granada e voava aquele negócio branco:
era batata inglesa.”
Ary continua: “Dois soldados meus, que desbordaram, tiveram proble-
mas: um perdeu o pé na explosão de uma mina, e o outro, por azar dele, foi
atingido no rosto por um estilhaço. Fui até eles; eu não tinha como atendê-los.

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Ações em combate 151

Orientei que se arrastassem até um local seguro e aguardassem os padiolei-


ros. Eu não podia parar. Seguimos em frente até a entrada da cidade. Fiquei
de pé, junto a uma casa de esquina, observando a movimentação e aguardan-
do ordem para prosseguir. Estava perto do anoitecer. Havia muita fumaça, a
visibilidade não era muito boa. Era muita granada caindo, e havia um atira-
dor isolado na área. Meu comandante de companhia pelo rádio perguntou:
‘Quem tá parado aí, na esquina?’ Respondi: ‘Ary!’ Ele: ‘Tá parado por quê?’ Eu:
‘O fulano [nome preservado] — não se falava o posto — mandou aguardar
a ordem dele...’ Ele: ‘Pelo amor de Deus, vá embora daí!’ Eu disse a ele: ‘Mas
espera aí, capitão! Tem um diabo de alemão de metralhadora batendo aqui.
Como é que eu vou sair daqui? Não tem jeito! Estou prensado entre os dois
GC e não consigo sair. Vê se o senhor pede artilharia e cala essa metralhadora.’
Foto obtida na Itália

Montese com as marcas do bombardeio


Dei as coordenadas para ele. Ele deve ter pedido fogo; só sei que a me-
tralhadora calou. Mas, na saída, ainda houve um disparo que ricocheteou
e me atingiu aqui [acima do joelho da perna esquerda]. Não senti o tiro,
mas senti o sangue quente descendo pela perna. Não foi nada grave; fiz um
curativo e continuei em frente.
A partir daí, a noite caiu, e seguimos pela bússola; quem tinha a carta
era o capitão, que passava o azimute pelo hand talk [rádio portátil]. Ele
passou as coordenadas da missão, que para mim foi a final, e mais as
senhas de reconhecimento. Senha para quê? Com aquele monte de granada
explodindo, quem é que vai se lembrar da senha? Entramos em Montese
e fomos atingir os montes Serretto e Paravento [localizados atrás do
povoado]. Eu estava na Companhia de Petrechos Pesados, mas, na véspera
do ataque a Montese, fui transferido para a 7ª Companhia. Do meu pessoal,

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152 VOZES DA GUERRA

dois morreram, e outros dois ficaram feridos. Fui ferido pelas 22h do dia 14
de abril. Não posso precisar se foi no monte Serretto ou Paravento.”
Ary brinca, dizendo que foi ferido porque não aproveitou bem as ins-
truções: “Eu estava deitado, colado ao chão quando fui atingido. Nem sei
se foi ricochete ou tiro direto que me atingiu. Nós estávamos muito perto
dos alemães. O tiroteio era intenso, de um lado e de outro. Atirávamos e
recebíamos o troco na mesma hora. O alemão não arredava pé. Entramos ao
anoitecer, e eu saí ferido antes do amanhecer. Entrei e saí de lá no escuro. Se
voltasse no dia seguinte, não reconheceria o lugar.”
Acervo: MNMSGM

Posto de primeiros-socorros em Montese


Ary ainda relata o maior drama na guerra: “Meu soldado esclarecedor, Alé-
cio Venturi, de Rodeio-SC, foi atingido por um enorme estilhaço, nas costelas. Ele
me dizia: ‘Sargento, pelo amor de Deus! Cuide de minha mãe; eu sou órfão de pai.’
Ele virava de um lado para o outro e repetia: ‘Sargento! Cuide de minha mãe.’ Eu
dizia para ele: ‘Alécio, você não vai morrer não, rapaz. Fique firme aí.’ Eu nunca
tinha visto alguém morrer. Imaginava que quando alguém fosse morrer, apagava
antes. Nunca imaginei que alguém ia morrendo e falando...”. Mesmo ferido, Ary
saiu à procura dos padioleiros: “Quando vi que o meu soldado já tinha dificulda-
de de falar, larguei todo meu equipamento e desci o morro, só com o flash light.
Caindo aqui e ali, com o braço na tipoia, procurando algum soldado, encontrei
um paulista, o Della Britta, da 7ª. Ele perguntou: ‘Quem vem lá?’ Eu disse: ‘Ary!’
Ele: ‘Avance a senha!’ Respondi: ‘Della Britta seu... Como é que numa hora dessa
eu vou me lembrar de senha? Estou procurando o capitão Memória e um padio-
leiro. Onde eles estão?’ Ele disse: ‘Pode passar. Ele tá ali, no porão daquela casa.’

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Ações em combate 153

Os padioleiros estavam ensanguentados como entregador de carne em açougue.


Eu disse a eles: ‘Sei que vocês estão cansados, mas tem dois soldados meus ago-
nizando. Eles precisam ser retirados de lá.’ Fomos até o local. Um dos padiolei-
ros era o cabo Fredolino Chimango, que depois foi dado como desaparecido em
combate. A evacuação foi difícil, não porque fossem padioleiros omissos, mas
porque eles não tinham tempo para acudir todo mundo; eram muitos feridos.”
Na hora de carregarem o soldado Alécio, Ary soube que não poderiam
colocar mais de dois feridos no jipe. Como já havia outro, disse: “‘Eu vou pôr
este soldado aqui e vou junto com ele.’ Quando chegamos ao segundo posto
de saúde, em um campo aberto, tinha um capelão militar, frei Alfredo, que se
abaixou ao lado da padiola e fez uma oração no ouvido do Alécio. Arruma-
ram o soldado na ambulância e disseram que não podiam ir mais de quatro.
‘Eu vou aí, deitado no chão!’ Quem estava recolhendo os feridos era o Rafael
Costa Pinto, segundo-sargento enfermeiro, que estava buscando os feridos
no sopé do morro. Chegamos ao hospital de Pistoia. Aos feridos mais graves
eles davam destino mais rápido. Alécio já não falava mais; haviam aplicado
soro nele. Ele se virou para meu lado e se contraiu. O enfermeiro falou para
ele não fazer assim, pois a agulha poderia sair da veia.” Ary estava entretido,
resolvendo outro problema com o sargento alemão. Quando percebeu, havia
levado a padiola com o corpo para fora da enfermaria: “Ele estava morto! Isso
acabou comigo. Eu não sabia o que falar, nem o que pensar... Como é que mor-
re alguém assim? Era um soldado excelente, corajoso, forte, da minha idade.”
O amigo de Ary, Cleto Pellegrinelli, foi designado pelo seu comandante para
comandar o 2º Pelotão de Fuzileiros da 3ª Companhia, já que este estava sem
oficial; o sargento daquele pelotão também estava baixado ao hospital: “Em
meu pelotão [de Petrechos] havia um tenente que tinha chegado na segunda
quinzena de janeiro. Ele assumiu o comando, e eu fiquei de auxiliar, mas saí e
fui comandar outro exatamente em Montese. Meu pelotão era de morteiros e de
metralhadoras; eu era especialista naquilo; estudei os armamentos e fiz cursos.
Fazia aquilo com perfeição. Dávamos tiro de morteiro e víamos as bombas cain-
do em cima da posição inimiga; nós conhecíamos, havíamos treinado, trabalhá-
vamos e fazíamos, mas os pelotões de fuzileiros eram diferentes; o trabalho era
diferente. Procurei fazer o máximo também.”
Cleto continua: “Minha companhia estava na reserva, mas meu pelotão
passou à linha de frente, a fim de apoiar a 2ª Companhia, incumbida da
missão principal do ataque. Como essa companhia pediu reforço, acabou
indo meu pelotão, comandado por um sargento... E por quê? Os outros eram

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154 VOZES DA GUERRA

todos oficiais, e o sargento é que foi. Fui até lá e me apresentei ao capitão


Cid, comandante da 2ª Companhia. A missão principal era dele; meu pelotão
chegou para reforçar. Ele nos mandou para determinado lugar de onde
nos chamaria à medida que fosse necessário. Eu estava no campo de ação
vendo tudo com meu pelotão e esperando ordens do capitão para irmos ao
local onde nos destinasse. Eles estavam subindo... Veio um bombardeio de
morteiro alemão — parecia chuva de bombas — e atingiu nossas posições.
Eu e meu pelotão caímos no chão, assistindo àquela destruição. As granadas
caíram e quebraram tudo. De repente, senti um tranco nas costas. Pedi ao
sargento que estava do meu lado para olhar minhas costas, porque estava
doendo. Ele olhou e falou: ‘Olha, tem um buraco aqui, na japona.’ O dia estava
meio frio, e estávamos com a japona por cima. Falei: ‘Ih, então atingiram
meu pulmão! O buraco está em cima do pulmão?’ Ele confirmou.
Continuamos ali até diminuírem os fogos. Eu tinha 3 soldados mortos
de meu pelotão e 14 feridos, inclusive eu. Comuniquei aquilo ao comandan-
te da companhia pelo telefone. O pessoal das transmissões acompanhava o
pelotão e lançava linhas. Tinha o hand talk, um só por pelotão, que funcio-
nava até cerca de 500m. Chamei o sargento mais antigo e passei o comando
para ele; comuniquei ao capitão, e este mandou vir uma condução que foi
levando os feridos; eu estava andando, mas me desequilibrava. Fui em um
jipe. Exatamente quando descíamos de Montese para o primeiro posto de
atendimento, o bombardeio voltou. E bomba em cima! Eu no jipe, em uma
padiola... Se caísse uma bomba ali, eu sumiria no ar... Mas felizmente conse-
guimos sair daquela situação.
Foto obtida na Itália

Vista de Montese. À direita, o monte Serretto, conquistado no dia 15. O monte


Buffone, mais alto e à retaguarda, está ocultado em razão da perspectiva

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Ações em combate 155

Fomos atendidos no posto, e ocorreu tudo direitinho. O padre Francisco


Elói, que era muito amigo, deu a bênção e me disse brincando que eu iria para
o céu e que tudo acabaria bem. Acredito que a fé ajuda muito; fui muito pro-
tegido naquela situação por São Judas Tadeu, porque o tiroteio estava incrível
e, além do estilhaço nas costas, havia sido ferido de raspão no ombro. Dali,
nós pegamos outro carro, uma viatura ¾ de tonelada, e fomos para o hospi-
tal. Havia inclusive um alemão, novo, de 17 ou 18 anos, que estava muito mal.
Esse era um hospital de evacuação, todo de lona, mas havia cabines onde os
médicos faziam as operações de emergência”, conclui Pellegrinelli.
Ivan Alves, em abril, recebeu uma folga que coincidiu com a Páscoa: “Fui
passear em Gaggio Montano, onde um capelão nosso fez toda a cerimônia da
Semana Santa. Depois disso, o batalhão recebeu a missão de seguir até Montese.
A missão principal era do 1º RI, e seguimos pelo flanco. Quando passei por Mon-
tese, já haviam cessado os combates. Vi uma cidade destruída, em ruínas; casas
detonadas, cheias de buracos. O fedor era quase insuportável. Na praça não ti-
nha árvores, só um chafariz lá. Hoje está tudo mudado! Sessenta e tantos anos
passados, a praça está bonita, arborizada; as casas e os prédios restaurados. Só
o chafariz da praça continua igual: este ainda guarda as marcas da guerra.
Em Montese, a barra pesou! Foi o combate mais duro da FEB. Castelo
foi o mais difícil e mais demorado, mas Montese foi o mais violento. Ali foi
dureza... A 9ª Companhia atacou Paravento; a 7ª, Serretto, onde Ary foi fe-
rido; e a 8ª, o monte Buffone. Foi difícil demais! Era muito tiro, muita bom-
ba, muito morteiro, muita mina... O alemão defendeu a posição com muita
garra. Como eles iriam recuar, acho que, para não abandonar a munição,
despejaram tudo em cima da gente. Foi dureza, mas o batalhão se saiu bem.
Participamos dos combates em 14, de 14 para 15. Na noite de 15 para 16,
fomos substituídos depois de quase 48 horas em combate.”
Ivan destaca ainda sua função de montar os observatórios: “Eu tinha
seis soldados, dois em cada observatório. Antes de o batalhão chegar a uma
nova posição, eu estava lá e já havia montado os observatórios. Geralmente,
montava um observatório em cada companhia, mas houve casos que mon-
távamos observatórios na terra de ninguém. O soldado ia para lá antes de
clarear e retornava no escuro; passava o dia lá para não ser visto; se fosse
visto, o alemão não perdoaria. Em Montese, nós fizemos até um observató-
rio móvel, onde o observador acompanhava a companhia durante o ataque.
Os soldados passavam a informação para mim, que retransmitia para o co-
ronel Kruel, no QG da Divisão.”

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156 VOZES DA GUERRA

Acervo: MNMSGM

Tropa de infantaria em deslocamento, em Montese

O relato do historiador e colecionador de artigos militares, Giovanni


Sulla, natural de Montese, além de corroborar todos os depoimentos an-
teriores, acrescenta detalhes que deixam claro por que o combate em sua
cidade natal foi definido como o mais cruel dos combates pelo general
Mascarenhas de Moraes. Conforme Sulla, “em Montese estava localizada
a última grande linha de defesa alemã antes do vale do rio Pó. Havia duas
divisões alemãs, uma delas era a 114ª, uma divisão Jäeger [ligeira] mui-
to experiente, especialmente em guerra de montanha”. Conforme relata,
“os alemães colocaram mais ou menos 25.000 minas — das pequenas, as
famosas quebra-canela, às maiores, as Bouncing Betty — que pulavam [o
artefato explosivo era ejetado] e lançavam 300 estilhaços em uma área
de até 150m. Montese e sua área — monte Serretto, monte Buffone e
Montello — eram completamente fortificadas. Na manhã de 14 de abril,
depois de 32.000 tiros de obus 105 e 155mm, foi iniciado o ataque a Mon-
tese. Imaginem! Sobre Montese haviam sido lançadas 30.000 granadas
em 4 meses e, em 3 dias, quatro dias [foi lançada] praticamente a mesma
quantidade”. Com essa descrição, fica fácil entender por que, dos 1.200
edifícios então existentes na cidade, 890 foram destruídos no combate.

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Ações em combate 157

Acervo: MNMSGM Acervo: MNMSGM

Chafariz de Montese Esquadrão de Reconhecimento


entra em Montese

Sulla diz que, “na tarde de 14 de abril, o tenente Iporan entrou em Mon-
tese. Muitos falam que a tomada de Montese ocorreu no dia 14, mas a ver-
dade é que foi tomada a praça; a batalha continuou por mais três dias e foi
horrível. Somente na tarde de 14 de abril, assim que os brasileiros ocupa-
ram a praça, foram lançadas cerca de 1.500 granadas de morteiro de 81mm,
a maior arma da guerra de montanha. As grandes perdas da FEB foram cau-
sadas por tiros e por estilhaços, e, destes, 75% eram causados por estilha-
ços de morteiro de 81mm, sobretudo porque os alemães, tendo o topo do
monte, tinham a possibilidade de ter um ótimo ponto de observação... Mon-
te Castelo foi uma grande batalha, valente, mas com muito sacrifício. Com
três assaltos falidos. E depois de três meses de treinamento sobre a própria
pele, os pracinhas brasileiros, aqui em Montese, obtiveram praticamente
uma vitória decisiva. Foram muito bem usadas taticamente as tropas de
reserva. Imediatamente, quando um pelotão tinha dificuldades, existia ou-
tro para substituir, para dar apoio a ele. Foi verdadeiramente uma batalha
bem construída, bem planejada. Na Batalha de Montese, os três regimentos
da FEB — o 1º, o 6º e o 11º — participaram da batalha... O 1º Regimento,
o Sampaio, em direção à Greglia, junto à cota 778, do aspirante Mega. O 6º
RI, o Ipiranga, teve muitos mortos e muitos feridos no monte Buffone. E
naturalmente o 11º Regimento. A maior glória do Regimento Tiradentes foi
a tomada de Montese”.

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158 VOZES DA GUERRA

Sulla reforça a opinião de que o combate urbano é o mais terrível: “Acon-


teceram casos de os pracinhas estarem no andar de baixo, e os alemães no
andar de cima [da mesma casa]. Foi um combate de submetralhadora, faca
e granada. Havia muitos atiradores alemães com lunetas; se aparecesse na
janela, eles atiravam na cabeça... As maiores perdas do 6º RI ocorreram nos
dias 16 e 17, quando entrou em apoio ao 11º, que estava muito cansado e
com muitos feridos, e atacou em direção aos montes Buffone, Serretto e
Montello, que era o objetivo final. Naquele dia, os alemães descarregaram
15.000 granadas sobre centro de Montese.”
Acervo: MNMSGM

O retrato da destruição

Collecchio
Geraldo Sanfelice diz: “Depois de Montese, seguimos em direção a Col-
lecchio e Fornovo, onde havia grande contingente alemão em fuga para o
norte.” Durante o deslocamento, em 27 de abril, ele sofreu grave acidente
que o tirou de combate: “Estávamos seguindo por uma lavoura de trigo,
que vinha até a cintura. Havia uma estrada de chão batido para atravessar.
Todos estavam descontraídos, porque a imagem era muito bonita, em um
dia ensolarado. O tenente disse que a ordem era avançar. No que pisei na es-
trada, só ouvi um forte zum! e senti uma ardência na perna.” Era uma mina

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Ações em combate 159

antipessoal que havia sido deixada pelos alemães e explodiu. Percebeu que
faltava um pedaço da perna e que estava todo ensanguentado: “Parte do
joelho havia sido arrancada, deixando ossos e nervos expostos. Por sorte, a
granada que explodiu pegou só na perna, e não morri.”
Foto obtida na Itália

FEB em deslocamento, em Ponticello, em 20 de abril


Sanfelice faz questão de destacar a atitude de um amigo dos tempos
de soldado, em Santa Cruz do Sul, que por coincidência encontrou no mo-
mento mais dramático da guerra: “O enfermeiro, cabo Benedito, muito meu
amigo, prestou socorro inicial e, de padiola, fui conduzido para o hospi-
tal de campanha. De lá, fui evacuado para o hospital de pronto-socorro, na
retaguarda. Sentia bastante dor, mas fiquei lúcido. Só apaguei no hospital,
quando me anestesiaram.”
“Eram cerca de 11h quando fui ferido. Lembro que, ao acordar, já era noi-
te. Estava todo enfaixado da cintura para baixo. Percebi que haviam amputado
parte da perna, um pouco acima do joelho. Para a FEB, a guerra continuou e só
terminou em Fornovo, mas fui ferido três dias antes, em Collecchio”, relata San-
felice, que, posteriormente, foi evacuado para ser tratado nos Estados Unidos.
Samuel Silva conta que “ao chegar à orla de Collecchio, a 8ª Companhia
era duramente hostilizada. Estava todo mundo aferrado ao solo... Escure-
ceu. Ficamos ali em silêncio, mas com as metralhadoras prontas, ouvidos
atentos, na beira da estrada que vinha de Parma, Rodovia 62, por onde vie-
mos de jipe. Estávamos acompanhados de uma seção de metralhadoras.
Passamos a noite ali, na beira da estrada. Quando ia amanhecendo, eles [os

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160 VOZES DA GUERRA

alemães] tentaram romper nosso bloqueio. Era aquele silêncio... Dali a pou-
co, um soldado disparou sua arma. Foi tiro de ambos os lados; a disputa foi
grande. Os alemães atiraram muito na tentativa de liberar a estrada e irem
embora. Isso já era o começo do cerco. É só pegar o mapa e ver: Collecchio,
depois Respício e Fornovo di Taro. Quando amanheceu o dia, entramos em
Collecchio para fazermos a operação de limpeza. Havia armamento aban-
donado; metralhadoras, morteiros e algumas pessoas mortas.
Quando chegamos mais ou menos ao centro da cidade, vi o Esquadrão
de Reconhecimento, com seus carros de combate. Eles chegaram por um
lado, e nós, com a 8ª Companhia, chegamos de outro... Estava confirmada
a posse de Collecchio. A cidade estava abandonada; por onde passei, não
vi ninguém; provavelmente a população havia sido avisada do ataque e
abandonou a cidade. Lá morreu meu amigo, sargento Andiraz Nogueira de
Abreu, e mais um soldado. Eu o havia encontrado em Belvedere, onde ele
me disse: ‘Samuel, eu pedi para vir para a frente.’ Quando foi em Collecchio,
pouco antes da rendição, ele tombou...”.
Foto obtida na Itália

A FEB avança no terreno. Castel D’Aiano, em abril de 1946

Fornovo di Taro
Depois de Collecchio, a FEB continuou a perseguição às tropas alemãs.
Nesse estágio da guerra, os alemães já não eram mais do que alguns atira-
dores isolados, que ficavam para trás e já não ofereciam muita resistência.
Alcides Basso, que havia sido incluído nas fileiras do 6º RI, participou dessa

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Ações em combate 161

ação: “Quando chegávamos a alguma cidade ou ponto estratégico, geral-


mente a população informava que os tedescos seguiam logo à frente. E nós
continuávamos no encalço deles.”
Depois de passarem a noite de 28 de abril protegidos, ao amanhecer
progrediram cerca de 3km e chegaram próximo ao local onde os coman-
dantes brasileiros e alemães estavam negociando a rendição da 148ª Di-
visão de Infantaria e remanescentes das 90ª Divisão Panzer Granadier e
Bersaglieri Itália para a FEB. Acamparam, pernoitaram no local e fizeram
segurança aproximada.
Rubens Andrade relata que os alemães se deslocavam rapidamente para o
norte. O general Mascarenhas houve por bem empregar os caminhões e demais
viaturas da artilharia para transportar a infantaria e, em uma manobra arroja-
da, envolveram as tropas alemãs em Fornovo di Taro. Enéas Araújo recorda que,
depois de ser ferido em Torre de Nerone e ter se recuperado nos hospitais de
Pistoia e Livorno, voltou ao front: “Para o cerco da 148ª Divisão de Infantaria
alemã, dois dias antes com meu grupo, já estava montando postos de gasolina
nas estradas que davam acesso a Fornovo. Chegávamos ao acampamento tarde
da noite; de madrugada saíamos novamente. O posto de gasolina era a coisa
mais simples: os motoristas vinham com dois camburões, enchiam, e eles mes-
mos abasteciam o caminhão. Era rapidinho para abastecer 10 ou 15 caminhões.
No cerco à Divisão Alemã, a infantaria foi de caminhão até certo ponto; desem-
barcou e foi para a missão.”
Cleir de Carvalho conta: “Em Fornovo di Taro, acompanhava o proces-
so que redundou na rendição alemã. Do local em que eu me encontrava,
podia acompanhar tudo; estava em posição para atirar caso fosse neces-
sário. Quando ficou definida a rendição, tirei meu blusão. Estava cheio de
bichinhos andando pelo corpo. Também! Não tomava banho... Sem banho,
sujeira, suor, dormir dentro de buracos, só podia dar nisso! Depois de mui-
ta festa, dormimos em Fornovo.” Francisco Gomes confirma o quanto era
ruim ficar sem banho: “A roupa estava sempre suja. Uma vez, abri as dobras
da roupa e estava tudo cheio de bichinhos. Piolhos, carrapatos, sarna... era
muito comum! Foram momentos difíceis, mas sobrevivemos.”
Newton Lascalea diz que seu comandante, major Gross, “intermediou
a negociação com os alemães por ocasião da rendição. Os alemães tinham
força para resistir mais um pouco; eu tenho a impressão de que eles jun-
taram todas as forças que tinham na região para se renderem a nós. Creio
que eles devem ter levado essa situação ao comando deles. A guerra estava

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162 VOZES DA GUERRA

perdida para eles; não tinham saída; passavam verdadeiros enxames de


fortalezas voadoras sobre nós para bombardearem a Alemanha”.
Acervo: Wanda Pedroso

Acerto dos termos da rendição

O cenário da rendição alemã

Foto obtida na Itália

Vista aérea do cenário de rendição, em Fornovo di Taro

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Ações em combate 163

No dia seguinte, os alemães começaram a entregar armamento, carros,


motos, bicicletas e até cavalos. Eram quase 15.000 homens, milhares de
animais, viaturas e armamento: “Estávamos de um lado da estrada, e os
alemães, do outro. Largamos as armas e atravessamos a estrada que nos
separava. A guerra tinha acabado, e, se havia acabado a guerra, não mais
existiam inimigos. Uns falando um pouco em polonês, outros em alemão,
acabávamos nos entendendo. Consegui trocar comida e cigarros por uma
Parabelum alemã e uma Beretta italiana. Os soldados alemães trocavam
qualquer coisa por comida, pois estavam com fome. Além disso, para eles, a
arma não serviria para mais nada, e, de qualquer modo, teriam de entregá
-la. Pelo menos matavam a fome. Tenho o privilégio e o orgulho de dizer que
fiquei ali, de frente para eles, quando se renderam”, conclui Alcides Basso.
Acervo: MNMSGM

Soldados alemães e brasileiros integrados

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164 VOZES DA GUERRA

Jarbas Dias Ferreira recorda que trocou chocolate por uma pistola au-
tomática (doada, em 2013, ao museu do 6º RI) e uma faca alemã: “Um cabo
alemão saiu lá do meio e veio falar comigo: ‘Você não tem pinga aí?’ Per-
guntei como ele falava tão bem o português, e ele: ‘Você conhece a Avenida
Atlântica, em Santos?’ Eu disse: ‘É no caminho da minha roça...’ Ele: ‘Eu ti-
nha um empório lá... Vendi para ir para a Alemanha.’ O alemão contou que
estava na Alemanha quando estourou a guerra; foi convocado e mandado
para a Frente Russa. Saiu de lá com água no pescoço, porque os russos es-
touraram uma represa e acabaram com quase uma divisão alemã inteira...”
Paulo Carvalho lembra: “Minha companhia estava bem em cima do
morro; foi a primeira a descer, quando eles, graças a Deus, se entregaram.
Chegamos perto e começamos a negociar com eles. Dava um chocolate e
recebia uma pistola. Vendi pistolas para vários oficiais que estavam na
retaguarda. Trouxe uma meia dúzia para mim. Todas elas e o meu capacete,
que tinha levado um tiro de raspão, sumiram junto com o meu saco ‘B’,
na volta para o Brasil. O dinheiro eu gastei todo por lá. Depois do fim da
guerra, ficamos em Voghera. Era só festa!”

IMAGENS DE FORNOVO DI TARO AO FINAL DOS COMBATES


Acervo: AHEx Acervo: AHEx

Soldados alemães Soldado alemão abre uma caixa de


ração operacional

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Ações em combate 165

Acervo: Wanda Pedroso Acervo: Wanda Pedroso

Armamento e viaturas alemães apreendidos


Acervo: Wanda Pedroso Acervo: Wanda Pedroso

Bicicletas apreendidas Armamento apreendido (em primeiro


plano, a famosa “Lurdinha”)

Cumprida a missão em Fornovo, os contingentes da FEB prosseguiram


para o norte e para o oeste em perseguição às tropas alemãs e ocuparam a
região de Alessandria. Depois de passarem pela cidade de Turim, as tropas
brasileiras realizaram a junção com as tropas francesas, em Susa, a cerca de
30km da divisa com a França.

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Vítimas da guerra

E m uma guerra, o maior número de vítimas não usa farda. A popula-


ção civil, além das perdas materiais, sofre todo tipo de privações e
provações. Não tem como se defender, tampouco a quem recorrer.
Durante os deslocamentos em solo italiano, a impressão inicial se con-
firmava a cada vila ou cidade por onde os pracinhas passavam. A destruição
era cada vez mais evidente. Estações ferroviárias, estradas, pontes, casas e
prédios destruídos. A aviação e a artilharia dos aliados e dos alemães ha-
viam feito enorme estrago.
Acervo: Wanda Pedroso

Pessoas desoladas e destruição: marcas da guerra. A expressão mantida na


imagem é do fotógrafo, sargento Mario Pedroso

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Vítimas da guerra 167

Cidades-fantasma, quase sem vida. O cenário era de terra arrasada. De


acordo com Alcides Basso, os sobrados não tinham estrutura para resistir
aos bombardeios. Por isso, a população havia abandonado suas casas e se
escondido na campanha ou nas matas, onde estava mais segura. Assim que
passavam as tropas de libertação, a população começava a voltar para o que
havia restado de suas casas, geralmente reduzidas a escombros: “Era a dura
realidade da guerra”, conclui.
Como a situação era realmente desesperadora, e a população não tinha
de onde tirar comida, formavam-se longas filas perto dos acampamentos.
Idosos, mulheres com crianças no colo e pequenos órfãos da guerra, de ca-
necas e latas na mão, imploravam por um pedaço de pão que fosse: “A cena
era muito triste. Acabávamos repartindo a refeição com eles; ver seus olhos
brilhando era muito gratificante. Para nós era apenas um pouco de comida,
mas para eles podia representar a única refeição do dia”, recorda Ivo Ziegler.
Newton Lascalea diz que “em regra os italianos receberam os brasilei-
ros muito bem, e o coração brasileiro soube retribuir... Você sabe o que é
conviver com uma criança que não tem onde buscar comida? A única fon-
te de comida éramos nós, soldados. No começo, recebíamos a ração C, na
qual vinham duas latinhas — uma de espaguete e outra de feijão, que era
meio adocicado —, mais uma porção de café, refresco, açúcar e umas bo-
lachas vitaminadas... Ao comermos a ração, nos sentíamos satisfeitos, não
pela quantidade, mas pelos nutrientes que havia. A latinha de espaguete eu
guardava e dava para eles. Cigarro eu recebia um maço de [marca omitida]
por dia, junto com dropes ou um tablete de chocolate. Eu não fumava, mas
recebia assim mesmo... Ia fazer o que com os cigarros? Então eu dava os
cigarros, dava roupa... Você ia fazer o que se visse uma família com três ou
quatro crianças passando necessidade?”.
Conforme diz Raul Kodama, era comum ver italianas se ajoelhando
na frente dos soldados, implorando: “‘Brasiliano, pelo amor de Deus, co-
mida! As crianças estão morrendo de fome.’ Eu falava para a italiana: ‘Le-
vanta, mulher; eu não sou santo!’ Aí, o que eu tinha, eu dava... Eu era cabo
muambeiro; comprava e revendia coisas porque eu queria sair do Exército
e ser tropeiro. Mas quando chegava essa gente, dava tudo; ficava pobre!”.
Sérgio Pereira conta que a população procurava os locais em que esta-
vam os brasileiros para pegar comida, roupa e dinheiro: “Eles não tinham
comida, estavam famintos; não tinham quase nada.” Benedito Bernardino
dava comida, guloseimas e cigarros aos italianos: “Eles não gostavam do

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168 VOZES DA GUERRA

cigarro [marca omitida], que tinha o rosto de uma loira na carteira. Eles
diziam: ‘Non me piace questa bionda cattiva’, algo como ‘Não gosto dessa
loira ruim’. Eles queriam cigarro americano, que era melhor.” Os cigarros
enviados pelos brasileiros eram muitas vezes provenientes de doações, re-
colhidos pela LBA em vários pontos de coleta Brasil afora, nem sempre em
condições apropriadas. Esse pode ser um dos motivos pelo qual apresenta-
vam a má qualidade mencionada.
Acervo: Wanda Pedroso

População faz fila nas proximidades de um acantonamento da FEB.


À esquerda, o sargento Pedroso
Na opinião de João Gonzalez, “o pior da guerra era ver aquele pessoal
ferido, faminto. Velhos, estropiados, implorando por uma ponta de cigar-
ro. Você jogava uma ponta de cigarro, pulavam dois ou três velhinhos para
apanhar aquilo... O Brasil mandava cigarros para nós. O [marca omitida]
era muito forte. Você dava uma tragada e quase caía de costas. Não querí-
amos aquele cigarro. Recebíamos e dávamos para eles. No desespero, eles
aceitavam até de bom grado. Os americanos tinham a cantina; recebíamos
um cartão, e, quando pegávamos um maço de cigarros, o cartão era perfu-
rado. Além da cantina, de vez em quando distribuíam os cigarros [marcas
omitidas]; não lembro bem, mas eram umas quatro ou cinco marcas. Eram
suaves, fraquinhos...”.
Osvaldo Carnevalli afirma que “depois da guerra, havia muitas mulhe-
res com suas crianças em torno do acampamento pedindo comida. Repas-

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Vítimas da guerra 169

sávamos a comida aos soldados e distribuíamos o que sobrava às famílias,


mas muitos soldados davam sua refeição aos italianos. Na guerra pratiquei
solidariedade! Comíamos só um pouco do que colocavam na marmita para
podermos repassar aos italianos que estavam em volta do acampamento.
Em Lavínia, na hora do café da manhã, dividíamos o leite com leite con-
densado e o pão com eles”. Hélio Marques acrescenta que “nos vilarejos e
cidades pequenas, era um pouco diferente. Eles faziam macarrão e comiam
aquilo mesmo. Quando recebiam alguma peça de roupa, ficavam muito con-
tentes. Certa vez, dei uma botina para uma senhora e parecia que ela tinha
recebido o melhor presente do mundo”.
Alcides Basso acrescenta: “Uma das primeiras vítimas da guerra é a
moral. Na Itália, é horrível dizer isso, mas cigarro e comida podiam com-
prar qualquer coisa. Na triste luta pela sobrevivência, eram moedas de
grande valor.”
Para Vasco Ferreira a guerra não só destrói casas e cidades; ela leva
à degradação dos costumes: “A guerra é dolorosa! Nós víamos moças,
mulheres e senhoras se prostituírem. Muitos de seus maridos estavam na
guerra, eram prisioneiros ou tinham morrido na África ou na Rússia. Enfim,
eram muitas passando fome em toda parte. Não havia produção de gêneros
alimentícios. Então, não tinha trabalho, não tinha dinheiro, não tinha nada!
A única coisa que restava a muitas mulheres era se prostituir. Tínhamos
experiências amargas; víamos crianças cicerones, indicando mãe, irmãs,
cunhadas ou tias para soldados. Víamos essa ignorância, a estupidez do ser
humano... Graças a Deus, nós não fomos atingidos a esse ponto no Brasil.
Mas não podemos condenar ninguém; não sabemos o que nós seríamos
capazes de fazer. Em Parma, fomos atrás de mulheres. Como não tínhamos
dinheiro, levamos comida enlatada, maços de cigarros e chocolates. Che-
gamos a uma casa de três andares. Havia três senhoras: uma idosa, já de
cabelos brancos, uma de meia-idade, uma jovem e mais três crianças. Logo
que entrei, percebi que quem estava servindo os homens era a senhora de
meia-idade, mãe da mais nova, avó das crianças e filha da mais idosa. Perdi
a vontade! Dei a comida a elas e fui embora. Afinal, eu vi que era gente, tal-
vez até melhor do que minha família. Eu não era melhor do que ninguém,
mas não fui capaz de fazer aquilo.”
Vasco diz que, em outra pequena cidade, um barbeiro lhe pediu que,
pelo amor de Deus, intercedesse junto a outros soldados para não ficarem
rondando a esposa dele, para a deixarem em paz. Fiz o que ele pediu. Essa

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170 VOZES DA GUERRA

estupidez da guerra me marcou muito. A esposa dele ficou muito agrade-


cida a mim; presenteou-me com um santinho e disse que, em suas preces,
sempre pediria a Deus pela minha proteção.”
Ângelo França narra uma passagem que explicita a situação na Itália:
“Quando saíamos do front e passávamos para a retaguarda, vivíamos al-
guns dias de liberdade. Como geralmente ficávamos na periferia das cida-
des, o comandante dava permissão para alguns poderem passear. Sempre
tive sorte e recebi essa autorização. Nós, rapazes solteiros, íamos procurar
mulheres... Certa vez, fui muito bem sucedido. Encontrei uma loirinha, mui-
to bonitinha. Eu estava no auge da felicidade, de braços com ela... Mal eu fa-
lava italiano, e ela mal entendia português, mas nos entendíamos. Quando
chegamos à casa dela, ela apresentou-me um desfile: ‘Mio padre, mia madre
i miei fratelli...’ Eram três ou quatro irmãos. Eu fiquei por ali, na sala, tro-
cando algumas palavras com o chefe da família, com bastante dificuldade,
enquanto ela foi para o quarto.”
“Quando ela saiu do quarto e me chamou, eu fui. Cheguei lá, peguei o
dinheiro combinado — e mais um pouco — e fui dar para ela. Ela não quis
receber! ‘No, no, no, no!’ Ela queria fazer sexo. Foi difícil explicar para ela, por
causa da diferença de idioma, que eu não iria fazer. Depois de encontrar um
ambiente daqueles, não era possível pensar em sexo. Expliquei que dava o
dinheiro para ela, mas que não havia condições de fazer nada. Ela disse que
não poderia receber, porque o dinheiro seria indecente. Lembro que eu tive a
presença de espírito de dizer a ela: ‘Indecente é a guerra! Indecente é a guer-
ra... Pode receber; você está cuidando da sua família. E isso é muito digno.’ Foi
uma luta fazer com que ela recebesse, mas acabou aceitando. Eu me despedi
dela e da família e saí, mas pensando na crueldade da guerra. Essa é uma his-
tória que nunca esqueci”, diz França.
Hélio Marques lembra que presenciar aquele quadro degradante é
muito triste: “Passei por situações assim; após saber quanto seria, dava o
dinheiro e pedia que voltassem para casa. Não tinha coragem de aceitar
uma proposta daquelas. Aquilo era horrível! Certo dia estava andando por
uma estrada quando cruzei com uma moça. Ela parou e disse que estava
sozinha no mundo, que seus pais haviam morrido e estava com fome. Pedi
ao cozinheiro que preparasse um prato de comida para ela — lembro como
se fosse hoje. Tinha feijão, arroz, ovo e farofa. Só pedi a ela que fosse comer
longe dos soldados, em sua casa. A fome é muito triste! Eles faziam aquilo
tudo só para matar a fome.”

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Vítimas da guerra 171

Acervo: Wanda Pedroso

Taltíbio Custódio afirma: “A guerra é um desastre. Nessas horas ficava


claro para mim o motivo de nossa ida para lá: era para evitar que aquela
miséria moral chegasse perto de nossas fronteiras.” Destaca ainda que a
situação dos italianos era tão precária que eram capazes de assaltar um sol-
dado só para conseguir a roupa. Dalla Costa confirma que, ao término dos
combates, era perigoso andar na Itália. O risco de assalto era grande. Por
isso, preferia sair em grupos: “Meu grupo era composto por sete soldados.
Aonde ia um, íamos todos. Certa vez, saí sozinho, à noite. Logo percebi que
estava sendo seguido. Fiquei atento. O sujeito passou por mim e dobrou
uma esquina. Quando dobrei, fui emboscado com uma lâmina. No que rea-
gi, tive a parte frontal do capote de lã cortada. Como antevira a situação, já
tinha posto uma bala na agulha da Parabellum e o acertei na perna.”
Ao retornar, encontrou o capitão Paulo, que tomava vinho em uma can-
tina. O capitão convidou-o para sentar, mas, como já havia tomado sua cota
de vinho e estava nervoso em razão da tentativa de assalto, pediu licença e
voltou ao acantonamento: “Pela manhã, na hora do café, o sargento Arlindo
botou a companhia em forma. No que comandou direita volver, vi o italiano
da noite anterior. Ele havia ido se queixar ao comandante da companhia,
dizendo que tinha sido atacado por um soldado. Ele me reconheceu, e o
capitão mandou que eu saísse de forma. Por sorte, eu havia contado ao meu
comandante, na noite anterior, sobre o fato. A prova de que o ataque partira
dele [meliante] era o corte no capote. O capitão mandou que ele sumisse
dali, pois, além de tentar assaltar um soldado, tinha a cara de pau de vir re-
clamar. Depois daquilo, sempre que eu ia fazer a barba, os outros soldados
diziam: ‘Sessenta e quatro, cuidado com a lâmina!’”, diverte-se Dalla Costa.

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Contato com a população

P edro Vidal narra que, logo na chegada, os brasileiros tiveram certa


dificuldade de aceitação por parte dos italianos, sobretudo pelas
crianças: “Eu tinha uma barreira a mais para superar: muitas crian-
ças não conheciam homens negros. Se fosse bem preto mesmo, as crianças
tinham medo e até fugiam. Com o tempo, isso mudou, e, nas andanças pela
Itália, éramos recebidos com alegria. Recebíamos muitos convites para co-
mer uvas e tomar vinho. Até então, eu não tomava vinho; não gostava. Lá,
tive de provar. E gostei, pois era muito bom.”
Na fase em que o Brasil entrou na guerra, muitos italianos, até então sim-
páticos a Mussolini, percebendo que os alemães acabariam sendo expulsos
da Itália pelos exércitos aliados, mudaram de posição; por isso também pas-
saram a ser perseguidos pelos nazifascistas. Na óptica de Pedro Vidal, os par-
tidários de Mussolini eram maus, truculentos e prevalecidos: “Eles usavam
táticas terroristas contra a população local, não fascista, especialmente contra
os partisanos. O combate aos fascistas deu aos brasileiros a simpatia da maio-
ria da população local. Quando perceberam que estávamos lá para ajudá-los,
passamos a ser bem recebidos em todos os lugares por onde andássemos. Os
brasileiros foram vistos como soldados de valor e homens de bem.”
Vasco Ferreira relata que sua companhia contava com o apoio cons-
tante de um partisano: “Esse italiano dizia que, em sua aldeia, os alemães
haviam feito muitas maldades e matado quase toda a família dele. Só sobra-
ram ele, um filhinho e o pai. A mulher, as irmãs, os irmãos, os tios e as filhas,
todos haviam sido assassinados. Depois da violência que sofreu, passou a
não acreditar em mais nada... Só pensava em se vingar.”
Dalla Costa recorda que fez amizade com muitos italianos: “Não tinha
problemas de comunicação, pois meu pai veio, aos oito anos, da Itália para

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Contato com a população 173

o Brasil, e, em casa, falávamos italiano. Em todos os lugares onde chegáva-


mos, éramos bem recebidos. Eles tratavam muito bem os brasileiros.” Eugê-
nio Lombardo concorda que o relacionamento com a população italiana era
muito amistoso: “Éramos bem recebidos em tudo que era lugar. Da mesma
forma, quando eles iam ao acampamento em que estávamos, também os
tratávamos muito bem. Havia muito respeito e descontração. Eles ficavam
muito contentes quando nos encontravam. Gostavam muito dos brasileiros.”
Acervo: Vet. Ivo Ziegler

Mães com os filhos iam ao acampamento em busca de comida

Geraldo Sanfelice relata que, ao estacionar em algum lugar, sem previ-


são de progressão imediata, sempre faziam contato com a população local.
A região era montanhosa, e muita gente tinha criação de cabras. Assim, os
pratos que os italianos serviam aos pracinhas eram a polenta e a carne de
cabrito, acompanhados de vinho. Como descendente de italianos, conhecia
o idioma desde criança, quando morava na Quarta Colônia de imigração
italiana, no Rio Grande do Sul. Apesar de haver muitos e diferentes dialetos
na Itália, conseguia se comunicar com facilidade.
Nas andanças pela Itália, passou por Mantova, terra natal de seu pai: “Uma
italiana disse que era dia de festa; ia fazer polenta com guisado de cabrito, por-
que nós tínhamos liberado Mantova dos alemães. Então, para comemorar, mais
polenta e vinho. Éramos vistos como libertadores. Os que tinham conduta cor-
reta eram recebidos com festa. Quem não a tivesse, teria de acertar as contas
com a PE”, conclui Sanfelice. Cabe salientar que o regime disciplinar em zona de
guerra era muito rigoroso. Transgressões disciplinares comuns eram resolvidas

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174 VOZES DA GUERRA

nas próprias unidades militares. Contudo, quando restava configurado algum


crime, o julgamento cabia à Justiça Militar.
Acervo: Wanda Pedroso

Sobrados semidestruídos em Porreta Terme

Enéas Araújo diz que Porreta Terme era constantemente bombarde-


ada pelos alemães: “A maioria dos integrantes do comando da FEB mora-
va em casas alugadas. No sobrado onde eu morava, havia uma viúva. Ela
ficava na parte de baixo, e eu e mais dois sargentos na parte de cima. Lá
houve um caso gravíssimo: a maioria dos tiros de artilharia passava por
cima das casas e caía em um rio perto dali. Em uma noite, estávamos os
três no quarto; de repente, houve uma explosão que sacudiu a casa toda.
Nós saímos que nem loucos. Fomos para a casa da vizinha, que tinha um
porão. Só levamos uma coberta e dormimos por lá, com a família dela. De
manhã cedo, fomos ver o que havia acontecido. Na porta da cozinha, havia
um petardo de 20cm que não tinha explodido. Se tivesse explodido, era
capaz de a casa ter desabado... Foi sorte nossa! Depois vieram os técnicos
e tiraram o petardo de lá.”
Samuel Silva lembra não ter sido diferente no front: “Chegávamos à
casa dos italianos e ficávamos com eles. Repartíamos a comida em lata com
os moradores. O feijão branco e o macarrão frios eram muito ruins. As do-
nas das casas esquentavam, e repartíamos. O convívio era muito bom. Dá-
vamos dinheiro para eles, e eles iam buscar vinho ou grapa, que é a pinga
extraída do bagaço da uva.”
Cleto Pellegrinelli comenta que “na Fazenda Cá di Chei, a família toda
ficou em um quarto só, e nós ficamos com o resto da casa. A família estava
reduzida porque os alemães haviam levado os filhos do casal para a guerra.

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Contato com a população 175

Os partisanos traziam comida para a quantidade de homens que estavam


naquela posição. Como o local era muito perigoso, eles conduziam a comida
no lombo de mulas, de madrugada, para não denunciarem a posição. Che-
gavam lá, descarregavam e iam embora. Pegávamos aquela comida e passá-
vamos para a D. Maria, que a conservava quentinha; o pessoal ia comendo
aos poucos. A situação era desagradável por estarmos ocupando a casa. Em
compensação, não faltava comida para eles.”
Por vezes, o relacionamento fraterno entre os militares era abalado
quando as ordens feriam convicções pessoais. Jarbas Ferreira relata que,
em Galicano, desentendeu-se com o tenente: “Ele disse que agi errado... Eu
não agi errado; agi de acordo com minha consciência! Um menino havia
sido atingido na perna por uma granada. O corte era muito grande, e havia
hemorragia. Precisávamos evacuá-lo. Chamei o Silva [motorista] e pedi
que ele levasse o senhor e o filho até o posto médico. Orientei o homem a
sentar no banco e pressionar a perna do menino com as pernas dele [pai].
Não demorou muito, e o tenente veio de lá: ‘Cadê o Silva?’ Eu respondi:
‘Mandei fazer um serviço’. ‘Que serviço você mandou fazer?’, perguntou o
tenente. ‘Mandei levar um rapazinho que foi atingido por um estilhaço...’
‘Quem é você?’, ele me interrompeu. Dei meu número e meu nome. Então
ele disse: ‘Você não pode fazer isso!’ Falei para ele: ‘Tudo bem! Mas só
enquanto minha consciência não mandar, porque quando ela mandar, vou
fazer... Se não, o senhor me destitua, porque o senhor tem o direito de
fazê-lo. Não aconteceu nada, mas eu mandei fazer.’”
João Gonzalez ainda se emociona ao contar a seguinte história: “Eu te-
nho uma fotografia de uma menina de uns oito anos, que tinha extenso fe-
rimento na perna. Não era permitido pelos americanos que nós déssemos
alimento nem tratamento para a população. Os restos de alimentos eram
jogados em fossas; depois jogavam gasolina em cima e ateavam fogo. Essa
menina chegou ao acampamento ferida, chorando e com fome. Não tinha
médico no local. Doeu a consciência! Falei com o enfermeiro, e ele aplicou
sulfadiazina, um pó que surtia muito efeito. Eu comecei a tratar da meni-
na ocultamente. De noite, eu saía de onde estava e ia tratar dela. Levava a
medicação — o enfermeiro explicou como eu deveria desinfetar — e pas-
sava a sulfa. Infelizmente, não lembro o nome da cidade. Se não me engano,
Camaiore. Depois disso tudo, quando estávamos prestes a sair dessa loca-
lidade, um dia vieram mãe e filha se despedir; a mãe, chorando, agradecia
por tudo; a menina — chama-se Clorinda — me deu uma fotografia dela.

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176 VOZES DA GUERRA

Eu tenho essa foto até hoje; não me desfiz dela. Não sei se ainda irei à Itália
alguma vez, mas se eu for lá, pretendo procurá-la.”
Acervo: João Gonzalez

A pequena Clorinda

Gonzalez continua: “Tudo que eu podia dar para os italianos, eu dava.


Fazia na surdina, mas dava. Disso eu não tenho remorso. Juntava as latas
de comida que não consumia e, na primeira oportunidade, dava tudo aos
italianos. Certo dia, chegou uma senhora com uma criança de uns sete
anos. Passei para ela algumas latas de comida. Foi triste ver aquilo: ela
abriu uma lata e engoliu tudo de uma vez só. A menina chorando, agarrada
à saia da mãe. Só depois de comer umas três latas de comida é que ela
deu de comer para a criança. Coitada! Devia fazer muito tempo que não
comia... Eram cenas que que jamais gostaria que acontecessem aqui. Isso é
lamentável! Guerra não é brincadeira!”
Ivan Alves diz que os italianos tinham um motivo especial para
gostar dos brasileiros: “O brasileiro dava tudo a eles. Já o americano,
não! Era mais seco, não era tão aberto e companheiro como o brasileiro.
Os italianos sabiam que perto dos brasileiros eles teriam comida, teriam
de tudo. Quando estávamos em Belvedere, quem comia primeiro eram os
italianos... De manhã cedo, os soldados levavam a bandeja e iam tomar café
com os italianos. O brasileiro era muito bonzinho e, com isso, conquistou os
italianos. Senti o reflexo disso neste ano [2012], quando fui visitar Porreta
Terme. Eu andava na rua com o Ary [Abreu], quando um italiano nos parou

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Contato com a população 177

na rua: ‘Vocês são brasileiros, não são?’ Estávamos de boina, com o distintivo
da cobra fumando... Eu respondi: ‘Somos!’ Ele disse: ‘Eu trabalhei com os
brasileiros na guerra.’ Ele disse que tinha trabalhado em uma cozinha e que
era guri na época. Em Guanela, outro italiano disse ter trabalhado com os
brasileiros, também na cozinha. Em 1994, em outra viagem, fui à Cá di Chei,
onde havia um italiano que ajudou o Cleto [Pellegrinelli] na guerra.”
Jarbas confirma o carinho que os italianos dedicavam aos brasileiros:
“Eles gostavam muito de nós. Em Fiano, estivemos na casa do Sr. Mazine. A
mulher dele levantava no meio da noite para nos cobrir. Ela chorou quando
saímos de lá. Tudo o que nós tínhamos de comida deixamos para eles; e
era bastante coisa. Despedimos da família e fomos embora.” Raul Kodama
conheceu uma italiana que sempre ia buscar comida no acampamento; em
troca de latinhas de comida, ela trazia algumas broas. Ela o convidava para
ir à sua casa, mas ele evitava: “De vez em quando eu ia lá para me esquen-
tar; os italianos falavam scaldare... Ela tinha uma menininha, que andava
com o pezinho descalço, no gelo; não tinha calçados, não tinha nada. Como
eu viajava muito, encontrei um sapatinho de couro com o solado de madei-
ra, parecido com um tamanco; comprei e levei de presente para a menina...”
Geraldo Taitson diz que, ao chegarem à região um pouco ao norte de
Montese, encontraram em uma casa dois velhinhos com mais de 70 anos de
idade: “Havia uma moça tomando conta deles — lembro até o nome; cha-
mava-se Virgínia. Perguntei a ela se não tinha irmãos. Ela disse as palavras
que mais se ouvia na região: Tedesco portato via; quer dizer, o alemão os
levou para trabalhar nas fábricas de munição ou para plantar batatas, na
Alemanha. Com esse exemplo, vemos que um povo que tem sua terra inva-
dida é um povo muito triste.”
Tristeza! Essa palavra tem amplificado sentido quando o tema é guer-
ra. Foi esse o principal sentimento dos soldados ao perceberem a situação
dos italianos. Em muitos relatos, é possível depreender o conflito que os
soldados enfrentavam para conciliar a necessidade física e os valores mo-
rais e éticos que traziam na consciência. Apesar do relacionamento qua-
se fraterno, Jarbas faz uma ressalva sobre o relacionamento dos soldados
com a população italiana: “Muitos se aproveitavam, pois eles [italianos] se
trocavam por chocolate e comida. Nem as bitucas de cigarro escapavam.
Pão, então...”
Ao final dos combates, muitos pracinhas gastavam o dinheiro que
recebiam na Itália com bebida e mulheres. A justificativa mais comum

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178 VOZES DA GUERRA

é que eram jovens e tinham necessidade de sexo. Contudo, Kodama é


taxativo: “Eu passava a seco! Sei que meu comandante, José de Souza
Carvalho, nos dava conselhos. Ele falava assim para nós: ‘Se o Brasil esti-
vesse nesta situação, vocês gostariam que alguém pegasse sua irmã ou a
própria mãe? Se você não gostaria, então vamos respeitar os indefesos.’”
Acervo: Wanda Pedroso

Estação de Bolonha, em maio de 1945

Para Miled Cury, “a guerra tem um aspecto muito ruim, que diz respeito
aos sentimentos das pessoas. Passei por uma experiência com meus com-
panheiros. Quando estava descansando por alguns dias, na retaguarda, um
garotinho puxava o meu culote: ‘Volere signorina? Volere signorina?’ Se eu
queria mulher... ‘Andare, andare.’ Ele queria que fôssemos até a casa dele.
Fomos! Entramos e subimos a escada. O pai, a mãe e algumas moças, filhas,
precisavam de comida! Ele estava negociando as filhas dele em troca de
comida... O próprio pai... É a degradação total! E a guerra leva a essa degra-
dação. No meu entender, esse foi o pior momento da guerra. Inclusive, não
usamos as senhorinhas; demos toda a comida e material que tínhamos à
disposição e fomos embora”.
Cleir de Carvalho diz que essa decadência moral transmitia uma
sensação muito ruim: “Quem tinha mulher e filha estava sujeito a situações
degradantes e à fome também; eles não tinham meios. Estávamos perto
de Pisa... Nas horas de folga, íamos à cidade para nos divertir um pouco.
Enchi os bolsos da jaqueta de escatoletas de ração que recebíamos dos
americanos. Ao chegar à cidade, sombria, chuvosa, lúgubre até, encontrei

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Contato com a população 179

uma loirinha de 9 ou 10 anos. Fui até ela, pois fiquei tocado pela situação.
Ela fazia movimento com o braço, e a acompanhei até o fundo da casa
dela. Casa simples, pátio e corredor — lembro como se fosse hoje. A mãe
segurando uma criança, fogão aceso e uma garrafa de vinho na mesa —
eles faziam muito vinho —, mas não tinha comida nenhuma. Emocionado,
peguei aquilo tudo e pus na mesa. Eram umas 10 latinhas. Todo mundo
comeu, inclusive a menina... Esse é um ato bom que eu fiz e que me vale
até hoje. Foi Deus que me mandou ali... São essas coisas que fazemos
sem vaidade, que nos fazem vencer na vida; chegar aos 80 anos com a
consciência tranquila e gostando da vida. Por isso o brasileiro é bem quisto
na Itália até hoje. Pelo seu modo de proceder, de fazer muita caridade.
Isso é da índole do brasileiro; ele gosta disso, de ser bom. Distribuíamos
a ração que ganhávamos, comprávamos chocolates e cigarros para eles na
cantina, com a parte do salário que recebíamos lá. Isso fazia com que eles
quisessem bem aos brasileiros e quisessem estar perto de nós.”
Em muitas cidades, era perceptível que a guerra estava por aca-
bar. A população de certa forma estava aliviada. Em cada cidade liber-
tada, as tropas eram recebidas com festa. A vitória era uma questão
de tempo.
Acervo: MNMSGM

Modena, 24 de abril de 1945

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Cartas e notícias

I vo Ziegler recorda que a chegada do carteiro era motivo de grande ale-


gria. Todo mundo se reunia em volta dele, que chamava os premiados
pelo nome e entregava as correspondências. Às vezes, as correspon-
dências eram entregues pelos sargentos, no front: “Podíamos escrever car-
tas, mas os assuntos da guerra não podiam ser detalhados. Havia controle
de informações, a fim de não permitir que as cartas, se interceptadas pelo
inimigo, denunciassem nossa localização.” Diz que recebeu e escreveu pou-
cas cartas, e elas demoravam muito para chegar.
Acervo:vet. Francisco C. Leal

Cartas recebidas pelo cabo Francisco Conceição Leal

Ivan Alves conta que “a melhor coisa que podia acontecer na guerra era
receber cartas. Todo mundo ficava doido atrás delas. Receber cartas do pai,
da mãe, dos irmãos, da namorada. A melhor coisa era a chegada do correio,

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Cartas e notícias 181

mas ele falhava mesmo. Talvez fosse para aumentar a emoção: quando ele
chegasse, eram mais cartas para ler... O ruim é que o correio não funcionava
do Brasil para a Itália. Recebi as primeiras em 12 de dezembro, dia do 2º
ataque ao Monte Castelo. Foram mais de 20 de uma só vez”. Pedro Vidal
confirma que cartas, jornais e revistas eram muito disputados. No meio da-
quela algazarra, havia soldados de todos os lugares do Brasil: “Como todos
me conheciam e sabiam da minha origem, um baiano disse: ‘Gaúcho, o jor-
nal é lá de sua terra.’ Era A Razão que estava lá, na Itália, em minhas mãos.
Que emoção! Nunca esqueci esse dia”.
Neraltino Santos escrevia muitas cartas. As funções de sacristão e
ordenança deixavam-no com bastante tempo livre. Também dispunha de
uma mesa, o que facilitava bastante: “Na primeira carta que mandei de Pisa,
anexei uma fotografia que tirei, segurando uma gaita. Nunca toquei gaita,
mas, como minha mãe havia ficado muito triste quando parti para a guerra,
queria que ela visse que eu estava alegre e bem por lá. Por isso, mandei essa
foto.” Acrescenta que a gaita era do barbeiro que, nas horas sem trabalho,
alegrava o acampamento com sua música.
Acervo: Vet. Neraltino Santos

Hélio Marques comenta que, por preocupação com a saúde de seus


pais, nas cartas escrevia amenidades e brincadeiras: “Minhas cartas quase
não eram censuradas. Nunca falava em guerra, frio e tristezas. Quando vol-
tei, graças a Deus encontrei meus pais vivos e bem.”
Virginia Portocarrero combinou uma estratégia com seu pai para
driblar que suas correspondências fossem submetidas à censura. Por
orientação dele, ela sempre escrevia somente a verdade. A estratégia

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182 VOZES DA GUERRA

consistia em enviar as páginas de seu diário por meio dos feridos na


guerra, evacuados para o Brasil: “Quando algum ferido que estava
baixado em minha enfermaria era evacuado para o HCE, eu entregava as
páginas a ele e informava ao papai, por carta, para procurar fulano de tal
no hospital; e papai ia lá buscar.”
Acervo: AHEx

As notícias eram compartilhadas com os companheiros

Para Benedito Bernardino, “as cartas eram uma sustentação muito im-
portante na guerra. Gostávamos de receber notícias da família, especial-
mente da namorada. Eu escrevia sempre. Enquanto ela respondia, é porque
não tinha arrumado outro”, brinca. “Depois que voltei ao Brasil, vi que eles
haviam rasurado várias palavras.” Ivan Alves afirma que namorava a moça
com a qual veio a se casar: “Escrevia todos os dias. Eu era o responsável
pela censura das cartas do pelotão; já sabia o que não podia escrever, mas
escrevia assim mesmo. Lógico que só o que não comprometia.”
Miled Cury era o censor de seu pelotão. Cabia a ele ler e carimbar as
correspondências. Ele sabia o que podia e o que não devia ser escrito. Nas
cartas, apenas uma face da folha podia ser usada; assim, ficava mais fácil
recortar as informações indevidas. Por outro lado, ajudava quem tinha difi-
culdades e até escrevia cartas para os que não podiam fazê-lo: “Estávamos
no mesmo barco”, conclui.
O jornal A Razão, fugindo da rotina dos despachos dos corresponden-
tes nacionais e das agências internacionais, em 24 de dezembro de 1944

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Cartas e notícias 183

reproduziu uma carta enviada pelo cabo Altamir Mesquita do Amaral ao


amigo Cipriano Cimas, do Hospital Militar de Santa Maria:

É com grande prazer que lhe envio esta, daqui ‘da linha de
frente’ do 5º Exército, onde fico pedindo a Deus para que vá
encontrá-lo em meio à mais ampla saúde e felicidade, junto a
todos que lhe são caros.
Enquanto [sic] a nós, aqui, já cansados de correr atrás de ale-
mães, nos encontramos muito bem, com ótima saúde, absoluta
disposição e pleno vigor, para prosseguir até o fim da missão
que nos foi confiada. Assim, envidaremos todo o esforço, sem
avaliar sacrifícios, para vingar os ultrajes que sofremos pelos
piratas totalitários. Como por certo o amigo leu nos jornais,
já tivemos vários encontros com ‘eles’, mas acabam correndo
sempre, pois, desde o menor ao maior encontro, são sempre
massacrados.
Por toda a parte que andei nada vi mais importante do que o
nosso Brasil. O panorama triste da Costa Africana, quase sem
vegetação e os confins da Espanha. O fim da viagem foi Nápo-
les, a grande cidade do Mediterrâneo, transformada em ruí-
nas, consequência da guerra. Bem próximo dessa cidade, tive a
oportunidade de ver o Vesúvio, o grande vulcão onde morreu
Silva Jardim.
Atravessamos quase toda a Itália, até encontrarmos a ‘caça’.
Tenho recebido muitas cartas daí. Ainda no Rio, escrevi ao
Amauri Dela Porta, mas não obtive resposta. Por seu intermé-
dio quero transmitir a todos os baixados e embromadores o
meu abraço.
Desejo-lhes, a todos os amigos, boa sorte, esta origem do 7º R.I.
(a) Cabo Amaral.

O Cruzeiro do Sul
Editado e publicado na Itália pelo Serviço Especial da FEB, entre janei-
ro e maio de 1945, em duas edições semanais, O Cruzeiro do Sul levava aos
pracinhas assuntos de interesse coletivo.
Em várias e distintas seções, o periódico noticiava o desenrolar da
guerra nas frentes europeia e oriental, além de temas sobre o Brasil, cum-
prindo a missão de informar e manter elevado o moral da tropa.

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184 VOZES DA GUERRA

O poema “A Volta” foi publicado na edição de 31 de maio de 1945. De


forma sucinta, expôs os sentimentos dos pracinhas que, com seus relatos,
ajudaram a escrever as páginas deste livro. Ao se referir aos jornais (que,
com a devida vênia, estendo aos livros), apresenta a antevisão de como as
histórias dos pracinhas e da FEB viriam a ser encaradas no futuro. Hoje,
um fiel retrato da realidade.

A Volta
O mar, outra vez, pertencerá aos expedicionários. As ondas do mar tan-
gem, agora, para o Brasil. Será um mar sem barcaças, esperamos. As próprias
barcaças, porém, se sublimariam com esse mar que tange para o Brasil, no
cântico da volta.
Pássaros emigratórios, de plumagem verde, que tornam com o sol às pla-
gas de nascença. O sol derreterá a neve do fox hole, que ainda se acumula
sobre as fotografias. A volta dissolverá as lembranças do fox hole, mas o fox
hole é uma coisa que ficará sempre por cima da memória, insolúvel.
A sua tristeza, amanhã, a sua cãibra nas pernas, a sua dor, o seu cansaço,
os seus pés que incham de vez em quando, recordarão o fox hole. Mas a casa
é grande e antiga, a família está reunida, há o quintal com alguns pés de la-
ranja e a calçada com algumas cadeiras de balanço.
Há os jornais que de vez em quando dirão, a propósito disto ou daquilo:
“Os expedicionários”; “Fez parte da F.E.B.”; “Foi ferido em Monte Castelo”;
“Era do pelotão que entrou em Montese”; “Montou guarda à divisão que se
rendeu”. As dores da ferida aberta em Soprassasso ou a cabeça zonza com

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Cartas e notícias 185

os morteiros que caíam em Montese recrudescerão. Mas há sempre um sor-


riso de confirmação para o que os jornais disserem.
E há os filhos que dirão “Meu pai foi um expedicionário”, com orgulho,
mas você escutará por cima do seu orgulho, com ar sério, prometendo que a
aventura não se repetirá para o seu filho.
E há o mar que você não pode esquecer. O mar que lhe custou quinze
dias de viagem, muitos enjoos, muitas comidas com açúcar, e muitos banhos
salgados que tiravam o suor para botar uma coceira.
Mas que vale tudo isso, dentro de casa, com chuveiro de água doce e co-
mida com sal, tudo pelo avesso do navio? E uma cama que de semelhante com
a neve do fox hole só tem a brancura do linho com que você se cobre?
E nunca esquecer o amor, que as cartas regaram como a água a uma flor.
O amor que tem muitos nomes, que chorou, que se despediu, que gostou do
poema “Espere por mim”, e esperou, de fato, por você.
As ondas do mar tangem para o Brasil. Nós sabíamos disso. O mar que
trouxe, leva de volta. O mar, outra vez, pertencerá aos expedicionários. O mar
que vem, o mar que vai, o mar de todos os mares, que das praias da Itália, leva
às praias do Brasil.

Cabo José César Borba

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A fé como suporte

C riada em 1944, a Capelania Militar enviou para a guerra cerca de


30 sacerdotes católicos e dois pastores evangélicos, todos voluntá-
rios. Tinham a missão de celebrar missas e cultos, além de prestar
assistência individual quando requisitados por algum integrante da tropa.
Das várias atividades que exerceu na FEB, Neraltino Santos destaca a
função de sacristão: “Eu acompanhava o padre nas missas. No começo, guri
criado na campanha, não sabia nem mudar as folhas do livro do padre, mas
depois aprendi, e deu tudo certo.”
Acervo: Vet. Pacífico Pozzobon

As celebrações faziam parte da rotina do acampamento

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A fé como suporte 187

Pacífico Pozzobon diz: “Na guerra, nos sentimos abandonados, sozi-


nhos no mundo, e é especialmente nessa hora que não esquecemos que
Deus existe. A fé é o suporte para encarar o medo e as incertezas da guerra.
No acampamento, havia um altar onde diariamente eram celebradas mis-
sas. Os capelães eram muito importantes para nos ajudar a encarar a dura
realidade da guerra.”
Ivo Ziegler recorda que todas as noites falava com Deus, pedindo pro-
teção. Ainda hoje (em 2011), guarda as orações, portadoras da mensagem
de esperança que o fizeram superar as agruras e incertezas da guerra, que
o acompanharam na jornada em solo italiano. Uma dessas orações foi-lhe
entregue por uma amiga, antes da partida. Taltíbio Custódio diz que condu-
zia consigo a imagem de São Jorge a pé [sem o cavalo, destaca], que recebeu
na Itália. Apesar de não dominar o idioma, pedia proteção em italiano. São
relíquias que os acompanharam na árdua jornada e hoje repousam entre
seus pertences.
Severino Oliveira narra que chegara ao morro Dell’Oro com alguns
companheiros. Tentou cavar um abrigo, mas não conseguiu por causa da
neve e das pedras: “Ali perto, havia uma loca [pequena gruta]. Eu e o Gon-
çalo passamos a dormir lá. No segundo dia, caiu na minha mão — não sei
de onde veio e nem quem era o dono — um livro intitulado Os milagres do
Pensamento, de Orison Swett Marden. Quando comecei a ler aquilo, eu me
senti encorajado e passei a encorajar os outros. Meu capitão, pelo telefone,
pedia: ‘Severino, leia aí alguma citação do livro.’ E eu lia para ele. Ainda hoje
me pergunto como, meu Deus, aquele livro foi parar em minha mão.”
A história narrada por Ângelo França mostra que a fé, no mínimo, ajuda
a transpor a montanha: “No dia 4 de março de 1945, comandei meu grupo
em uma patrulha durante o dia. Tínhamos notícia de que a guerra estava
praticamente chegando ao fim. Nós estávamos em um morro; na frente
de um morro ainda mais alto, havia uma casinha perdida lá no meio. O
comando precisava saber se havia gente ou se o morro estava abandonado.
Descemos o morro onde estávamos e subimos o outro com muito cuidado,
pois o terreno era muito pedregoso e perigoso. Chegamos perto da casinha.
Eu e outro soldado subimos até lá. Vimos um soldado alemão — para mim
não tinha mais de 14 anos — se aproximando; vinha assoviando e cantando.
Eu não havia recebido ordem para fazer prisioneiros; a missão era ver se
havia gente naquela casinha. Eu poderia fazê-lo prisioneiro ou poderia
matá-lo, porque eu estava com a metralhadora de mão, bem protegido.

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188 VOZES DA GUERRA

Mas eu não tive coragem de matá-lo, porque eu não sou de briga; não sou
de guerra. Eu não conseguiria matar alguém a sangue-frio; ainda mais
um jovenzinho. Tentar prendê-lo seria arriscado, pois podia haver outros
militares dormindo na casinha. Nesse caso, haveria grande mortandade,
pois meu grupo estava esperando logo abaixo, aguardando minhas ordens.
Decidi retrair, pois já tinha a informação de que o comando precisava. O
soldado perguntou: ‘Por que o senhor não vai prendê-lo?’ Eu disse que não:
‘Ou eu o mato, ou ele me mata... E isso não vai resolver nada! O melhor é
voltar e informar ao capitão o que vimos.’ Descemos o morro.”
França continua: “A partir daí aconteceu algo impressionante: um dos
soldados, apesar de bem orientado, se descuidou e pisou em uma pedra,
que escorregou e bateu em outras, que rolaram e bateram em outras... O
resultado foi um grande deslocamento de pedras na encosta do morro. Isso
chamou atenção do soldado alemão, que já estava lá na casinha. Nós des-
cemos aquele morro para voltar para o local de onde tínhamos partido. A
parte mais baixa do morro todo o grupo conseguiu subir normalmente. Em
determinado ponto, quando entramos no ângulo de visada dele, começa-
ram as rajadas de metralhadora. Aí a coisa ficou feia: as rajadas varriam
tudo. Aí entrou na história o que eu considero a mão de Deus... As rajadas
sempre batiam atrás da gente ou acima de nossas cabeças levantando po-
eira. Talvez ele [o soldado alemão], entendendo que nós não o prendemos
e não o matamos, não quisesse nos matar também, mas quisesse apenas
brincar um pouco conosco. Ele tinha o controle da metralhadora e só não
nos acertava porque não queria. Subíamos o morro o mais depressa pos-
sível; e subir morro depressa cansa, esgota! Meus soldados estavam mais
bem preparados do que eu; subiram o morro correndo e ficaram escondi-
dos. Eu fiquei acompanhando um soldado mulato, forte, que caiu.
Aí é que surge o medo... Esse soldado, apesar de forte, estava aterrori-
zado. Ele havia caído e não levantava de jeito nenhum. Deitei ao lado dele.
Você leva tiro atrás e acima; você não sabe a hora de morrer... Ele colocava
as mãos na cabeça, como se esconder a cabeça fosse sua salvação. Eu gritava
para ele: ‘Vamos, fulano!’ Não lembro o nome dele agora. ‘Vamos embora!’
Cheguei a apontar a metralhadora para ele: ‘Vamos, fulano! Vamos ou eu
mato você!’ Eu, como comandante do grupo, não podia deixar um homem
meu para trás. Se estivesse morto, poderia até deixá-lo, mas vivo, não. Ele
não se movia de jeito nenhum. Bala na frente, bala atrás, bala por cima...
Isso demorou alguns minutos. Tem uma coisa que eu não posso deixar de

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A fé como suporte 189

dizer, que eu preciso dizer, pois é importante! Naquele momento, no meio


daquele desespero, depois que eu já havia apontado a arma para ele, e, nem
assim, ele havia se mexido, eu lembrei — muita gente não acredita, mas eu
acreditei e pedi: ‘Nossa Senhora Aparecida! Ajuda!’ Quando gritei por Nos-
sa Senhora Aparecida, aconteceu uma coisa verdadeiramente incrível: Eu
senti que era um milagre. Senti uma força tremenda no corpo, e essa força
tocou ele também. Já de joelhos, levantando, ele gritou: ‘Vamos, sargento!’
Eu apenas disse: ‘Vambora!’ Saímos correndo morro acima, até ficarmos
em segurança. Repassei as informações ao comandante.” E assim terminou
mais uma missão. Com todos salvos!
Cleir de Carvalho relata: “Eu acredito que todos temos um destino;
todo ser humano tem um caminho a percorrer. Ele precisa usar a experiên-
cia dele, aquilo que ele tem de sentimento, de pensamento sadio e acreditar
em alguma coisa além de todas as coisas que existem no mundo; e esse
ser superior que existe protege e dá tudo à pessoa, desde que ela siga o
caminho mais ou menos adequado. É meu caso: Não tenho medo de nada;
pode vir o que vier que enfrento, sem a vaidade de ser corajoso, mas pela
fibra, pelo pensamento, pela fé.” Carvalho continua: “Cada um tem a sua
maneira de pensar e agir, de acordo com os princípios que aprendeu com
os pais e com o sofrimento. Deus existe! Deus existe! Eu aprendi a ver Deus
de uma maneira diferente. Eu olhava para o céu e sentia a presença dele.
Não precisava de padre, de religião a, b ou c. Eu procuro seguir regras de
conduta para não ferir ninguém. O espírito de humanidade é o que nos faz
sentirmos bem na vida.”
Acervo: Associação dos Ex-Combatentes do Brasil-DF

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190 VOZES DA GUERRA

Orlando Camargo, sempre que havia uma pausa no combate,


participava da Santa Missa: “Eu ajudava na missa; eu sabia o que estava
acontecendo. Havia um envolvimento muito grande nas celebrações.
Tudo dava muito conforto aos nossos soldados; muita esperança de
vencer a situação difícil que nós estávamos passando.” Na opinião de João
Gonzalez, “nada aproxima mais de Deus do que a sua vida estar por um
fio. Quando estamos feridos, nos lembramos logo de Deus e da mãe. Isso
é certo! Nos apegamos a Deus e ficamos implorando a melhora, a cura.
Comigo aconteceu isso.” Benedito Bernardino confirma: “A fé influencia
positivamente na guerra. Como católico, eu ia à missa e confessava quando
possível. Aos domingos eu ia à missa em alguma igrejinha da localidade
onde estávamos. Para mim fez muito bem. Penso que, para todo mundo
que tem fé, a guerra se torna mais suportável.”

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Guerra e música

A música, em qualquer situação, é um bálsamo para a alma. Na


guerra, isso ficava ainda mais evidente. Qualquer instrumento,
mesmo isolado, tinha o poder de abafar o triste som da guerra; o
barulho da destruição dava lugar a melodias que remetiam o pensamento à
Pátria e ao lar, fazendo aflorar a alegria e o bom humor dos soldados.
Acervo: AHEx

Banda de Música no acampamento


Atribuída a Napoleão Bonaparte, a máxima “Coloque uma banda na
rua, e o povo a seguirá para a festa ou para a guerra” expressa o poder da
música. Quando se pensa em música na guerra, vêm à mente as bandas ou
fanfarras. No caso brasileiro, a Banda de Música integrava o Serviço Espe-
cial da FEB. Sob a regência do tenente Franklin de Carvalho Júnior, tinha a
incumbência de estimular a marcialidade da tropa nas solenidades, levar
descontração aos acampamentos e conforto às enfermarias. Também cabia
a seus integrantes a árdua tarefa de auxiliar na evacuação de feridos e no
sepultamento de companheiros que tombavam em combate.

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192 VOZES DA GUERRA

Nesse tema, não há como deixar de recordar passagens mencionadas


anteriormente em que a música de uma banda ou fanfarra dava especial
emoção às solenidades. Presenciar a Bandeira sendo hasteada ao som do
Hino Nacional emocionava os que representavam o Brasil na guerra. Não há
como deixar de destacar a Canção do Expedicionário, que tão bem aglutinou
regiões, etnias e o sentimento de brasilidade, na letra de Guilherme de
Almeida, musicada por Spartaco Rossi.
Acervo: MNMSGM

Equipamento individual e
instrumento musical – Companheiros de jornada

Relatos transcritos no capítulo “Liberatori” evidenciam que a música


amenizava a crueldade da guerra entre os italianos. No caso dos pracinhas,
a música tinha o poder de transportá-los do horror do inverno na guerra
ao paraíso tropical, como ficou estampado na capa interna da obra Théa-
tre de Victor Hugo, que estava na biblioteca de Francesco Berti, na casa de
Guanela, no sopé do Monte Castelo. Nela está escrito: “Fevereiro, Esteve
aqui acantonado, nesta casa, o Soldado Rodolfo Vieira de Santana, junto
com diversos amigos, mas afirmo que aqui não é bom, pois todo o santo
dia está caindo bomba que é mato.” A seguir, escreveu a letra da música No
Ceará é Assim, de autoria de Carlos Barroso:

Eu só queria que você fosse um dia para ver as praias do meu


Ceará. Tenho certeza que você gostaria de ver os mares bra-
vios das praias de lá, entre os coqueiros e salgueiros bem ver-
des, balançando ao vento bem pertinho do céu, aonde nasceu a
virgem do poema, a linda virgem dos lábios de mel, oh... quan-
ta saudade de lá, oh... quanta saudade de lá...

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Guerra e música 193

Ao final, escreveu:

Brasil. Ó meu Brasil, terra da liberdade. Brasil. Ó meu Brasil,


nunca usou de falsidade, nós estamos em guerra em defesa da
nossa terra. Se a pátria me chamar, eu vou. Eu vou (e) serei um
grande defensor... Mas quando eu perdi a paciência, lá em casa,
aí a minha mulher não gostou, minha criada que fariam...

O texto termina assim, abruptamente: “Teria sido o chefe que o inter-


rompeu ou alguma bomba que caiu?”, indaga Berti, que descobriu a mensa-
gem brasileira somente há dois anos.
Depois da guerra, diversas músicas destacaram as histórias e os feitos
dos pracinhas. Uma das mais famosas é Mia Gioconda. Gaúcho de Cachoeira
do Sul, João Pedro Paz diz ser protagonista da história cantada por Vicente
Celestino. Segundo ele, “o presidente da República estava dando uma festa no
Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, e a FEB foi convidada para participar da
recepção. O Vicente Celestino estava dando um show. Depois do show, muito
alegre, com copo, fazendo brindes, saudando todos, ia perguntando para um
e outro: ‘E você, casou na Itália?... Sua esposa veio?’ Ele chegou para mim: ‘E
você aí?’ Eu, quase chorando — as lágrimas vinham aos olhos sem querer —
disse: ‘Olha, senhor Celestino; o meu caso foi completamente diferente: eu
não me casei. Não casei porque deram ordem para as tropas virem embora,
e ela ficou no cais napolitano, abanando com a mão até o navio desaparecer
no horizonte...’ Paz diz que Celestino ficou impressionado com essa história.
Mais ou menos um ano depois, ouviu a música pela primeira vez.
Conforme Paz, a música representa bem sua história com Iole Tredice,
que conheceu em Pescia, norte da Itália, após o término dos combates. A pai-
xão foi à primeira vista. Quando chegou a ordem de retornar ao Brasil, “no cais
napolitano eu deixei uma jovem italiana, de 17 anos, abanando com a mão até
o navio desaparecer no horizonte... Eu a havia deixado, com a promessa de

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194 VOZES DA GUERRA

que voltaria para buscá-la. Meu desespero maior era porque sabia que jamais
poderia cumprir; mas ela tinha certeza de que eu cumpriria a promessa...”.
Após a guerra, Paz foi morar em Porto Alegre. Sua situação não era
nada boa: “Depois de um tempo, recebi uma carta dela, dizendo que estava
grávida; e eu sem um tostão furado no bolso, dormindo no banco da praça,
na praça da Alfândega.” Foi aconselhado a procurar o Correio do Povo: “Qua-
se chorando, mostrei a carta. O Cândido Norberto — que Deus dê bom céu
para ele [falecido em 2009] —, repórter da Folha da Tarde, disse: ‘Vem cá!
Me conta essa história direitinho...’ Contei a história toda... Saiu na primeira
página! Quando saiu na primeira página, os jornais me procuraram e até
abriram uma conta no banco para mim... e [recebi] doações do comércio:
Nasci de novo...” Paz procurou o consulado e casou-se por procuração. Em
26 de outubro de 1946, Iole chegou a Porto Alegre com o filho nos braços,
conforme publicou a Folha da Tarde, em 29 do mesmo mês.
Acervo: João P.Paz

História de amor repercutiu na Imprensa

“Em todo esse período, procurei o Vicente Celestino, mas nunca o en-
contrei. Um belo dia [em agosto de 1968], em São Paulo, vi na televisão que
o Celestino estava hospedado no Hotel Normandie e faria uma apresenta-
ção no Canal 4 [TV Tupi]. ‘Vamos lá contar a ele que tu estás viva, que estás
aqui...’ Ele tinha criado essa história e não sabia que a minha Gioconda já
estava no Brasil.” Paz foi ao hotel, e informaram que ele estava gravando um
show para a TV Tupi. Deixou recado de que voltaria no dia seguinte. À noi-
te, assistiu à notícia da morte de Vicente Celestino, de um ataque cardíaco,
no Hotel Normandie. No final das contas, Celestino “não ficou sabendo de
nada, e a história morreu aí”, conclui Paz.

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Salário e fontes de renda

O salário de um soldado engajado era de 296,00 cruzeiros, equiva-


lente a quase 1.500 liras italianas (ou liras de ocupação). O sol-
dado convocado recebia pouco mais de 80,00 cruzeiros. Aribides
Pereira, que era engajado, recebia 200 liras na Itália. Outra cota era paga
à família, e o restante era creditado em uma conta bancária, no Brasil. A
fração que recebia em mãos era suficiente para passar confortavelmente o
mês, já que a alimentação era fornecida pela FEB.
Acervo: Wanda Pedroso

Sargento Mário Pedroso: “Assim se recebiam os vencimentos”

Muitos pracinhas conseguiam multiplicar esse valor, pois, além da


comida enlatada, recebiam chocolates e cigarros. Muitos não fumantes
vendiam os cigarros para os soldados norte-americanos e para os italianos,
aumentando a renda. Cada pracinha recebia um maço por dia. Pode
parecer exagero, mas o maço de cigarros norte-americanos, dependendo
da situação, podia ser vendido por até 1.000 liras para os soldados

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196 VOZES DA GUERRA

estadunidenses. Havia também os cigarros nacionais, que eram mais fortes


e mais baratos. Os cigarros não vendidos eram cedidos graciosamente aos
amigos fumantes e aos italianos. Ao final dos combates, tinham grande valor
na troca por algum souvenir com os prisioneiros alemães. Os chocolates,
bem mais raros, tinham valor incalculável.
Acervo: Vet. Ivo Ziegler

Lira italiana e de ocupação

Neraltino Santos, além do maço de cigarros diário que recebia e vendia


por 100 liras, tinha outra fonte de renda: uma máquina Kodak que adquiriu
na Itália: “Quando descobriram que eu fotografava, vendi muitos retratos
por lá. Soldados de outras baterias vinham tirar fotografias.” Recorda que,
como soldado, tinha direito de depositar um número x de liras em sua con-
ta no Brasil. Como faturava muito mais, depositava o excedente na conta
do sargento D’Ambrósio. Desse modo, conseguiu fazer um belo pé de meia
com a venda das fotografias. Esses valores, somados ao salário que recebia,
permitiram que comprasse algumas cabeças de gado após o retorno à terra
natal. A título de curiosidade, Neraltino diz que um maço de cigarros cor-
respondia ao preço de uma garrafa de champanhe francês.

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Enfim, a vitória!

I vo Ziegler, que estava em Staffoli, acompanhou a evolução das ações


de guerra pelo rádio e, a partir da metade de abril, já era perceptível
que a Alemanha estava prestes a capitular. O desfecho da guerra estava
quase selado, o que veio a se confirmar em 8 de maio, com a rendição alemã
perante as forças aliadas.
Para muitos dos pracinhas, 8 de maio, conhecido como Dia da Vitória,
apenas representa a capitulação alemã e o fim da guerra no front europeu.
Alcides Basso diz que “o verdadeiro Dia da Vitória, para os brasileiros, é re-
presentado pela data da rendição alemã e o fim da guerra para nós”. Enéas
Araújo tem a mesma opinião: “Considero 2 de maio de 1945 o Dia da Vitó-
ria. Eu estava em San Polo d’Enza, pertinho de Fornovo. O pelotão de trans-
porte ficou nessa cidadezinha, onde passei mais de 15 dias.”

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198 VOZES DA GUERRA

Ewaldo Meyer afirma que, “em 8 de maio, efetivamente a guerra já ha-


via acabado para nós, porque a 148ª Divisão Alemã havia se rendido em
Fornovo. Em 3 de maio, recebemos um teletipo [documento histórico da
página anterior], assinado pelo comandante do IV Corpo de Exército, co-
municando oficialmente o horário e o término da guerra. Guardo esse do-
cumento comigo até hoje”. Meyer continua: “Mas um combate não termina
assim... Houve resistência dos alemães em vários pontos. No noroeste, ha-
via uma unidade alemã muito forte, pronta para o combate; foi uma das
últimas a se render; foi se rendendo aos poucos. O objetivo deles era voltar
para a Alemanha pelo passo de Brenner. Ao longo da Via Emília, havia mui-
tas unidades recuando, e eles se defendiam enquanto recuavam. Quando
era necessário, mandavam bala!”
A notícia do final da guerra chegou aos pracinhas em momentos e
situações diferentes. Aribides Pereira soube que a guerra havia acabado
pelo rádio instalado na viatura de seu comandante. Eugênio Lombardo
recorda que, nessa data, estava nas proximidades de Monte Castelo com
a artilharia, pronto para apoiar a infantaria em caso de necessidade. Por
meio de seu comandante, soube que a guerra havia terminado. A festa foi
grande, conforme recorda Neraltino Santos.
Pedro Vidal relata que seu grupamento nem foi informado oficialmente
do término da guerra: “Podíamos ligar luzes à noite, fazer algazarra, e
ninguém nos repreendia por isso. Percebia-se que havia algo diferente, mas
não sabíamos que a guerra já acabara. Quando recebi a notícia, estava com
meu pelotão em uma pequena vila no norte da Itália.” Mário Santos estava
na cidade de Voghera, a cerca de 40km de Alessandria, por ocasião do final
da guerra. Lembra que “os italianos choravam e deitavam no chão de tanta
alegria, agradecidos à tropa brasileira. Havia uma banda de música que era
um espetáculo à parte, pois levava alegria e emoção para todos”.
Osvaldo Carnevalli, após ser ferido e operado em Livorno, procurou o
tenente e disse-lhe: “Eu estou bom; quero voltar para o front, para junto de
minha companhia. Dois dias depois, peguei carona em um jipe americano,
retornei para a região onde estava meu batalhão. Terminei a guerra lá. De
longe ouvi o corneteiro tocando silêncio pelo final da guerra. Isso foi mar-
cante, porque todo mundo no front queria que a guerra terminasse logo. E
com a vitória do Brasil!”, conclui.
Geraldo Taitson conta que seu batalhão seguiu até a fronteira com a
França: “Nós fomos lá caçar os camisas-negras, força de confiança do Mus-

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Enfim, a Vitória! 199

solini, que estava maltratando a população civil na região de Turim e Ales-


sandria. Nossa missão era prender os líderes. A guerra para nós terminou
em 15 de maio, perto da França.”
A enfermeira Virgínia Portocarrero resume: “Participar do Dia da
Vitória para mim foi uma glória. Eu estava em Parola, atendendo na seção
hospitalar brasileira dentro do 16º Hospital de Evacuação americano... Não
pensei que fosse tanta vitória como foi. Mas foi! O alemão era osso duro de
roer.” A seguir, alguns trechos transcritos de seu diário de campanha:

No primeiro momento, pensei que fosse uma brincadeira. Po-


rém, houve uma transformação no hospital. Enfermarias lota-
das. É um místico de alegria e de sofrimento. Pois uns pulam,
gritam, assoviam; outros choram de emoção... Comentários no
alto-falante; músicas tocando. São mais ou menos 12 horas...
Os baixados vibram dando vivas. Oh! Grande dia este 8 de Maio
de 1945. Estou atordoada e achando impossível. Parece um so-
nho, ‘A GUERRA ACABOU’. É verdade sim. Viva o nosso Soldado
Brasileiro!!!!!! Estou trêmula de emoção. Meus pacientes estão
eufóricos. Gritam e se abraçam... Os americanos assoviam e
dão gritos... Ninguém se entende. Meu coração bate descom-
pensadamente. Meu Deus, parece até um sonho me conscien-
tizar de que vou voltar para bem perto de papai e mamãe, para
o meu querido Brasil!!

A euforia era grande, mas a realidade continuava inalterada, conforme


é possível ler em seu diário:
[...] continuamos em nossa missão, incluindo em nossa assis-
tência o atendimento de feridos prisioneiros alemães. O hospi-
tal lotado de grandes mutilados não nos deixa sentir o prazer
da terminação da guerra... O sofrimento une todos, e com a
mesma solicitude e caridade me dou e sofro, irmanada com o
sofrimento grave de meus pacientes feridos.

A também enfermeira Aracy Sampaio escreveu em suas memórias:


No dia 8 de maio, fomos surpreendidos com apitos, buzinas,
música e gritos entusiásticos em várias línguas: Finish War —
Finita la guerra — A guerra acabou! Foi imensa a alegria geral, e
chorando todos se abraçavam. O que sentimos no momento eu
não posso descrever, pois era uma mistura de alegria, orgulho

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200 VOZES DA GUERRA

e tristeza. Alegria por havermos alcançado a vitória, orgulho


por nos sentirmos responsáveis na cooperação para esse fim e
tristeza por saber que iríamos deixar aquele país maravilhoso,
separando-nos de amigos e companheiros, a quem estávamos
unidos pelo mesmo sofrimento e ideal.
Acervo: Vet. Neraltino Santos

Neraltino Santos estava em Porreta Terme e tirou essa foto, em 8 de maio de 1945.
Salva de tiros de artilharia para comemorar o fim da guerra

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Andanças pela “velha bota”

T erminados os combates, os pracinhas passaram a receber autori-


zações para passear pela Itália. Pacífico Pozzobon conheceu pou-
cas cidades a partir do mês de julho, quando terminou o curso de
comunicações: “Recebi 14 dias de dispensa para viajar pela Itália. Durante
a viagem, em Padova, completei 23 anos. Também conheci Roma e visitei o
Vaticano, onde agradeci a Deus por estar vivo.” Foi a grande oportunidade
para gastar uma parte das liras que estava recebendo na Itália, “o soldo
ficava intocável, no banco”, ressalta.
Aribides Pereira ao término dos combates ficou acampado em Pom-
peia, aguardando o embarque de volta para o Brasil: “Já havia rodado muito
de jipe, durante a guerra, mas pouco parava para aproveitar as descobertas.
Ao final da guerra, conheci Veneza, Milão, Turim e outras cidades, desde a
divisa com França até a fronteira com a Suíça.”
Acervo: Wanda Pedroso

Pracinhas em Milão, em maio de 1945

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202 VOZES DA GUERRA

Ivo Ziegler recorda que, que terminados os combates, grande parte das
tropas retraiu para o Depósito de Pessoal, local de concentração e reencon-
tro com os companheiros que estavam nas frentes de combate. Nessa etapa,
aconteceram coisas gratificantes: “Com outros integrantes da Companhia,
por oito dias, tive a oportunidade de conhecer boa parte da Itália e o Vatica-
no. De lá, trouxe diversos postais e medalhinhas, que ainda guardo em uma
maleta, também adquirida em Roma. É o meu baú de recordações.”
“A guerra havia acabado; era hora de fazer festa e liberar a tensão”, diz
Alcides Basso. Certo dia, no meio da tarde, ele e dois companheiros de bi-
cicleta (um gaúcho e um paranaense) foram a um povoado próximo dali.
Depois de muito vinho, ao voltarem para o acampamento, cruzaram com a
companhia, que já estava retraindo para o sul: “Quando chegamos ao acam-
pamento, não encontramos nossas mochilas e nem o armamento. Retorna-
mos ao novo acampamento sem nada. No dia seguinte, cientes de que as
mochilas haviam sido deixadas na enfermaria, retornamos para apanhá-las.
As mochilas estavam lá, mas haviam levado minha Parabelum”, lamenta.
Nessas andanças, acrescenta Basso, “o gaúcho, que era meio maluco e que-
ria explodir qualquer coisa que encontrasse, pegou meu fuzil e quis atirar
uma granada de bocal. Não deixei, pois poderia ferir alguém e dar confu-
são. Afinal, a guerra já havia acabado e não havia justificativa para aquilo.
Tirei meu fuzil dele, mas ele pegou a granada e pôs no fuzil do paranaense.
Quando ele deu o tiro, a granada detonou no cano, que estava entupido de
terra. Ele se tapou de fumaça! Pensei que tivesse morrido. Teve até sorte,
pois só um estilhaço o atingiu no peito, um pouco acima do coração. Um dos
estilhaços arrebentou o pneu da bicicleta. Ele, todo ensanguentado, ainda
quis briga com os italianos, pois cismou que eles haviam murchado o pneu.
Depois de rápido curativo para estancar o sangue, conseguimos carona no
caminhão de um partisano e retornamos para junto da companhia. Depois
de duas cirurgias, o gaúcho se recuperou da estupidez cometida.”
Taltíbio Custódio diz que, nas cercanias de Montese, acompanhado
por um correspondente de guerra e intergrantes do pelotão, aproximou-se
de um casarão, com aparência de convento ou mosteiro, para pedir água.
Por medida de segurança, colocaram uma metralhadora com a pontaria
fixada na porta da frente: “O correspondente bateu. Após algum tempo,
a porta foi aberta, e apareceu uma freirinha bem jovem, com um véu
branco. Depois do tradicional Buon giorno, o correspondente pediu água.
A porta fechou-se. Logo apareceu uma freira idosa, perguntando se éramos

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Andanças pela “velha bota” 203

ingleses ou americanos. Ao saber que éramos brasiliani, convidou-nos para


entrar. Quando todos haviam entrado, ela começou a chorar. Preocupados,
queríamos saber o que estava acontecendo. Ela disse: ‘Eu não sou italiana.
Sou brasileira, mineira de Uberaba. Estou na Itália há 40 anos, e sou a
superiora deste convento.’ Em seguida, a freirinha trouxe uma jarra de água,
e a madre pediu que ela nos trouxesse vinho, pois a ocasião era especial e
merecia comemoração”, diz Custódio.
Acervo: Vet. Cleto Pellegrinelli

O Vaticano esteve no roteiro da maioria dos pracinhas.


Ao centro, Cleto Pllegrinelli

Enéas Araújo e seu pelotão, ao final da guerra, seguiram para Francoli-


se, em um acampamento amplo e bem estruturado: “Acredito que fizeram
terraplenagem, pois era empoeirado e, quando chovia, havia muito barro.
Em volta tinha mato. Era bem organizado; tinha luz elétrica. Fiquei lá até 6
de julho, quando embarcamos para o Brasil.” Antes haviam acampado nas
cercanias de Roma, onde o capitão o convidou para conhecer a cidade: “Fo-
mos de jipe e andamos em Roma por um dia. Um major nos acompanhou
também. Lá havia um clube só para oficiais. O capitão sugeriu me empres-
tar sua japona, com as estrelas, já que praça não podia entrar. O major não
concordou: ‘Enéas, com essa cara de criança você não passa por capitão...
não dá; não engana ninguém!’ Eu disse: ‘Pode deixar, major, que eu me viro
aqui por fora.’ Marcamos de nos encontrarmos às dez horas [da noite]. An-
dei até um bar, comi um sanduíche e chegou uma moça... Quando dei por
mim, já eram dez horas. Saí que nem louco. Estava longe do bar; perguntei
a um guarda, e ele disse para que lado eu tinha que ir. Cheguei ao bar quase
às onze horas. O major dormia em um jipe; o capitão, em outro. O major fez
cara feia; subi no jipe e voltamos ao acampamento.”

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204 VOZES DA GUERRA

Pedro Vidal conta que era facultada aos pracinhas a escolha dos luga-
res que gostariam de conhecer: “Não tive a menor dúvida de que iria conhe-
cer Roma. Se formos a um país e quisermos conhecê-lo, vamos primeiro à
capital. Desde pequeno, sonhava conhecer a Cidade do Papa, o Vaticano.”
Lembra que no dia da partida foi na lavadeira buscar umas roupas, che-
gou atrasado e perdeu a condução. Acabou pegando outro trem: “Mes-
mo preocupado por embarcar sozinho, cantava baixinho, comigo mesmo,
‘quem tem boca vai a Roma, vai a Roma. Pego o magneto, e vou a Roma, e
vou a Roma’. Cheguei a Roma e encontrei os amigos na pensão onde fica-
ríamos. Nesses oito dias, fiquei pelo centro de Roma. Era impressionante,
cheia de monumentos históricos.” Em outros passeios, conheceu Veneza,
Turim, Florença, Piacenza, Nápoles, Milão, Verona e outras. Em Milão, com
amigos de sua companhia, apreciou a famosa e saborosa cerveja italiana.
Vidal acrescenta que permaneceu em Alessandria por mais de um mês,
aguardando o retorno ao Brasil. Conforme relata, os pracinhas foram leva-
dos para conhecer Monte Castelo, Montese e outros lugares que marcaram
a campanha da FEB na Itália. Contudo, relata: “Fiquei encantado pelo Vati-
cano e voltei várias vezes; ele me fascinava.” Por isso, antes de regressar ao
Brasil, foi assistir a uma missa rezada pelo papa Pio XII em homenagem aos
membros da FEB. Segundo ele, o papa interrompeu as férias para rezar seis
missas; a última era em português.
Vasco Ferreira, nesse período de folga, entre outros lugares, foi a Pis-
toia e a Roma, onde permaneceu de 5 a 7 dias: “Ficamos no estádio dos
Mármores, ornamentado por dezenas de estátuas de mármore, represen-
tando as modalidades de esporte, que os fascistas haviam mandado cons-
truir. Nós dormíamos lá. Havia soldados ingleses, americanos e brasileiros.
Conheci o Vaticano, a praça de São Pedro, as catacumbas de São Calixto e
outros monumentos.”
Hélio Marques destaca que a prática adotada pelos americanos de
eventualmente retirar as tropas do front e enviá-las para cidades da Itália
como forma de recuperarem suas forças também foi adotada pela tropa
brasileira. Em uma dessas ocasiões, foi ao Vaticano para acompanhar uma
missa celebrada pelo papa Pio XII e a cerimônia da bênção: “Usava um uni-
forme que tinha o distintivo do 4º Corpo do 5º Exército no braço direito; no
lado esquerdo, a cobra fumando, com o nome Brasil. Durante a cerimônia
da bênção, o Papa desceu da cadeira cardinalística e veio em direção ao
povo, abençoando a todos. Durante sua caminhada, quebrou o protocolo e

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Andanças pela “velha bota” 205

se dirigiu a mim com um português fluente. Perguntou-me: ‘Você é brasi-


leiro? Estive em seu país; gostei muito de sua terra e de seu povo.’ Por fim,
se despediu recomendando-me a todos no Brasil. Benzeu uns terços que
estavam comigo e continuou. Foram poucas palavras que troquei com Sua
Santidade. Só pude responder que me lembrava de sua visita; que na oca-
sião ele era o cardeal Pacelli e que participava de um Congresso Eucarístico.
Foi certamente uma ocasião muito especial para mim.”

Fotografia de Hélio Marques mostra a diversidade de povos


que lutaram pela paz mundial

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Novamente o mar

C umprida a missão na Itália, os pracinhas retornaram ao Brasil di-


vididos em escalões. A operação de retorno à Pátria teve início em
11 de julho de 1945, quando o primeiro contingente embarcou em
Nápoles, e foi concluída com a chegada do último escalão ao porto do Rio de
Janeiro, em 3 de outubro do mesmo ano.
Acervo: Wanda Pedroso

Vista do porto de Nápoles. O “x” indica o Vesúvio

Alfredo Dalla Costa relata que “certo dia, mandaram que apanhásse-
mos todo o material, pois partiríamos para outra missão. Arrumamos tudo
e subimos em um caminhão. Ao me dar por conta, estávamos ao lado do
navio Pedro II. Restava-nos embarcar e retornar ao Brasil”.
A rota de retorno não era padronizada. Dependendo do escalão, di-
ferentes países e portos foram visitados. Por isso, houve grande variação
entre os tempos de viagem. Aribides Pereira lembra que, quando estavam
prestes a retornar ao Brasil, os norte-americanos detonaram as bombas
atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki e que, ao saírem de Nápoles, em agos-
to de 1945, a bordo do navio Mariposa, os soldados não sabiam se estavam

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Novamente o mar 207

retornando para o Brasil ou se seguiriam para o front do Pacífico combater


as tropas japonesas. Depois de saberem que a guerra estava encerrada tam-
bém no Pacífico, a viagem ficou mais leve e, em geral, mais rápida do que
a de ida. Música e descontração passaram a ser comuns e até serviam de
terapia para enfrentar os efeitos dos já conhecidos enjoos.
Acervo: Wanda Pedroso

Mario Pedroso fuma o cachimbo a bordo do Pedro I

Acervo: MNMSGM

Despedida no porto de Nápoles

Mário Santos retornou em julho. O grupamento em que veio passou


em Portugal e realizou um desfile em Lisboa. Recorda que “na despedida,
a população portuguesa acenava no cais do porto com bandeirolas do
Brasil, e nós trazíamos bandeirolas de Portugal, em uma emocionante
demonstração de amizade entre as duas nações”. Pedro Vidal não foi
a Lisboa, mas o navio em que estava permaneceu por mais de um dia,
próximo ao estreito de Gibraltar, aguardando a chegada da tropa que havia
ido desfilar na capital lusitana.

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208 VOZES DA GUERRA

Acervo: Vet. João Baptista Pedro Pozzobon

José Pereira lembra que a viagem de retorno transcorreu de maneira


totalmente descontraída. Para ilustrar, menciona que nas proximidades da
linha do Equador todos recebiam o batismo de marinheiros ultramarinos.
O desafio consistia em encontrar a linha que divide a Terra em dois he-
misférios. Quem não conseguia enxergá-la, para garantir o batismo, devia
segurar em um cabo de aço lambuzado de graxa e óleo, simbolizando a tal
linha. Cabia a algum marinheiro norte-americano fantasiado de deus Ne-
tuno, com um tridente em punho, a tarefa de comandar o cerimonial. Ao
final, os participantes da brincadeira recebiam um diploma da marinha dos
Estados Unidos.
Acervo: Wanda Pedroso Acervo: Wanda Pedroso

Viagem de retorno ao Brasil, Passagem pelo porto de Dakar,


a bordo do Pedro I Senegal, na Costa Africana

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De volta à Pátria

A lcides Basso embarcou em julho. Depois de passar por Gibraltar


e Dakar, houve um incêndio no porão do navio. O clima ainda era
de tensão, pois os submarinos alemães continuavam operando
no Atlântico Sul. Após 21 dias no mar, o navio atracou em Recife, onde o
grupamento realizou grande desfile.
Acervo: Wanda Pedroso

Recife – 31 de Julho de 1945. Navio Dom Pedro I

Ao chegar ao Rio de Janeiro, diversas embarcações escoltaram o navio


desde a entrada na baía da Guanabara até o cais do porto. Ivo Ziegler retor-
nou ao Brasil no quarto escalão. Também no Rio de Janeiro, a salva com 21
tiros de canhão recepcionando os combatentes deu um toque especial ao re-
torno. No desembarque, foi difícil conter a emoção ao pisar no solo da Pátria.
Francisco Gomes diz que a tropa iniciou o desfile em formação de 12 ho-
mens à testa de cada grupamento, mas “a população fez uma espécie de funil
e, ao final, só passava um homem por vez, com dificuldade. Quer dizer: houve
uma verdadeira apoteose para nossa recepção”. Taltíbio Custódio relata que
“a população arrancava platinas, bolsas, enfim, o que podia dos pracinhas.

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210 VOZES DA GUERRA

Até sabres sumiram das armas. Era coisa de louco!” Tamanha euforia trou-
xe alguns dissabores para Pacífico Pozzobon: “Durante o desfile, roubaram
a máquina fotográfica que eu comprei na Itália e algumas lembranças que
tinha trazido da guerra. Foi uma pena, pois levaram junto alguns rolos de
filmes fotográficos. Infelizmente, muitos dos momentos passados na Itália
ficaram somente na memória”, lamenta.
Acervo: AHEx

General Meigs na Baía da Guanabara

Acervo: Wanda Pedroso

Rio de Janeiro – 3 de agosto. Desembarque do navio Dom Pedro I

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De volta à Pátria 211

Acervo: Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa (MCSHJC)

Revista o Cruzeiro, de 28 de julho de 1945

Ewaldo Meyer diz: “Meu pai e minha mãe foram ver a chegada da FEB
para ver se eu tinha vindo junto e assistir ao desfile; eles nem sabiam se eu
estava vivo ou não. Acabei chegando em casa antes deles e tive que arrombar
a porta para entrar. Fiquei esperando por eles.” O desencontro foi justificado,
tamanha era a aglomeração popular, mas o reencontro em casa foi emocio-
nante para todos.
Enéas Araújo descreve seu retorno: “Chegamos ao porto. Formamos e
fomos para o desfile. O povo vinha para cima de nós, e acabamos em coluna
por um. Encontrei um soldado de minha companhia que veio antes. Saí de
lá com ele; fomos até um bar e tomamos uma cerveja. Depois desbordei e
fui para a estação. Estava um tumulto, porque o povo tomou conta. Fomos
para o Capistrano. Lá nos serviram arroz, jabá e mais alguma coisa. Os sol-
dados viraram tudo aquilo. Não era possível! Estávamos comendo bem no

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212 VOZES DA GUERRA

navio e serviram uma porqueira daquelas para nós comermos. Na saída


do navio, haviam dado uma garrafinha de Coca-Cola e um sanduíche, e, de
noite, apareceu uma janta daquelas... Eu não tive problemas. Convidei uns
colegas, e fomos para Madureira, onde conhecia o dono de um restaurante;
antes da guerra, eu comi lá por três meses. Quando chegamos, o dono veio
me abraçar. Eu disse a ele que nós iríamos comer, mas iríamos ficar deven-
do, porque ninguém tinha dinheiro; havíamos devolvido as liras e ainda
não tínhamos cruzeiros. O dono disse que não tinha problema, que seria
por conta dele. Foi a maior festa, pois outras pessoas mandavam cervejas
para nossa mesa em nossa homenagem. Não deu nem para comer direito.
Logo estava cheio de gente à nossa volta querendo saber novidades sobre
a guerra. Ficamos até depois da meia-noite no bar, comendo, tomando cer-
veja e contando histórias.”
Enéas permaneceu vários dias no Rio. Conforme diz, foi passar dois dias
em outra cidade com uma moça que conhecera: “Quando cheguei ao acampa-
mento, o capitão disse que eu não iria embarcar, pois eu não estava na hora
da chamada, e ele havia posto outro sargento para embarcar no meu lugar.
‘Você vai ficar aí! Você não estava pronto na hora do embarque e agora não
tem jeito.’” Enéas foi para a estação e pegou o trem para casa. Diz que assistiu
ao desfile dos pracinhas no Pacaembu: “Eu estava lá com meu pessoal; só não
desfilei porque o capitão não podia me ver.” Enéas acabou voltando antes do
regimento para Caçapava, onde houve uma semana de festa.
Pacífico Pozzobon chegou em outubro de 1945: “Após o desfile, vol-
tamos ao mesmo local de antes da guerra, uma unidade de cavalaria, em
frente ao 1º RI. Ficamos aguardando as passagens e a liberação dos papéis.
Nesse meio tempo, ainda deu um rolo com o presidente da República.” Re-
ceberam munição, passaram a noite armados e municiados, prontos para
serem empregados: “De madrugada, dois caras de Pernambuco começaram
a atirar por cima do telhado dos alojamentos. Pela manhã, na formatura, to-
dos ainda armados, o comandante perguntou: ‘Mas o que é isso? Nós fomos
lá fora defender o Brasil e agora vamos brigar entre nós?’ Quando clareou
o dia, um mundo de urubus estava sobrevoando a área. Não teve jeito: co-
meçamos a atirar neles. Dalí a pouco, fechou o tempo. O pessoal do 1º RI
fez um cerco em nós. Botaram até canhão e metralhadora na nossa frente...
Entraram lá e pegaram nossas armas e a munição que eu havia trazido da
guerra.” Pacífico se sentia muito mal naquela situação e afirma que “a ver-
são de que a FEB representava algum risco institucional não tem funda-

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De volta à Pátria 213

mento. Havíamos ido à guerra para defender o Brasil; não havíamos sido
preparados para atirar em brasileiros”, conclui.

Hélio Marques reencontra os pais

Ivan Alves, logo na chegada ao Rio de Janeiro, fez a tocha para São João
Del Rei: “Saí de noite e cheguei em casa de manhã cedo, pelas sete e meia.
Quando entrei, minha mãe estava tomando café. Quando me viu, ela des-
montou; foi um desmaio rápido, de emoção. Meu pai era mais contido, mas
foi muito bom reencontrar a família, os oito irmãos. Depois fui me encon-
trar com a namorada. Ela trabalhava na prefeitura e entrava no trabalho às
11h. Pelas 10h30min, saí de casa e me encontrei com ela na rua. Aí eu falei
para ela: ‘Hoje você não vai trabalhar. É feriado para você!’ Ela não foi ao
serviço naquele dia, e ficamos na praça matando a saudade.”
Carlota Melo, ao término da guerra, permaneceu na Itália por mais
três meses cuidando de feridos. Na chegada, a tão sonhada emoção do
reencontro deu lugar à tristeza decorrente da pior notícia de sua vida:
“Meu irmão mais velho morreu, e eu não fiquei sabendo... A carta foi
censurada e rasurada. Ele era o mais inteligente, meu conselheiro, um
pai para a família. Ele me aconselhou a ir para a guerra e iria me receber
no Rio. Fui recebida pelo meu segundo irmão, que deu a notícia de que
meu irmão, delegado em Curvelo (MG), tinha morrido. No Dia da Vitória,

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214 VOZES DA GUERRA

ele tinha dado ordem aos militares que ficaram de serviço para deixarem
todos festejar, mas dentro da ordem, e que prendessem quem fizesse
bagunça. Prenderam o filho de um fazendeiro muito rico, que estava
bêbado e fazendo desordem. O fazendeiro, quando descobriu que o filho
estava preso, foi lá e desacatou os soldados. Foi preso também! Ficaram
pai e filho presos. Depois, conversando, soltaram o pai e o convenceram
de que o filho ficaria preso até dormir e ficar bom. No dia seguinte, ele
mandou os jagunços dele ficarem de tocaia e matar meu irmão quando
ele passasse. De manhã, quando ele estava indo para o trabalho, em
uma esquina perto da igreja, mataram ele com uns cinco tiros. Eu não
fiquei sabendo na guerra porque rasuraram a carta. Quando cheguei ao
Rio, meu irmão me contou essa tragédia toda. Eu só fui ao Ministério da
Guerra para me despedir. Falei que eu devia ficar com minha família, com
minha irmã.”

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De volta à vida civil

A maioria dos soldados que participou da guerra, por não ser mili-
tar de carreira e com a desmobilização da Força Expedicionária
Brasileira ainda na Itália, chegou ao Brasil praticamente na con-
dição de civil, apesar de ter voltado fardada.
Na época, o Exército não dispunha de uma estrutura que permitisse
incorporar às suas fileiras todos os soldados que voltaram da guerra.
Muitos se sentiram abandonados. A separação foi traumática, pois rompeu
amizades forjadas ao longo de vários meses. Mário Santos resume esse
sentimento dizendo que, apesar da pompa com que os pracinhas foram
recebidos no retorno ao Brasil, as marcas que a guerra deixou em todos
não foram levadas em conta quando os dispensaram.
Ivo Ziegler recorda que na chegada à Vila Militar procederam à devo-
lução do armamento e do equipamento e foram licenciados. Em 1º de ou-
tubro de 1945, recebeu o Certificado de Reservista. A frustração foi muito
grande, pois, pouco mais de nove meses após ter deixado sua terra natal em
defesa da Pátria, pela qual sacrificaria a própria vida se necessário fosse,
estava de volta à vida civil.
Neraltino Santos permaneceu apenas uma noite no quartel. No dia
seguinte, após receber o pagamento a que fazia jus, foi licenciado. Segundo
relata, havia lhe sido dada a opção de permanecer no Exército: “Eu só
queria receber o pagamento a que tinha direito e voltar logo para casa.”
Jarbas Ferreira não quis permanecer no Exército porque ficou desiludido
com muitos militares da época, que, segundo diz, “eram terríveis, se
julgavam superiores a todo mundo... Cheguei ao Rio, tirei a farda e vim
embora. Nunca mais voltei lá”. Afirma que hoje está mudado e faz questão
de comparecer às solenidades militares.

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216 VOZES DA GUERRA

No relato de Enéas Araújo, é possível depreender as dificuldades que


tiveram os pracinhas de outros estados para retornar à terra natal. É bom
recordar que Enéas foi a Caçapava por conta própria, por ter ficado fora da
relação de embarque, e permaneceu naquela cidade por alguns dias: “Voltei
ao Rio. Quando cheguei à avenida que dá no Capistrano, o 2º RI estava de
prontidão. Perguntei para um senhor o que estava havendo, e ele disse: ‘São
seus companheiros que estão lá dando tiros. Não vá lá que é perigoso.’ Eu fui!
Quando estava chegando, uma sentinela gritou: ‘Alto lá! Identifique-se!’ Pa-
rei, e ele jogou luz em mim. ‘Ah, é ex-combatente! Você pode passar.’ Quando
cheguei ao alojamento, a turma do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa
Catarina estava toda lá, a não ser o cara que tinha recebido o dinheiro dele
e estava gastando. Você vê! Eu passei quase uma semana fora, e os coitados
todos lá, esperando... Mesmo com aquele barulho todo, eu deitei e dormi. De
manhã cedo, entrou um tenente-coronel no alojamento. ‘Tem alguma autori-
dade aqui?’ Eu me acusei: ‘Eu sou sargento!’ Ele falou: ‘Sargento! Mande cha-
mar o pessoal que está no mato e ponha em forma.’ Ajudei o tenente-coronel
a pôr o pessoal em forma, e ele informou que o trem partiria para o Sul ainda
naquele dia. Ele perguntou de onde eu era: ‘Sou de Caçapava e fiquei fora da
lista de embarque!’ Ele disse: ‘Seu caso é diferente. À tarde, você passa lá no
QG, e vou lhe entregar o ofício. Você apresenta no 6º RI.’ Quando o pessoal [do
Sul] tinha embarcado, fui ao QG e recebi o ofício. Voltei ao Capistrano, arru-
mei as minhas coisas e tomei o trem noturno para Caçapava. E ninguém ficou
sabendo que eu tinha ido a Caçapava e havia passado uma semana em casa.”
Ivo Ziegler, ao chegar ao Rio de Janeiro, na primeira oportunidade man-
dou telegrama para a família dizendo que estava no Brasil: “Ainda não sa-
bia quando seríamos liberados, por isso escrevi apenas o local, a data e a
mensagem ‘Estou vivo, volto logo.’” No primeiro dia de outubro, com cerca
de 20 outros pracinhas, iniciou a viagem de retorno a Santa Maria, no trem
paulista. Dessa vez, apesar de viajarem na 2ª classe, foram bem acomoda-
dos. Após quatro dias, estavam de volta à terra natal. Com o tio, que era sar-
gento, deslocou-se para a casa dos pais. A surpresa devia ser completa. Foi
escondido na carroceria da camioneta. Era sábado, 7 de outubro. Quando
saltou do carro para abraçar os pais, não conteve a emoção. Após quase 10
meses, estava de volta ao lar. E a vida continuava!
Pacífico Pozzobon diz que a chegada a Santa Maria foi marcante. Jovens
retornando da guerra, alegria por voltarem à terra natal e tristeza pela se-
paração dos amigos... Algumas bebidas depois, eles faziam festa pelas ruas
da cidade: “Não demorou muito, e a Polícia do Exército estava à nossa pro-

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De volta à vida civil 217

cura. Mas não teve jeito, afinal não éramos mais milicos.” Pedro Vidal recor-
da que ao chegar a São Sepé chorou de felicidade. A emoção pelo retorno e o
reencontro com a família foram muito grandes. Nunca mais seria o mesmo,
mas a vida voltara ao normal.
Geraldo Taitson diz: “O Getúlio não queria que permanecêssemos no
Exército. Ele era um ditador; nós havíamos saído do Brasil para lutar contra
duas ditaduras: uma alemã e uma italiana. Não ficava bem a FEB voltar para
o Brasil e encontrar um ditador aqui. Em 29 de outubro, ele renunciou. Eu
fui dispensado; havia sido convocado para a guerra. Fiz quatro concursos
para o Departamento Administrativo do Serviço Público. Fiz concurso para
o Ministério da Educação e fui trabalhar em Viçosa-MG. Fiz outro concurso
para escriturário; fui mandado para Niterói-RJ. Em Niterói fiz outro concur-
so para oficial administrativo; fui mandado para a fronteira com o Uruguai,
em Santana do Livramento-RS.”
Osvaldo Carnevalli preferiu sair do Exército: “Depois da guerra, botei
na cabeça que precisava esquecer toda a desgraça que vivi e seguir em fren-
te. Montei um armazém onde vendia cebola, arroz, feijão, batata, bacalhau,
foguete; vendia de tudo! Toda a semana eu ia de caminhão a São Paulo para
encontrar preços melhores. Carregava tudo e voltava pela estrada velha;
demorava a chegar; só no outro dia, com o caminhão carregado... E assim
fomos tocando o barco.” Carnevalli afirma que a pensão que recebe é muito
importante porque pôde sair de trás do balcão.
Vasco Ferreira recebeu o certificado de reservista assinado ainda na
Itália: “Embarcamos no navio Mariposa. Depois de 15 dias do mar, desem-
barquei no Rio. Fiquei por uma semana em casa. Apresentei-me no Sam-
paio, recebi a Medalha de Campanha e estava dispensado. Fui para a vida ci-
vil; poderia ter ficado no Exército, mas não quis. Voltei a trabalhar com meu
pai; fui aprender a polir joias. Ao voltar da guerra, a separação dos amigos...
Passados alguns meses, encontrava um ou outro soldado conhecido. Aque-
las amizades de guerra, mesmo dos oficiais conosco, ficaram para sempre.”
Vasco continua: “Eu trabalhei na indústria de joias para três ou quatro
judeus. Eles sabiam que eu tinha estado na guerra, mas eles nem me davam
importância, não. Eles estavam vivendo bem no Brasil graças à nossa con-
tribuição porque, se os alemães vencessem a guerra, eles estariam perdidos
mesmo. Quer dizer, em parte eles deviam a nós um ato de agradecimento.
Mas nada! E ainda nos tratavam com indiferença. Não estou me queixando
não, mas para ver como são as coisas...”

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Notícias desalentadoras

A lcides Basso escreveu a última carta para a família antes de se-


guir para o front, quando ainda estava em Staffoli: “Desde mea-
dos de abril, não mantive mais contato com ninguém. Na verdade,
nem havia escrito que estava seguindo para a linha de frente, pois isso não
era permitido. As nossas madrinhas de guerra [LBA], que estavam a par do
que ocorria no Brasil e na guerra, mandavam notícias de Santa Maria. Como
a família não havia mais recebido notícias minhas, recorreu a uma delas, que
foi ao 7º RI em busca de informações. No quartel, soube que não havia infor-
mação de que eu tivesse morrido, mas a família já contava com o pior.” Ao
chegar a São Paulo, passou um telegrama para a família, dizendo que estava
bem, mas a notícia acabou não chegando ao destino: “Só sei que cheguei de
surpresa e que a festa foi grande.”
Dalla Costa corrobora a informação de que nas cartas só era permitido
escrever sobre amenidades. Nada sobre o desenrolar da guerra. Ao chegar
ao Rio de Janeiro, mandou telegrama aos pais informando que estava de
volta ao Brasil. No entanto, a noiva não ficou sabendo disso. Seguiu para
Caçapava, onde recebeu o pagamento e, seis dias depois, foi licenciado do
Exército. Quando chegou a Santa Maria, soube que o pai e a noiva haviam
recebido cartas de luto dando ciência de sua morte. Depois disso, o reen-
contro foi inesquecível.
Benedito Bernardino lembra que “correu um boato [em sua cidade] de
que eu havia sido ferido em combate. Tirei uma fotografia, dessas de meio-
corpo, e mandei por carta. Eles [familiares] receberam a carta e responde-
ram pedindo que eu mandasse uma foto de corpo inteiro, porque tinham
falado que eu havia perdido as pernas. Tive que mandar outra foto para
provar que estava bem. Minha mãe não sossegou enquanto não recebeu

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Notícias desalentadoras 219

essa foto. Quando mandei a foto de meio-corpo, não calculei que haviam
dito que eu havia perdido as pernas...”
Outro que passou por essa experiência desagradável foi Geraldo San-
felice. Ao ser ferido em combate e ter a perna amputada, talvez por má in-
terpretação, sua baixa foi considerada como morte e noticiada no jornal.
Os parentes já haviam chorado a perda quando receberam a primeira carta
dos Estados Unidos informando que ele estava por lá, em tratamento. Ane-
xou uma fotografia na qual estava sem a perna. O morto havia renascido.
Souberam que o guerreiro havia perdido uma perna na guerra, mas isso foi
motivo de muita festa na 4ª Colônia...

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Reaprendendo a andar

M uitos dos pracinhas mutilados em combate, antes de retorna-


rem ao Brasil, passaram por um processo de reabilitação nos
Estados Unidos.
Geraldo Sanfelice foi evacuado de navio após amputar a perna em
um hospital de campanha. Em Denver, no Colorado, depois de retirar mais
um pedaço da perna que havia gangrenado, iniciou o processo de recupera-
ção física. Posteriormente, foi transferido para o Bushnell General Hospital,
em Brigham City, em Utah, onde foi confeccionada uma prótese mecânica
e realizada a fisioterapia. Recorda que estavam com ele Rubens Leite de
Andrade, o capitão Yedo Blauth, os sargentos Teles e Farias e outros tantos
mutilados na guerra.
Acervo: Vet. Geraldo Sanfelice

O Bushnell General Hospital. Acima, brasileiros e enfermeiras

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Reaprendendo a andar 221

Sanfelice recorda que o amigo Rubens era craque na sinuca e que, para
descontrair, eles iam ao clube tirar dólares dos americanos. Rubens lembra
que cada partida de sinuca normalmente era jogada a cinco centavos. Como
ele era bom no jogo e se garantia, apostava um dólar. Desse modo, chegava
a ganhar cerca de 150 dólares por semana. Com o dinheiro do jogo, ajudou
um companheiro que insistiu em visitar Carmen Miranda, em Hollywood.
Conforme diz, o amigo, após ser recebido na entrada de serviço, decepcio-
nado, gastou tudo o que tinha em bebida. Para conseguir retornar a Utah,
mandou um telegrama aos amigos pedindo dinheiro: “Fizemos uma coleta
e mandamos para ele. Só assim pôde voltar ao hospital.”
Segundo Sanfelice, entre os pracinhas que estavam lá, não havia baixo-
astral, pois os amigos se apoiavam mutuamente. Além disso, recebiam a
atenção das enfermeiras que, segundo ele, além de bonitas, eram muito
atenciosas. O atendimento psicológico foi muito importante para manter
a autoestima de todos: “O tratamento nos Estados Unidos foi muito bom.
Recebíamos atendimento completo, tanto na parte física quanto na psico-
lógica.” Para Rubens Andrade “o tratamento não foi apenas bom; mas foi
excepcional! Recebíamos alimentação especial; assim que sentávamos à
mesa, uma moça trazia a bandeja.”
Acervo: Vet. Geraldo Sanfelice

Reabilitação psicológica

Rubens conta que o progresso de um era estímulo para os outros: “Um


dia vi um mutilado americano carregando sua bandeja, mesmo com dificul-
dade. Fiquei envergonhado e nunca mais aceitei que trouxessem a minha.
Passei a entrar na fila e a carregar minha bandeja. Os americanos nos davam
bons exemplos; aprendi muito com eles. Entre os baixados havia um espírito

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222 VOZES DA GUERRA

de solidariedade muito forte. Nos Estados Unidos, conheci o capitão Iedo


Blauth. Mesmo existindo uma enfermaria separada para oficiais, ele estava
sempre conosco. Ele nos tratava com igualdade. Era nosso amigo.”
Acervo: Vet. Rubens Andrade

Reabilitação física – Pracinhas em recuperação participam de “Corrida do Ovo”

João Gonzalez, depois de haver sido ferido em Camaiore, recuperou-se


parcialmente e voltou ao front. Após baixar novamente, seguiu para Flo-
rença e Nápoles. Em razão da gravidade de seu caso, foi evacuado para os
Estados Unidos por via aérea: “Fiquei uma temporada lá, onde os médicos
me examinaram e me operaram de novo. O tratamento foi muito bom: eles
faziam de tudo para que nos sentíssemos bem. Se não podíamos andar, co-
locavam-nos em uma padiola e nos levavam para o campo. Lá não tinha
futebol naquele tempo. Era [um jogo] com bola oval. Eu não gostava da-
quilo, mas era um lenitivo, e saíamos do hospital... Teatro era comum. A as-
sistência psicológica era excelente: eles faziam de tudo para esquecermos
os terrores da guerra, mas há coisas que não têm como esquecer... Eles se
esforçavam; procuravam orientar e nos distrair, mas, volta e meia, a mente
retornava àquela situação. A maior dificuldade foi o idioma. Minha cama
era a 112. Estava entre um britânico e um russo, este era nosso aliado; por
fim, a capitulação de Berlim se deve aos russos. Jogávamos baralho o dia
inteiro, a dinheiro. De vez em quando, nos desentendíamos, mas logo che-
gávamos a um acordo.”

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Reaprendendo a andar 223

Acervo: Rubens Andrade

Sanfelice (e) e Andrade (c) em Brigham City

O tempo de recuperação variava conforme a complexidade do caso.


Sanfelice, após um ano e muitas sessões de fisioterapia, estava reabilitado
e podia andar sem maiores problemas. A bordo de um navio de carga, de
Nova York seguiu para o Rio de Janeiro. Depois de cumprir os trâmites bu-
rocráticos no Hospital Central do Exército e no Ministério da Guerra, mais
de um ano e meio após ter partido de Santa Maria, estava liberado para
retornar à casa da família.
Acervo: Vet. Geraldo Sanfelice

Visita do Alto-Comando da FEB aos baixados nos EUA

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Missão cumprida!

E ntre todos os pracinhas que prestaram depoimento, é unânime a


opinião de que a guerra não vale a pena. Ao definir sua participação
na FEB, Eugênio Lombardo diz que a guerra representou mais uma
missão a ser cumprida: “Defendemos o Brasil e ajudamos a FEB a cumprir
bem sua missão no sentido de acabar com a guerra.” “Nós saímos desa-
creditados do Brasil, mas hoje posso dizer que fomos mais do que bons
soldados; nós éramos os melhores soldados. Cumprimos muito bem nossa
missão”, diz Rubens Andrade.
Alcides Basso é categórico ao afirmar que “quando se vive uma guerra,
nunca mais se quer saber de outra, porque ela não deixa nada de bom para
ninguém. Sempre existiram guerras, que não levaram a nada, a não ser à
destruição”. E conclui: “A guerra é um ato selvagem que acaba com a família,
com a moral, com tudo de bom. É o fim do mundo!”
Ivan Alves assegura que “valeu à pena ir à Itália para combater o que
nós não queríamos aqui. Aqui muitos choraram e ficaram tristes com a
perda de entes queridos, mas nem imaginam o que vimos por lá. Foi mui-
to triste o que vimos por lá. O que mais me impressionou na guerra foi a
miséria moral. A material também, mas, enfim, é ela que provoca a outra.
Vale a pena você ir brigar nos confins do mundo para não ter de brigar
dentro de sua casa. Pelo menos você não vê desandar a moral em sua
terra, em seu país.”
Para Ary Abreu “heróis foram todos aqueles que cumpriram bem sua
missão na guerra... Os que foram para a guerra e não voltaram são heróis
que pagaram com a vida. Cada vez que vou ao Monumento e vejo o nome de
meus comandados que tombaram na guerra, eu rezo uma Ave Maria para
cada um deles. Se eu estou vivo, é porque eles me ajudaram a cumprir a

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Missão cumprida! 225

missão, que foi difícil. Eles são verdadeiros heróis, que nos ajudaram a cum-
prir bem a missão que nos havia sido imposta”.
Cleto Pellegrinelli, quando voltou à Itália em 1995, sentiu-se muito bem,
“com sensação do dever cumprido, ainda mais porque que sou filho de ita-
lianos. O papai era de pertinho de Ferrara, e mamãe, de Bolonha. As posições
onde brigamos na guerra eram perto dessas cidades. Eu era um brasileiro, fi-
lho de italianos; eu me sentia filho de duas pátrias e lutei para libertar a Itália
como se fosse o Brasil, porque eu tinha paixão pelos meus pais e adorava ser
filho de italianos; ao mesmo tempo, estava representando o Brasil em uma
guerra tão difícil”.
Divaldo Medrado acredita ter cumprido bem sua missão, destacando a
solidariedade aos italianos: “Saímos do Brasil com a esperança de realizar-
mos nosso trabalho com eficiência e trazer um resultado positivo. Assim foi
nossa missão. Assim foi que agimos! Eu me sinto muito feliz por ter colabo-
rado com os italianos, mesmo indo contra o que os americanos pregavam.
Eles diziam: ‘Primeiro vamos ganhar a guerra; depois nós cuidaremos dessa
gente.’ Mas o brasileiro não fez aquilo; na medida do possível, ajudou as famí-
lias italianas. Apesar de a guerra ter sido uma desgraça, houve muitos fatos
que recordamos até com saudades, especialmente as amizades que fizemos
e a solidariedade.”
Ivan acredita que cumpriu seu dever: “Eu não fiz força para ir à guerra,
mas também não fiz nada para ficar no Brasil. Não pedi para ir; fui porque era
militar e estava em um regimento designado para a guerra. Cumpri minha
obrigação. O que eu tive que fazer na guerra ninguém fez por mim. O que era
atribuição de minha função eu fiz. Desempenhei bem minha função e pro-
curei ser eficiente. E fiz porque era a minha vez de fazer; se fosse hoje, outro
teria que fazer, e é bem possível que fizesse até melhor. Eu não fiz nada de ex-
traordinário. Não sou um herói! Até dizem que sou, mas para mim herói é um
cara que se destaca, como o Max Wolff, que enfrentou tudo sem demonstrar
medo. Não acredito que alguém não tenha medo. Ele é natural! É próprio do
homem, mas não pode é ser covarde e se deixar dominar.”
Taltíbio Custódio acredita que cumpriu bem sua missão, mas não se
considera um herói: “Heróis são aqueles que tombaram na guerra. Sou uma
pessoa que combateu por um ideal — a liberdade do mundo, que estava
sendo posta em risco pelo nazifascismo. Todo brasileiro deve defender a
terra onde nasceu. A Bandeira é um símbolo que representa a Nação; ela
merece respeito. A Pátria merece nosso sacrifício. Sinto-me honrado por ter

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226 VOZES DA GUERRA

defendido nosso Exército e nossa Pátria empurrando para longe a barbárie


que havia na Itália. Por isso, me sentia obrigado a mantê-la bem distante de
nossas fronteiras. Aquela era a hora de cumprirmos com nosso dever.”
Acervo: Vet. Taltíbio Custódio

Reverência a um amigo, herói tombado em combate

Vasco Ferreira concorda: “Não me considero e nunca fui herói. Apenas


cumpri, como muitos outros, minha missão com muita dor, com muito medo,
com muitas desilusões e com algumas certezas. Herói é alguém que faz algu-
ma coisa acima do comum, extraordinária, que vai além daquilo que se po-
deria e que se pode fazer; alguém que ultrapassou esses limites e fez; esse foi
herói, por ato de bravura, decorrente de violência ou por ato humanitário.”
João Gonzalez diz: “Quando eu saí da companhia, ainda na Itália, meu
comandante, capitão Atratino, reuniu o pessoal que não estava no front e leu
o Boletim Interno, no qual constava meu elogio. Depois de descrever as cir-
cunstâncias em que fui ferido, ele disse: ‘O sargento Gonzalez pode ir tranqui-
lo; cumpriu seu dever. A cicatriz que tem em seu peito não é uma medalha. É
muito mais! É o atestado do ardor com que combateu nos campos da Itália,
a causa sagrada do Brasil.’ [Individual em Campanha]. Isso foi dito pelo meu
comandante quando eu saí de lá... Acho que o que eu tinha ido fazer, eu fiz.”
Miled Cury é conciso: “Minha missão foi bem cumprida, porque eu fiz tudo o
que minha Pátria esperava de mim. Eu não decepcionei minha Pátria!”
Geraldo Taitson considera que a missão foi bem cumprida: “Falam até
que o Brasil só foi passear na Itália. Mas que passeio é esse em que morrem
quase 500 pessoas, a maioria em combate? Por que 2.700 brasileiros foram
feridos? Então, nós não fomos passear, não... Nós fomos para brigar mesmo;

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Missão cumprida! 227

para vingar as mortes nos navios brasileiros torpedeados em nossas águas


territoriais. O Brasil enfrentou a Segunda Guerra Mundial. Quanto a isso, não
há dúvidas. E lá, nós atacamos Monte Castelo ao lado dos americanos e apa-
nhamos com eles. Depois, tomamos sozinhos.” Taitson complementa: “Eu
não queria ser visto como covarde pelos meus amigos, pela minha família e
pela minha Pátria. Por isso eu procurei desempenhar bem todas as missões
que a mim foram atribuídas. Só isso!”

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Separação e reencontros

C onforme relatam muitos pracinhas, o momento da separação foi


muito difícil. Afinal, foram vários meses enfrentando juntos as
tristezas da guerra, mas, acima de tudo, compartilhando solida-
riedade e celebrando a alegria de continuarem vivos. Por isso, reencontrar
velhos camaradas significa celebrar a vida.
Pacífico Pozzobon, ao retornar para casa, passou alguns dias sem que-
rer ver ninguém, a não ser a família. Mesmo que muitas pessoas o procu-
rassem para saber sobre a guerra, só queria dormir e descansar. Os sen-
timentos eram confusos: “Apesar da felicidade por ter voltado para casa e
estar com a família, eu estava profundamente triste. Era tristeza pela se-
paração de uma irmandade. Fiquei perdido! Foi uma das piores coisas que
aconteceu. A separação foi muito difícil. Tinha feito amigos de Pernambu-
co, do Amazonas, do Rio, de Minas e de outros tantos lugares. Estávamos
sempre juntos, por quase 10 meses. Saber que não iria mais encontrá-los
foi uma paulada. Nós éramos muito unidos; era uma união diferente da
que temos com a família de sangue. Apesar de termos tido formações total-
mente diferentes, todos se ajudavam, desde o comandante até o soldado. A
missão era defender o Brasil, mas, sobretudo, tínhamos que proteger uns
aos outros.”
Ivan Alves confirma que “na guerra, nasce uma amizade tal que você
está sempre à disposição de seu companheiro. Há um sentimento de ser-
vir; de que eu dependo do companheiro e ele de mim. A gente tem que ser
amigo fiel e fazer tudo pelo outro. Esse sentimento permanece até hoje: se
eu encontro um companheiro de guerra que passou pelo mesmo que eu
passei, eu fico feliz da vida porque sinto que continua aquele amigo fiel,
verdadeiro, do peito”.

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Separação e reencontros 229

Acervo: Vet. Pacífico Pozzobon

Santa Maria-RS, na década de 1940

Após o casamento, Pozzobon permaneceu por algum tempo na agri-


cultura. Em 1953, mudou-se para Santa Maria, onde foi proprietário de um
restaurante. Dividia o tempo com a profissão de agente de polícia do Esta-
do. No restaurante, teve a oportunidade de manter e fortalecer a relação de
amizade com outros veteranos. Pela metade da década de 1960, entrou no
restaurante um cidadão que, na hora, ele reconheceu: tratava-se do velho
tatu peludo, companheiro de guerra, que havia sido nomeado delegado do
Serviço Militar de Sobradinho-RS: “Quando chegaram outros pracinhas, re-
solvi cutucar o tatu. Ele abriu um largo sorriso e fez a maior festa. O apelido
já não o incomodava. Reencontrar velhos amigos era motivo de festa.”
Os encontros de veteranos e ex-combatentes da FEB sempre foram
— e continuam sendo — uma boa oportunidade de reencontrar velhos
camaradas. Ivan Alves diz que, em um encontro de ex-combatentes,
aproximou-se dele um senhor que estava com um retrato feito em Pompeia,
que eles conheceram depois da guerra, quando ainda estavam acampados
em Francolise: “Era uma foto do meu grupo de amigos. Ele perguntou: ‘Você
conhece esta turma aqui?’ Aí eu disse: ‘Esse sou eu, esse é o Lacerda, esse é
o Renato, esse é o fulano de tal...’ Dei o nome da turma toda da companhia
que tinha ido conosco a Pompeia. Ele ficou me olhando e disse: ‘O Renato
sou eu! E você não está me reconhecendo...’ Minha reação foi em tom de
brincadeira: ‘O Renato que eu conheço é esse da foto. Brotinho e bonitão!’
Tínhamos toda a liberdade para brincar porque éramos grandes amigos;
era muito bom reencontrá-los.”

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230 VOZES DA GUERRA

Acervo: Cmdo 3ª DE

Solenidade alusiva à Tomada de Monte Castelo, em Santa Maria – 2014


Rubens Andrade relata que as solenidades militares sempre foram
boas oportunidades para reencontrar amigos: “Eu viajava pelo Brasil todo
para condecorar com a Medalha da Vitória e Medalha Jubileu de Ouro da
FEB. Sinto o maior orgulho de ter participado da FEB. Somos respeitados
pelo que fizemos. Certa vez, fui condecorar com uma medalha um general
de exército, Comandante Militar do Leste. Ele ficou na posição de sentido
prestando continência para mim. Cochichei para ele: ‘General, abaixe essa
mão!’ Então ele disse: ‘Não, senhor. Este é meu sinal de respeito.’ Eu conde-
corava assim: ‘Eu, Rubens Leite de Andrade, mutilado da FEB, tenho a grata
satisfação de condecorar V. Exa./V. Sa. com a Medalha da Vitória, que re-
presenta para nós, ex-combatentes do Brasil, de terra, mar e ar, nosso suor,
nossa noção do dever cumprido e o sacrifício daqueles que tombaram em
defesa da paz mundial. Receba a minha homenagem!’ Como eu falava alto,
não havia quem não se emocionasse. Hoje eu sou uma figura do passado,
mas ainda estou presente.”
Outras tantas histórias emocionantes aconteceram. Mesmo que o tem-
po apague da memória os detalhes e os pormenores dos dias vividos na

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Separação e reencontros 231

guerra, não apagará os exemplos de amizade e camaradagem vividos ao


longo dessa jornada.
Foto: Sgt Santos/MNMSGM

Solenidade do Dia da Vitória, no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda


Guerra Mundial, em 8 de maio de 2014.

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Marcas da guerra

D e uma guerra restam mutilados. Muitos combatentes ficaram com


cicatrizes no corpo ou tiveram o corpo mutilado, o que tornou a
vida mais difícil. Outros, a despeito de não terem marcas aparen-
tes, as trazem na alma atormentada pelos fantasmas da guerra.
Com a desmobilização da FEB ainda na Itália, a maioria dos pracinhas
foi abandonada à mercê da própria sorte assim que pisou no solo da Pátria.
Muitos jamais conseguiram superar a mágoa pelo descaso. Relatos dão
conta de que vários dos homens que venceram a guerra pela liberdade,
pela democracia e pela paz mundial perderam a luta contra a indiferença e
a ingratidão da sociedade. Entre os pracinhas, é comum ouvir histórias de
companheiros que retornaram da Itália com problemas psicológicos, com
dificuldades no convívio familiar e na readaptação social.
Entre os males físicos decorrentes da guerra, estão os causados pelos
vícios, como o tabagismo e o alcoolismo. João Gonzalez conhecia bem o efeito
que a necessidade do cigarro causava ao organismo; isso ficava evidente
quando os italianos imploravam por uma ponta de cigarro que fosse: “O
vício domina o homem. Depois de viciado, o organismo necessita daquilo...
Os cigarros americanos eram suaves, fraquinhos... Comecei a fumar lá [na
guerra] e fumei até o dia 26 de fevereiro de 1950, quando estava mal de
saúde...” Gonzalez havia baixado ao Hospital Militar: “Os médicos de lá me
orientaram a procurar o professor Alípio Corrêa Neto, que foi o chefe do
Serviço de Saúde da FEB e que me operou na Itália. Eles queriam a opinião
dele a respeito de meu caso.”
O Dr. Alípio trabalhava no Hospital Santa Catarina: “Depois de me
examinar, disse: ‘Você precisa baixar aqui! Hoje não, porque você não está
preparado. Mas amanhã você vai se internar aqui.’ Eu sabia que o hospital

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Marcas da Guerra 233

era caro e disse a ele que eu era terceiro-sargento e não teria como pagar. Ele
me perguntou: ‘Você tem pijama?’ E respondi: ‘Tenho!’ Ele: ‘Tem chinelo?...
Tem escova de dentes? Então, amanhã às 7h, esteja aqui!’ Fiquei seis meses
no hospital. Entrei lá com 43kg de peso. Eu tenho 1,76m... Saí de lá com
49kg. Quando saí, ele me falou: ‘Olha, se você quiser viver mais dois anos,
pare de fumar e procure um lugar para morar que seja bem arborizado, que
tenha bastante oxigênio.”
Gonzalez, que tinha casado havia pouco tempo, juntou as economias
que restaram da guerra com as que haviam sido depositadas no banco para
sua mãe — ela recebia e depositava em uma conta para ele —, comprou um
terreno na Vista Inglesa e fez uma casa: “Por mais de 20 anos, fiquei meio
atrofiado, por conta dos tendões que haviam sido rompidos pelos estilha-
ços. O Dr. Alípio havia dito que isso desapareceria com o tempo, sem eu
perceber... Dito e feito! Mas a dor durou mais de 20 anos.”
Além da dor física, Gonzalez precisou conviver com outro drama: “Fi-
quei uma temporada agitado... Meu sono era agitado, tinha pesadelos à
noite, acordava assustado, aflito. Tanto é que, quando cheguei, fiquei seis
meses no Rio de Janeiro, no pavilhão neuropsiquiátrico. Eu não era louco,
mas eles praticamente me julgavam como tal. Era consequência da guerra;
eu estava traumatizado. Não é fácil... A guerra não é fácil! E quando o cara
é ferido nas condições em que eu fui é pior ainda. Depois que fui ferido, eu
ouvia um tiro e ficava apavorado. Antes eu nem ligava, mas depois que eu fui
ferido a coisa mudou. Não é fácil não! Eu levei uns 8 a 10 anos para superar
isso. Até hoje, volta e meia, ainda sonho com a guerra. No pesadelo, sofro,
mas quando acordo, fico aliviado. É triste; é muito triste uma guerra!”
Raul Kodama, que estava junto quando foi tomado o depoimento de
Gonzalez, lembra: “Quando cheguei da guerra, minha família pensou que eu
estava louco. Fui parar no Hospital das Clínicas, em São Paulo... Mas... é por-
que vivemos aquilo tudo; aqueles horrores da guerra. Em parte, acabamos
perdendo o sentimento humano. Isso é consequência da guerra. Eu não po-
dia ficar no meio de muita gente que dava vontade de bater, de quebrar. Essa
neurose foi passando; com o tempo, voltei ao normal.” Kodama teve sorte,
pois no Hospital das Clínicas era protegido do diretor, o Dr. Alípio Corrêa
Neto, companheiro de guerra. Francisco Gomes passou por drama parecido:
“Depois que dei baixa do Exército, me esforçava muito para não ficar contra-
riado com qualquer coisa, porque eu sabia que, se isso acontecesse, desen-
cadearia alguma coisa ruim que vivi na guerra. Isso durou uns dois anos.”

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234 VOZES DA GUERRA

Foto obtida na Itália

As cenas vistas e vividas na guerra assombravam após o retorno

Ewaldo Meyer ficou com trauma até certa época, pois o bombardeio
era violento: “Noite e dia era tiro em cima de onde estávamos. Mesmo para
nós, que estávamos longe do front, não foi fácil, especialmente por causa
do famoso canhão de 170mm de bitola, que tinha uma explosão violenta;
instintivamente, nos abaixávamos. Certa vez, passando pelo Viaduto do
Chá [São Paulo], ouvi um foguete; instintivamente, me abaixei. Esse foi meu
trauma, mas aos poucos ele foi morrendo.” Meyer complementa: “Na mente
de qualquer ex-combatente, ainda hoje está nítido o terreno à nossa frente,
com os riscos e a satisfação de ter terminado a guerra; isso não sai da mente
de ninguém.”
Para Cleir de Carvalho, os primeiros anos foram mais difíceis: “Até me
readaptar à rotina de levantar pela manhã, tomar café, ir trabalhar, me re-
organizar espiritual e fisicamente, foi muito difícil. Brigava fácil! O dinheiro
que ganhei joguei todo fora... Houve um transtorno muito grande naqueles
primeiros cinco anos. Mas depois me ajustei. Era o trauma da guerra: como
é que ia voltar a ser uma pessoa normal depois de tudo que eu passei? Foi
muito difícil... Pouca idade... Foi preciso muita luta até ficar tudo engrenado
de novo, até que, em 1956, comecei a me estruturar, e essa reestruturação
vem sendo acompanhada ao longo dos anos. Hoje acabou tudo: Não tenho
mais traumas, mais nada. Acabou tudo!”

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Marcas da Guerra 235

Newton Lascalea diz: “Os alemães vinham todas as noites, nem que fosse
para jogar uma bombinha para inquietar. Como não sabíamos a hora que eles
viriam, não podíamos dormir. Como eu praticamente não sentia sono desde
criança, eu ficava de sentinela quando os outros estavam cansados. Mas se
você fica olhando para aquela terra coberta de neve, noite após noite, você
cria uma vida paralela à realidade que você está vivendo; você se perde no
pensamento. Quando voltei, pegava o bonde e, quando chegava ao destino,
eu não descia. Pensava em alguma coisa e desenvolvia aquela ideia como se
estivesse em um filme... Eu entrava em transe. Para mim foi essa a marca que
a guerra deixou. Mas muitos ex-combatentes tiveram problemas mais sérios
e morreram na rua como indigentes, sem direito a nada.”
Divaldo Medrado, ao voltar ao Brasil, já no HCE, foi julgado incapaz
definitivamente para o serviço do Exército, sem poder prover os meios de
subsistência, e foi reformado: “Fiquei com os pensamentos da guerra na
memória por algum tempo, mas tive um bom tratamento e não fiquei com
nenhum trauma.”
Paulo Carvalho credita à fé sua sobrevivência e ainda hoje tem sonhos
desagradáveis: “A fé foi — e é — muito importante. Eu pedia a Deus para es-
capar da morte e à Nossa Senhora das Graças para me ajudar. Até hoje sonho
que estou na guerra de novo, sabia? Eu dizia para mim mesmo: ‘Paulo, você
escapou da guerra, mas se cuide, senão você não escapa de novo não.’ Você
trata de se esconder direito... Faz 68 anos, e sonho que estou na guerra de
novo. Então eu acordo com aquela sensação de sufocamento, porque para
quem foi de linha de frente foi duro.”
Vasco Ferreira ficou com “neurose de pisar na terra por causa das minas.
Eu tinha um medo danado de pisar nelas. Depois de 14 de novembro [data em
que foi atingido pela explosão de uma mina], onde eu pisava, tinha medo. Até
hoje tenho isso. Eu não vou à Itália de jeito nenhum! Para mim ainda tem mina
naquilo... É estranho isso, mas foi uma tragédia para mim.”
Pacífico Pozzobon diz que “muitos pracinhas não conseguiram superar
os traumas que trouxeram da guerra e se entregaram à bebida, sem ter
a quem recorrer... A pensão que passaram a nos pagar foi muito justa,
mas infelizmente muitos veteranos morreram sem ter recebido o justo
reconhecimento da Pátria”. Divaldo Medrado complementa: “Lamento que
muitos companheiros tenham ido embora sem receber o reconhecimento
que nós recebemos, em 1988, com a pensão para os ex-combatentes, que
aceitamos de bom grado. Muita gente se suicidou; havia muita gente que não

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236 VOZES DA GUERRA

tinha emprego, e o Governo, na época, não se interessou por nós; não avaliou
o verdadeiro valor do soldado.”
Acervo do pesquisador Claudevan Melo

Diário de Notícias – 13 de março de 1946


“É doloroso de vez em quando depararmos com quadros tristes como de ex-comba-
tentes pelas ruas da cidade a esmolar ou então, abobalhados, vítimas de neuroses
de guerra. Daquêle entusiasmo que muitos ainda estão lembrados, por ocasião dos
pracinhas da Itália, nada mais resta. Lá uma vez ou outra, quando deparamos com
uma fotografia mostrando a tristeza em que se encontram milhares de nossos ir-
mãos, sentimos um nó na garganta. Mas é passageiro. Poucos, ou quase ninguém, fêz
da causa dos ex-combatentes um ideal e, ainda que enfrentando a má vontade dos
poderes públicos, continuam lutando sem esmorecimento.
É nobre e heróica a frase de Siqueira Campos: “à Pátria tudo deve se dar. Nada se
deve pedir. Nem mesmo compreensão. É nobre e heróico, mas não é interessante.
Dá-se tantas coisas a quem não tem merecimento; o Estado tem gastos dispendio-
síssimos com tantas glórias secundárias, que apenas se ressaltam por determinadas
ocasiões, por que não nos lembrarmos dos que lutaram pela Pátria, por um ideal que
incendiou e ensanguentou o mundo? O caso dos ex-combatentes da FEB é mais do
que um êrro. Toca às raias da ingratidão, e o maior consôlo que podemos ter nessa
hora é relembrar Vieira num de seus belos sermões quando afirmou: ‘Se fizestes
bem a tua Pátria e ela em troca te foi ingrata, fizestes o que devíeis e ela... o que está
habituada a fazer’.”

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Aprendizado e ensinamentos

P ara a maioria dos pracinhas a guerra foi uma grande escola para a
vida. Quem conviveu com seus horrores não esquece. Os fantasmas
acabavam voltando... Mesmo assim, na opinião da maioria dos prota-
gonistas, os ensinamentos colhidos foram úteis ao longo da vida.
Para Alcides Basso, “na guerra, aprendemos a valorizar a vida e apren-
demos a importância da solidariedade”. Como exemplo, recorda que ele,
Júlio Dalla Porta e Geraldo Sanfelice formavam um trio inseparável até San-
felice ir para o front: “Já no navio, o Geraldo não comia. Ele nos cedeu seu
cartão de refeições. Eu e o Júlio repartíamos a comida que seria dele e fi-
cávamos com três refeições por dia. O Geraldo só comia a sobremesa [dos
três]. Ele ficou tão fraco que na chegada à Itália tivemos de carregá-lo do
navio, pois já não conseguia caminhar.”
Sobre essa passagem, Sanfelice relata: “Durante a travessia, eu me sen-
tia muito mal, e não parava nada no estômago... Os amigos tentavam me des-
contrair; a camaradagem era muito grande e fazia com que eu não entregas-
se os pontos. Eles cuidavam de mim. Quase morri de tantos enjoos que tive.
Para ficar hidratado, o João Baptista Pozzobon, que ajudava no cassino dos
oficiais, trazia mais laranjas, e eles espremiam o suco na minha boca.”
Em outros momentos, como quando sofreu o acidente e em consequência
restou amputada a perna, Sanfelice recorda que o cabo Benedito, que havia
sido seu companheiro nos tempos de soldado, em Santa Cruz do Sul, enquanto
ajudava a transportá-lo até o hospital de campanha, ficou ao lado da padiola
encorajando-o: “O companheirismo e a amizade na guerra fazem toda a
diferença. Eu, por exemplo, nunca fui a Minas Gerais, mas fiz muitos amigos
mineiros, que eram muito boa gente. As amizades forjadas na guerra são
amizades para a vida toda.”

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238 VOZES DA GUERRA

Basso diz que “os soldados brasileiros em geral não tinham medo. Pelo
contrário! Eram topetudos até demais! Na guerra, não precisa ser valen-
tão; tem que ser cuidadoso. Encarar uma metralhadora de frente não é de-
monstração de coragem; isso é burrice!” Segundo ele, se o inimigo está bem
protegido, antes de pôr os homens a dar lanços e avançar, é necessário que
a artilharia e a aviação funcionem muito a fim de preservar vidas. Afirma
ainda que a falta de prática levou os brasileiros a cometerem erros e que
aprendeu a medir as consequências de seus atos antes de colocá-los em
prática. No mesmo sentido, Taltíbio Custódio diz que antes da guerra “era
metido a fazer de tudo. Aprendi a ser mais observador e agir com mais cau-
tela. Nunca se deve ser covarde, mas ser muito afoito pode ser perigoso e
pode até custar a nossa vida”.
Ângelo França, com a experiência de quem viveu uma guerra e tem
gravados na memória os resultados que ela causa, a princípio é contrário
a toda e qualquer guerra: “Os países deveriam resolver os conflitos pela
via diplomática. Eu penso muito sobre a inutilidade e a estupidez de uma
guerra e o sofrimento que ela causa. A guerra é algo absurdo, mas, quando
aparece algum fanático, ela é necessária para neutralizá-lo e para que ou-
tras nações continuem livres.”
Rubens Andrade diz que “uma guerra nunca trouxe e nem trará nada
de bom para ninguém. Guerra só é bom para ditadores e, mesmo assim,
quando vencem. Quando perdem, só têm a lamentar. A guerra é algo cruel;
você tem que matar para não morrer; isso é muito difícil... Bom mesmo é
viver em paz, em uma democracia mesmo que fantasiada. Entendo que não
deve mais haver uma grande guerra mundial; mas, se ela acontecer, nós
iremos lá para acabar com ela. Esse é meu pensamento”. Sérgio Pereira
concorda que “a guerra não traz nada de bom, mas nela se aprende o ver-
dadeiro significado da palavra solidariedade — o melhor sentimento que
conheci na guerra. Era muito bom poder ajudar os italianos que tinham
paura e vontade de mangiare”.
Ary Abreu diz não à guerra. Segundo ele, os homens que fazem a guerra
não dão valor ao sentimento religioso: “O pior da guerra que vivi e lembro
até hoje é a destruição de uma nação. Guerra é degradação moral, é a mi-
séria de ver mães oferecendo filhas de 8, 10 anos para manterem relações
sexuais a troco de comida, é ver o patrimônio de uma civilização milenar
destruído — ainda bem que tiveram a decência de respeitar Roma e algu-
mas cidades históricas com seus monumentos.” Taltíbio Custódio comenta

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Aprendizado e ensinamentos 239

que “causava espanto ver aquela destruição toda. Em poucos segundos,


a guerra destrói o trabalho e a economia de uma vida inteira. A guerra é
uma tragédia, um atraso! É a história sendo destruída pela ganância e pelo
sonho de poder”. Para Benedito Bernardino a guerra só traz desgraça: “Vi
gente sem condições decentes de vida, acuada, sendo abusada por quem
chegava, seja pelo inimigo ou por quem o combatia. O respeito quase não
existe. Na guerra vemos que a pessoa não é valorizada como deveria, mas
aprendemos a respeitar o próximo.”
Divaldo Medrado não deseja mais guerras: “Desejo paz! Não só para
o Brasil, mas para o mundo todo, porque guerra é uma desgraça. Tivemos
sorte de ganhar a guerra, mas, se nós a tivéssemos perdido, qual seria a
situação do Brasil hoje? Nós estaríamos em uma situação bem difícil; cer-
tamente o mundo teria sido direcionado para uma situação mais catastró-
fica. Viver em um mundo civilizado, onde respeitamos as pessoas e somos
também respeitados, seria o ideal, mas valeu a pena. Eu estaria novamente
disposto a voltar para a guerra se as razões fossem as mesmas que nos le-
varam a ela.” Bernardino complementa: “Espero que nunca mais existam
guerras. A guerra, hoje, seria pior do que a que nós fomos. Espero que nossa
ida à Itália não tenha sido em vão. Espero que as pessoas tirem algo de bom,
se é que isso existe, mas que tirem algum ensinamento para não comete-
rem o mesmo erro no futuro.”
Newton Lascalea compartilha a ideia de que “guerra é um desastre,
uma tragédia; seja para quem ganha, seja para quem perde. Para quem
perde é ainda pior porque tem que reconstruir tudo o que foi destruído
e ainda tem que indenizar os prejuízos dos outros. Na guerra, você está
com uma arma autorizado a matar; o inimigo, da mesma forma. Você faz
pontaria em um vulto que você não sabe de quem é. Quem sabe você nunca
viria a conhecer. Puxando o gatilho, você o mata. E ele, da mesma maneira,
mataria você. Você vê que coisa... No combate, o tempo é contado em
segundos, não em horas. Se ele apontou para você e puxou o gatilho, você
morreu”. Ivan Alves adverte: “Não vamos à guerra para matar; vamos à
guerra para conquistar. Só se for preciso, mata-se para se defender. É mais
útil capturar o inimigo vivo; morto, ele não vale nada.”
Para Jarbas Ferreira, “a guerra é muito ruim, muito triste. O melhor
da guerra foi o final, quando tirei os seis cartuchos do Springfield, no Rio.
A guerra é a coisa mais louca que o homem inventou. É loucura pura!”
Vasco Ferreira deseja que o Brasil não precise ir para a guerra novamente,

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240 VOZES DA GUERRA

destacando a perda de referenciais humanitários, éticos, morais: “Não foi


bom para o inimigo, nem para nós. Ninguém ganhou nada com a guerra; pelo
contrário, todo mundo perdeu!” Orlando Camargo esclarece que “a guerra é
tão brutal que não tem explicação. Não tem motivos; não há necessidade de
guerra. O alemão entrou no combate por causa de um louco: Hitler, um doido!
Ele não levou vantagem nenhuma. A guerra é coisa de loucos; não é de pessoa
normal, porque ela não traz vantagem para ninguém, com vitória ou sem
vitória. Pelo contrário, traz muita morte, muito desespero, muita tristeza”.
No mesmo sentido, Miled Cury explica que ninguém vence uma guerra:
“Os vitoriosos são perdedores em uma guerra, porque o preço que se paga
por ela nunca é suficiente para suprir o que se perde: as pessoas morrem
e outras direta ou indiretamente sofrem suas consequências, com seus fe-
rimentos, com suas neuroses etc. O que se paga por isso não tem valor... É
um preço muito alto; tão alto que é impossível mensurar. Como é que se vai
medir o preço da moral perdida, dos danos psíquicos? O prejuízo material
até é possível medir, mas os danos a valores subjetivos, não. Qualquer valor
em dinheiro é muito pequeno para cobrir essa perda.”
Para Cleto Pellegrinelli, poder transmitir o que aprendeu na guerra aos
jovens é muito gratificante: “Eu costumo dar palestras em escolas sobre a
guerra. Meninada de 15, 16 anos; eles não sabem quase nada sobre ela; não
conhecem nada sobre a FEB. Eles ficam entusiasmados. Deveria haver mais
instruções para eles; tudo para eles é surpresa. É preciso que os professo-
res de História saibam e ensinem essa história para seus alunos.” Recorda
que “em uma palestra para 120 alunos do Colégio Santo Agostinho, de Belo
Horizonte, um grupo de meninas quis saber como fazíamos sexo na guerra.
Respondi a elas que tínhamos ido à guerra para lutar, não para fazer sexo.
Nosso pensamento era acabar com a guerra e com o inimigo, mas nunca
pensando em sexo. Como iríamos pensar nisso em uma situação daquelas?
Depois que acabou a guerra, nós ainda ficamos algum tempo por lá; a partir
de então, era diferente, mas já não tinha mais guerra”, conclui.
Carlota Mello, com a sabedoria adquirida em mais de 98 anos de vida
(em agosto de 2013), acredita que o “Brasil falhou ao não esclarecer as
crianças na escola sobre a história. Ouve-se falar que o Brasil mandou sol-
dados mal preparados para morrerem na guerra; que mandou analfabetos,
desdentados e doentes. Mas não foi assim! Aqueles homens poderiam ter
feito melhor, mas eles fizeram o melhor que puderam. Se eles erraram, foi
pensando em fazer o certo, o melhor”.

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Aprendizado e ensinamentos 241

Raul Kodama expressa a real amplitude dos feitos dos pracinhas: “A


bem da verdade, os brasileiros [que foram à guerra] não fizeram um bem só
pelo Brasil. Os brasileiros fizeram um bem pela humanidade! Povos de tudo
quanto é raça que vivem neste mundo foram beneficiados pelos brasileiros.
Tanto que a liberdade e a democracia imperam no mundo. E quem ajudou
em tudo isso? O brasileiro! Na Itália, cumprimos ordens dos americanos, e,
ao final, eles levaram a glória. Em minha opinião, os culpados pela nossa
situação são os dirigentes brasileiros, que não souberam reconhecer o que
os brasileiros fizeram na guerra e não deram valor aos pracinhas.”
Para Lascalea, houve desinteresse das autoridades em divulgar os fei-
tos dos pracinhas. Reconhece que os alemães estavam debilitados quando
os brasileiros os enfrentaram; contudo, ainda tinham melhores armamen-
tos e maior experiência em combate. Segundo ele, a FEB era medianamente
preparada física, psicológica e taticamente e usava um material inferior: “Se
não existisse nenhum outro motivo para que o ex-combatente fosse reco-
nhecido, somente esse fator já seria o suficiente para que os participantes
da FEB fossem admirados, respeitados e reverenciados, como fizeram os
outros países. O fato é que hoje nos colégios ninguém sabe o que foi a FEB.
Nós nos emocionamos nas solenidades quando cantamos o Hino Nacional
e a Canção do Expedicionário, mas ficamos sentidos com essa falta de reco-
nhecimento. Infelizmente, não somos reconhecidos. Ainda há tempo para
mudança, mas nós não temos mais esse tempo.”
Carlota é cética com relação a isso: “Acredito que deveriam cuidar mais
de levar o conhecimento para a juventude nas escolas, nas datas comemo-
rativas. Mas o que passou, passou... Se não fizeram até hoje, agora é quase
tarde. É isso!” Ivan Alves relata que, com a emoção de quem se sente res-
ponsável por uma parcela da liberdade que reina no Brasil, “os jovens deve-
riam ter mais amor e entusiasmo pela Pátria. Sinto-me emocionado quanto
canto o Hino Nacional. Eu canto com entusiasmo! O Brasil é o melhor país
do mundo. Adoro a Itália, o país mais bonito do mundo para passear, mas
nada se compara ao Brasil. Isso é amor de filho, que ama sua Pátria.”
Carlota acrescenta: “Ao ir para a guerra, eu me sentia muito fútil. Eu
achava que aos 30 anos minha vida não valia quase nada. A guerra pare-
ce que me transformou: eu voltei mais consciente de minha situação de
mulher, mais sensata, mais ponderada, mais responsável, mais mulher! Eu
ficava pensando como eu era oca; parece que eu não tinha inteligência para
pensar em nada. Agora tudo que eu faço é concreto: eu penso, eu analiso,

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242 VOZES DA GUERRA

eu aceito mais as coisas; estou diferente, sou uma pessoa realizada. Sou
uma pessoa que foi feliz a vida toda. Não fiquei sentada esperando as coisas
acontecerem. Sempre tive coragem para seguir o caminho que pudesse me
levar a ser a tenente Carlota. Eu tentava! Se precisasse, eu pedia ajuda. Nada
recebi de mão beijada. Nem com ajuda política; nunca tive um padrinho.
Foi por conta própria, com muita ousadia e muita coragem que superei os
obstáculos que apareciam pelo caminho. Eu os enfrentei.”
Na opinião de Hélio Marques, “jamais deveria existir a guerra; ela não
leva a nada. Vi muitas pessoas inocentes morrerem, famílias inteiras se de-
sagregarem, chefes de família obrigados a prostituir a esposa para terem o
que oferecer de comida para seus filhos. Era comum ver homens nas estra-
das e cidades com fotos das esposas oferecendo aos soldados em troca de
dinheiro e comida [...] A guerra destrói a moral, destrói as cidades, acaba
com tudo”, conclui.
Taltíbio Custódio encerra dizendo que, após cumprir a mais árdua
missão de sua vida, passou a enxergar o mundo com outros olhos e
dar mais valor às coisas. “Quem presencia uma guerra aprende que o
progresso começa pela não destruição do que já se tem. Não poluir a água,
não cortar as matas sem necessidade, conservar a natureza. Essas são as
missões de hoje!”
Kodama recebeu e cumpriu muitas missões que não seriam propria-
mente suas, mas dizia sempre “Sim, senhor!”, e cumpriu-as da melhor for-
ma. Para concluir, deixa a seguinte mensagem aos jovens militares ou civis
que quiserem vencer na vida: “Devemos ter a vontade de sempre colaborar,
de sempre servir, de sempre encarar qualquer missão; e quando receber
uma missão e disser ‘Sim, senhor!’, que isso seja o sinal de que a missão será
bem cumprida.”

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A liderança

N a opinião dos pracinhas, na guerra é fundamental que o coman-


dante disponha da confiança de seus comandados. O ideal é que a
ele esteja associada a imagem do líder, que convence pelo exem-
plo, e do amigo, que compreende suas necessidades e angústias.
Para Alcides Basso, o tratamento entre as diversas patentes na guerra
era de muito respeito: “Aprendemos muito com os americanos. No Brasil ha-
via muita distância entre os oficiais e praças. Com o tempo, isso começou a
mudar e houve uma sensível melhora no relacionamento entre os soldados.
Na guerra, além de comandante, o tenente ou o sargento devem ser líderes.
Muitos dos que aqui eram super-homens lá não eram mais do que homens
comuns. A vida de uns dependia do companheirismo dos outros. Oficiais, sar-
gentos, cabos e soldados tinham que se respeitar como homens, independen-
temente de estrela ou divisa.”
Acervo: AHEx

Tenente interpreta a carta topográfica durante uma patrulha, nas imediações


de Sevignone, entre Montese e Fanano, ainda sob domínio alemão

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244 VOZES DA GUERRA

Para Geraldo Sanfelice, apesar da tensão existente no ambiente de guer-


ra, havia momentos de descontração. Havia muito respeito, mas todos brin-
cavam e aceitavam as brincadeiras: “Em Montese, a FEB só teve sucesso por-
que o comandante seguia na frente, junto com a tropa, dando o exemplo de
coragem aos subordinados.” Pacífico Pozzobon destaca que “na FEB havia
ordem e disciplina; o respeito para com os superiores e destes para com os
subordinados em atividades de serviço era indiscutível. Nas horas de folga,
todos aceitavam brincadeiras, independentemente da condição hierárquica;
fora de serviço, eram todos soldados, eram todos iguais. Quando entrávamos
em forma ou em missão, aí sim, cabo era cabo, sargento era sargento, e assim
por diante. Quem comandava sabia que sua vida dependia, muitas vezes, dos
subordinados. Amigos se ajudam. Respeito não se adquire com cara feia nem
carranca, mas com convivência saudável, diária. Bons comandantes convi-
vem com os subordinados; precisam conhecê-los para conquistar a amizade
e o respeito deles.”
Para Divaldo Medrado, conhecer os comandados é fundamental, sobre-
tudo em momentos cruciais: “No front, com um simples gesto, ação ou olhar
entendíamos que podíamos contar com quem estava a nosso lado, que sem-
pre teríamos amparo e estímulo. Percebíamos, com toda certeza, que não es-
távamos sozinhos. Havíamos formado um ambiente de confiança recíproca
porque sabíamos que dependíamos uns dos outros, o tempo todo.”
Para Rubens Andrade, “o bom comandante é o que zela pelos comanda-
dos. Na guerra, daríamos a vida pelo comandante, pois sabíamos que ele faria
o mesmo por nós. Aonde ia o tenente, ia o sargento e, aonde ia o sargento,
também ia o pracinha... Nem que fosse para morrer! O soldado não aceita
ser menos homem que o sargento, o tenente ou o capitão. Na guerra, o que o
superior faz, o soldado tem que fazer. Mas, mesmo que essa seja a obrigação
do soldado, ele só faz quando vê o superior fazendo. E eles eram muito bons;
eles eram o exemplo.” Samuel Silva concorda: “Em tudo que acontece, o sol-
dado tem os olhos fixados no sargento; em tudo que acontece, é ele que está
junto. Com isso, ele vai ficando conhecido, mas a liderança fica evidenciada
no combate, pois dela depende do sucesso de qualquer missão.”
Rubens continua: “Naquela situação, eu só pensava em cumprir meu
dever com a Pátria. Se mandassem para uma missão impossível, eu tentaria
cumpri-la a qualquer custo. Uns fogem, se amedrontam, mas você vai para o
combate. Por quê? Porque seu líder está lá na frente; e aonde ele for você vai
também. Havia solidariedade e muita união entre nós. Sem isso, a FEB não

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A liderança 245

teria triunfado, e não teríamos vencido os alemães. Sinto o maior orgulho


de nossos feitos. Na minha humilde opinião de pracinha, o general [alemão]
Otto Pico era grande comandante. Os homens dele estavam passando fome,
e havia enorme fila de feridos. Ele pensou em sua tropa. Os alemães vinham
se render marchando, cantando Lili Marlene. Eles se entregaram como
militares imponentes, não como derrotados. Eram grandes soldados! Nós
aprendemos muito com eles.”
José Cândido relata um exemplo em que a liderança salvou vidas: “No
meu primeiro front, em Guanela, estávamos guarnecendo a região em um
fox hole. Ao entardecer do terceiro dia, na posição, com o fuzil metralhadora
voltado para o inimigo, o soldado Toledo disse: ‘Cabo, o Sr. está escutando
um barulho?’ Como eu não havia escutado nada, ele insistiu: ‘Fique atento
que o Sr. vai ouvir!’ Estávamos em um mato; à nossa frente havia um peque-
no descampado, seguido de outro mato. Ele insistiu: ‘Parece que vem gente
aí e tá se aproximando.’ Eu agucei o ouvido e escutei o barulho. O Toledo
continuou: ‘É um pelotão alemão, cabo! Não quero que eles cheguem perto
de nós. Eu vou atirar!’ Ele apontou o fuzil para a posição de onde vinha o
barulho. Eu o contive dizendo: ‘Você não vai atirar não; você não tá vendo
ninguém. Pode até ser um animal que vem aí. Para atirar, eu quero ver os
alemães, quero olhar nos olhos dele.’”
Acervo: MNMSGM

Disciplina: soldados alemães a caminho da rendição

Cândido continua: “Consegui conter a vontade dele de atirar, apesar


da insistência. Naquela época, cabo era autoridade; uma fortaleza moral.

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246 VOZES DA GUERRA

Determinei a ele: ‘Me passe seu fuzil; quem vai ficar com ele sou eu.’ O barulho
aumentava... Quando saíram do mato, vi que eram duas ou três famílias de
italianos, que vinham correndo com medo dos alemães. Eles estavam na
frente da minha arma. Tinha crianças, meninas, senhoras e senhores de
idade; eram 17 pessoas no total! Depois de reunidos, foram conduzidos
para a retaguarda e entregues no comando da companhia. O Toledo era um
soldado valente e corajoso, era grandão! Eu era pequenininho, mas disposto
como o filho de um leão. O que quero destacar é que, se eu não tivesse tido a
disposição de falar para o Toledo não atirar e se ele não tivesse me obedecido,
talvez não tivesse matado os 17, mas uns 10 ele teria rasgado com o fuzil.”
Cleto Pellegrinelli recorda que seu comandante, capitão Hésio, o influen-
ciou muito: “Ele era muito humano e defensor dos pequenos. Mantinha a
companhia sempre unida. Quando ia às reuniões do comando, e queriam que
fizesse coisas impossíveis, ele defendia os soldados. Ele nos dizia [nas reuni-
ões com os comandantes]: ‘Eles querem que a companhia faça isso! Eu não
vejo condições de fazer assim. Eu não vou ser assassino de meus homens!’
Ele se conduzia de maneira séria e não permitia que nos colocassem em risco
desnecessário. E ele falava para o general: ‘Eu aceito fazer. Nós vamos fazer!
Mas vai ser desta maneira...’ Ele sempre defendeu a tropa. Isso influenciou
muito o modo de vivermos na guerra.”
O então soldado Geraldo Taitson, da mesma companhia, diz: “O soldado
não quer bancar o covarde; enquanto seu comandante estiver resistindo, ele
quer ficar ao lado de seu sargento, tenente ou capitão. Alguns soldados têm
medo porque o medo é inerente ao homem... Na hora que o medo aperta, é
lembrar que a pessoa não pode ser covarde. Enquanto puder, ele tem que
resistir para não ser chamado de medroso, de covarde. O capitão Hésio, meu
comandante de companhia, entendia muito de psicologia: quando percebia
que alguém estava tomado pelo medo, ele o substituía imediatamente.”
Raul Kodama, como chefe, dava o exemplo e exigia que cada soldado
desse o melhor dele mesmo em prol do conjunto: “Teve um soldado que dis-
se: ‘Cabo Kodama, você quer que eu faça o impossível!’ Eu disse: ‘Não! Eu só
quero que você faça melhor do que eu. Fazer bem, eu sei. Você precisa fazer
melhor.’ E ele fazia! Na guerra, você não diz como o soldado tem que fazer,
você diz: ‘Sua missão é ir lá e fazer bem.’ Para você ensinar o soldado, existem
os treinamentos. Você tem que saber para onde, quando, como e por onde vai
mandar o soldado, mas ele também precisa entender o porquê dessas pala-
vras e botá-las em prática.”

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A liderança 247

Cleto continua: “Como comandante da patrulha, eu ia à frente para es-


timular o soldado a me acompanhar. Eu ia à frente, e eles vinham comigo.
Quando eu não ia à frente, eles retardavam, pois tinham medo; então eu
tinha que bancar o valente. O que me fazia seguir à frente do grupamento
era o sentimento do dever, que é a essência do militar. Para voltar, o co-
mandante era o último; vinha atrás, levando o pessoal. Na ida e na volta, o
comandante ficava na posição mais vulnerável. Para mim, meus soldados
pareciam todos meus irmãos. A cada reunião do grupo, parecia grande reu-
nião de família. Controlávamos, cuidávamos da turma toda, que era muito
unida. Eu era muito feliz e estava muito satisfeito de comandar aqueles 42
homens; os sargentos eram muito bons, muito amigos; um comandava os
morteiros; o outro, as metralhadoras.”
Esse ambiente de amizade propiciou o rápido entrosamento dos milita-
res que chegavam ao front para completar as lacunas deixadas pelas baixas.
Acervo: AHEx

Equipe de transmissões em ação

Hélio Marques, a fim de fazer os soldados a seu comando superarem o


medo e irem às áreas que estavam sendo bombardeadas pelo inimigo para
emendarem fios, dava o exemplo. Os integrantes das equipes de transmis-
sões deviam passar pelas posições do inimigo levando o fio: “Teve uma vez
que, acompanhando o tenente Ramiro, levamos tiros de metralhadora, mas
eu nunca mandava só os soldados fazerem a instalação ou o conserto das
linhas. Lançávamos o fio correndo, mas eu ia com eles. Sempre que havia
algum problema em alguma linha telefônica, por causa das explosões de

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248 VOZES DA GUERRA

granadas ou deslocamento de blindados, de dia ou à noite, eu escolhia os


soldados que iriam comigo emendar os fios e ia à frente deles. Sem comu-
nicações não se fazia guerra. O sucesso da missão dependia de nós, que
ligávamos o comando aos batalhões e companhias.”
Ângelo França era considerado um sargento “caxias” pelos colegas, da-
queles que querem cumprir o regulamento ao pé da letra: “Eu ficava até com
pena de gente nova que caía em meu grupo. Eles já sabiam que iriam so-
frer. E sofriam mesmo, porque eu cumpria e fazia cumprir o regulamento.
Na guerra, a camaradagem aumenta muito; a rigidez da disciplina diminui
muito, mas o respeito continua.” Segundo Ivan Alves, “o comandante tem que
ter moral com seus homens; ele pode ter medo, como todo mundo, mas não
deve se deixar dominar por ele e demonstrar que está com medo. Ele precisa
enfrentar a barra. Ele está ali para determinar o que o soldado precisa fazer;
mas ele também faz! Não pode meter a cabeça em um buraco e ficar escondi-
do. Ele tem que estar lá, junto, enfrentando o que o soldado está enfrentando,
de igual para igual.”
Para Enéas Araújo, um comandante medroso nunca será líder. Confir-
ma que deve haver solidariedade e companheirismo: “Eu não tive muito
contato com o comandante do pelotão, que assumiu poucos dias antes
de irmos para o front. Não sei se era por medo, mas ele quase não saía
do buraco. Eu guardei mágoa dele porque, quando morreram o cabo e o
soldado [em Torre de Nerone], ele nem veio ver. Eu comuniquei a ele na
hora... Pelo menos quando tirei os cadáveres de dentro do abrigo, ele po-
deria estar lá. Devia estar com medo de sair do buraco... Depois, quando
fui ferido, nem veio ver o quanto estava machucado. Não vi a cara dele e
nem guardei seu nome.”
Kodama viveu situação oposta, que evidencia o caráter do comandante
e líder. Depois de ser ferido em Porreta Terme, foi para os hospitais de Pis-
toia, Livorno e Nápoles: “Em todos esses lugares, meu comandante, capitão
Walmiki Erichsen, ia me visitar. Ele sempre ia... Preocupava-se comigo. Em
Nápoles, antes de eu embarcar para os Estados Unidos, onde iria tratar meu
ferimento, ele foi se despedir de mim.”
João Gonzalez destaca a personalidade de seu comandante: “Era um
homem de poucas palavras. Mas quando ele dizia, ele convencia! Racio-
cinava muito bem. Valente, justo. Era muito bem quisto pela tropa. Não
era temido; ele era respeitado porque sabíamos que ele não cometia
injustiças. Na guerra, não há nada de bom, exceto a solidariedade dos

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A liderança 249

companheiros, dos comandantes. Nós nos vemos em uma situação peri-


gosa. Há muita ajuda. Um procura socorrer o outro. Há uma irmandade;
o pessoal se irmana de tal forma como se irmão [de sangue] fosse. O que
tem de bom na guerra é só isso!”
Orlando Camargo comenta que a missão do comandante era conduzir
os soldados para o front e preservá-los dos perigos da guerra, porque, “tan-
to para nós quanto para eles, era uma situação nova, desconhecida... Falá-
vamos aos soldados a realidade da guerra. Eles precisavam estar cientes de
que, se fosse preciso, morreriam; se tivessem de voltar, voltariam. Diante
de tantos tiros que ouvíamos, qualquer coisa poderia acontecer conosco.”
Jarbas Ferreira destaca que o comandante precisa decidir com frieza
quando se trata da segurança de seus homens: “O grupo que saiu foi o mes-
mo da chegada, menos um, J. K. [preservado], de Santa Maria. Iríamos fazer
o avanço da primavera, e a ordem era não baixar ninguém, mas ele estava
botando sangue pela boca. Ele dizia: ‘Eu quero ir com vocês...’ Mas eu argu-
mentei que ele morreria lá; caso desse alguma hemorragia nele, nada pode-
ríamos fazer. Falei ao comandante que o J. K. deveria ficar, e ele concordou.
O comandante conseguiu que ele viesse embora para o Brasil. Então, man-
daram outro, que era meu atirador e tinha o nome do meu pai: Luiz Mendes.
Coincidência, não é? Os convocados eram muito unidos. Saíam umas brigui-
nhas, mas as conseguíamos acalmar.”
Miled Cury, chefe de peça de canhão 57mm no 6º RI, tinha sob seu co-
mando 11 homens. Segundo diz, “era fácil chefiar o grupo, pois éramos muito
unidos. O fato de estar em situação de perigo iminente leva o homem a se
unir. É o espírito de comunidade; ele é muito desenvolvido em uma guerra
entre os elementos de uma unidade. A liderança é algo natural; ela emana da
própria pessoa. O fato de termos um espírito de liderança dá certa ascendên-
cia sobre os outros.”
Francisco Gomes diz: “Eu usava a filosofia de dar toda liberdade a meus
comandados. Quando estávamos em missão, eu tinha que comandar e man-
tinha a minha autoridade de sargento; quando tinha que cumprir alguma or-
dem, a filosofia era cumpri-la, sem questionamentos. Quando não estava em
missão, eu não era graduado; era igual a todos eles.”
Segundo Geraldo Sanfelice, “os oficiais e os sargentos tratavam muito
bem os pracinhas. Nos bons e maus momentos, estavam sempre interessa-
dos e atentos ao que acontecia com os soldados. Um bom comandante nun-
ca abandona os soldados feridos em combate. Por isso, nos sentimos muito

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250 VOZES DA GUERRA

orgulhosos quando, ao final da guerra, o general Mascarenhas, acompanha-


do do alto escalão da FEB, nos visitou no hospital, nos Estados Unidos.”

Max Wolff Filho — um líder


Na opinião de Taltíbio Custódio, “heróis são aqueles que tombaram em
combate”. Entre os 465 brasileiros que perderam a vida na Itália, alguns,
pela magnitude e representatividade de seus feitos, tiveram maior desta-
que. Uma dessas figuras singulares é o sargento Max Wolff Filho.
Nascido em Rio Negro-PR, aos 33 anos apresentou-se voluntariamente
para integrar a FEB, incluído no 11º RI como terceiro-sargento. Já na Itália,
toda vez que surgiam missões difíceis a serem cumpridas, apresentava-se
como voluntário. Por sua coragem e seu excepcional senso de responsabi-
lidade, passou a ser presença constante em patrulhas de todas as compa-
nhias, obtendo inúmeros sucessos.
Acervo: AHEx

Sargento Max Wolff Filho no comando de uma patrulha pouco antes de ser morto

Taltíbio Custódio lembra que “no combate, os soldados estavam sob


o comando direto dos cabos e dos sargentos. O sargento Max Wolff Filho
era muito arrojado e servia de exemplo para outros militares. Era o chefe
dos patrulheiros. Tudo que era serviço perigoso, onde se tinha de buscar
a informação perto do inimigo ou arrancar os alemães da trincheira, era
missão para ele e seu grupo”.

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A liderança 251

Sérgio Pereira participou de algumas patrulhas com o sargento Max


Wolff e destaca a atitude do companheiro: “Ele era um valente! Não tinha
medo de nada. Ele partia para a patrulha como se estivesse partindo para
uma festa. Não queria saber de onde vinham as balas; ele botava para derre-
ter.” Segundo diz, o destemor do sargento contagiava: “Eu não tinha medo;
até porque não conhecia nada da vida. E olha que fizemos cada patrulha
por lá... nem queira saber.”
Apesar do arrojo e destemor, características que o destacaram na FEB,
em 12 de abril de 1945 seu corpo tombou vitimado pela rajada de uma
metralhadora alemã, nas proximidades de Montese, durante uma patrulha
de reconhecimento.

Homenagem da EsSA e do 20º BIB por ocasião do centenário de nascimento


do Herói da FEB

Desde então, muitas homenagens foram prestadas ao bravo. Uma das


mais significativas, e que dá a dimensão do que sua figura representa, foi con-
ferida pela Escola de Sargentos das Armas (EsSA). Ao assumir a denomina-
ção histórica de Escola Sargento Max Wolff Filho, a EsSA não somente pres-
tou uma homenagem ao herói como também mostrou, de forma inequívoca,
que os valores evidenciados nos campos de batalha transformaram-no em
exemplo a ser seguido, não só pelos novos sargentos combatentes lá forma-
dos, mas, também, por todos os militares do Exército Brasileiro. Antes dessa
homenagem, o 20º Batalhão de Infantaria Blindado (BIB), de Curitiba, havia
adotado a denominação histórica de Batalhão Sargento Max Wolff Filho.
A Medalha Sargento Max Wolff Filho foi criada para distinguir sub-
tenentes e sargentos que no desempenho funcional tenham evidenciado
características e atitudes que notabilizaram o sargento Wolff. Ao elencar
os requisitos para a concessão da honraria, destacando liderança e atitude

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252 VOZES DA GUERRA

militar, qualidade do trabalho, conhecimento e habilidade técnico-profis-


sional, confiabilidade, resistência física e mental e camaradagem, o Exército
Brasileiro presta mais uma homenagem ao insigne sargento da FEB, reco-
nhecendo-o como exemplo para os seus integrantes.

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O legado da FEB...

... Para o Exército


No Exército Brasileiro, a FEB é considerada um divisor de águas, so-
bretudo no aspecto do relacionamento interpessoal. No início da década de
1940, o Exército seguia a doutrina militar da escola francesa. Entre oficiais
e praças, havia uma barreira quase intransponível, estabelecida por um rí-
gido regime disciplinar que, além de respeito, impunha aos soldados um
sentimento que se aproximava do pavor.
Pacífico Pozzobon exemplifica a situação. Para ele seria “mais fácil che-
gar perto de uma onça, de um tigre, do que de um coronel”. Vasco Ferreira
confirma que o tratamento de oficiais com praças “era muito rigoroso. Era
difícil conversamos com qualquer oficial, a não ser sobre assuntos de ser-
viço. Mesmo com sargentos já era assim. Os únicos com quem conversáva-
mos um pouco eram os cabos, que dormiam no mesmo alojamento. Com os
sargentos e subtenentes, ainda tínhamos um pouco de contato, mas com
os oficiais, não; havia certa distância, embora eles nos tratassem bem, sem
estupidez. A disciplina era rigorosa, férrea mesmo!”
Segundo Alcides Basso e José Pereira, o tratamento dispensado aos
soldados não era o mais apropriado para quem estava disposto a defen-
der os ideais brasileiros na guerra. No Rio de Janeiro, durante os prepa-
rativos para a guerra, qualquer reclamação era resolvida com punição
disciplinar. Certo dia, um soldado teria sido punido com rigor excessivo
por reclamar da comida, gerando revolta generalizada entre os praci-
nhas. A tranquilidade voltou ao acampamento após uma palestra, que
esclareceu os fatos.

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254 VOZES DA GUERRA

Acervo: AHEx

A guerra fortaleceu a camaradagem e a integração no Exército

Pacífico Pozzobon relata que na Itália o tratamento mudou bastante,


tornando-se mais humano. O que antes parecia inconcebível passou a ser
regra: “Independentemente de ser branco, preto, rico ou pobre, éramos
todos irmãos. Formávamos uma só família, uma irmandade, na qual havia
igualdade com respeito.” Ressalta, entretanto, que a mudança no Exército
como um todo não foi tão rápida. De volta da Itália, os veteranos eram vistos
com desdém por aqueles que não haviam ido à guerra. Estes procuravam
diminuir a dimensão dos feitos dos pracinhas: “Nós, que fomos simples sol-
dados, éramos vistos como sobras de guerra, que só queriam contar van-
tagem. Como se participar de uma guerra fosse um passeio qualquer. Indo
ou não para o front, estivemos na Itália; havíamos posto a vida à disposição
da Pátria.”. Lembra ainda que os pracinhas de Santa Maria começaram a ser
mais valorizados e convidados para solenidades militares a partir de 1973,
ano em que o general César Montagna de Souza, ex-capitão da FEB, assu-
miu o comando da Divisão Encouraçada: “Custou um pouco, mas os ideais
da FEB foram absorvidos pelo Exército. Graças a Deus e à FEB, o Exército
está mudado; e a mudança começou na guerra!”, conclui Pozzobon.
Divaldo Medrado corrobora a opinião anterior: “Os feitos da FEB mu-
daram condutas no Exército Brasileiro. Ficou evidente a humanização dos
chefes. Não apenas no Exército, mas nas Forças Armadas em geral, proces-
sou-se enorme transformação; foi dado um gigantesco passo no sentido
da evolução da doutrina e do material.” Contudo, “a projeção dos febianos

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O legado da FEB 255

que permaneceram na ativa muitas vezes provocou mal-estar naqueles que


não participaram do conflito, mas o tempo fez que essa diferença fosse se
apagando”. Enéas Araújo relata um exemplo da sutileza — ou não! — das
provocações que recebiam os febianos: “Certa vez, um sargento veio bulir
comigo dizendo que eu andei com saco ‘B’ pela Itália. Irritado, perguntei
se ele me conhecia. Ele disse: ‘Sei que você era do pelotão de transporte.’
Arranquei a camisa e mostrei o talho que eu tinha nas costas e disse a ele:
‘Isso aqui é marca da Torre de Nerone, e me rendeu três meses no hospital.
Não venha você falar besteira sobre o que não conhece. Até parece que você
não depende do pessoal do rancho para comer. Eu estive no front e na reta-
guarda; sei a importância de todos em uma equipe.’”
Severino Oliveira, militar de carreira que permaneceu no Exército
após a guerra, confirma: “Ao retornarmos da guerra, muitos companheiros
nos olhavam de modo diferente, e sentíamos isso. Já faz muito tempo, mais
de seis décadas. O tempo, o grande general, dissipa essas memórias... Hoje
é diferente: somos mais valorizados.” Medrado concorda e afirma que nas
últimas décadas a comunhão existente entre os febianos e os militares da
ativa tem sido a mais completa possível. É o justo reconhecimento pela
contribuição prestada à evolução das relações humanas no âmbito das
Forças Armadas. Enéas Araújo acredita que a FEB cumpriu muito bem sua
função e até superou as expectativas: “Estamos aqui! Neste ano [2012], fui
surpreendido: No Dia do Exército, recebi um telefonema do QG para que
eu fosse de terno e gravata à solenidade. Chamaram-me para entregar a
Medalha da Ordem do Mérito Militar. Eu conheço o general Adhemar des-
de criança.”
Ary Abreu diz: “Para nós, que continuamos na ativa, a FEB foi uma
grande escola. O conhecimento adquirido na guerra foi muito útil na caser-
na e para a vida militar; não só para nós, mas também para os que vieram
depois de nós. A disciplina passou a ser mais espontânea. Antes da guerra,
a disciplina era imposta; depois, passou a ser mais consciente, própria de
cada um, que hoje é usada no Exército. O respeito no tratamento de su-
perior e subordinado e vice-versa foi aprendido e melhorado na guerra. A
geração de hoje recebeu isso de nós. Depois da guerra, isso foi se multipli-
cando, se alastrando. Hoje, percebe-se um relaxamento no respeito dos su-
bordinados para com os superiores. Mas a culpa não é do soldado; a culpa
é do superior, que não ensinou ou não cobra. Quando chega nesse ponto, a
disciplina já não é mais espontânea, mas relaxada.”

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256 VOZES DA GUERRA

Cleto Pellegrinelli sempre foi tratado com muita atenção nos quartéis
onde passou: “Éramos convidados a repassar os ensinamentos da guerra para
os demais militares. Eu sentia que éramos muito valorizados pelos nossos
comandantes pela maneira como procedíamos e pelo que podíamos transmitir.
O Ary sentia coisas diferentes, mas era em outras unidades. Eu saí do 11º
Regimento e voltei para ele após a guerra. Fiquei lá enquanto pude. Sempre fui
tratado com muita consideração. Na guerra, eu aprendi que o comandante era o
último sempre. Primeiro o bem-estar dos comandados, depois o do comandan-
te. Essas coisas nós começamos a aplicar aqui, depois da guerra.”
Alcides Basso destaca que durante a guerra a conduta com relação
ao material também começou a mudar. Segundo ele, no Brasil vigorava a
orientação no sentido de que o armamento era o fator mais importante;
o homem vinha em segundo plano. Na guerra, isso mudou: “Quando vis-
sem que não conseguiriam manter determinada posição no terreno e não
houvesse como levar os equipamentos mais pesados [viaturas, morteiros,
metralhadoras etc.], antes de retrair, esses deveriam ser destruídos, a fim
de evitar que caíssem em mãos inimigas. Um lema dos norte-americanos
passou a ser adotado pela FEB: para repor uma arma, bastam poucas horas
em uma linha de produção; para a vida humana, não há reposição!” Aribi-
des Pereira corrobora essa informação e relata que a orientação dos norte
-americanos era atirar quando necessário, sem economizar. A economia de
munição poderia significar a perda de valorosas vidas.
As relações humanas, como se pode perceber, tiveram grande evolução
após a guerra no âmbito do Exército Brasileiro. A evolução doutrinária e de
material também foi evidente com a introdução da mecanização na artilharia
e na cavalaria inicialmente, e também na infantaria e na engenharia. As
comunicações foram desmembradas da engenharia. A 1ª Companhia de
Transmissões foi o embrião das demais unidades da Arma do Comando.
Geraldo Sanfelice viveu essas duas fases. Como soldado do 3º Batalhão do
7º RI, em Santa Cruz do Sul, foi condutor de boleia em uma época em que
as metralhadoras e materiais pesados eram conduzidos no lombo de mulas.
Antes mesmo de ir para a guerra, presenciou a chegada dos carros de combate
blindados do 3º BCC a Santa Maria.
Se no aspecto do relacionamento interpessoal e no trato com o material
o Exército Brasileiro absorveu muitos valores e conceitos praticados pelos
norte-americanos, no quesito integração racial os brasileiros deram aula a
eles. Rubens Andrade diz: “No exército americano, não havia integração entre

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O legado da FEB 257

negros e brancos; eles ficavam admirados ao verem nossa maneira de agir e


com a integração que havia entre as diferentes raças. Entre os brasileiros, não
havia distinção: brancos ou pretos, nós éramos amigos. No exército deles,
havia segregação e distinção; brancos, negros e índios serviam em batalhões
distintos, mas sempre comandados por brancos.”
Acervo: Estado-Maior do Exército

Metralhadora no lombo de mula e o condutor de boleia


Acervo: Museu Militar do CMS

Aspecto da Grande Manobra da 3ª RM, em 1943


Acervo: Museu Militar do CMS

Aspecto da Grande Manobra da 3ª RM, em 1943

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258 VOZES DA GUERRA

Acervo: Vet. Ary Dal Pozzolo

Blindado do 3º Batalhão de Carros de Combate Leves.

... Para o Brasil


Se para o Exército a FEB representou um passo decisivo rumo à mo-
dernidade, para o Brasil significou grande avanço para a consolidação da
democracia e do desenvolvimento socioeconômico. Nos relatos dos praci-
nhas sobre o Brasil de antes da guerra, constam viagens bucólicas em siste-
mas de transporte precários e deficientes. Em meados da década de 1940,
o Brasil contava com menos de 500km de estradas asfaltadas. A partir de
então, rodovias começaram a integrar as regiões do Brasil.

Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda-RJ

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O legado da FEB 259

Para Carlota Mello, o Brasil se desenvolveu e se industrializou; enfim,


progrediu: “Em última análise, muitas coisas melhoraram depois da guerra,
e Brasil deve isso à Segunda Guerra Mundial e aos pracinhas.” Para Newton
Lascalea, “o Brasil, antes da guerra, estava 100 anos atrás da Argentina...
Em consequência da guerra, nos igualamos a ela em termos de cultura e
produção. Como fomos o único país sul-americano a participar, quando
terminou a guerra, muitas portas foram abertas. A siderurgia, com ajuda
dos americanos e de outros aliados, se desenvolveu. Depois veio a indústria
petrolífera e outras melhorias. O principal legado da Força Expedicionária
foi ter alavancado o desenvolvimento do Brasil. Uma coisa puxou outra,
mas o ponto inicial foi a FEB”.

Imagens do acervo da CSN: www.biblioteca.ibge.gov.br

Carlota também destaca a projeção do Brasil no cenário internacional:


“Eu acredito que o Brasil ter entrado na guerra foi positivo, porque ficou
mais conhecido no mundo. Poucos conheciam o Brasil; até achavam que era
colônia da Argentina.” Divaldo Medrado concorda: “Nós, brasileiros, fomos
reconhecidos pelo mundo, pela guerra; foram os expedicionários que de-
ram esse impulso. Na Itália, a maioria da população não sabia o que e onde
era o Brasil. Depois de 70 anos, o brasileiro é conceituadíssimo na Itália,
pelo dia a dia com o soldado, pelo que nós fizemos.”
Vasco Ferreira não tem dúvida de que a guerra favoreceu o
desenvolvimento do Brasil. Entretanto, questiona se a guerra valeu a
pena. Segundo ele, “valeu do ponto de vista da democracia e do sistema

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260 VOZES DA GUERRA

social. No Brasil, nós tínhamos um sistema muito atrasado. Havia muito


preconceito. A educação escolar foi se aperfeiçoando”. Contudo, ressalva
que “embora tivesse trazido uma porção de benefícios, trouxe muitos
malefícios. Vícios de todos os lados. A sociedade não é mais a mesma.
Os costumes não são mais os mesmos. Não há mais aquele sentimento
genuíno de respeito, de família, de religião... Em muitas coisas houve
progresso, mas em outras houve retrocesso.”

... Pela paz!


De todos os legados que a FEB deixou, a paz é o mais relevante. A FEB
foi o primeiro contingente do Exército Brasileiro a participar no exterior de
ações de restauração e manutenção da paz. Essa participação foi semente
de um processo que se convencionou chamar de “Cultura da Paz”.
Acervo: C Com S Ex

Batalhão Suez – Brasil a serviço da paz no Oriente Médio

Integrando contingentes da Organização das Nações Unidas (ONU),


o Brasil participa do esforço mundial que visa a desenvolver mecanis-
mos para evitar a eclosão de conflitos armados entre nações e a prestar
ajuda humanitária a povos conflagrados por lutas fratricidas ou atingi-
dos por catástrofes.
No Oriente Médio, entre os anos de 1957 e 1967, o Batalhão Suez par-
ticipou das ações em prol da paz entre árabes e israelenses. Foi a primeira
vez que nossos soldados usaram o capacete e a boina azuis, símbolos do
soldado da paz, que trabalha sob a égide das Nações Unidas.
Depois da Segunda Guerra, soldados brasileiros atuaram em vários
países da África, América, Ásia e Europa. Atualmente, no Haiti e em outros

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O legado da FEB 261

países, o Brasil participa de missões de estabilização e de ajuda huma-


nitária, nas quais um dos destaques, inspirado no exemplo da FEB, é o
caráter humano e solidário dos peacekeepers brasileiros.
Acervo: BRAENGCOY

Ajuda humanitária no Haiti

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Brasileiras na guerra

A participação feminina na Segunda Guerra Mundial normalmente


é narrada de modo épico. Pioneiras, precursoras, desbravadoras
são palavras apropriadas para iniciar textos sobre as enfermei-
ras da FEB. Este capítulo tem a finalidade de mostrar o dia a dia das per-
sonagens que, além de tratarem os ferimentos e diminuírem a dor física
e a angústia dos pacientes, representavam a imagem da mãe, da esposa,
da noiva, da namorada, das irmãs ou das filhas prestando um atendimento
profissional e, acima de tudo, atencioso e acolhedor, em impagável demons-
tração de dedicação à causa abraçada por Anna Nery.
O Quadro de Enfermeiras da Reseva do Exército foi criado pelo Decreto
nº 6.097, de 15 de dezembro de 1943. As futuras enfermeiras militares in-
tegrariam o Serviço de Saúde do Exército (SSE). Para tanto, seria realizado
um curso de adaptação para as enfermeiras civis, voluntárias e previamen-
te selecionadas, na Diretoria de Saúde do Exército e na sede de algumas
Regiões Militares, com duração de seis semanas. As enfermeiras habilita-
das na etapa regional seguiram para o Rio de Janeiro, onde concluíram a
preparação. Ao final do processo de recrutamento, seleção e capacitação
física e técnica para atuarem na guerra, 73 enfermeiras da FEB seguiram
para a Itália.
No esboço de Virgínia Portocarrero (página seguinte), é possível visu-
alizar a estrutura do sistema de saúde Aliado na guerra — no qual estavam
inseridas as enfermeiras brasileiras — desdobrado no terreno. Convém
destacar que antes de o ferido ser levado para a estrutura hospitalar ele
recebia o atendimento inicial dos enfermeiros e médicos da estrutura do
serviço de saúde dos batalhões e regimentos. A estrutura hospitalar com-
preendia: a) Hospital de Campanha (Field Hospital). Era o mais próximo do

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Brasileiras na guerra 263

front. Nele era prestado o atendimento inicial aos pacientes que não po-
diam ser transportados em consequência da urgência da intervenção ci-
rúrgica — que chegava a ser feita sobre a própria padiola; b) Hospital de
Evacuação (Evacuation Hospital). No esboço, percebe-se que progrediu por
várias localidades. Nele eram realizadas cirurgias e tratamento de doenças
infectocontagiosas; c) Hospital de Estacionamento (Station Hospital). Era
mais bem estruturado e recebia pacientes com órgãos perfurados, mem-
bros amputados e fraturas mais graves, que exigiam internação mais pro-
longada; d) Hospital de Convalescentes (Convalescent Hospital). A denomi-
nação é autoexplicativa; e) Hospital Geral (General Hospital). Era o único
dotado de uma estrutura de hospital de tempo de paz. Desse último, os do-
entes mais graves e os amputados eram evacuados para o Brasil ou para os
Estados Unidos, dependendo da complexidade do tratamento a que teriam
de ser submetidos. Evidente é que o SSE era composto por médicos, dentis-
tas, enfermeiros e padioleiros, que tinham o auxílio dos responsáveis pelos
sepultamentos. Contudo, pela complexidade do trabalho, tais segmentos
não serão abordados nesta obra.
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Imagem VP.03.06.V01.001.F212 -

O esboço de Virgínia Portocarrero dispõe os hospitais no terreno

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264 VOZES DA GUERRA

As enfermeiras exerceram suas atividades com hospitais do V


Exército norte-americano, em diversas cidades e situações, na estrutura
anteriormente descrita e demonstrada no esboço. Assim sendo, os relatos a
seguir não expressam o dia a dia de todas as enfermeiras da FEB. São apenas
2 entre 73 histórias; entretanto, bem ilustram a participação das brasileiras
na Segunda Guerra Mundial. As memórias acrescidas ao texto revestem-se
de plena importância, pois proporcionam grande riqueza de detalhes.
A carioca Virgínia Portocarrero ao ler O Globo de 9 de outubro de 1943
ficou sabendo que o Exército procurava enfermeiras voluntárias, entre 18
e 36 anos, solteiras, viúvas ou separadas, para irem à guerra. Apresentou-
se para a seleção “movida pelo sentimento de filha de militar que sempre
esteve à disposição da Pátria, e também pelo sentimento de enfermeira em
servir ao próximo”. Quando sua mãe tomou ciência de que a filha se vo-
luntariara, para que ela não fosse à guerra, como mãe e esposa de militar,
usou de seus conhecidos no Exército: foi ao Hospital Central do Exército
(HCE) pedir para que não aprovassem a filha nos exames: “Quando eu me
apresentei para o exame de saúde, o tenente me olhou de longe e disse: ‘Re-
provada!’ Nem sequer me examinou; nem pulso, nem pressão, nada! Quan-
do cheguei em casa, papai quis saber que doença eu tinha. ‘Preciso saber
para tratar. Se você não tiver nada, você vai [para a guerra]. Quem mandou
se apresentar? Portocarrero nenhum nega fogo assim não; se apresentou,
agora você vai!’ Minha mãe fez força para eu não ir; ele foi lá e desmanchou
a história. E eu fui! Ele era ‘caxias’ e um pai amorosíssimo. Ao mesmo tempo
que sofreu bastante, tinha orgulho enorme de mim.”

Carlota Mello

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Brasileiras na guerra 265

A mineira Carlota Mello acredita que sua motivação de ir para a guerra


foi diferente das demais colegas. Nascida em região muito pobre, em uma
família de poucos recursos, ainda jovem decidiu não viver em Salinas, sua
cidade natal. Mudou-se para Belo Horizonte, onde estudou magistério e,
mais tarde, enfermagem na Cruz Vermelha: “Em vez de cuidar de crian-
ças, eu iria estudar enfermagem para cuidar de doentes. Para professora e
enfermeira, estudei de graça, pois não podia pagar.” Quando ela havia ter-
minado o curso, soube que o Exército estava convidando mulheres para
fazerem um curso de enfermagem especializado. Relata que 16 mineiras
fizeram o curso de três meses, no campo do América, em BH: “Eu marchei,
corri, rastejei, aprendi a atirar... Fazíamos tudo que o soldado tinha que fa-
zer.” Depois dessa etapa, ficaram apenas quatro voluntárias, e elas segui-
ram para o Rio de Janeiro.
Quando disseram que as voluntárias iriam mesmo para a guerra, “de-
cidi na hora que eu iria... Eu já não tinha pai; telefonei para meu irmão,
que era meu conselheiro. Ele explicou todas as dificuldades que eu iria en-
frentar, mas apoiou minha decisão. Ele ligou para minha mãe e disse a ela
que eu havia decidido ir para a guerra. E assim eu fui para a guerra. Com
a cara e a coragem! Acho que foi uma ousadia minha diante da pobreza e
das dificuldades por que passei. Fui para a guerra para fazer alguma coisa
diferente, já que mulher não podia fazer nada... Eu quis enfrentar algo di-
ferente; e fui!”, complementa.

Aracy Arnoud Sampaio

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266 VOZES DA GUERRA

Nas memórias da baiana nascida em Barreiras, Aracy Arnoud Sampaio,


descendente do general Antonio de Sampaio, patrono da Infantaria Brasi-
leira e herói da Guerra do Paraguai, é possível ler que, após o estágio realiza-
do em Salvador, continuou trabalhando no Hospital Militar da Bahia, onde
atendeu diversos pacientes vitimados nos navios torpedeados pelos países
do Eixo. Convocada para a FEB, assim descreveu o período que precedeu a
viagem à Europa: “Ao entardecer de um lindo dia de julho, embarcamos em
um navio comboiado por dois destróieres, rumo ao Rio de Janeiro. Éramos
cinco moças, duas baianas e três sergipanas. Fizemos uma viagem triste;
não se ouvia música, não se acendia luz, e todo o tempo trazíamos os salva-
vidas presos à cintura.” Aracy explica como foi no Rio de Janeiro: “Depois da
apresentação no Ministério da Guerra, recebemos fardamentos completos:
sapatos e uniformes de brim, lã e gabardine. Somente o último era saia; os
outros, saias-calças. Era grande o enxoval, e tínhamos que ser as próprias
carregadoras da mala A, do saco B, da mochila etc. No Rio de Janeiro, fiquei
trabalhando no pronto-socorro Moncorvo Filho, situado na praça da Re-
pública. É diferente o ambiente de um hospital comum, pois os acidentes
são de todos os tipos, e lá fui me acostumando a ver os tristes casos que
seriam meus ‘companheiros’ por longo tempo... Quase nada pude conhecer
da Cidade Maravilhosa. Finalmente na manhã de 19 de outubro de 1944,
em minha data natalícia, embarquei com mais 18 colegas, em um avião que
nos deixou em Parnamirim Field, em Natal...”
Na capital norte-rio-grandense, as enfermeiras permaneceram por até
duas semanas aguardando o embarque. Antes de seguirem para a Itália,
algumas das enfermeiras tiveram mais surpresas e fortes emoções. Carlo-
ta relata que permaneceu por 12 dias na base americana de Parnamirim
realizando preparativos e aguardando o embarque. Como era necessário
efetuar a evacuação aérea dos feridos em combate para o Brasil e havia o
risco de o avião ser bombardeado, várias enfermeiras participaram de um
curso rápido de paraquedismo.
Sobre o curso, mineiramente esclarece: “Uai! Foi só teórico não... Foi
na prática! E não era só saltar de paraquedas não: quando o paraquedas
chegava [na água], abríamos o salva-vidas com a boca. Não tinha que puxar
aquele cordão para ele encher não; tinha que tentar encher com a boca,
porque, caso aquilo [cordão] não funcionasse, deveríamos ter técnica e
força suficiente para encher o salva-vidas. Havia barcos por ali para salvar
quem não conseguisse encher... Ninguém ia morrer não, mas eu enchi o

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Brasileiras na guerra 267

salva-vidas com a boca. Eu e muitas! Quem comanda o corpo é a cabeça. Se


você tem senso do que está fazendo; se você tem que cumprir uma ordem,
você faz. Eu sempre fui ‘caxias’; eu sempre cumpri as ordens. A ordem era
aquela. Tentei e deu certo! Tinha que ter coragem... Mesmo sem coragem,
se você tem uma obrigação, você tem que fazer, tem que cumprir a or-
dem. Mas não foi nada de outro mundo não... Pular de paraquedas dentro
d’água... Se um [dispositivo de segurança] não dá certo, o outro dá. E, se
não der, morremos...”
Virgínia, junto a quatro companheiras, seguiu para a guerra integrando
o primeiro contingente de enfermeiras. Diz que foi uma viagem bastante
tensa, partindo do aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, na madru-
gada de 7 de julho de 1944. Chegaram a Natal, onde pernoitaram na base
de Parnamirim. Na manhã seguinte, começaram a travessia rumo à África,
onde aterrissaram em várias bases americanas. Somente em Argel soube-
ram que iriam para a Itália. A travessia do Mediterrâneo deu-se em um qua-
drimotor americano.
Aracy detalha a viagem Brasil-Itália: “Com ansiedade aguardávamos
a continuação da viagem, pois sabíamos que nos hospitais da velha Itália
nossos patrícios precisavam de cuidados. Seguimos em um grande avião,
direto a Dakar, na África. Voávamos muito alto, e uma colega sentiu-se mal.
Fizemos uma aterrissagem em pleno deserto do Saara, e o calor era estú-
pido. Vimos alguns árabes vestidos à sua moda e bem diferentes dos que
imaginávamos lendo os romances O Sheik e o Filho do Sheik. Pernoitamos
em Dakar [Senegal] e em outro avião seguimos, passando pela Tunísia e
Argélia. Era proibido sairmos do acampamento, mas na Argélia consegui
dar uma escapada no jipe do sargento encarregado do aeroporto e vi de
relance a cidade. Passamos por uma aldeia de negros, e achei pitorescas
suas moradias. Muito parecidas com as tabas de nossos índios, conforme
as gravuras nas histórias do Brasil. Imagino o calor e o desconforto, pois só
há uma abertura nas casas. As mulheres e crianças estavam todas do lado
de fora cozinhando e fritando bolinhos semelhantes aos acarajés baianos.
Os homens voltavam do campo, todos vestidos em camisolões, com as fer-
ramentas no ombro e cantando uma triste toada... Da Argélia voamos para
Casablanca, já nossa conhecida pelo cinema, com um filme do Humphrey
Bogart. Bela cidade, muito adiantada, com bonitas casas de sacadas flori-
das. Há o bairro árabe onde existe o harém de um sultão. Só nos permitiram
entrar nos jardins onde admiramos as flores, pássaros e fontes. Nas ruas,

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268 VOZES DA GUERRA

víamos muitos árabes vestidos à sua moda, isto é, de camisolões riscados


de seda, com albornozes e guiando automóveis! Muitas mulheres de rosto
velado; pedimos a uma que nos mostrasse a face, e ela o fez escondendo-
se atrás de uma porta. Era linda! Ficamos alojadas em um bom hotel com
todo o conforto e lá permanecemos 15 dias aguardando outro avião que
nos levasse à Itália... De lá voamos fazendo escalas na Tunísia, Oran, Argélia
e finalmente em Nápoles. Que destruição na cidade e que triste impressão
tivemos! Ficamos alojadas em um hotel que havia sido luxuoso e confortá-
vel, mas pelos bombardeios estava muito danificado. O frio era intenso, e
fiquei logo com grande resfriado e dores no ouvido.”
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Imagem VP.03.06.V02.107

Porto de Nápoles: “Que triste impressão tivemos” – Enf. Aracy Arnaud Sampaio

Nos seguintes fragmentos transcritos de seu diário, Virgínia descreveu


o cenário da noite de 15 de julho de 1944, a primeira em Nápoles, assisti-
do do 11º andar de um hotel semidestruído: “A noite era completamente
escura como breu; o calor enorme, e nós olhando pelos poucos vidros que
compunham a janela amarrada. Very lights foram lançados para clarear a
noite escura que nem breu...” Perplexidade foi o sentimento que a dominou
no seu batismo de fogo: “Meus olhos estavam tão arregalados que pareciam
sair das órbitas. Ao mesmo tempo eu estava achando uma maravilha. Lágri-
mas verdes, vermelhas caíam do céu. A antiaérea funcionava em todos os
sentidos. Aquele facho de luz corria por todas as direções... Os aviões caíam
daquelas alturas...” Depois, a cidade ficou em silêncio. Pela manhã, Virgínia
apresentou-se no 182º Hospital Geral, que usava as instalações de uma an-
tiga feira de amostras adaptada pelos americanos.

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Brasileiras na guerra 269

Carlota foi classificada no 25º Hospital Geral, de Nápoles. De seu depoi-


mento depreende-se que a organização era marca registrada dos Estados
Unidos na prestação dos serviços de saúde. Inovações técnicas e científicas
foram incorporadas à medicina de guerra, resultando na sobrevivência de
muitos mutilados: “O hospital era muito bem organizado... Tinha o horá-
rio de trabalho, o horário de lazer e o horário de dormir — tudo tinha seu
tempo. Eram turnos de oito horas seguidos com precisão. Eu trabalhava
em uma enfermaria com 64 leitos, com doutores americanos e brasileiros.
Eram três enfermeiras e dois enfermeiros — cinco pessoas para cuidar
de 64 doentes. Nos hospitais onde trabalhei na guerra, não houve chefes
brasileiros. Em todo hospital, existia uma seção com um médico brasileiro
com o posto de major, que era mais um amigo, um conselheiro... Eles nun-
ca intervieram no trabalho, na administração e na organização. Tudo era
americano... O alojamento era compartilhado por três enfermeiras. Em meu
alojamento, éramos eu e duas americanas.” Carlota destaca que a pontuali-
dade era marca sua e dos enfermeiros americanos: “Os rodízios de equipes
eram feitos na hora certa. Só uma vez cheguei atrasada. Foi quando houve
a mudança de fuso horário. Quando cheguei para o turno, a equipe estava
trabalhando havia quase uma hora. Fui recebida com assovios e vaias. De-
pois me avisaram que haviam anunciado nos alto-falantes, mas devem ter
avisado em inglês, e eu não compreendi.”
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Imagem VP.03.06.V02.016

Enfermeiras prontas para mudança de base, em Pistoia. Virgínia ao centro

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270 VOZES DA GUERRA

A evolução das tropas no terreno impunha mudanças constantes. A


mobilidade era característica marcante no serviço de saúde, sobretudo
nos hospitais de campanha: “Eu usava a cama-rolo em cima de uma lona;
colocava as roupas e cobertores estendidos; no caso de mudança rápida,
era só enrolar a cama com a roupa dentro e carregar... estava sempre tudo
arrumado, por precaução”, recorda Virgínia, que até o final da guerra pres-
tou serviço em 11 localidades e hospitais diferentes: “Quando a tropa avan-
çava, nós avançávamos também”, complementa. Essa mobilidade foi posta
à prova em Pisa, quando uma enxurrada consequente do rompimento de
uma represa obrigou à mudança emergencial da enfermaria: “Era madru-
gada; eu estava dormindo quando soou o alarme. Sempre que ele tocava,
ficávamos alertas, pois vinha uma notícia. A ordem era se apresentar na
enfermaria imediatamente, deixando tudo onde estava. O rio Arno estava
transbordando.” Naquela situação, no frio e no escuro, a prioridade eram
os pacientes: “Não podíamos sair da enfermaria enquanto houvesse algum
baixado em perigo; só depois de todos serem evacuados, pudemos cuidar
de nós mesmos”, diz Virgínia.
Pela conduta durante aquela madrugada recebeu o seguinte elogio:

Por ocasião da inundação que invadiu o 38th Ev.H. (38º Hospi-


tal de Evacuação), em 2 do mesmo mês, o Sr. Maj. Med. Dr. Er-
nestino Gomes de Oliveira, em Bol. Int. nº 33, de 9-XI-944, as-
sim se expressou: E como exemplo digno de ser seguido como
padrão para todos os que se sacrificam pela causa da liberdade
e serviço do Brasil, tenho muita satisfação de elogiar e louvar a
Enfermeira VIRGÍNIA MARIA DE NIEMEYER PORTOCARRERO,
que se destacou pela capacidade de trabalho, dedicação e cari-
nho com que atende aos seus pacientes durante a madrugada
de calamidade, bem assim no dia consecutivo, tendo sempre
uma palavra de conforto para os doentes mais graves, encar-
nando bem o papel de enfermeira brasileira, a sua ação foi de
grande eficiência, não só na parte administrativa, recolhendo,
logo no início da catástrofe, juntamente com outra colega, toda
a documentação e medicação necessárias aos pacientes, tor-
nando, assim, fácil a missão de seu chefe.

Muitas enfermeiras, a partir de Nápoles, fizeram o mesmo trajeto dos


pracinhas em, barcaças, até Livorno. Aracy escreveu: “A bordo organizaram
uma brincadeira, e fui convidada a cantar, o que fiz, agradando a todos... Ao

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Brasileiras na guerra 271

desembarcarmos em Livorno, já nos esperavam jornalistas americanos e


brasileiros, fotógrafos e superiores. Já me conheciam de nome pela festinha
havida, e fomos fotografadas para sair na capa da revista italiana Il Mondo
Libero. Embarcamos em caminhões e, nessa mesma noite chuvosa e fria,
fomos para o acampamento fora da cidade. Começamos a sofrer a tristeza
e o desconforto. Mesmo assim, fui cantando o hino do Senhor do Bonfim
procurando fortaleza na minha fé e transmitindo-a às minhas colegas. O
acampamento era composto de muitas barracas de lona verde-escuro, sendo
um lado brasileiro e outro americano. As barracas dos oficiais homens eram
afastadas das mulheres, e todo o tempo duas sentinelas faziam a guarda. Eram
cinco barracas para as 24 enfermeiras brasileiras lotadas no 7º Hospital de
Livorno. Eram 67 americanas nesse local, motivo pelo qual nossos pracinhas
reclamavam. O efetivo [total] de enfermeiras brasileiras era de 73 moças
para mais de mil americanas no total.”
Acervo: Socorro Sampaio

Enfermeiras embarcadas, no porto de Nápoles, enquanto aguardavam o


deslocamento para Livorno. Foto como essa ilustrou a capa da revista. Aracy é a 2ª
da direita para a esquerda, à frente
A história seguinte, vivida por Carlota, destaca a força moral, trazida do
núcleo familiar, e a força física — aprimorada no curso preparatório —, que
destacaram as brasileiras no desempenho do dever: “No começo da guerra,
os alemães não bombardeavam hospitais. Eles usavam a granada que ilumi-
nava tudo e escolhiam os alvos. Acredito que, mais para o fim da guerra, pela
escassez de material, eles atiravam de modo menos seletivo... Certa noite,
ocorreu um blackout, pois havia desconfiança de que a enfermaria seria bom-
bardeada. Estávamos jantando quando deram a ordem pelo alto-falante para

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272 VOZES DA GUERRA

que cada um fosse à enfermaria, pegasse sua lâmpada e seguisse para o abri-
go, que era em um túnel. Todo o mundo correu. Quando peguei a lâmpada, vi
a geladeira e tive vontade de beber água. Era uma geladeira imensa, de ma-
deira. Quando abri, vi o caixote de penicilina. Sem saber ao certo o que estava
fazendo, porque normalmente eu não iria aguentar aquele caixote, pensei:
‘Nossa! Levaram os pacientes e esqueceram a penicilina...’ Não levei lâmpada,
nem mais nada. Peguei o caixote e saí correndo para o abrigo. Quando che-
guei ao abrigo, veio um bando de homens na minha direção, pegando o cai-
xote e dizendo: ‘Ela se lembrou; ela se lembrou da penicilina...’ Era um caixote
que normalmente eu não iria aguentar, mas, na época, eu andei quase 1km
para chegar lá... Abraçaram-me como se fosse um jogador de futebol quando
faz um gol. Colocaram-me lá em cima, porque eu me lembrei da penicilina.”
Virgínia diz que sua principal atividade foi em enfermarias de cirurgia
e em salas de operação em hospitais: “Muitas vezes o soldado nem percebia
que havia sido amputado, pois a perna era enfaixada e colocada uma
espécie de prótese no local. Quando o soldado dizia que sentia dor no pé,
e nem tinha mais perna, eu fazia como se ele realmente ainda tivesse o
pé; colocava um travesseiro embaixo para deixar mais confortável; fingia
mesmo! Era para o bem dele. Às vezes entrava uma pessoa na enfermaria
e dizia: ‘Eu quero falar com o doente fulano que perdeu uma perna.’ Eu não
deixava falar. ‘Tudo bem! Você pode visitá-lo, mas não fale que ele perdeu
a perna; ele não sabe.’ Essa era a orientação que seguíamos no teatro de
operações; era ordem, e nós cumpríamos.
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Imagem VP.03.06.VO2.126

Sala de Operações, em Pistoia

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Brasileiras na guerra 273

Nas enfermarias, durante os bombardeios, era comum ver soldados que


mal podiam se mexer, ao ouvirem o som das granadas, sentarem na cama e di-
zerem ‘Viva o Brasil!’ Alguns até faziam continência. Era emocionante ver aqui-
lo. Por vezes, eu saía da enfermaria chorando; ia até a barraca, lavava o rosto,
me pintava direitinho e voltava, como se nada houvesse. Na hora em que estava
no atendimento [em serviço], como eram muitos leitos, não dava para dar uma
assistência específica aos pacientes; mas nas horas de folga voltávamos à en-
fermaria para prestar solidariedade. Eu conversava com eles e escrevia cartas
para quem estivesse imobilizado. Eles ditavam, e eu escrevia; depois, mandava
para a família”, acrescenta Virgínia. No diário de Aracy, está expressa a mes-
ma assistência moral aos soldados baixados à Enfermaria E-22 do 7º Hospital:
“Escrevia para as mães, esposas, noivas e irmãs dos que não podiam fazê-lo
pessoalmente. Ia à Red Cross [Cruz Vermelha americana] buscar-lhes bombons,
chicletes, revistas etc. Lia para eles, cantava para alegrá-los, enfim, de várias ma-
neiras procurava servir-lhes e cumpria com meu dever. Em fevereiro, após a To-
mada de Monte Castelo, baluarte onde os alemães se estabeleceram e de onde
mataram muitos soldados, o hospital esteve lotado, e o trabalho foi árduo.”
Virgínia destaca que nas enfermarias “todos recebiam o mesmo trata-
mento. Atendíamos a qualquer um; até alemão que caía prisioneiro era ali
que ficava. Eram todos nossos pacientes, sem distinção. Alguns italianos
eram galanteadores e vinham fazendo declarações: ‘Ma che bella signori-
na’, diziam. Respondíamos: ‘Andate via, paisano!’ Algo como ‘Cai fora, tenha
respeito’”. Acrescenta que o trabalho de enfermeira era bastante sofrido,
mas “sempre dava alento físico e emocional aos feridos. Lembro bem de ter
cuidado do meu primo Hélio, o que foi bem difícil, pois ver um ente querido
de minha família ferido com estilhaços de bomba não foi nada fácil”.
Carlota não viu nenhum combatente morrer em sua enfermaria:
“Havia uma triagem. Quando o médico via que o estado do soldado era
muito grave, que oferecia perigo de morte, ele era levado para uma en-
fermaria específica para esses casos. Na minha enfermaria, chegavam
mutilados; parecia um filme de horror: uns de perna para cima; outros
de joelhos engessados. Também tinha os que só podiam ficar de bruços
ou de barriga para cima, de acordo com as necessidades de cada um. Era
uma visão estranha, muito triste. Mas ninguém sentia dor, porque já na-
quela época o americano achava que a dor prejudicava muito o soldado;
então ele não podia sofrer. A medicação principal era a penicilina, que
salvou muita gente. Na época, tinha que ser guardada na geladeira e era

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274 VOZES DA GUERRA

ministrada de três em três horas. Eram 64... Quando terminávamos de


dar injeção no último, já era hora de recomeçar no primeiro... Era um
rodízio! Penicilina, remédio contra a dor e contra a intoxicação — eram
os três remédios que usávamos nas enfermarias. Na guerra, tudo era
assim, muito bem organizado.”
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Acervo: Imagem 03.06.V01.001.F182

Virgínia na fila P. Ex.

A vaidade feminina nunca era deixada de lado. Para realçar a feminili-


dade, já que o uniforme cedido às enfermeiras era muito rústico, Virgínia
“comprava roupas, pintura e outros artigos femininos em um piex1 america-
no. Tinha ruge, batom, pintura para cílios; era completa”. As datas especiais
— Natal, Ano Novo e Páscoa — foram comemoradas na barraca com as co-
legas americanas: “Comprávamos lembrancinhas na cantina e trocávamos
entre nós. Aquilo recordava demais nossas famílias. Nós nos abraçávamos
e confraternizávamos, mas acabávamos chorando. E assim acabava a festa.”
Carlota diz que nunca teve problemas de relacionamento, mesmo tra-
balhando em um meio eminentemente masculino: “Na guerra, eu era uma
gota em um mar de homens. Sempre fui amiga dos chefes e dos companhei-
ros. Saíamos nas horas de lazer para todo lugar. Eu vi as maiores óperas do
mundo no tempo de guerra. Sempre saía com Roselys... Nós tivemos muitos
amigos médicos e sargentos enfermeiros. Tínhamos amigos em todos os
setores de trabalho. Eles nos contavam sobre suas vidas, e nós sobre as
nossas famílias. Isso era bom porque tínhamos necessidades de conversar,

1
P. Ex. do inglês Post Exchange – espécie de cantina dentro de bases americanas que
vende artigos diversos a preços especiais.

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Brasileiras na guerra 275

de falar sobre assuntos diferentes de guerra, de manter amizades, mas tudo


dentro do respeito. Nada forçado, nada obrigado.”
Virgínia diz: “Eu não tenho nada a reclamar quanto ao tratamento na
FEB. Todos sempre foram muito corretos. Eles determinavam tudo muito
direito comigo, então não tenho nada do que me queixar. Eu quis estar lá.” O
relacionamento entre as enfermeiras “no meu hospital era esplêndido; não
tenho queixa de nenhuma colega. A única que queria mandar, mas eu tam-
bém não gosto de citar, era a [nome omitido com a concordância de Virgí-
nia], mas nós não dávamos bola para ela. Ela era metida a mandar, mas não
encontrava apoio nenhum... Conheci várias outras; eram muitos distintas”.
Nas páginas de seu diário, que Virgínia encaminhava ao pai, entre ino-
vações médicas e receituários, noites insones e dedicação aos pacientes nas
enfermarias, são perceptíveis a angústia e o medo da guerra; contudo, so-
bressaem a coragem de enfrentar as adversidades, a alegria pelo sucesso
do trabalho, o profundo sentimento de solidariedade pelos pacientes e o
amor à profissão escolhida.
Acervo: MNMSGM

Solenidade do Dia do Soldado, em 1944. Virgínia é a 1ª, à direita

Virgínia retornou da guerra em 1945, “depois de sair tudo quanto era


doente”, como diz. “Cheguei ao Rio sem dinheiro: papai pagou o táxi quan-
do cheguei em casa. Terminada a guerra, de volta ao Brasil, eu me apresen-
tei na Diretoria de Saúde. O general-diretor de saúde não me deu a menor
atenção. Ele estava escrevendo em seu gabinete e me cumprimentou com
a mão esquerda; nem olhou para a minha cara: ‘Está apresentada; apre-
sente-se à 3ª Seção! Breve será desligada!’ Foi só o que ele disse... E fui
logo desligada. Apresentei-me no Instituto do Mate, onde trabalhei como

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276 VOZES DA GUERRA

desenhista.” Segundo diz, as enfermeiras poderiam ter sido mais bem


aproveitadas para transmitir os ensinamentos colhidos na guerra: “Eu não
tinha doença nenhuma; eu tinha era vontade de bater este papo, de conver-
sar com os brasileiros, de dizer o que foi [a guerra]. Eu só queria era isso!”
Virgínia analisa sua participação na guerra: “Enfrentamos bombar-
deios, enchentes, neve, degelo, incêndios, explosões, vigília, angústia; tudo
experimentamos na guerra, mas retornamos à nossa terra com a consciên-
cia do dever cumprido. Eu me orgulho de ter sido enfermeira deles [praci-
nhas]. O verdadeiro valor estava neles; eu estava lá dando apoio e tratando
deles, mas sabia que eles tinham muito mais valor do que eu. Eu estava lá
apenas dando um apoio a quem tinha o valor de guerrear. E foi assim que
nós, primeiras oficiais enfermeiras pertencentes ao Exército e à FEB, tive-
mos a honra e o privilégio de cuidar de valorosos pracinhas, minorando
seu sofrimento e também, como mulheres, sentindo o orgulho de estarmos
presentes nesse conflito mundial e propiciando à nossa Pátria dias melho-
res a serem vividos. Nosso ânimo no Teatro de Operações era tanto que
fortalecíamos o espírito de quem necessitava de nossa assistência moral
e especializada, capaz de mitigar as dores do corpo e os males da mente.
Guerras não deveriam existir. É claro que se aprende muito, e, hoje na paz,
nos desvanecemos de ter estado lá e de sermos as pioneiras oficiais enfer-
meiras pertencentes ao Exército Brasileiro.”

As enfermeiras na óptica dos pacientes


Quando há interesse em avaliar determinada situação, ninguém pode
fazê-lo melhor do que os diretamente beneficiados. No caso específico das
enfermeiras, os pacientes. Divaldo Medrado diz que era corrente a opinião
de que, caso o combatente não morresse antes de chegar à enfermaria, es-
taria salvo, pois o atendimento dos médicos e enfermeiros era muito bom.
Atendimento na hora apropriada e boa alimentação, aliados aos avanços
da medicina, faziam verdadeiros milagres: “Foi na época da penicilina... Eu
tinha ficado com uma capa [de gesso]; só ficou a mão de fora! Até era uma
época de muitas brincadeiras no hospital. Apesar da dor e do sofrimento,
tinha hora para diversões e brincadeiras.”
João Gonzalez explicita a importância das enfermeiras na guerra. Além
da providencial ajuda funcional, está outra ainda mais importante: a atenção.
“Quando se está ferido, lembra-se logo de Deus e da mãe... As enfermeiras

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Brasileiras na guerra 277

faziam o papel de mãe, de nos afagar, nos aproximando da lembrança de


casa, do aconchego da família, para amortizar a agonia que sentíamos. Após
ser retirado do front, fui conduzido a um posto avançado de saúde, onde
recebi soro e sangue. Depois me levaram para um hospital, onde fizeram
a cirurgia. Havia três estilhaços. Um não foi retirado e permanece em meu
pulmão até hoje. Não posso precisar, mas fiquei baixado entre dois e três
meses. A maior parte desse tempo, eu permaneci em Pistoia. Devo muito
aos médicos e às enfermeiras; o trabalho deles era muito profissional.”
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Imagem VP.03.06.VO2.179

Enfermarias do 16º Hospital de Evacuação, em Pistoia

Enéas Araújo conta: “Eu tinha sido operado em Pistoia a primeira vez
em um hospital de campanha às 13h do dia seguinte ao ferimento. Lembro
que a enfermeira até ria, porque ela passava álcool e tinha que usar uma
espátula, tamanha era a sujeira. Desde que nós tínhamos passado por Por-
reta Terme, eu não tinha mais tomado banho. Quando acordei, na manhã
seguinte, eu estava amarrado. Perguntei o porquê, e o sargento respondeu:
‘Ah, você fez um escarcéu de madrugada; mas não se importe, pois quase
todo mundo que vem do front, meio fraco, faz isso... É o efeito das injeções...’
Passei oito dias no hospital tomando penicilina de três em três horas. Não
tinha mais onde tomar... Depois fui para um hospital maior, no prédio de
uma sociedade. O salão de baile era a enfermaria.
Fui tratado por uma enfermeira da FEB. Se não me engano, era a mais
velha de todas. Certo dia ela ia arrumar um livro para eu ler; fui com ela
até a barraca. Sentei na cama dela enquanto ela procurava o livro. Entrou
a Elsa Cansanção e me viu lá. Ela esculhambou comigo, e eu não aceitei

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278 VOZES DA GUERRA

aquilo. Ela deu parte de mim [comunicou o fato ao superior hierárquico].


Quando fui chamado pelo major, estavam ela, a outra enfermeira e eu, que
já havia sido operado, com o braço imobilizado, amarrado ao corpo. O ma-
jor perguntou se eu estive na barraca da enfermeira, e disse que sim; que a
enfermeira iria arrumar um livro para mim quando chegou a tenente Elsa,
me ofendendo e já pensando coisa ruim. ‘Agora o senhor vê, como é que eu
iria fazer qualquer coisa, amarrado desse jeito?’ Eu vi que o major estava
com vontade de rir... ‘Está bem, sargento, pode ir embora’, disse o major.
Depois, a reencontrei em muitos encontros de ex-combatentes, mas nunca
mais falei com ela, porque guardei essa mágoa; porque se estivesse bom,
poderia até pensar em safadeza, mas eu estava amarrado e passei quase
uma semana assim.”
Enéas aprendeu que nas piores situações a solidariedade faz toda a di-
ferença: “O pior da guerra é conviver com o sofrimento, com a morte. Per-
der o cabo e o soldado foi o fato mais sofrido. Cheguei a chorar no front... No
hospital, quando eu melhorei um pouco, fui dar uma volta nas enfermarias.
Eu vi tanta coisa... Nego que perdeu pé, nego que perdeu perna, nego que
nem sabia que tinha perdido os pés... Era uma tristeza ver o sofrimento
desses casos. Dor física, eu sofri antes de ir para o hospital; depois que fui
operado, não senti mais dor.”
Ary Abreu e Cleto Pellegrinelli explicam que o atendimento das enfer-
meiras no hospital de Livorno era muito bom. Ary brinca: “De três em três
horas, invariavelmente vinha uma enfermeira americana para nos atuca-
nar. Eu já estava tão furado quanto uma peneira. Ela começava me alisar as
costas, e como eu não falava nem bom-dia em inglês eu só dizia: ‘Olha essa
brincadeira! Quando estávamos dormindo, ela puxava o pijama e cráu, mais
uma agulhada de penicilina!’” Cleto, vizinho de cama de Ary, se diverte: “Eu
até já dormia sem calça para facilitar. Era de três em três horas, noite e dia.”
Ary relata que, quando passou pelo hospital de Pistoia, foi atendido
pelas enfermeiras brasileiras Ondina [de Souza] e Virgínia Portocarrero:
“A Virgínia era muito bonita e muito correta. Ferido como estava, eu não
podia beber água. Há três dias sem comer e beber, eu estava com uma sede
danada. Do lado de fora, havia uma torneira jorrando água... Olhei para um
lado e para o outro; levantei de fininho; quando eu pus a mão na água e ia
levar à boca, ela me pegou pelo ombro e me levou de volta para dentro:
‘Volta, rapaz; você não sabe que não pode beber água quando é ferido?’ ‘Sei,
sim, mas a sede está me matando... vou morrer de sede e de fome. Desde o

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Brasileiras na guerra 279

dia 14 que não tomo água e nem como.’” O desfecho da aventura frustrada
não foi o esperado por Ary, mas certamente foi o indicado e o mais correto.
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Imagem VP.03.06.V01.001.F130

Virgínia em Pistoia

A carta
A carta escrita pelo sargento Inácio de Loyola de Freitas Virgolino, do
Regimento Sampaio, traz detalhes históricos de suma importância, não só
sobre a enfermeira que o tratou mas sobre a função que desempenharam as
enfermeiras na guerra. Independentemente de país, bandeira ou ideologia, é
possível depreender sentimentos que movem os profissionais de enferma-
gem: humanismo e solidariedade!
Pistoia — Itália. Enfermaria 3 de Cirurgia
Tenente, de quando em vez me vem na cabeça o tempo em que
eu fui prisioneiro dos alemães.
A senhora fez bem em dar igual tratamento a esses homens
que são na guerra os nossos inimigos. Esse artigo que saiu hoje
no jornal do hospital, tirando a ração de cigarros dos brasi-
leiros me fez pensar profundamente, e quando vejo a senhora
distribuir a sua ração porque a senhora não fuma e por isso
mesmo perdê-la, é uma coisa muito bonita.

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280 VOZES DA GUERRA

Quando a senhora colocou aquela caixa de papelão lá no


fundo da enfermaria e escreveu Caixa da Enfermaria e alto
falou conosco, lendo a notícia publicada, como calou fundo
no meu íntimo.
A senhora disse: ‘Vocês não deem os seus cigarros para os ale-
mães, pois a notícia anuncia que o brasileiro que isto fizer vai
perder o seu direito de racionamento do cigarro. Eu não fumo;
então coloquem os cigarros que vocês quiserem dar aos ale-
mães nela porque eu assumo.’ Que bonito ver este gesto de co-
ragem partir de uma mocinha tão nova e tão firme. A senhora é
enfermeira de verdade; está escrito no seu coração a profissão
que a senhora nasceu. Foi Deus que lhe fez enfermeira.
Eu fui prisioneiro dos alemães e estive também hospitalizado;
as enfermeiras alemãs me trataram muito bem e os médicos
também. É verdade que não havia no hospital tanto recurso
como neste aqui. Porém, calor humano e tratamento eu tive.
Tenente, quando a comida era pouca eu me lembro, só ha-
via batata para comermos, pois todos sem diferença de raça
recebiam uma batata. Eu aprendi a apreciar a maneira dos
alemães. A senhora continue dando este tratamento igual em
sua enfermaria.
Eu, como brasileiro, me orgulho da senhora, anjo de caridade
do meu Brasil.
Eu apreciei o tratamento que recebi dos alemães e me orgu-
lho da maneira piedosa e eficiente que a senhora nos trata; e
obrigado por ter vindo para a guerra, cumprindo a sua missão
com tanta eficiência e dando a nós brasileiros a garantia de
estarmos sendo atendidos com toda competência e não dis-
tinguindo ninguém, tratando a todos com todo o cuidado que,
embora eu ainda estando muito machucado, mutilado até, eu
me sinto seguro tendo a senhora como enfermeira.
Obrigado Tenente Virgínia, desculpe a letra; estou escrevendo
há dias esta carta com a mão esquerda, pois a direita está
gessada. Estou então muito bem atendido, que escrevo com
sacrifício..., agradecimento.
Deus abençoe suas mãos e sua maneira de ser.
Tenente Virgínia. Deus a guarde, a guarde e conserve a sua
bondade.

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Brasileiras na guerra 281

Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação


Imagem VP.03.06.VO1.001.F159

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Apêndice I
Pracinhas, Ex-Combatentes e Veteranos

O termo “Pracinha” é uma derivação carinhosa de Praça, maioria


dos integrantes da FEB. Independentemente de posto (oficiais)
ou graduação (praças), entre os veteranos e ex-combatentes o
termo é aceito de bom grado; nenhum deles se mostra contrariado por as-
sim ser chamado.
Isso também não se pode dizer dos termos “Veterano” e “Ex-Comba-
tente”. Ao retornarem da guerra, os pracinhas criaram as Associações de
Ex-Combatentes do Brasil, em diversas cidades. Existia um Conselho Nacio-
nal, além de seções regionais. O objetivo supremo era congregar e manter o
vínculo entre os pracinhas e lutar pelos direitos destes e de seus familiares.
Com o passar do tempo, houve dissonância entre os integrantes da
FEB que embarcaram para a Itália e os ex-combatentes que permaneceram
no Brasil, em patrulhamento marítimo, de litoral ou linha de fronteira. Em
decorrência, surgiu a Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedi-
cionária Brasileira (ANVFEB), congregando apenas os que participaram da
guerra em solo europeu.
Os motivos que levaram à cisão foram diversos. A decisão de alguns
passarem a usar a boina azul (que distingue os veteranos) ou continuar
usando a boina verde (adotada pelos ex-combatentes) é apenas um detalhe
em uma questão complexa, que necessita de um estudo mais aprofunda-
do. Certo é que todos estavam prontos a lutar caso fosse necessário. Além
disso, ninguém escolheu o que faria ou deixaria de fazer: foi a Pátria que
definiu qual seria a missão de cada um deles.
José Marcelino de Holanda, nascido em Pau dos Ferros-RN, após in-
gressar no Exército como voluntário no 14º RI, em Recife, foi transferido
para Campina Grande e João Pessoa, de onde foi mandado de volta a Recife.

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Apêndice I 283

Depois, o Exército deu-lhe a missão de guarnecer Fernando de Noronha:


“Saímos do porto de Recife pelas quatro horas da tarde. Quando saímos
da barra, fomos acompanhados por dois navios de guerra; dormíamos em
cima dos botes salva-vidas. Só nesse navio, éramos cerca de 800 soldados.”
Acervo: MNMSGM

Tropa em Fernando de Noronha

Conforme Holanda, em Fernando de Noronha “a barra era pesada; a


ilha era toda vigiada por nós e por um Zeppelin. Os americanos consta-
taram a presença de um submarino alemão. Ah, meu Deus! Foi um bafafá
medonho na ilha... Todo mundo armado e equipado na praia, de mochila
e metralhadora ou fuzil. Era a nossa rotina diária. A tensão era muito
grande! Na base aérea, que era operada pelos americanos, o tráfego era
muito intenso. Eles chegavam à tardinha, e, pela manhã, era aquela zoada
de aeronaves decolando rumo a Dakar, na África. À tardinha, eles volta-
vam para reabastecer”.
Holanda continua: “O relacionamento entre os militares era amistoso,
mas os oficiais eram bastante duros. Nessa época, o coronel Tristão de Ara-
ripe era o comandante e governador da ilha. Era duro o homem! Se pegas-
se um soldado dormindo [no serviço] era calabouço em um forte. A turma
que ia presa ficava lá. O que melhorou muito essa questão foi conviver com
os americanos. Viram como eles tratavam os soldados deles e passaram a
maneirar; com isso, melhorou muito para nós. Cada um tinha que lavar sua
roupa. Nosso divertimento na hora da folga era pescar com linha. A comida
era muito ruim; por isso que deu uma peste de beribéri. Um tenente que
havia lá era muito bom, mas foi acometido de beribéri e morreu.

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284 VOZES DA GUERRA

Eram quatro voos semanais para levar comida, material de guerra...


Passei 13 meses em Fernando de Noronha. Foram 13 meses duros... Quan-
do findou a guerra, ainda na ilha, começaram a licenciar gente. Eu via todo
mundo indo embora, mas não podia porque era especialista e tinha que
aguardar um sargento que viria de Recife ou Natal para me substituir. Eu
era telefonista; com meus três soldados... lançava fio e operava o telefone.
Havia um posto de observação em um morro e fazíamos a ligação entre esse
posto e o comando.”
Sobre a distinção entre ex-combatentes e veteranos, Holanda lembra
que inicialmente muitos diziam que aqueles que não foram à Itália não
eram ex-combatentes, mas isso foi resolvido pela Lei nº 5.315/1967
que, regulamentando o artigo da Constituição Federal, assim considerou
todo aquele que havia participado efetivamente de operações bélicas,
na Segunda Guerra Mundial, integrando forças do Exército, da Força
Expedicionária Brasileira, da FAB ou das marinhas de Guerra e Mercante:
“Eu não me sentia diminuído; o nortista é muito chegado à Pátria. Sempre
fui cumpridor de ordens: para onde me mandaram eu fui e tratei com
profundo respeito a oficialidade e os colegas. Cumpri bem minha missão.
Não me queixo de nada!”
Acervo: Vet. Ivo Ziegler

Associação dos Ex-Combatentes do Brasil – Seção Santa Maria.


Até hoje congrega Veteranos e Ex-Combatentes

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Apêndice I 285

Holanda deixa uma mensagem aos jovens: “Na época da guerra, eu fui
voluntário para defender meu país e me sentia bem, porque estava defen-
dendo o Brasil. Os jovens deveriam servir à Pátria. Isso aqui é nosso, de
mais ninguém! Nós devemos defender o que é nosso! Eu me sinto um brasi-
leiro de todo o coração. Eu amo meu povo; eu amo minha Pátria.”
Este capítulo não estaria completo caso não fossem mencionados os
“soldados da borracha”. O tema é complexo e merece aprofundamento.
No entanto, mencionar as dezenas de milhares de brasileiros, sobretudo
nordestinos que se deslocaram para a Amazônia a fim de participarem
do esforço de guerra mediante a extração de látex para a indústria da
borracha é uma questão de justiça. O inimigo deles não usava armas: era
a própria floresta, com suas feras e doenças que vitimaram milhares de-
les; outros tantos ficaram abandonados à luz da própria sorte. A luta dos
sobreviventes continua. A vitória para eles só virá com o reconhecimento
da Pátria pelo esforço que eles e os milhares de companheiros que não
tiveram a ventura de sobreviver às agruras da selva empreenderam pela
paz mundial.

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Apêndice II
Monumentos e homenagens

E m muitos municípios, a população mobilizou-se para que os bra-


vos que regressaram da guerra cobertos de glória tivessem um
espaço destinado à sua memória, como materialização do reco-
nhecimento aos que colocaram a própria vida em risco pela soberania
da Pátria e pela liberdade mundial. Grandiosos como os feitos da FEB ou
simples como a maioria dos soldados que a compuseram. Não importa o
tamanho do monumento; essencial é que perpetuem esse capítulo glorio-
so de nossa História.
Foto: Sirio S. Fröhlich

Monumento em Santa Maria-RS

Em Santa Maria, ainda em 1945, foi inaugurado um monólito com o


mapa do Brasil insculpido, contendo uma placa de bronze com os dizeres
“Santa Maria exalta o Expedicionário Brasileiro — Uma glória a mais na

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Apêndice II 287

glória do Brasil — 1945”. Em 1992, a Associação dos Ex-Combatentes do


Brasil local, a 3ª Divisão de Exército e o Poder Público Municipal erigiram
imponente monumento em forma de portal na praça General Osorio. O es-
paço também recebeu a homenagem original, de 1945. Em 2006, foi acres-
centada ao monumento uma réplica em resina e metal de um combatente
da FEB. Infelizmente, o monumento em homenagem àqueles que triunfa-
ram diante de um poderoso adversário na guerra vem sofrendo seguidas
derrotas para os vândalos.
Alguém desavisado que olha um monumento pode pensar que se tra-
ta apenas de concreto, ferro ou bronze. Contudo, para os personagens
da Segunda Guerra, trata-se de um símbolo, um marco que remete a um
tempo de sofrimento e de glória. Ivan Alves diz que, quando vê o monu-
mento em homenagem à FEB — e, em consequência, a ele — sente a pre-
sença de seus companheiros, “especialmente os que não voltaram, como
o amigo da infância Nilson Ramos, meu colega de primário, de ginásio e
de curso de admissão; amigo da vida toda, que perdeu a vida no primeiro
lanço que deu em Bombiana. O ataque começou às 8h, e, às 8h5min, ele
estava morto”.
João Gonzalez lamenta: “Atualmente, quando vejo um monumento
em homenagem à FEB, me sinto até triste, porque nós viemos do apogeu
até o total esquecimento. Hoje você passa na rua por um jovem de 20
anos com um distintivo da FEB, e ele pergunta: ‘O que quer dizer essa
FEB aí?’ Respondo que isso é um distintivo da Segunda Guerra Mundial.
‘Ah, e quando é que foi?’ Eles não sabem quase nada. Nem sabem que o
Brasil tomou parte nessa guerra. É por isso que esse trabalho nas escolas
é muito útil. Vai mostrar à infância de hoje o que é uma guerra e que fomos
parte dela.”

Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial


Em 1960, os restos mortais dos brasileiros que tombaram em solo
italiano foram transladados do Cemitério Brasileiro em Pistoia para o Rio
de Janeiro. O marechal Mascarenhas de Moraes nutria o desejo de com-
pletar sua missão de comandante com o translado dos despojos dos bra-
sileiros que tombaram nos campos italianos: “Eu os levei para o sacrifício;
cabia-me trazê-los de volta para receberem as honras e glórias de todos
os brasileiros.”

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288 VOZES DA GUERRA

Foto: Amilton Mendes dos Passos

Com esse intuito, em 1952 foi nomeada a Comissão de Repatriamento


dos Mortos do Cemitério de Pistoia. Rubens Andrade foi convidado pelo ge-
neral Cordeiro de Farias e participou da comissão. Segundo ele, a jornada de
repatriamento das urnas a bordo de três aviões da FAB, assim como a guer-
ra, reservou sérios contratempos. Rubens e o general mencionado retorna-
vam juntos na aeronave. Ao aterrissar em Lisboa para uma parada técnica,
o avião bateu na cabeceira da pista, perdeu o trem de pouso e pegou fogo.
Segundo Rubens, “a situação era difícil: a fumaça no interior era muito
densa, o ar estava quase irrespirável, e eu, em um avião em chamas... O fato
de não ter uma perna [amputada na guerra] dificultava meu desembarque.
Foi aberto um buraco perto de uma janela por onde tentei sair. No que fui
me segurar na lateral, queimei as mãos. Estava tudo muito quente! No fi-
nal das contas, consegui me jogar por um buraco aberto na fuselagem, mas
uma farpa do metal rasgou minha calça e minha virilha. Não sei como, mas
caí lá embaixo, rodando”.
Acervo: Vet. Rubens Andrade

Avião ficou destruído

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Apêndice II 289

E conclui: “Sempre me considerei abençoado. Na guerra, em vez de


perder as duas pernas, perdi uma só; em Portugal, ao saltar do avião, Deus
me fez cair ao chão rodando, o que evitou um acidente mais grave. Depois
disso tudo, eu posso afirmar que sou mesmo protegido por Deus.”
As urnas danificadas no acidente foram recuperadas em Portugal e
transportadas para o Brasil. Assim, em 16 de dezembro de 1960, os restos
mortais dos heróis que tombaram na luta pela paz foram depositados no
mausoléu do Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial,
onde repousam sob a proteção da Pátria.
O presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira justificou a operação
de repatriamento: “O Brasil precisava de seus mortos como exemplo para
os vivos.”

Homenagem musical
A música “Longa jornada” é uma homenagem aos pracinhas, baseada
em depoimentos de protagonistas, transcritos neste livro, e dos veteranos
Ary Dal Pozzolo e João Baptista Pedro Pozzobon. Da junção desses frag-
mentos, surgiu um roteiro. João Chagas Leite, vencedor de diversos festi-
vais de música gaúcha, com talento ímpar, sensibilidade musical, violão e
voz marcantes, fez mais do que sonorizar uma história: deu vida ao “Sol-
dado da Paz”.
Sugeriram arranjos e participaram da gravação os integrantes da Banda de
Música da 3ª DE, Fabiano Ribeiro dos Santos (violão e guitarra), Fábio Corrêa
Rosa (teclado e contrabaixo), Flávio Marion Sant’Ana Gonçalves (trompete) e
Amilton Mendes dos Passos.
A primeira execução pública aconteceu em 19 de fevereiro de 2010 duran-
te a solenidade alusiva à Tomada de Monte Castelo, no Regimento Mallet, na
presença de veteranos de Santa Maria e região. Em 2012, “Longa jornada” foi
adaptada para banda de música, com arranjos de Fabiano Ribeiro dos Santos.1NA

Letra:
Em destaque na avenida, ante a tropa perfilada,/O pracinha,
emocionado, relembra sua jornada:

1
Os audiovisuais podem ser assistidos em www.youtube.com.br, digitando “Lon-
NA

ga Jornada FEB” ou “Luonga Giornata” na barra de busca.

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290 VOZES DA GUERRA

De Norte a Sul ouviu-se o chamado./Mãe Pátria queria o pracinha


ao seu lado.
Urbano ou rural, pelo mesmo ideal:/Seria um soldado da paz
mundial.

Por esse ideal, por sua Pátria amada/Cruzou o oceano, em longa


jornada.
Travou luta triste, cruel e sofrida/Por sua Bandeira, daria sua vida.

Horrores da guerra em solo europeu: Em Monte Castelo um amigo


perdeu.
E no campo santo, cruz branca ficou; Profunda saudade em seu
peito restou.

Uma carta aberta, notícias da amada/Aqueceram o peito, na noite


estrelada.
Na fria trincheira, lembrou-se do irmão:/Vinte e poucos anos,
quanta solidão.

Reverenciando os heróis que partiram/acreditando no mesmo ideal/


sempre ele volta à mesma avenida.
E no tremular da Bandeira querida/vê liberdade e paz, ideal de sua
vida.

Terminada a guerra, inimigo é irmão./Refeita a paz, cumpriu-se a


missão!
Voltou para casa com o “V” da Vitória/Seu grande legado entrou
para a História.

No solo da Pátria reencontrou seus amores/Formou sua família,


esqueceu suas dores.
E muitos não sabem que à Pátria querida/Ele deu sua força e daria
sua vida.

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Apêndice III
Histórias inusitadas

A o conversar com os pracinhas, ouvi muitas histórias sobre a guer-


ra, que estão nos capítulos anteriores. Algumas, porém, não se
referem à FEB especificamente. São situações pitorescas sobre o
Brasil da década de 1940 e algumas situações inusitadas ocorridas com os
pracinhas que ajudaram a escrever estas páginas. Algumas são inimaginá-
veis se as analisarmos sob a óptica atual.

Preso no quartel...
José João Pereira, nascido em 1915, em São Pedro do Sul-RS, perdeu o
pai, José Luis, muito cedo. Sua mãe, sem condições para criá-lo, permitiu
que o dono das terras onde a família morava, seu padrinho, o fizesse. Ocor-
re que, depois de algum tempo, o padrinho mudou-se para o Uruguai a fim
de plantar arroz. José João o acompanhou, permanecendo fora do Brasil por
mais de três anos. Assim, na época de prestar o serviço militar, encontrava-
se no exterior.
Quando retornou ao Brasil, mais especificamente a Santa Maria, em
1937, precisou tirar a carteira profissional, pois iria trabalhar na cantina da
Brigada Militar (no Rio Grande do Sul, designação da Polícia Militar). Para
tirar a carteira de trabalho, precisou do documento comprobatório de que
estava em dia com o serviço militar. Orientaram-no a comparecer à Junta do
Serviço Militar; lá chegando para se informar sobre os procedimentos, sou-
be que era refratário (situação do cidadão que não se apresenta na época
oportuna) e teria de se apresentar no QG da então Infantaria Divisionária
da 3ª Divisão de Infantaria, hoje 3ª Divisão de Exército: “Quando me apre-
sentei no QG, viram que minha situação estava irregular e mandaram que

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292 VOZES DA GUERRA

eu me apresentasse no 7º RI. Fiquei lá [preso] por seis meses, enquanto


rolava o processo, até eu ser julgado. Durante esse período, desempenhei
a função de atirador de metralhadora e trabalhei na manutenção de arma-
mento. Como gostei do meu trabalho, quis ficar no Exército.” Resolvido o
problema judicial, permaneceu por mais ou menos dois meses em Santa
Maria até ser transferido para Santiago-RS, onde serviu em um destaca-
mento do 1º Batalhão Ferroviário. Depois, acompanhou a Unidade quando
esta foi transferida para Bento Gonçalves-RS: “Saí de Santiago sem ter o
curso primário. Estudei com um sargento, me preparando para ser cabo.
Fiz as provas, fui aprovado e fui promovido”, diz José João satisfeito. Foi
para a guerra na graduação de cabo.

Viagem pitoresca

Nas andanças entre a incorporação e o embarque para a Itália, Ary


Abreu deslocou-se para Porto Seguro-BA, integrando o 10º Batalhão de Ca-
çadores (BC), de Ouro Preto, em maio de 1943: “Essa viagem durava oito
dias. De Juiz de Fora até o Rio de Janeiro, fomos de trem. De lá até Cara-
velas-BA, seguimos em dois navios... No navio Itapura, em que eu estava,
houve uma diarreia generalizada e só havia um banheiro. Pode imaginar...
De Caravelas ao destino fomos transportados em vapores menores, Dois de
Julho e Canasvieiras. Chegando a Porto Seguro — que não tinha porto —,
saltamos no mar com mochila, fuzil e equipamento, a uma boa distância;
os baixinhos andaram bebendo água... Fomos direto para a Cidade Alta, que
tinha o prédio da prefeitura, uma igreja, quatro ou cinco casas de alvenaria.”
As demais eram simples choupanas.
“Eu já era cabo e havia feito o curso de sargento de transmissões.
Pelo fato de ser operador de Código Morse, fui mandado para comandar
um destacamento no Arraial D’ajuda, que fica a 4km de Porto Seguro.
Fiquei uma temporada por lá. Quando chegamos, havia índios pataxós,
mas logo sumiram no mato. Depois começaram a aparecer as crianças;
chegavam famintas. Começaram a fazer a tradicional xepa no quartel...
No dia que servíamos macarrão, eles recusavam; na opinião deles, aquilo
eram lombrigas. Quando ia botar no prato deles, eles diziam: Bicha não,
bicha não! A população que tinha sumido voltou. Tinha umas duas moças,
filhas dos donos dos vapores que andavam por lá, e elas se arranjaram
com os oficiais.”

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Apêndice III 293

No Brasil de década de 1940, havia muitas doenças endêmicas, uma


dificuldade a mais entre as muitas que os soldados enfrentaram. Se-
gundo Ary, “o maior problema é que, chegando lá, nos primeiros dias, o
homem caía de febre — era impaludismo. Recebíamos um comprimido
para colocar na água, mas em três dias o indivíduo arriava, começava a
tremer e não tinha força para mais nada”. A solução era aguardar o dia
seguinte para que, em uma canoa, o soldado fosse levado a Ilhéus e, de
lá, a Porto Seguro.
Ary diz que perto de lá estava a Vila de Itaquena, com três ou quatro
casas de madeira cobertas de telhas, e as demais, choças cobertas com pa-
lha de coqueiros. Segundo relata, nessa região havia um cidadão chama-
do Pedro Deiró, que explorava madeira: “Não sei como, se com a ajuda de
indígenas, ele conseguia cana e fabricava cachaça. Diziam que os alemães
aportaram lá duas vezes para comprar cachaça e sal. Não tinha mais nada
para comprar também... O submarino emergia e chegava a 100m da praia.
Eu não sabia; só depois fui descobrir que havia um boqueirão [abertura no
recife]. Eles vinham por essa abertura até próximo da praia. Daí a razão de
montarmos um destacamento por lá. E eu fiquei lá com um grupo de com-
bate. Embora fosse cabo, tinha o curso de sargento; por isso, fui comandar
lá. O grupo era eu na função de sargento, dois cabos e 10 soldados. Fizemos
trincheira e paliçada. Trincheira na areia não era muito fácil.” Brinca di-
zendo: “Nunca vi alemães por lá... Eles souberam que eu cheguei lá e nun-
ca mais apareceram.” E conclui: “Entregávamos na mão de Deus, porque a
arma era um velho F. O. [fuzil ordinário] e o fuzil metralhador, que também
dava muitos problemas.”

Salvo pelo italiano...

Vasco Ferreira diz: “Eu fiz a guerra toda e não dei um tiro sequer. Ape-
sar de ter tido contato com o inimigo, não estive em situação de combate
em que fosse necessária. Certa vez, fui salvo por um cidadão italiano: como
eu era baixinho, era o último homem da coluna de marcha. Eu estava dis-
traído, com o fuzil atravessado nos ombros, e nem percebi que ficava para
trás, cerca de 50 a 100m; acabei sozinho. Na volta da patrulha, eu percebi
que em determinado momento todos eles correram e se protegeram, mas
não me dei conta do motivo. Eu ia fazer o mesmo quando chegasse lá... Ti-
nha uma casa abandonada com um velho e uma criança na frente. Quando

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294 VOZES DA GUERRA

eu me aproximei, o italiano gritou: ‘Mitragliatrice! Mitragliatrice!’ [metra-


lhadora]. Mal deu tempo de eu me jogar ao solo, e foi aquele tiroteio. Se
me pegasse, eu teria morrido. Depois que deitei, pararam de atirar; acho
que não tinham mais visão da gente. Mas não dei nenhum tiro. Meu fuzil fi-
cou virgem! Passamos perigo na capela de Ronchidos, no monte Belvedere.
Uma capela pequena, toda quebrada, com uma estatueta da Virgem Maria
inteira, no canto, de pé.”

Tardes silenciosas de Lindoia

Francisco Gomes conta uma história inusitada ocorrida quando seu


grupo estava em deslocamento, nas proximidades de Castelnuovo de Gar-
fagnana: “Naquele local, aconteceu algo que achei interessante: Comecei
a escutar alguma coisa que me chamava atenção pela melodia. Meus com-
panheiros não escutavam nada. Aquilo me intrigou: ‘Como é que, nesse
local tão distante do Brasil, tem alguém cantando Tardes silenciosas de
Lindoia...?’ Já fiquei preocupado pensando que era algum alemão tentan-
do distrair nossa atenção... A voz foi aumentando, até que ele chegou a
uma distância e mandei que ele parasse. Não sabia se era alemão, italiano
ou brasileiro; mas como ele estava cantando em português, devia enten-
der. Ele parou! Mandei que o soldado atirador ficasse em posição para
eventual reação. Fui até ele para revistá-lo. Ele estava acompanhado de
duas moças. Revistei-o; ele não tinha arma nem nada. Perguntei como ele
vinha cantando aquela música brasileira. Ele disse: ‘Eu sou brasileiro!’
Perguntei se ele podia provar. Ele comentou: ‘Antes do início da guerra,
eu vim visitar a Itália. Quando eu ia retornar, estourou a guerra, e fui im-
pedido de sair. Quando fiquei sabendo que tinha um contingente de bra-
sileiros nesta região, eu vim para cá para ver o que iria acontecer comigo.
Essas são minhas filhas; estamos aqui desde o começo da guerra andando
de um lado para o outro, sem saber onde parar.’ Eu lhe disse: ‘O senhor se
arriscou muito vindo aqui; nós estamos em uma guerra, e na guerra não
podemos levar isso em consideração. O senhor se identificou, foi revis-
tado. Está tudo bem, mas daqui o senhor vai para o Comando. O tenente
é que vai decidir seu destino.’ Levei todos ao tenente e, a partir daí, não
sei o que foi resolvido. Aquilo me marcou muito. Até hoje trago vivos na
memória a imagem daquela descida e o som daquela canção.”

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Apêndice III 295

Sozinha em Casablanca
Para Carlota Mello os dois momentos em que sentiu mais tristeza na
guerra ocorreram logo na chegada e antes da partida: “Nesses dois mo-
mentos eu chorei. A impressão ao chegar a Nápoles foi horrível: teatros,
cinemas, igrejas, castelos... tudo bombardeado! Foi uma tristeza. Logo que
cheguei ao hospital, quando estava começando a me adaptar, a Roselys
[companheira inseparável] se hospitalizou. Eu estava triste e resolvi sair
sozinha. Eu peguei uma carona e fui para Nápoles. Quando cheguei lá, não
sabia o que fazer, mas vi uma placa escrito Cinema da Cruz Vermelha. Quan-
do entrei, perguntei ao porteiro onde é que ficava o cinema. Ele disse: ‘Sobe
essa escada, que é a primeira porta.’ Eu olhei, e era uma escada rolante. Eu
nunca tinha visto escada rolante. Eu não conhecia! Eu disse: ‘Acho que vou
bambear’, não queria subir não. Perguntei: ‘Não tem elevador, escada fixa
ou outro jeito?’ Ele disse que não: ‘É só aqui. É só subir.’ Eu fui. Bambeei, me
ajeitei daqui e de acolá, até chegar lá em cima. Quando cheguei, era um an-
fiteatro imenso. Só soldados; só militar; só farda! Estava superlotado. Uma
mão, lá no meio, falou comigo que tinha um lugar. Deram-me passagem.
Eu entrei e sentei... Tinha alguma enfermeira militar por ali; no mais, tudo
era homem. Logo que cheguei, abriram-se as cortinas de um palco imenso.
Começou a cantar uma francesa. Foi aplaudida; os militares franceses se
levantaram. Daí saiu uma americana; quase todo o auditório se levantou.
Depois, a inglesa...”
Carlota continua: “Depois saiu a bandeira brasileira seguida de uma
brasileira muito bem vestida para representar o Brasil. O homem [apresen-
tador] falou que ela ia cantar A Casinha Pequenina. Quando eu vi a bandeira
brasileira tremulando e a mulher cantando ‘Tu não te lembras da casinha
pequenina onde o nosso amor nasceu; tinha um coqueiro do lado, que, coi-
tado, de saudade já morreu...’ [Carlota reproduz os versos cantando], eu
chorei convulsivamente, soluçando. Quando vi, tinha mãos em minha cabe-
ça, em meus ombros, me confortando... Quando vi que estava incomodan-
do o público, tentei parar de chorar; mas chorei, chorei, chorei... Quando
terminou a música e saíram outras bandeiras, meu soluço foi se amainan-
do. Quando terminou [o espetáculo], os americanos me colocaram em uma
viatura e me levaram de volta ao hospital. Foi a primeira vez que chorei.”
Somente antes da volta, Carlota chorou novamente, apesar de haver
prometido a si mesma que nunca mais o faria. Conforme relata, havia previsão

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296 VOZES DA GUERRA

de retornarem de navio: “Na última hora, resolveram nos mandar de avião...


Entramos no avião. Éramos nove brasileiros dentro de um avião cheio de
militares. Eram cinco oficiais homens e quatro enfermeiras.” Quando chegaram
a Casablanca, seguiram até o hotel onde pernoitariam: “Lá havia um quadro
em que podíamos anotar aonde iríamos. Saímos as quatro enfermeiras.
Escrevemos que iríamos ao cinema. Fomos ao cinema ver um filme que se
chama Casablanca... Quando o filme estava pela metade, houve uma parada e
chamaram as enfermeiras, mas não falaram meu nome. Roselys, minha amiga
inseparável, mineira, disse: ‘Ah, deve ter chamado...’ ‘Não chamou’, retruquei.
Fomos embora. Passamos no hotel, pegamos nossas coisas e fomos para o
aeroporto. Quando chegamos ao aeroporto e nos apresentamos no balcão,
falaram: ‘A tenente Carlota não vai nesse avião! Não está na relação...’ Os cinco
oficiais brasileiros, oficiais superiores, majores e coronéis se prontificaram para
ficar no meu lugar. Todos eles disseram: ‘Manda ela no meu lugar; ela não pode
ficar; eu fico!’ O americano disse: ‘Não; não pode. Já está programado...’ Porque o
americano não é como brasileiro, que sempre quebra o galho; muda as coisas...
Ele não; fez o que é certo: ‘Não pode! O nome dela não está aqui. Ela fica!’ Aí eu
falei: ‘Deixa que eu fico. Uai! Por que é que eu não posso ficar?’”, questionou.
“Botaram-me em uma limusine, que era viatura só de generais, e os
oito foram embora. Eu aguentei tudo, mas quando cheguei ao hotel, no que
eu subi para o apartamento, pensei: eu numa cidade cosmopolita, que tem
tudo quanto é espécie humana, tudo que é crime, tudo de bom e de ruim,
sozinha, sem amigos, sem parentes, sem ninguém, abri a boca a chorar. Eu
chorei, chorei, chorei até dormir vestida do jeito que eu estava. Eu me senti
tão sozinha, tão abandonada, que dormi. Quando acordei pela manhã, já es-
tava de vestido... Ah! Não vou tomar banho; eu vou sair. Tomei café. Quando
eu saí, tinha uma carruagem toda enfeitada, com um marroquino vestido de
amarelo, azul e branco. Só aparecia a cabeça e um pedaço das pernas, por-
que estava de bermudas. Eu perguntei em italiano se isso [carruagem] era
para passeio. Ele perguntou qual era minha nacionalidade. Eu falei: ‘Brasi-
leira’. Ele respondeu: ‘Então a senhora pode falar português, porque eu falo
português; eu falo todas as línguas.’ Aí eu disse: ‘Então você me leva a um
lugar bem bonito.’ Escrevi no quadro [do hotel] destino desconhecido. Subi,
e ele foi me levando...”
Carlota continua: “Quando chegou a um prédio redondo, ele parou e me
ajudou a descer da charrete. Subimos uma escada e chegamos a um salão
redondo, cheio de cadeiras, com nomes escritos. Ele disse: ‘Aqui aconteceu

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Apêndice III 297

uma conferência das Nações Unidas. Eu fui passando aquelas cadeiras; ha-
via o nome de representantes dos Estados Unidos, França, Inglaterra... Em
uma delas estava escrito ‘Getúlio Vargas, presidente do Brasil’. De novo cho-
rei, chorei, chorei... Mas olha, nunca tinha visto um mulato, um negro tão
inteligente. Então ele disse: ‘Olha, não foi o presidente do Brasil que esteve
aqui, pois ele não gosta de viajar para fora do Brasil. Foi o ministro dele, o
Dr. Noraldino Lima quem sentou nesta cadeira. Agora você vai sentar nessa
cadeira que eu vou bater um retrato.’ Ele montou o tripé, montou a máqui-
na e bateu meu retrato sentada lá. O papel do retrato era tão ruim que com
o tempo diluiu... Eu fui tirar ele do álbum, e ele desmanchou. Quando vi o
nome do presidente do Brasil, chorei de emoção, porque eu já tinha chora-
do à noite por estar sozinha.
Quando nós estávamos ali, chegou um americano com um carro, que
veio me buscar para ir ao aeroporto. Agora, eu me pergunto: ‘Como é que
esse americano me descobriu, se eu tinha escrito lá destino desconhecido?’...
A organização deles era tão perfeita que eles sabiam de tudo... Eu não falei
nada a ninguém; esse marroquino também; não deu para ele ter falado para
alguém. Como é que o americano foi me descobrir ali? Mas descobriram;
levaram-me ao aeroporto, e eu vim embora para o Brasil. Cheguei a Natal e
encontrei os oito companheiros... Eu chorei duas vezes na guerra: quando
cheguei e no final. Durante o período que estive lá, não dava para chorar,
para ter saudade, porque tinha o trabalho.”

Carne de cavalo

Outra história inusitada, relatada por Carlota, diz respeito à alimen-


tação: “Eu estava em um lugar todo diferente, em um hospital diferente;
se bem que muito bom, muito bem organizado, onde não me faltava nada
para comer, dentro do possível. Na guerra, eu não comi arroz ou feijão. De
feijoada nem ouvia falar! Uma vez por mês que chegava um avião com fran-
go, cada um comia um frango inteiro. Era assim porque na época não tinha
a refrigeração de hoje... Eu comia carne — e tinha muita carne. Certo dia,
um médico americano me disse: ‘Gente, eu não sabia que brasileiro gostava
tanto de carne de cavalo.’ Eu falei: ‘E não gosta! Nós não comemos carne de
cavalo porque lá tem muito boi.’ Então ele disse: ‘Isso é lá no Brasil, porque
aqui você come muita carne de cavalo.’ Eu perguntei se aquilo era carne de
cavalo, e ele disse que na guerra não vinha carne de boi. Eu acho que a carne

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298 VOZES DA GUERRA

de cavalo era mais fácil de conservar, precisava de menos refrigeração. Eu


falei a ele: ‘Olha, Dr. Denner, eu não estou acreditando nisso não.’ ‘Pois eu
vou te provar’, disse ele.
No dia seguinte, ele trouxe uma revista na qual tinha matéria de um
açougue preparando carne de cavalo para mandar para a guerra... Na hora
do café, eu comia panqueca com ovo frito. Era carne de cavalo! Na hora do
almoço, vinha almôndega. Era carne de cavalo! No jantar, vinha soltinha,
passada na máquina. Era carne de cavalo! Eu não sabia e gostei! Depois eu
fui analisar e vi que era um pouco mais seca do que a carne de boi, mas con-
tinuei comendo. Comi carne de cavalo o tempo todo. São essas coisas que
passamos na guerra... Parece não ser nada, mas são muitas coisas... Eu me
lembro de muitas coisas da guerra agora, porque logo depois [da guerra],
na minha mocidade, eu não gostava muito de falar dela não. Dei muitas en-
trevistas, porque não tinha outro jeito, mas não gostava. Mas agora, depois
de velha, eu tenho recordado de muitos fatos da guerra e já falo com natu-
ralidade, e muitas me comovem.”

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Apêndice IV
A Marinha do Brasil na guerra

A ntes de tratarmos da Marinha do Brasil (MB) na Segunda Guer-


ra Mundial, é importante destacar a relevância da Marinha Mer-
cante (MM). Na década de 1940, o transporte de cargas entre as
diferentes regiões brasileiras era quase todo realizado por via marítima. A
interdependência das regiões conferia à MM a missão estratégica de asse-
gurar o transporte dos produtos agrícolas e manufaturados.
A tensão entre os marinheiros era grande e aumentou quando o
Brasil rompeu relações diplomáticas com os países do Eixo. Submarinos
alemães e italianos que navegavam pelo Atlântico Sul passaram a atacar
navios brasileiros em navegação costeira ou em águas internacionais. Pra-
ticamente indefesos, tornaram-se alvos fáceis. Entre fevereiro e agosto de
1942, 19 navios mercantes foram afundados, causando grave impacto à
estrutura de transportes e levando a vida de centenas de brasileiros. Esse
fator foi decisivo para que o Brasil se declarasse em guerra. Até julho de
1944, mais de 30 navios mercantes haviam sido torpedeados, totalizando
mais de mil mortes.

Marinha de Guerra
A missão da MB durante a Segunda Guerra Mundial era patrulhar o
Atlântico Sul, protegendo os comboios de navios mercantes nas rotas entre
o Caribe e o nosso litoral contra a ação dos alemães e italianos. Também
coube a ela proporcionar segurança aos navios que conduziram os efetivos
da FEB até a Europa.
A capacidade de combate da MB era muito modesta para fazer frente
às forças do Eixo em operação no Atlântico. Fruto de um esforço conjunto

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300 VOZES DA GUERRA

das indústrias nacional e norte-americana, o poderio naval brasileiro foi au-


mentado com a incorporação de novas embarcações dotadas de modernos
armamentos e tecnologias. A isso se somou a reorganização da força naval e
o treinamento de pessoal, visando à preparação para o conflito.
Acervo: MNMSGM

Guerra antissubmarino no litoral brasileiro

José Francisco da Cruz, atual presidente de honra da Associação dos


Ex-Combatentes do Brasil — Seção Brasília, era marinheiro mercante des-
de 1938, na companhia Amazon River, que realizava navegação fluvial no rio
Amazonas. Em junho de 1940, foi convocado para a MB. Prestou serviço na
Ilha das Cobras e no submarino Tamoio, guarneceu Fernando de Noronha,
atuou no navio auxiliar Vital de Oliveira, no quartel de marinheiros, na Escola
Naval e na Ilha da Trindade. No contratorpedeiro Mariz e Barros, fabricado
no Brasil e equipado nos EUA com armamento moderno e preciso sistema de
detecção (radares e sonares), atuou nas rotas do Atlântico e do Pacífico.
Cruz recorda que cada chegada de comboio ao porto de destino era uma
vitória. Foram muitas, como diz: “No Mariz e Barros, participei da escolta do
1º e 5º escalões da FEB, desde o Rio de Janeiro até Gibraltar. A missão era
acompanhar o comboio a distância, garantindo a segurança.” Quando o so-
nar do contratorpedeiro indicava a presença de submarinos inimigos, eram
efetuados os disparos. Em outra oportunidade, participou da evacuação de
feridos da FEB, da Itália para os Estados Unidos.

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Apêndice IV 301

Contratorpedeiro Mariz e Barros foi construído pela


indústria naval brasileira

“Nós não combatemos em terra, mas nosso trabalho contribuiu para que
a FEB alcançasse a glória em Monte Castelo, em Montese e em outros comba-
tes. Nossa missão era colocá-la na Itália, em segurança e em condições para o
combate. Fomos atacados, e o navio foi avariado por um submarino inimigo.
Companheiros marinheiros morreram; contra-atacamos e não permitimos a
perda de vidas na FEB durante a travessia do Atlântico. Isso foi uma grande
vitória! Nossa batalha era ininterrupta e silenciosa, sem grande destaque na
imprensa. Corremos risco de morte, mas demos conta do recado. Acredito
que cumprimos muito bem nossa missão.”
Acervo: MNMSGM

Navios de guerra garantiram a segurança do deslocamento


da tropa por mar

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Apêndice V
A FAB na guerra

A
dos EUA.
Força Aérea Brasileira (FAB), ainda em fase de organização, co-
laborou no patrulhamento do litoral e na proteção de comboios
no Atlântico Sul, em ação conjunta com as marinhas do Brasil e

Visando à adequação da FAB para as necessidades decorrentes do con-


flito, foram adquiridas novas aeronaves (de caça, bombardeio, observação e
transporte). As escolas de formação de pilotos, mecânicos e outros especia-
listas em aviação intensificaram a instrução e o treinamento.
Imagens: Acervo FAB

No final de 1943, o governo brasileiro decidiu enviar à Europa, junto com


a FEB, um grupo de caça que atuaria integrado à Força Aérea dos EUA, no tea-
tro do Mediterrâneo, e uma esquadrilha de ligação e observação para operar
com a Artilharia Divisionária da FEB.
O 1º Grupo de Aviação de Caça foi criado em dezembro de 1943. Em
janeiro de 1944, um grupo de oficiais e sargentos partiu para os EUA
com o intuito de estudar os novos equipamentos e participar de intenso

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Apêndice V 303

programa de instrução e treinamento. Ao pessoal do escalão terrestre


cabia a tarefa de exercitar serviços de manutenção e operação, enquanto
os pilotos treinavam nas novas aeronaves as manobras e operações que
realizariam em combate. Organizado e devidamente preparado para
entrar em ação, o 1º Grupo de Caça seguiu para a Itália, desembarcando
no porto de Livorno, em 6 de outubro.

Foi integrado à Força Aérea Tática do Mediterrâneo, em apoio ao V Exér-


cito norte-americano, do qual fazia parte a Força Expedicionária Brasileira.
Depois de executar missões conjuntas com os norte-americanos, os brasilei-
ros passaram a operar de forma independente em missões de bombardeio de
pontes, estradas de ferro e rodagem, campos de aviação, posições de artilha-
ria, depósitos de munição e de combustível e comboios, com a finalidade de
minar a resistência inimiga.

A 1ª Esquadrilha de Ligação e Observação (ELO) foi criada em julho de


1944 e passou a servir diretamente à Artilharia Divisionária da FEB (AD/1).
Composta por 31 militares, entre aviadores, mecânicos e auxiliares de me-
cânico, dispunha de 10 aeronaves. Tinha a missão de executar voos isolados
sobre a terra de ninguém e sobre a própria linha de frente inimiga, com o
objetivo de fazer observação, reconhecimento aéreo e regulagem de tiro, em
proveito direto da AD/1.

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304 VOZES DA GUERRA

A Força Aérea Brasileira participou ativamente das principais ações da


FEB em Monte Castelo, Montese, Montello, La Serra, Collecchio, entre outras,
e exerceu eficiente vigilância sobre os vales dos rios Panaro e Serchio, culmi-
nando na rendição da 148ª Divisão de Infantaria alemã, em Fornovo di Taro.

Acampamento da FAB na Tarquínia

Vinícius Vênus Gomes da Silva, atual presidente da Associação Nacional


dos Veteranos da FEB — Seção Brasília, integrou o Serviço de Saúde do 1º
Grupo de Caça. Segundo ele, o grupo prestou muitos e relevantes serviços
durante a guerra. Conforme diz, ouviu muitos relatos sobre os feitos dos pi-
lotos brasileiros, dignos de menção. Dessas histórias, destaca a do tenente
Danilo Marques Moura, que, ao ter sua aeronave abatida, saltou de paraque-
das sobre terreno inimigo. Contrariando as recomendações de conduta para
uma evasão, teria trocado o uniforme militar por trajes civis e a pistola por
uma bicicleta. Por um mês, enfrentando fome e frio, com o auxílio de uma
bússola percorreu os cerca de 450km entre o local da queda e a base brasi-
leira sem ser reconhecido pelos soldados nazistas. Sua chegada foi uma sur-
presa, pois já era considerado morto. A recepção na base foi digna de herói.
Segundo Vinícius, “na guerra percebe-se que há coisas que podem ser
piores do que a morte”. Certo dia, em visita ao Hospital da FEB, que ficava ao
lado do hospital do Grupo, deparou-se com um soldado que havia sido atin-
gido durante uma patrulha por uma mina (armadilha explosiva enterrada),
que decepou seus membros superiores e inferiores, tirando-lhe também a
visão: “Ele pedia a Deus que tirasse sua vida, pois já não tinha motivos para
viver. Essa passagem eu não esqueço, pois foi a mais triste que presenciei.”

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Apêndice VI 1

Liberatori

“Eles são os libertadores!”


Moreno Costa

N as entrevistas com os veteranos brasileiros, muitos fizeram men-


ção ao relacionamento fraterno com a população italiana. Entre as
diversas palavras italianas, a que mais chamou a minha atenção foi
Liberatori. Em nenhum momento duvidei dos relatos; contudo, faltava-me a
compreensão do exato sentido dessa palavra. Os depoimentos dos pracinhas
transmitiam a dimensão de seu feito; entretanto, pensava eu, para alguém atri-
buir a qualidade de libertador a outrem, o feito devia ter sido ainda maior do que
a modéstia dos veteranos expressava. Assim, o que era uma necessidade para
que eu conseguisse transmitir segurança aos leitores, por meio das palavras dos
italianos que conviveram com pracinhas na guerra, tornou-se uma convicção.
Acervo: AHEx

A população saúda a chegada dos libertadores


1
A tradução dos diálogos deste capítulo, do italiano para o português, é de Evandro
Fernandes Cordeiro.

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306 VOZES DA GUERRA

A partir de 20 de setembro de 2012, tive a oportunidade de confirmar,


no cenário dos combates, o quão difícil foi a missão da FEB e os motivos
pelos quais, passadas quase sete décadas, seus feitos são enaltecidos pelos
italianos. Entendi, com precisão, o que significa subir — subir, subir — des-
cer, descer — descer, contornar, escorregar, cair, levantar e tantas outras ex-
pressões que ouvira dos protagonistas. Depois de um vale, vem um morro
do qual se despenca para outro vale que o separa de uma montanha... Assim
senti os Apeninos. E isso que não enfrentei a chuva, o frio e a neve... Pelo
simples fato de ser brasileiro e de ter ido para ouvi-los falar dos brasileiros
dos idos de 1944/45, dos italianos recebi atenção e carinho fraternos, vi
olhos límpidos, por vezes marejados, transmitindo sinceridade e felicidade
por poderem, uma vez mais, agradecer a solidariedade recebida nos tem-
pos difíceis em que a guerra mudou o rumo de suas vidas.
A opinião dos italianos sobre os pracinhas era a meta. E fui buscá-la!
Acompanhado dos amigos Evandro Fernandes Cordeiro e Mario Pereira,
impagáveis intérpretes, guias e orientadores, percorri quase 1.500km visi-
tando localidades por onde passaram os brasileiros e ouvindo depoimen-
tos. Começamos por Montese. Seguiram-se cidades, vilas, aldeias e locali-
dades como Torre di Nerone, Castelnuovo, Sassomolare, Maserno, Gaggio
Montano, Santa Maria Villiana, Sasso del Corvo, Monte Castelo, Staffoli, Ca-
maiore, Pistoia, Fornovo di Taro, Neviano Rossi, Collecchio, Iola, Vergato,
Boscaccio, Precaria, Borgo a Mozzano, Pisa e Pistoia. Fomos ainda a Milão,
Bolonha, Livergnano, Passo Della Futa e Ronchidoso, onde, em 30 de setem-
bro, encerramos a caminhada.
Para colher as impressões dos italianos, seguiu-se a mesma metodolo-
gia empregada com os pracinhas: foi dada a eles a oportunidade de expres-
sarem suas opiniões e sentimentos. Para a compreensão mais fidedigna,
buscou-se a tradução literal dos depoimentos, mesmo correndo o risco de
que viessem a ficar extensos e, por vezes, fugissem um pouco do contexto.
O objetivo é preservar a impressão transmitida pelos brasileiros a eles, que
agora repassam a nós, brasileiros. A proposta inicial era colher impressões
sobre os brasileiros; contudo, pela importância de cultuarmos e incentivar-
mos a paz, os depoimentos abrangem todo o triste contexto da guerra.
A todos os depoentes eu explicava a motivação da entrevista e o foco
que buscava, dizendo da necessidade de evidenciar a importância da FEB
e o trabalho dos pracinhas em prol da liberdade, visto que são pouco co-
nhecidos pela maioria dos brasileiros. A Sra. Bianca Bernardi, entrevistada

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Apêndice VI 307

em Bolonha, pela simplicidade e sinceridade estampada no olhar, deu-me


a convicção de que estávamos no caminho certo: “Então vocês precisam
nos levar ao Brasil para que nós possamos dizer aos brasileiros o quanto os
pracinhas foram especiais para nós, italianos.” Enquanto ela e outros depo-
entes não vêm ao Brasil, repasso a impressão deles aos leitores.
Moreno Costa, natural de Pietrasanta, Província de Lucca, na Tosca-
na, tinha 18 anos quando encontrou os brasileiros em Camaiore. Recorda
que antes da libertação os partisanos tiveram vários confrontos com os ale-
mães e os fascistas.
Lembra que, na madrugada de 17 de setembro, a Formação Partizana
Badogliane (à qual pertencia) recebeu ordem de descer das montanhas,
onde enfrentava os alemães e os fascistas, e entrar em Camaiore, que havia
sido abandonada pelos alemães havia poucas horas: “Montamos posições
defensivas na periferia e, durante a jornada, com esquadras de quatro ou
cinco homens continuávamos a inspecionar a cidade. Quando chegou a noi-
te, nós descemos e hasteamos a bandeira tricolor italiana, em sinal de liber-
dade, na prefeitura de Camaiore, onde essa instituição está até hoje. À noite,
eu recebi ordem de ficar de guarda em uma rua na periferia... Entre as 21h
e 22h, nós ouvimos um barulho de automóvel e não conseguíamos iden-
tificar o que era; ficamos muito atentos. Depois, esse veículo parou e ouvi
a voz de meu comandante, comandante da formação Lorenzo Badogliane,
chamando-me pelo nome: ‘Moreno, sou eu!’ Ora... Eu conhecia muito bem
aquela voz... Eu me aproximei e encontrei esse veículo que era o famoso jipe
e tinha um oficial, um militar e o motorista.”
Costa pensou que eram soldados norte-americanos. Ficou mais tran-
quilo, pois eram Aliados. Na manhã do dia 18, havia grande número de sol-
dados na cidade: “Só então é que fui entender, pois me disseram que esses
aliados eram brasileiros. E então nós confraternizamos; deram-nos cigar-
ros, aquilo que podiam e o que tinham. Ficamos ali por toda a manhã e até
às 14h. Depois fomos em direção à Pietrasanta, porque tínhamos ordem de
ocupá-la. Lá não foi a mesma coisa porque, antes de entrar na cidade, tive-
mos um combate que terminou bem... Bem, no sentido de que não houve
mortos... E foi assim que eu encontrei os militares do Exército Brasileiro.”
Costa diz que aquela foi uma manhã de pura alegria: “Uma vez
que descemos das montanhas e encontramos — porque era esperado
com ânsia — esse exército libertador, nós, partisanos, fizemos o que foi
possível; empenhamos as forças contra os alemães e fascistas, mas, se não

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308 VOZES DA GUERRA

tivéssemos as forças aliadas ao nosso lado, não poderíamos nem ao menos


tentar a libertação da cidade. E, quando nos encontramos, foi uma alegria;
eles também confraternizaram conosco, porque éramos todos jovens e
estivemos muito bem juntos... Acredito que eles estavam contentes em
nos encontrar e nós, obviamente, de ter encontrado os libertadores, que
esperávamos havia meses... E nos deram aquilo que poderiam dar, coitados...
Coitados no sentido que não nos poderiam dar mais; porém, aquilo que eles
tinham deram a nós. E foi uma grande satisfação, que se memoriza e não se
esquece, nem que eu quisesse.”
Perguntado sobre o porquê de os brasileiros serem considerados liber-
tadores, Costa diz: “Bem, não é que são considerados ou os consideramos li-
bertadores... Eles são libertadores! Porque nós descemos [das montanhas],
mas os alemães não estavam mais. Entramos em Camaiore, mas quem pro-
tegeu as instituições, por exemplo, a Prefeitura, foram os militares do Exér-
cito Brasileiro; tomaram-na e a protegeram. Foram eles que ocuparam e
protegeram as instituições.”
Costa é ainda mais enfático quando reinquirido sobre o assunto: “Re-
começo do início! É verdade que nós, partisanos, ocupamos Camaiore com
grande alegria. Porém, a verdadeira ocupação, aquela institucional, foi feita
pelo Exército Brasileiro. Não é que ‘são considerados’ [libertadores], eles
‘são’ os libertadores. Porque nós, na tarde do dia 18, às 14h, partimos; mas
os brasileiros permaneceram. E os brasileiros garantiram a liberdade à ci-
dade de Camaiore. Porque devemos lembrar que, em 18, a população des-
ceu [das montanhas] e voltou para a cidade; e voltaram também aqueles
que foram obrigados a abandoná-la. Não digamos nunca mais que ‘são con-
siderados’... Eles ‘são’ os libertadores!”
Costa continua: “Eles [brasileiros] estiveram em outras cidades. Esti-
veram na Prefeitura de Sant’Anna di Stazzema, estiveram em Pomezzana
— são cidades da Alta Versiglia —, e quem chegou foram os brasileiros.
Não chegou o exército dos Estados Unidos ou o inglês; lá chegaram também
os brasileiros. E hoje, quando se chega a essas cidades, a população mais
velha, como eu por exemplo, recorda-se desses militares. E isso precisamos
dizer e reconhecer: Graças aos Aliados; graças aos brasileiros, aos ameri-
canos, aos neozelandeses, aos ingleses, aos marroquinos... Estavam todos
aqui porque nós, italianos, fizemos uma aventura de entrar em guerra
contra todos... Graças também a eles, mas o povo da Versiglia, os civis... Eu
acredito que o Exército Brasileiro percebeu... Eis porque confraternizava:

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Apêndice VI 309

porque via o sofrimento, a fome, a miséria e o perigo que o povo passava.


Eles ajudaram todos, das crianças aos idosos.
Nós, que passamos por aquele período, encontramos com famílias da
Versiglia, e, quando falo da Versiglia, digo Viareggio, Camaiore, Massarosa,
Pietrasanta, Forte dei Marmi, Sant’Anna di Stazzema, todos esses centros
urbanos... Quando relembro aquele momento trágico, revejo todo o sofri-
mento das pessoas... Somente em três dias — 12 de agosto, 26 de agosto e
5 de setembro de 1944 —, os alemães capturaram cerca de 1.400 homens
e os levaram; seja para Val Padana [vale do rio Pó], seja para a Alemanha,
para trabalharem, e nem todos voltaram. Mas quero também lembrar ou-
tra coisa... Nós, italianos, após o fatídico 8 de setembro de 1943, ou seja,
o armistício do exército italiano com as tropas aliadas, nossos militares
debandaram sem ter ordens precisas... 640.000 militares italianos foram
levados para a Alemanha e colocados em campos, que não se chamavam
nem campos de concentração e nem campos de extermínio, mas campos
de internamento.
Os alemães, nos meses de julho e agosto e nos primeiros dias de se-
tembro, massacraram, assassinaram populações inteiras, não importando
a idade. Uma menina de 20 dias foi ferida gravemente e morreu. Indo a
Sant’Anna di Stazzema, há uma lápide onde se recorda dessa pobre menina
de 20 dias. Eis porque os exércitos libertadores quando chegaram, vendo
aquilo que tinha acontecido e tendo entendido, estavam com a gente para
tudo. Os ingleses um pouco menos, mas os brasileiros e americanos sim.”
Costa, ao final da guerra, fez o curso de desminador. Como tal, partici-
pou da árdua tarefa de livrar campos e cidades do mal que tantas vítimas
fez entre italianos e Aliados: “Partem os exércitos aliados; os alemães se
retiram; e acontece a famosa libertação total. Aqui, em Camaiore, a frente
de batalha havia permanecido por mais de sete meses... Todos os exércitos,
e era normal quando a frente de batalha estacionava, faziam as posições
defensivas. Existiam as zonas chamadas de terra de ninguém, onde faziam
patrulhas... Para ser preciso, os alemães [estavam] na linha do mar, mas
partindo de Pisa até La Spezia semearam uma série de minas — e devemos
pensar que, na Itália, foram colocadas 12 milhões de minas... Bem, aconte-
ceu a libertação... Aconteceu a libertação! Todos tranquilos... Não tínhamos
mais guerra, porque ela acabara em 8 de maio. Toda aquela população que
tinha abandonado suas casas, que estava na Linha Gótica e nas cidades que
já haviam sido libertadas em 5 de abril... Os alemães tinham lançado uma

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310 VOZES DA GUERRA

série de minas... as pessoas retornando para casa, andando pelas estradas,


nos seus campos, aonde iam começaram a morrer, a serem jogados ao ar,
porque encontravam as minas.”
Segundo Costa, o governo italiano instituiu algumas escolas para for-
mar profissionais para desativar minas — dispositivos de guerra que, mais
do que os soldados, atingem a população em geral. Costa estudou por cinco
meses a composição dos explosivos das minas e dos percussores: “Éramos
cerca de 2.300 a 2.400 civis, mas o staff que emitia a licença de desmina-
dor era [composto] de oficiais da engenharia e alguns subtenentes e sar-
gentos. Para ser um desminador, não se necessita heroísmo: precisa-se
de competência. E antes de qualquer coisa, capacitação e medo, porque
quando o homem começa a dizer que eu não tenho medo... Os oficiais que
nos ensinaram, até a última lição, repetiam a mesma ladainha: ‘Olhem bem,
porque no dia em que vocês estiverem em um campo minado para desativar
as minas e disserem que não têm medo, não conseguirão sobreviver. Devem
ter sempre um pouco de medo. Controlem-na [a mina]. Controlem-na, com
capacidade técnica e com a calma.’” Entre os cerca de 2.400 desminadores,
o número de baixas chegou a 393 mortos, 138 mutilados (perda de mãos,
pernas, visão e outros) e 360 feridos: “Formamos o menor exército, mas foi
o que teve o maior percentual de baixas.”
Antonio Domenici, também morador de Camaiore e integrante do
movimento italiano de resistência, recorda o primeiro contato com um bra-
sileiro, aos 17 anos: “Era meia-noite e fomos esperar um caminhão, logo
aqui atrás [centro de Camaiore]. Esse caminhão não chegava... Eu estava
preocupado e também um pouco cansado. Em certo momento, vi um vulto.
Era noite, mas vi os olhos. Aí eu perguntei: ‘Quem vem aí?’ E este me respon-
deu: ‘Amigo!’ Eu era experiente e pensei: ‘Amigo...’ Talvez fosse brincadeira.
‘Quem será?’ E ele falou: ‘A senha!’ ‘Como senha?’, eu pensei. Em alguns lu-
gares era melhor atirar para não correr risco... Não falamos a senha, mas
houve um bom final... Uma senhora que morava no andar de cima, ouvindo
o movimento, chegou à janela para ver o que estava acontecendo... Eu disse:
‘É um soldado americano!’ Ele disse imediatamente: ‘Não! Brasileiro!’
Assim terminou a aventura, porém foi um encontro simpático, porque
ele era simpático. Era de cor; foi o primeiro negro que vi na vida. Já tínha-
mos visto negros, mas em filmes. Na realidade, foi o primeiro! E ele correu
um risco muito sério. Quase todos eles tinham uma lanterna elétrica pen-
durada aqui [na frente], no uniforme... Acendeu a luz no rosto, e eu percebi

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Apêndice VI 311

naquele momento que era tudo, menos um alemão; e ali aconteceu um


abraço, e ele me deu cigarros, que naquele período eu nunca tinha visto.”
Domenici manteve longo contato com os brasileiros: “Muitos se torna-
ram amigos pessoais por todo o período que estiveram em Camaiore até que
os transferissem e os mandassem para a frente de batalha, na Garfagnana.
Devo dizer que os encontros com eles foram sempre simpáticos porque, a
meu ver, eles têm substancialmente uma mentalidade muito parecida com
a nossa: latina...”
Caso encontrasse um dos combatentes brasileiros de então, “antes de
tudo demonstraria minha simpatia e meu afeto e o abraçaria. Lembro-me
deles com saudade... Portanto, teria festa e abraços ou, pelo menos, um
grande respeito”, conclui Domenici.
Reprodução: Gli Eroi Venuti dal Brasile

A guerra levou muitos italianos a abandonarem os centros urbanos


Ugo Castagnoli, hoje morador de Montese, tinha 15 anos quando a
frente de guerra aproximou-se de sua cidade. Como muitos italianos, tor-
nou-se sfollato, ou seja, abandonou sua casa em busca de paz, na região de
Gaggio Montano: “Eu vi quando atacaram o local que se chama Serretta di
Maserno e, depois aqui em Montese, no monte Montello. Foi uma batalha
muito áspera, muito forte, com mérito dos brasileiros, que se saíram me-
lhor. Restaram muitos mortos, seja lá na Serretta, seja aqui, em Montello.
Mas a bravura dos brasileiros teve seu valor; conseguiram passar pelos
obstáculos... Em suma, os alemães tinham as posições fortificadas, e foi uma
batalha muito dura, muito severa.”
Castagnoli não teve contato pessoal com os brasileiros, mas, pelo que
ouviu de outras pessoas e pelo que viveu, reconhece o valor dos pracinhas:
“Se eu encontrasse um soldado brasileiro, eu só poderia dizer que foi muito

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312 VOZES DA GUERRA

corajoso, muito corajoso e muito bom soldado, para a Itália... para todos...
Os brasileiros ajudaram a libertar a Itália. É um mérito que necessitamos
dar a eles. Se estamos nestas condições, é mérito também dos brasileiros.”
Nas palavras de Castagnoli, um panorama da Itália de então: “Naquela
época, tinha muita miséria, poucas roupas, poucos sapatos... Eu era garoto
e passava fome, porque nos davam pouca comida. Comia-se pouco, porque
tinha pouca comida. Depois mudou tudo; e foi mérito, muito mérito dos
brasileiros. O fascismo era uma ditadura, e as ditaduras, em suma, não são
belas... Tinha que se estar um pouco calado, falar pouco. Sabe como é nas
ditaduras... A guerra é uma coisa muito ruim, dolorosa. As guerras... se nun-
ca acontecessem seria melhor, muito melhor!”
Mario Turini, também morador de Montese, tinha 9 anos por ocasião
da guerra. Morava em Montese e abandonou sua residência por causa da
guerra, indo para Porreta Terme, onde encontrou os brasileiros: “Só quando
os brasileiros conseguiram expulsar os alemães, nós voltamos para casa.”
Turini acrescenta: “Nós estivemos lá [em Porreta] por seis meses e co-
memos sempre, tudo bem que não havia vendas; não tínhamos dinheiro, mas
sempre tínhamos comida dos brasileiros. Éramos crianças; éramos seis ir-
mãos; íamos com o balde até aos brasileiros, e os menores eram os primeiros
a quem eles davam comida... Éramos pequenos e, quanto menor, mais recebia
o que comer. Eu digo somente uma coisa: os brasileiros foram a sorte de Mon-
tese, de Maserno; enfim, de toda a cidade, porque Montese é uma cidade gran-
de, que tem 11 distritos. Os brasileiros estavam sempre prontos para tudo.”
Turini sintetiza o reconhecimento e o agradecimento pelo que os bra-
sileiros fizeram: “Minha Nossa Senhora! Se eu encontrasse um pracinha,
começaria a chorar... Por sorte os brasileiros chegaram a Montese para ex-
pulsar os alemães. Porém, pobres dos brasileiros! Aqui em cima, no monte
Montello, ficaram muitos mortos. Pobres brasileiros... Mas expulsaram os
alemães. Os brasileiros são respeitados por todos os cidadãos, até mesmo
por aqueles que nasceram depois, pois eles ouviram os pais falarem bem
dos brasileiros.”
Mesmo em uma história pitoresca, restam evidenciadas as agruras da
guerra: “Nós éramos uma família de católicos. Um par de sapatos ia à mis-
sa três vezes, todos os domingos. Sabe por quê? Porque se trocava entre
os filhos. Nossos pais diziam: ‘Você vai à primeira missa, você à segunda
e o outro vai à missa da noite...’ Porém, os sapatos eram sempre os mes-
mos.” Com a experiência advinda do sofrimento, Turini conclui: “Coisa mais

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Apêndice VI 313

dolorosa que isso [a guerra] não há no mundo. Esperamos que os nossos


jovens — eu que sou avô de uma menina e um menino — se tornem velhos
sem nunca passarem por aquilo que nós passamos.”
Valentino Betti, morador de Gaggio Montano, tinha 10 anos na épo-
ca da guerra e morava a 2km de Gaggio, em uma aldeia de cerca de 30 pes-
soas chamada Ronqui, pouco abaixo de Lizzano in Belvedere. Betti diz que
lá estava localizada a cozinha dos brasileiros, e, dali, era levada a comida
ao Monte Castelo e a outros lugares: “Eu morava ao lado, em um casarão,
e tínhamos um armazém onde ficavam as roupas todas, dentro de mochi-
las, para quando viessem se trocar.” Recorda que dentre os brasileiros, al-
guns se destacavam pela atenção que davam às crianças: “Um se chamava
José, e o outro, Gameleira, mas eu só sei o nome porque estiveram aqui
por seis meses; nós estávamos fascinados e estávamos sempre com eles,
pois tinham chocolate... Tínhamos dois irmãos menores: um tinha 2 anos,
e eles o pegavam de manhã... ficavam com ele o dia todo e o traziam de
volta à noite... por seis meses... o alimentavam. Quando partiram, José se
colocou de joelhos perguntando para minha mãe se dava o garoto para eles.
Queriam levá-lo com eles... Quando terminou a guerra, quando passaram
aqueles seis meses, não ouvimos falar mais nada... Depois não soubemos
de mais nada.
Eu morava no meio do fogo, porque lá embaixo, em Porretta, tinha a ar-
tilharia. Os americanos atiravam em direção a Montese; de Montese [os ale-
mães] atiravam para cá. São tantas coisas... e depois, se lembrar de tudo...
Tinha uma caminhonete sempre parada ali, um carro blindado inglês. Eles
o colocaram entre duas casas, cobriram com mato e ficaram ali por seis me-
ses, eu lembro bem, hein! Seis meses ali, e o maior trabalho que eles tinham
era pegar um pedaço de pano e limpar as botas. Comeram e beberam ali,
sem nunca se mexerem, enquanto os brasileiros tinham de ir lá em cima, ao
Monte Castelo.”
Betti confirma o que muitos pracinhas mencionaram em seus de-
poimentos: “Nossa família praticamente não passou fome, porque mo-
rávamos fora da cidade. E como éramos agricultores... o pão nós sempre
tínhamos; se queria uma bistequinha, se ia ali, e comíamos outras coi-
sas... Não passamos fome. Talvez antes da guerra fosse até pior... antes
da guerra tinha mais carestia. Com a guerra tinha os tiros... entre ameri-
canos, brasileiros... Em suma, chegaram com um pouco de comida. Antes
era mais difícil.

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314 VOZES DA GUERRA

Um dia estava indo para a escola, a pé; em um minuto, o céu se co-


briu de aviões. Aviões que combatiam uns aos outros. Um caiu aqui perto
da escola; o piloto se machucou nas costas. E dois bombardeiros, naquela
direção, em Porretta, ficaram destruídos. Eles voavam baixo. Essas coisas
não esquecemos...”
Betti diz que o pior sentimento deixado pela guerra foi a perda da in-
fância, da ingenuidade, enfim, da juventude: “De rapaz, quando termina a
guerra, nós nos tornamos quase um homem... sabe... vendo certas coisas...
Tinha os tiros de canhão; tinha as represálias... Por exemplo, a milícia... pas-
sou por nós também, duas ou três vezes, fazendo o rastreamento. A patru-
lha procurava alguém que a incomodava. Os fascistas iam atrás dos par-
tisanos, e os partisanos atiravam neles... Então, havia as represálias, que
podiam matar alguém... Além dos tiros de canhão, chegavam e matavam
três ou quatro pessoas, faziam aquelas represálias, como aconteceu em
Cason dell’Alta, em Marzabotto.” (Entre 29 de setembro e 5 de outubro de
1944, nazifascistas massacram praticamente todos os moradores, em sua
maioria idosos, mulheres e crianças).
Segundo Betti, o relacionamento com os brasileiros era muito amisto-
so. Quando os mais de 80 pracinhas iam trocar de roupa no salão, recorda
que colocavam alguns sapatos de lado e davam aos italianos: “Tinham bom
coração. Especialmente aqueles dois da cozinha... Eu penso neles todos os
dias... Éramos fascinados e estávamos sempre com eles. Para comer, se re-
cordo bem, tinha o mingau. Eu gostava muito; era como um doce, mas não
era um doce... Tinha o pão, que era escuro por fora e branco por dentro.”
Depois de muitas histórias comuns durante a longa convivência, o sen-
timento de perda deixou marcas ao final da guerra: “O terror tinha passado.
Pensava-se mais do que em qualquer outra coisa em ganhar dinheiro... De-
pois da guerra, tínhamos a miséria; não sobrou quase nada. Quando minha
mãe deu aos brasileiros José e Gameleira o nosso endereço, ficamos espe-
rando que chegasse uma correspondência, mas nunca chegou nada. Nós
nos tornamos verdadeiramente amigos, e eles foram embora.
Se eu pudesse falar com um veterano brasileiro... não saberia me ex-
primir. Eu o abraçaria! Porque para mim os brasileiros foram os que mais
sofreram nessa guerra e, em suma, foram os que mais deram à Itália, pelo
menos no nosso território. Eu creio que 90% da população de Gaggio Mon-
tano tiveram um relacionamento verdadeiro com os brasileiros. É a única
nação que permaneceu impressa na história de Gaggio”, conclui Betti.

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Apêndice VI 315

Giuseppe Gandolfi, geômetra, morador de Santa Maria Villiana, ide-


alizou e construiu um relógio solar, normalmente chamado de meridiana,
em que evidenciou na cor vermelha a data de 3 de março, “dia em que os
brasileiros libertaram a cidade. Entre os dias 3 e 4, essa ponta [da sombra
projetada] estará aqui, no meio do sinal vermelho, o que se repete todos os
anos, porque é o dia que libertaram a cidade”.
Foto: Sirio S. Fröhlich

Giuseppe Gandolfi junto à Meridana


Na placa afixada ao lado da meridiana, por ocasião da inauguração,
consta a seguinte homenagem:
Prefeitura de Gaggio Montano. Hoje, 11 de agosto de 2007, os
habitantes de Santa Maria Villiana quiseram recordar e ho-
menagear os soldados brasileiros que, no distante 1945, com-
bateram e morreram sobre as nossas montanhas para dar de
novo à nossa vila e ao povo italiano a tão sonhada liberdade.
Neste dia, com uma cerimônia solene, é colocada uma Meri-
diana, construída e doada por Giuseppe Gandolfi, e uma placa
em memória desses corajosos soldados que morreram sobre
nossos montes. Os habitantes de Santa Maria Villiana, com dor
e muito sacrifício, foram obrigados a abandoná-la por vários
meses, reencontrando-a, pois, toda destruída em seus retor-
nos. Em 3 de março de 1945, as tropas brasileiras da Força
Expedicionária Brasileira ‘FEB’, enquadradas na 5ª Armada
Americana, depois da conquista de Monte Castelo, em 21 de
fevereiro, auxiliados pelos partisanos, libertaram a nossa ama-
da vila, que, naquele dia, estava situada sobre a Linha Gótica.
Administração Municipal.

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316 VOZES DA GUERRA

Gandolfi relata o primeiro contato com os brasileiros enquanto esses


patrulhavam as proximidades de sua residência: “Eu, minha mãe, minha
irmã e meu pai estávamos indo em direção a Marano, porque lá em cima
[indica o monte Sasso del Corvo] estavam os alemães. Quando chegamos
aqui [aponta um bueiro, ao lado da estrada], pulou para fora um negro, com
fuzil e capacete, e gritou: ‘Alto lá!’ E tinha outro, ali embaixo [do outro lado
da estrada], que disse: ‘Para onde vocês estão indo?’ ‘Estamos indo lá para
baixo, em direção a...’ Não me deixou terminar e disse: ‘Parem aqui, agora
não podem ir.’ Então nos pegaram e nos levaram até a fazenda para onde
nós estamos indo agora [do Sr. Fini]. Interrogaram-nos, depois nos manda-
ram embora e disseram: ‘Podem ir lá para baixo...’”
Depois de permanecer por meses com os brasileiros, Gandolfi firmou
a convicção de que “os brasileiros foram muito corajosos, honestos, bons e
tudo o mais que se pode dizer. A pior coisa que um povo pode enfrentar é
uma guerra. Se deveria encontrar sempre um modo de entrar em acordo.
Guerra nunca!”, conclui.
Franco Fini, natural de Porreta Terme, é amigo de Gandolfi desde in-
fância. Estudava medicina e cirurgia na Universidade de Bolonha. Durante a
guerra, permaneceu junto à família em Santa Maria Villiana. Na residência,
havia cerca de 35 pessoas que tinham abandonado regiões conflagradas.
Posteriormente, a casa recebeu hóspedes indesejáveis: os alemães. “Meu
pai tinha construído um refúgio aqui [embaixo do casarão de dois pavimen-
tos]; os alemães nos tiraram do refúgio e ficaram nele. Nós ficamos na casa.
Essa casa levou diversos tiros de canhão na fachada... Em outubro, chega-
ram os partisanos.” Fini recorda que seu pai saiu da casa com um lençol
branco e que os alemães saíram do abrigo e se renderam.
Fini lembra que, após aprisionarem os alemães, a fazenda transfor-
mou-se em terra de ninguém. De um lado vinham patrulhas alemãs; do
outro, tropas aliadas: “Os alemães foram presos aqui, em 31 de outubro
de 1944; em 1º de novembro, chegaram os brasileiros... Aqui se colocou o
comando da companhia... da 7ª Companhia do 6º Regimento. Ali adiante,
colocaram os soldados nas trincheiras; fizeram várias trincheiras. Havia
três pelotões; cada pelotão tinha um tenente. Portanto, estivemos na pri-
meira linha o inverno todo. À noite chegava o jipe com os víveres, e, de cada
pelotão, vinha um soldado até aqui, pois o jipe parava ali embaixo. Vinham
apanhar aquelas marmitas grandes e levavam para comer. E assim se pas-
sou o inverno.

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Apêndice VI 317

Acervo: Franco Fini

Soldados brasileiros em Santa Maria

Na noite de 4 de fevereiro de 1945, vieram os soldados da SS para atacar


as posições [brasileiras]. De fato, eu estava aqui fora com meu pai e o capi-
tão Portocarrero [Hélio Portocarrero, posteriormente ferido em Montese].
Ouvimos um Heil Hitler! mais embaixo e, depois, Heil Hitler! mais no alto.
Começou um fogo infernal... O capitão pediu tiros de artilharia. Os primeiros
tiros caíram dentro da nossa linha; depois ajustaram o tiro e chegaram ao
ponto ideal... Foram horas de combate.” Fini relata que os alemães traziam
tubos de granadas plásticas com as quais queriam estourar a ponte de Ma-
rano, a fim de poderem atacar as tropas brasileiras que estavam para o lado
de Castelnuovo pelas costas; não obtiveram sucesso e acabaram expulsos.
Acervo: Franco Fini

A casa, em 1945, com as marcas da guerra

A fazenda estava no meio dos fogos alemães e Aliados. Fini destaca:


“Aqui era o fim do mundo! Quando começavam a disparar, nós entrávamos
em casa, e, quando os tiros batiam de encontro à parede, a casa estre-
mecia. Pela manhã, os alemães se retiraram... Retornaram a Santa Maria;
havia muitos nas macas; trouxeram-nos também aqui, nas macas. Meu pai

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318 VOZES DA GUERRA

era médico, e, antes de levarem-nos ao hospital, ele os medicava. Recordo


que havia um que levou uma rajada de metralhadora nas pernas... Depois
me disseram que um sargento foi cortado ao meio por uma rajada e que
tinha duas metralhadoras, uma em cada mão, e disparava contemporane-
amente... então terminou assim.
Depois, ficamos bem até 4 de março, quando os brasileiros partiram
daqui e foram lá para cima, a Santa Maria... A companhia que estava aqui
foi para Montese... Morreram muitos dessa companhia; sobreviveram pou-
cos...”, enfatiza. “Lembro que aqui tinha um sargento que cuidava da admi-
nistração, o sargento Basileo Nogueira da Costa. Nós ficamos amigos, por-
que eu estava sempre ali para conversar com ele. Depois, pedi informações
e me disseram que ele havia morrido, antes de Tollè. E, de fato, em Tollè há
uma capela, no alto do monte; se o senhor for lá, vai ver que tem o nome do
sargento Basileo Nogueira da Costa e também de outro soldado.
Depois [da guerra], permaneci em contato... Vinha sempre o José Gonçal-
ves. Ele veio várias vezes com a esposa. E uma vez me trouxe uma Revista do
Exército Brasileiro com a dedicatória do capitão Portocarrero — eu ainda a
tenho, hein! —, que diz: ‘Peço entregar ao Dr. Franco Fini.’ Estávamos lá com
as pessoas a escolher cerejas, e chegou um carro com dois ou três soldados.
Então, eu fiz em uma receita [médica], um bilhete escrito: ‘Ao capitão Porto-
carrero, uma recordação de um velho amigo. Franco Fini.’ E esse meu bilhete
ele publicou na revista; tanto é verdade que, depois, ele me escreveu uma
carta, à qual respondi. E publicou essa carta também. Eu dei a alguém lá do
Monumento essas publicações, onde há o meu bilhete, a carta do Portocarre-
ro e a minha carta em resposta a ele.”
No diálogo descontraído entre Fini e Gandolfi, travado durante a entre-
vista, percebe-se a proximidade entre os italianos e entre estes e os brasi-
leiros. É possível depreender porque amizades, como a relatada, frutifica-
ram e se fortificaram ao longo de várias décadas. Apenas vêm confirmar
as palavras do veterano Geraldo Sanfelice de que as amizades forjadas na
guerra são amizades para a vida toda:

Gandolfi: — Por quanto tempo estivemos juntos, eu e o senhor?


Fini: — Estivemos juntos o mês de novembro e quase todo
dezembro.
[...]

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Apêndice VI 319

Gandolfi: — O senhor era um ‘levado’, porque estava sempre


em volta, abrindo as caixas.
Fini: — Eu disparava os morteiros...
Gandolfi: — Eu nunca quis disparar, mas ele disparava.
[...]
Fini: — Tinha um cabo... cabo Coser, que me enviou um cartão
postal com sua fotografia, depois que voltou para casa. Veja!
Uruguaiana, Rio Grande do Sul. Deve ser a parte mais ao sul
do Brasil...

Fini, ao falar sobre o relacionamento com militares dos exércitos in-


glês, americano e brasileiro destaca: “Os brasileiros... Somos como irmãos
não é verdade? Somos latinos, portanto nos entendíamos muito bem. Por
exemplo, nas festas, no Natal, chegava o jipe com peru, e minhas emprega-
das o preparavam para comermos. O capitão nos dava os perus, e minhas
empregadas faziam para o capitão e para todos. Todos comiam... Era prati-
camente uma família.”
Os americanos... chegou a polícia militar; começaram a limpar; depois
chegaram os geradores elétricos, e nós, que havia seis meses não víamos
uma lâmpada acesa, tínhamos lâmpadas acesas dia e noite. Aqui, na entra-
da [da casa] colocaram prateleiras de um lado e de outro, que eram cheias
de cigarros, biscoitos, aquelas caixas de semente... amendoim americano,
como nós chamamos. Como disse, tinha de tudo um pouco. De cigarros,
nem se fala, porque um dia um deles me viu acender meio cigarro e me per-
guntou por que estava acendendo meio cigarro... Ele o jogou fora e me dis-
se: ‘Os cigarros estão ali.’ Eu disse: ‘Eu não pego nada se não me oferecem.’
Então ele me disse: ‘Quando você quiser cigarros, vá ali e pegue.’
Depois, quando a frente de batalha se moveu, todos foram embora. Ah!
Tinham todos os canhões aí embaixo, nos meus campos. Quando esses car-
ros de combate foram embora, tinha aqueles estojos de cobre... mas monta-
nhas e montanhas, que precisaram vir com caminhões para carregar tudo.
Eu peguei apenas um! Está aqui, e eu uso de porta guarda-chuvas.”
Fini destaca que, entre o soldado brasileiro e o dos outros exérci-
tos, havia “uma diferença enorme: os soldados brasileiros eram como
irmãos e uma boa companhia. Repito: como irmãos! Os outros exércitos
eram completamente distantes, mesmo porque não nos entendíamos,
não é verdade?”.

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320 VOZES DA GUERRA

Ele esclarece que, na Toscana e na Emilia Romagna, os brasileiros “são


conhecidos como libertadores, porque foram praticamente as primeiras
tropas que chegaram. As primeiras, porque em toda essa região, não sei
em outra parte, mas aqui no vale do rio Reno, de Porretta até Vergato, os
libertadores foram os brasileiros... foram as primeiras tropas a chegarem.
Eu digo para vocês: os americanos, aqui nós os vimos em abril, quando a
frente de batalha já tinha ido adiante. Com os brasileiros nós estivemos
em novembro, em dezembro e de janeiro até 4 de março. Os americanos,
por exemplo, estiveram aqui 12, 15 dias. Os brasileiros estiveram aqui
todo o inverno”.
Fini justifica as cerimônias que recordam a guerra e os monumentos
em homenagem aos soldados brasileiros em toda a região: “É um dever
reconhecer esses homens. Quando ocorrem essas manifestações nos mo-
numentos aos mortos, eu me sinto no dever de estar presente. Teve um ano
que mandei para Vignola cerca de 1.800kg de cerejas... É um reconheci-
mento justo... Para terminar, digo que sinto sempre uma profunda gratidão
para com esses soldados que vieram para libertar a Itália. Eu já fui inclusive
a Pistoia, quando era vivo o Sr. Miguel Pereira, para visitar o cemitério dos
brasileiros e [vi] tantos nomes de soldados que estiveram aqui.”
Franco Fini é objetivo ao descrever como reagiria caso encontrasse al-
gum pracinha: “Eu o abraçaria! Abraçaria como um irmão, pois todos vie-
ram para cá para serem mortos e, verdadeiramente, para libertar a Itália
dos alemães.” Conclui, deixando uma mensagem às novas gerações de bra-
sileiros: “Procurem seguir os exemplos de seus pais e de seus avós, porque
realmente vir do Rio Grande do Sul para atirar com morteiros no meio da
neve — porque tinha muita neve —, entendam, era muito sacrifício.”
Giancarlo Maciantelli nasceu em 1931. Como muitos cidadãos,
abandonou Gaggio Montano no fim de setembro de 1944: “Em Granaglio-
ne, depois de uns 15 dias, nós vimos chegar os primeiros soldados brasi-
leiros. A propaganda fascista tinha colocado em nossas cabeças algumas
teorias... E havia as tropas de cor, que foram marcadas, definidas... Disseram
que eram selvagens. Bem... essencialmente disseram que comiam crianças,
para podermos entender. E, portanto, no primeiro contato com essas tropas
de cor, brasileiras, houve um pouco de desconfiança: as mulheres se tran-
cavam em casa; nós, crianças, procurávamos ficar longe. Depois notamos
que eram soldados de bom coração, tranquilos, cordiais, que procuravam
as crianças para dar carinho, para dar chocolates...”

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Apêndice VI 321

Maciantelli aborda uma questão muito destacada pelos pracinhas: a


fome. “Estávamos desesperados com a questão da comida... As famosas
castanhas, enquanto existiam... Depois, mais nada! Comíamos raízes de chi-
cória, no campo... uma coisa horrorosa! Quando chegaram os brasileiros,
começamos a comer o famoso pão branco. Os brasileiros não gostavam da
ração ‘K’ norte-americana; não a aceitavam com gosto, tanto que o general
João Baptista Mascarenhas de Moraes deveria ter um encontro, em Porretta
Terme, com o general Mark Clark, dos Estados Unidos, com a finalidade de
que fizesse vir para a Itália comidas como tapioca, mandioca, o famoso min-
gau, o feijão preto... a feijoada. Estavam loucos por essas comidas. E procu-
ravam carne de boi. A única coisa que nos ligava era o famoso abacaxi, que
era doce e era fruta... Frutas, na Itália, ‘víamos com binóculo’; fruta, naquele
período, era comida de nobres. Portanto, conseguimos contatar e ter um
relacionamento humano com essas tropas.”
Acervo: MNMSGM

Soldados se aquecem em abrigo subterrâneo

Maciantelli guarda em sua casa, em Bolonha, um representativo acervo


dedicado à FEB: “Eu equipei esta sala e a chamei de Sala Brasileira, porque
existe um pouco de recordação de minha casa em Gaggio Montano, onde
estiveram tropas brasileiras e um escritório da censura política militar. Par-
te do material é proveniente de brasileiros; a outra parte veio de combates
dos quais participei, como as fitas das metralhadoras, que eu municiava.
Eu sinalizava, como observador da artilharia brasileira, as posições onde
estavam os alemães.” Relata que observava os movimentos das tropas ale-
mãs, na região de Guanella e Bombiana, e repassava as informações à tropa
brasileira: “Obtive o reconhecimento com tantos diplomas, tantos reconhe-
cimentos de honra, que sinceramente me sinto até confuso, pois acredito

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322 VOZES DA GUERRA

não merecer tanto. Merecem mais aqueles soldados que perderam a vida
pela minha pátria, pela liberdade da minha Itália.”
Maciantelli continua: “Em minha casa de Gaggio, estava a Cruz Verme-
lha americana, onde operavam os soldados brasileiros. Quando voltamos
para Gaggio, os colchões estavam encharcados de sangue, sangue brasilei-
ro. Talvez sangue americano também, mas muito mais de brasileiros, pois
os americanos não estavam naquela região. Estavam longe; se resguarda-
ram bem; fizeram um assalto e foram forçados pelos alemães a retornar e,
depois disso, deixaram todas as posições para os brasileiros. Portanto, os
feridos que foram tratados na minha casa em Gaggio eram brasileiros. Cor-
taram pernas, cortaram braços, e os colchões cheios de sangue brasileiro...”
Os idiomas, de origem latina, facilitavam a comunicação: “Falando,
conseguíamos nos entender, mesmo porque muitos desses soldados eram
filhos de italianos, netos de italianos, e arranhavam um pouco de italiano.
Portanto, mesmo que eles não falassem claramente, entendiam muito bem
o que nós dizíamos. E esses soldados diziam: ‘Nós saímos de 40°C do Rio
de Janeiro.’ Eu sei! E quando chegaram aos Apeninos, eram -15°C. E, de-
pois naquele ano, veio abaixo uma avalanche de neve... Nem todos tinham
visto neve, tido experiência de frio... E isso trouxe o congelamento de pés,
congelamento de mãos, resfriados, bronquites, todas as doenças... Quan-
do chegavam até nós, em nossas casas de montanha, não tinha sistema de
aquecimento, tinha a lareira... Todos ‘grudados’ ao fogo para esquentarem.
Faziam patrulhas e vinham se esquentar em nossas pobres casas de cam-
poneses da montanha.”
Maciantelli reforça essa integração: “Minha família tinha uma casa em
Granaglione; era uma casa que usávamos muito pouco, na qual não havia
nem ao menos camas e cobertas. Nós também estávamos em crise, total-
mente confusos. Porém, aceitamos em nossa casa esses soldados. Em vez
de dormirem nas trincheiras cobertas com tela para se protegerem da neve
e da chuva, fazíamos que viessem para nossa casa. E ali nos contavam um
pouco de suas famílias no Brasil, da saudade, que era muita. Uma vez es-
tabelecida a confiança, se desencadeava toda aquela alegria brasileira que
podia aparecer de uma caixa de fósforos... tum, tum, tum, tum, tum, tum... a
bater em panelas de alumínio, de lata, com bastões, para fazer um pouco de
ritmo. Era uma diversão, um passatempo. Ao sentirmos essa cordialidade,
nos ligávamos mais e mais a esses soldados. Não existia mais o medo... dos
negros que comiam crianças, como nos diziam os jornais fascistas.”

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Apêndice VI 323

Ele confirma a opinião de que os brasileiros eram diferenciados, mais


solidários e amistosos, ao traçar um paralelo com os ingleses, que atua-
vam na região de Porrettana, a estrada estadual 64: “Os ingleses eram um
pouco metidos; pretendiam entrar nas casas, exigiam que as mulheres
lavassem e passassem suas camisas e, quando deixavam um grupo de ca-
sas ou uma posição para se movimentarem mais para frente, para outro
lugar, tinham certo desprezo para com a Itália. Nós italianos merecíamos
uma lição dos ingleses, porque nós fizemos coisas tremendas... E então o
que faziam? As cobertas que eles tinham, e para eles não serviam mais,
mesmo porque havia [chegado] o ar da primavera, faziam um buraco e
depois as queimavam. Todos os civis em volta, e não as davam aos civis.
Os seus paletós, os cobertores..., eles queimavam diante dos civis, em vez
de darem. Esse comportamento era pouco gentil, mas acho que fizemos
por merecer...”
Quanto ao relacionamento entre a população civil e os brasileiros, diz:
“Os brasileiros vinham, sim, às nossas casas; porém, nos traziam o que co-
mer. Se tinham a própria cozinha, faziam nos panelões o famoso leite con-
densado, que era de um sabor excepcional. Enchiam esses panelões de leite
condensado, um balde de água para diluir um pouco, dois sacos de cacau e
açúcar... uma boa misturada, e tudo aquilo que permanecia denso, no fundo,
era para os civis... E aí se jogavam ao ataque!”
Conforme relata, sua história com os brasileiros foi peculiar: “Eu me
aproximei dos sargentos para mostrar os verbos regulares italianos. Eu,
que já tinha estudado latim e, portanto, tinha certa experiência com os ver-
bos italianos regulares e irregulares, ensinava... Enquanto nós comíamos ao
ar livre, repetiam aquilo que eu conjugava de verbos. E para me agradecer,
dado que a quantidade de comida que tinham em suas marmitas era tanta
que sempre sobrava, derramavam em uma panela, e nós, crianças, íamos
pegar... Para nós era uma bênção! Imagina o senhor que minha família, de
quatro pessoas — meu pai, minha mãe, meu irmão e eu —, comia uma vez
por dia...”
Giancarlo Maciantelli conta que “existem fotografias da 5ª Armada, onde
[os americanos] distribuíam comida. Porém, era de uma maneira diferente:
deixavam que os civis — temos as fotografias — colocassem as panelas no chão;
depois eles jogavam, assim como se joga um pedaço de pão a um cão... Agora
não quero carregar a mão sobre os americanos, mas era um pouco depreciativo.
Uma coisa é dizer ‘Rapaz, venha cá, e lhe dou um pouco da minha comida...’

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324 VOZES DA GUERRA

Não a jogo, mas a faço cair educadamente, digamos gentilmente dentro de sua
panelinha. Mesmo que junto à tapioca, à mandioca vinham também alguns
pedaços de carne, tudo vinha bem. Os americanos não. Os americanos queriam
demonstrar um distanciamento também. E isso me desagrada...”
Como bom italiano, faz questão de contar alguns episódios considera-
dos cômicos. A confusão tem a ver com os falsos cognatos (palavras de mes-
ma grafia ou som, porém, de significados diferentes em distintos idiomas).
O fato aconteceu com sua mãe, quando o médico aconselhou que o pai co-
messe somente o macarrão branco: “Minha mãe foi à cozinha brasileira,
onde havia um tenente.” Seguiu-se o seguinte diálogo:
— O que a senhora deseja?
— Gostaria de um pouco de burro...
— Burro? Não temos burro!
— Mas o médico disse para pegar burro para cozinhar o arroz.
— Não... Não temos burro!
Então, ele mostrou para ela um pedaço de carne de boi, mostrou a ela a
caixa de carne de porco. E ela dizia ‘Non, maiale non’. Então ele disse: ‘Venha
ver; procure a senhora mesma.’ Então minha mãe começou a girar dentro
dessa grande cozinha que os brasileiros tinham e disse: ‘Eis, é aquilo! É
aquilo!’. ‘Não, senhora... Manteiga! Burro, não; aquilo é manteiga!’ Foi uma
grande risada, porque a partir daí aprendemos que ‘burro’ quer dizer man-
teiga, em português.”
Maciantelli, se encontrasse alguns dos pracinhas com os quais convi-
veu na guerra, não saberia qual seria sua reação, mas que, como reconheci-
mento, “simplesmente deixaria nascerem duas enormes lágrimas nos olhos
e iria abraçá-los; porque a saudação deles era o abraço... [iria] beijá-los nas
bochechas, dar-lhes tantos, tantos, tantos, mas tantos agradecimentos por
aquilo que fizeram pelo meu país, pelos sacrifícios que tiveram de aguentar,
seja pelas dificuldades climáticas, pois tiveram uma grande falta de sorte
vindo à Itália em um inverno tão desagradável — poderiam ter tido mais
sorte e chegarem à Itália na primavera e encontrarem um belo verão ou um
belo outono, mas vieram a sofrer um frio tremendo—, seja porque tinham
pela frente os soldados mais determinados do mundo”.
Maria Rosa Palmiere nasceu em outubro de 1943, em Porretta Ter-
me. Segundo diz, antes da guerra era um lugar tranquilo, onde quase nada
acontecia. Seus pais haviam chegado à localidade em 8 de setembro, após
a dissolução do Exército: “Meu pai era capitão médico e tinha um hospital

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Apêndice VI 325

de campanha em um trem; minha mãe era sua enfermeira e estava grávida.


Passamos lá os primeiros dois anos; posso dizer que não foram os mais
tranquilos de minha vida, pois estávamos sempre em fuga, correndo para
os bosques.
Acervo: M. R. Palmiere

Maria Rosa quando criança


Até o final da guerra, em 1945, ficamos ali. Tenho até uma fotografia...
Eu tinha apenas dois anos e estava com um pequeno capote que minha mãe
tinha feito para mim, de uma jaqueta militar de meu pai. Minha mãe seguia
meu pai, porque era sua estagiária e antes também fazia parte do Exército.
Portanto, quando fugíamos, fugíamos os três. Eu ficava na mochila de meu
pai... Ainda não usavam carrinho, mas as mochilas com buracos para as per-
nas. Portanto, me levavam sempre com eles; talvez também por isso nunca
tivéssemos sido capturados ou caído em batidas policiais e coisas do gêne-
ro. Eu e minha mãe nunca ficávamos na cidade, porque sabiam que pega-
vam crianças, mulheres e todos aqueles que encontrassem. Posso dizer que
a primeira cor de que eu me lembro na vida é a verde, provavelmente por
causa dos bosques; porque era tudo que eu via, fugindo.
As histórias [que ouvia] foram, por anos, acerca desses dois anos
passados em Porretta Terme. Com todas as incursões dos alemães, com
os Aliados que chegavam... afinal a Linha Gótica estava lá, nós sabemos
disso; e, portanto, todas as coisas, inclusive aquelas mais desumanas,
aconteceram lá. Para meus pais foi também um ponto de grande união por
terem passado todos esses momentos perigosos juntos, tinham na mente
para sempre e não podiam deixar de recordar essas coisas. Eu infelizmente
não me lembro de nada; lembro somente as memórias transmitidas por
minha mãe, as trocas que faziam com os Aliados assim que chegaram...”

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326 VOZES DA GUERRA

Maria Rosa recorda das histórias transmitidas pela mãe: “As coisas mais
preciosas que [os Aliados] procuravam, devo dizer, eram licor e vinho.” Eram
valiosas moedas de troca por latas de alimentos: “Minha mãe recordava que
comia somente castanhas, em suma... Eu me alimentava, no sentido de que
fui amamentada... É sabido que as crianças podem sobreviver com leite.
Portanto, o importante era que ela comesse. Quando finalmente chegaram
os Aliados, alguma coisa de agradável aconteceu.” Seus pais sempre recor-
davam que “eram muito alegres esses Aliados que tinham chegado e, embo-
ra tivessem tido muitas perdas — e as batalhas foram terríveis —, chegaram
e tinham grande vontade de viver, de dançar, de tocar instrumentos”.
Os traumas da guerra ficam evidentes independentemente da idade da
personagem: “Eles [os pais] diziam que a primeira palavra que eu disse foi
‘bum!’ Acho que o único som que eu ouvia verdadeiramente era o desse
canhão, desse famoso canhão que disparava... Também me levavam para
fora para ver os traçantes, os fogos de artifício... A diversão à noite era ver
os traçantes que iluminavam o céu...”
Maria Rosa, com a experiência e as histórias ouvidas dos pais, diz que
a guerra foi desumana, pois “aconteceram matanças violentas e inúteis de
mulheres, crianças, velhos... Acredito que a guerra é uma tragédia a ser evi-
tada com todas as forças, porque absolutamente não faz bem a ninguém”.
Giuseppina Malfatti nasceu em Viareggio, em 1939: “Durante a
guerra, eu era muito pequena, mas tenho recordações muito vivas, muito
fortes. Minha família evadiu-se de Viareggio, em maio de 1942. Nós vive-
mos todo o terrível período de 1943/44 ao longo daquela que se chamava
Linha Gótica. Vimos queimar Sant’Anna di Stazzema; tivemos parentes — a
minha avó paterna — mortos pelos alemães. Tenho a lembrança de nos-
sas fugas nos bosques, perseguidos pela SS com cani lupo [pastor alemão].
Por anos eu não pude suportar os cães... Depois da guerra, naturalmente
procuramos esquecer um pouco. Mas a impressão de certos eventos per-
maneceu forte em mim, a ponto de ter tido pesadelos por anos... e talvez
ainda os tenha.
Minha avó tinha alugado uma casa grande, antiga, que estava exatamente
junto à estrada da Linha Gótica; estava quase em frente a uma ponte. Portanto,
era um ponto nevrálgico. Tivemos de fugir de lá por várias vezes para a
floresta.” Essa casa não foi bombardeada, mas os alemães haviam minado a
ponte, por baixo; caso explodissem a ponte, a casa também iria pelos ares:
“O verão de 1944 passamos nos bosques, onde havia a luta partisana. E nós,

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Apêndice VI 327

que estávamos em um casebre para [armazenar] castanhas, pela manhã,


víamos passar os pastores com as macas e os partisanos mortos. E como
era agosto, o cheiro era muito forte. Essa também é uma recordação viva.
Eu me lembro da passagem dos soldados brasileiros. E sobre isso quero
dar o meu testemunho. Em setembro de 1944, eu não estava naquela casa
porque, sendo a mais medrosa, fui mandada para outro lugar, que se chama-
va Il Colle, onde estavam somente os velhos, as mulheres e as crianças.” A
emoção aflora: “Ainda me comovo... um dia, um dia de chuva terrível, chegou
uma camponesa gritando: ‘Os alemães estão aqui!’ Então, todos nós fugimos
desse casebre, rolando pela grama... e, de repente, nos deparamos com al-
guns soldados; alguns soldados de poncho verde, todos molhados, e enten-
demos que não eram os alemães. Então, naquele momento, começou nossa
ressurreição... Eram os brasileiros que pediam hospedagem à minha avó.
Acervo: AHEx

Médico brasileiro presta assistência à criança italiana


Dado que às vezes chovia e às vezes fazia sol, esses pobres soldados
tinham a necessidade de abrigo; minha avó deu a eles a possibilidade de
dormirem no sótão. Nós, crianças, éramos cinco: três irmãos e dois primos.
Aproximamo-nos com muita curiosidade desses soldados, que nos deram
pães com geleia. Eu acredito que aquilo tivesse sido para nós ‘o’ presente.
Ou seja: havia anos não comíamos coisas doces... Era uma geleia de cereja
escura, que nunca vou esquecer.” Giuseppina continua: “... Davam-nos algu-
mas caixinhas; talvez carne com verduras, com ervilhas. Ocasionalmente
essas caixinhas nos eram presenteadas, e nós apreciávamos muitíssimo,
porque a fome era tanta... Deram-nos também remédios. Minha irmã mais
nova tinha grandes crostas [na pele] por avitaminose. Acredito que os sol-
dados deram penicilina a ela, pois sarou muito rápido.”

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328 VOZES DA GUERRA

Giuseppina acrescenta: “As sensações das crianças são completamente


distintas das dos adultos. A libertação, a liberdade e finalmente o fim do
medo correspondiam ao fato de que nós podíamos comer doces novamen-
te. Eu confesso que meu primeiro pensamento foi: ‘terminou a guerra, vol-
taremos para Viareggio e poderei comer massas nas calçadas...’ O desejo era
de paz para poder comer... Eu me envergonho, mas pensava nos doces, nos
merengues rosas na calçada... E depois, havia o medo imediato, que se re-
solvia rápido. O terror existia quando caíam as bombas ou quando víamos
chegarem os alemães... Lembro-me dos mortos que vimos... Os queimados
pelo fósforo, os enforcados dois a dois com arame farpado... A condição era
abiótica. Essas coisas eu vi por tanto tempo, embora, como disse, o medo
passava rápido, mas o medo da morte manteve-se mais no depois que no
imediato. Não podia mais olhar para os cemitérios...”
Segundo Giseppina, sua avó tinha armários com as roupas de cama,
roupas íntimas etc., no sótão em que ficavam os brasileiros: “Um desses
soldados, com a ponta de um alfinete, escreveu no armário de minha
avó, em português — portanto, eu não sei repetir exatamente: Aqui pas-
sou... o que era... o 6º Regimento Brasileiro. Foi escrito e por anos eu vi
aquele armário com a inscrição; minha avó ficou um pouco brava... A
recordação é que o medo tinha passado; finalmente, sentimos que ha-
víamos sido libertados de um terror indescritível. Porque a SS... Os últi-
mos tempos para nós sobre a Linha Gótica foram de uma crueldade... Em
suma, a história conta.”
Giuseppina era filha de um capitão de mar militarizado. Ele fazia via-
gens para o Norte da África e foi afundado duas vezes. Sobreviveu em
ambas. Em 8 de setembro, o pai esteve em casa, mas tinha de viver escon-
dido junto ao avô dela: “A situação era difícil, porém nosso medo de crian-
ça era imediato e terminava rápido, salvo os pesadelos que vinham de-
pois. No início, tinha medo dos brasileiros. Tínhamos medo porque nós,
crianças, nunca tínhamos visto. Em nossas colônias, havia pessoas de cor,
mas não as conhecíamos. Porém, recordo e devo dizer... eram muito bons,
mais do que todos; e mais benevolentes. Uma prima minha, recordo que
brincava [com eles], porque nós tínhamos dois tios prisioneiros — um na
Rússia e outro na Alemanha. Portanto, dois primos não tinham os pais em
casa. E esses rapazes, acredito, eram jovens, mas eram muito afetuosos
conosco, crianças, e em particular com os priminhos que não tinham os
pais em casa.”

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Apêndice VI 329

Giuseppina reforça que o relacionamento com os brasileiros era muito


cordial e crê que isso se devesse à religiosidade: “Pareciam muito religiosos.
De fato, uma frase que diziam, eu não gostaria de errar, mas era ‘tenho fé no
coração’. Pode ser? É português isso? ‘Tenho fé no coração’. Minha avó era
uma pessoa muito altruísta, muito generosa, e perguntava a esses rapazes
se eles não tinham medo, e eles diziam: ‘Não! Porque tenho fé no coração.’”
Apesar de não precisar o tempo em que os brasileiros permaneceram
na casa da avó, Giuseppina recorda das jornadas de sol, quando brincavam
juntos: “O primeiro encontro foi sob a chuva e com o temor de que fossem
alemães. Aquilo eu nunca esquecerei, porque nós fomos rolando para bai-
xo, sobre a grama molhada, com medo, quando vimos saírem do caminho
os soldados. Talvez houvesse algum de cor logo na frente, porque percebe-
mos que não eram alemães. Talvez tivesse sido por isso que percebemos.
Então, era a libertação!”
Giuseppina diz reconhecer a importância dos brasileiros, porque viveu
“o terror da morte, invasivo, que incomodava e parecia que não iria mais
terminar. Os últimos dias de 1944, vocês sabem, foram de estremecer”. An-
tes, porém, sua avó foi assassinada, “quando os alemães assassinavam 10
italianos por um alemão [que era morto]... Naquela região, havia os par-
tisanos, que faziam incursões, matavam algum alemão e depois fugiam. E
nós ficávamos à mercê da represália. No caso de minha avó, em Rose de
Camaiore, eu chamo de massacre esquecido”. Conforme relata, contaram
até 30 mortos italianos, porque três alemães haviam sido mortos: “Eram
quase todos de Viareggio, refugiados como nós... E minha avó estava em
casa... Minha avó se chamava como eu — Giuseppina. Quando ouviu gritos,
mostrou-se...” Além de sua avó, foram mortas duas mulheres que estavam
escondidas no mato: “Isso aconteceu no início da tarde de 4 de setembro;
minha avó permaneceu viva e a encontraram no dia seguinte; de fato, mor-
reu no dia 5... Escapamos dessa!”
“Depois da guerra, eu nunca mais ouvi falar dessa Força Expedicionária
Brasileira. E tantas vezes eu perguntei... Quando o amigo Tessera me disse:
‘Eu os vi; estiveram comigo e gostariam de que você desse seu testemunho’.
Cancelei minha agenda e estou aqui para dar meu depoimento sobre esses
nobres soldados. Infelizmente, não me recordo bem [dos fatos], mas lem-
bro das pessoas, das quais a bondade era fabulosa.”
“Quero acrescentar que estou feliz, que alguém queira ouvir-me tes-
temunhar sobre esses soldados... É uma obra de recuperação da memória.

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330 VOZES DA GUERRA

Estou feliz se eu também pude dar uma pequena contribuição sobre os


brasileiros que para mim tinham chegado e sumido... E depois, eu me per-
guntava: ‘E os brasileiros? Ah! Você deve ter sonhado com os brasileiros...’
Mas não! Sinto muito porque certos testemunhos não existem mais: minha
mãe, minhas tias... Elas viveram a guerra de modo direto e poderiam dizer
alguma coisa...”
Giuseppina conclui deixando como mensagem às novas gerações o ide-
al de que os homens devem resolver suas divergências procurando o acor-
do e a compreensão, para nunca mais terem de chegar à guerra: “Nunca
chegar a disparar e a matar; nunca, pois se geram violência e dor inúteis.
Disse o papa, nosso papa Pacelli [Pio XII]: ‘Tudo está perdido com a guerra,
e tudo se pode conquistar com a paz. A paz e o acordo tudo podem resolver.
Para nunca chegar a matar.’”
Francesco Berti, nascido em 1926, era integrante da Brigada Justiça
e Liberdade e lutava ao lado dos Aliados. Hoje morador de Bolonha, dedica-
se a manter viva a memória dos soldados brasileiros em solo italiano. Pro-
prietário da famosa Casa Guanella, que abrigou muitos brasileiros durante
o gelado inverno, doou o terreno onde está construído o monumento em
homenagem aos pracinhas e à FEB, próximo ao Monte Castelo.
Segundo ele, “o encontro com os brasileiros foi muito alegre. Quando
chegaram os brasileiros, nós encontramos uma língua irmã... Entendemo-
nos rápido. De resto, os brasileiros eram muito festivos... Estávamos
bem juntos; vinham às nossas casas”. Acrescenta que a pausa propiciada
pelo inverno “trouxe uma convivência bastante prolongada das tropas
brasileiras com a população civil, que se amalgamaram com grande facili-
dade. Lembro das crianças que aprenderam imediatamente a cantar ‘ma-
mãe eu quero, mamãe eu quero.’”
Berti ressalta que, nas primeiras tentativas de conquista do Monte Cas-
telo, os brasileiros não tiveram sucesso esperado: “Não conseguiram, por-
que provavelmente não estavam preparados como seria necessário... Pre-
cisariam de uma preparação, que não aconteceu. E de fato, por duas vezes
ou três... sim, três vezes, os ataques brasileiros foram facilmente repelidos
pelos alemães que, do alto, viam os brasileiros virem pelos campos, des-
cobertos; os brasileiros foram alvo fácil. Ali houve muitos mortos. Eu me
inclino diante desses pobres pracinhas, que não conseguiram chegar sobre
a linha de fogo e foram mortos. Muitos e muitos. Recordo que havia um pe-
lotão de sepultamento na Estrada Provincial e todos aqueles sacos cheios.

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Apêndice VI 331

Houve uma falta de preparação, até que Mascarenhas se convenceu de


que deveria coordenar-se com as tropas americanas... Civis e brasileiros es-
távamos desse lado do vale, ou seja, sobre o lado esquerdo do vale de Silla; e
os americanos estavam no lado direito com toda a artilharia. Quando final-
mente se entendeu que, para fazer um ataque verdadeiramente eficaz, seria
necessário haver uma preparação e, sobretudo, uma coordenação entre a
FEB e os americanos. O ataque a Monte Castelo foi precedido de um bom-
bardeio intenso.”
Berti continua: “Eu lembro, ainda com espanto: o Monte Castelo desa-
pareceu sob uma nuvem de fumaça amarelada; era a fumaça de todos os
tiros de canhão; centenas, talvez milhares de tiros de canhão que fizeram
convergir sobre Monte Castelo. E quando terminou o bombardeio — eu
estava em Ca di Franchi, exatamente abaixo e via muito bem —, o Monte
Castelo tinha desaparecido sob essa enorme nuvem de gás, de explosões...
E quando o bombardeio muito intenso terminou os brasileiros que estavam
em Ca di Toschi, em Le Roncole, subiram o monte e o conquistaram facil-
mente, porque os alemães haviam se tornado fantasmas. Eu vi chegar cá
embaixo do Monte Castelo um jipe que trazia dois ou três prisioneiros ale-
mães. Esses prisioneiros pareciam estátuas de sal... porque ficaram horas
sob um bombardeio assustador; tiveram de se render.”
Berti confirma que os partisanos serviam de guias, porque conheciam
muito bem o terreno e não estavam equipados para participar dos com-
bates. Diz que, somente no episódio de 28 de outubro, os partisanos de
sua brigada, a Justiça e Liberdade, e os da Brigada Garibaldi se colocaram
juntos para efetuarem um ataque. Entraram em acordo com a artilharia
americana, foram para o alto, chegaram à crista e a conquistaram. Mas se-
gundo o acordo que haviam feito os comandantes, imediatamente após a
conquista teriam de subir os brasileiros e americanos, para tomarem as
posições e mantê-las.
Berti justifica a doação de uma parte de seu patrimônio ao Brasil, para
que fosse construído o monumento em homenagem aos mortos da FEB aos
pés do Monte Castelo como “um ato de necessário reconhecimento pelo
valor com o qual combateram os soldados brasileiros... Os brasileiros não
deixaram conversa fiada sobre o terreno: eles deixaram mortos. E eu quis
agradecer, valorizar esses soldados. Tem aquele que disse: ‘Brasil, meu Bra-
sil, terra de liberdade...’ [ver no capítulo “Música na guerra”]. Em princí-
pio, a finalidade era externar um sinal de reconhecimento aos pracinhas;

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332 VOZES DA GUERRA

depois, queria também expressar meu reconhecimento pelo fato de o Bra-


sil, com muito esforço e dificuldade, ter tomado posição contra o nazismo e
o fascismo... Portanto, eu quis dar esse duplo sinal de reconhecimento pelo
valor humano desses rapazes que, mesmo despreparados, deram de tudo;
muitos morreram, mas conseguiram libertar pelo menos a terra onde eu
vivia: a terra de Guanela”.
Foto: Evandro Fernandes Cordeiro

Monumento

“Mas há, sobretudo, a questão pessoal, do reconhecimento. Porque eu


fui fortemente antifascista, e conseguimos ter o Brasil conosco... Eles de-
ram suas vidas para colaborar em uma guerra antifascista. E isso merece
ser recordado. E sou muito feliz, porque existe um monumento por meio
do qual podemos recordar... Que todos os brasileiros possam ir até lá e ver.
Que se coloquem na posição correta e, através do monumento, vejam o alto
do Monte Castelo e possam dizer: ‘Olha! Eles estiveram ali’”, conclui Berti.
Rodolfo Borgognoni, morador de Gaggio Montano, tinha 21 anos
na época em que conheceu os brasileiros. Para ele, “os brasileiros eram
alegres, sociáveis, generosos e traziam a música na alma. Tiravam música
de tudo: caixas de fósforos, pratos... Encontrei os primeiros brasileiros em
Borgognoni di Grecchia. Eram comandados por um tenente muito simpáti-
co, com o qual fiz amizade... Um dia, quis me mostrar sua precisão no tiro
com a pistola. Pegou uma caixa de fósforos e a colocou em cima de um pau
e disparou. A caixa partiu. E depois outras caixas; acertou o alvo. Foram
muitas risadas e aplausos dos presentes”.
Borgognoni, que havia abandonado sua casa, estava hospedado na casa
de uma senhora que passava no rancho dos brasileiros para apanhar comi-
da, entre as quais a sua preferida era o mingau, “um creme doce e muito nu-
tritivo, com cacau e outros doces”. Também não se esquece dos legumes de

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Apêndice VI 333

todos os tipos: feijão, grão-de-bico etc. “Nós comíamos a comida que vinha
do rancho dos brasileiros. Depois que eles comiam, éramos muitos a comer
lá. Em casa não tínhamos nada; só tínhamos a roupa do corpo.”
Segundo relata, a guerra, a despeito da destruição que causava, pro-
porcionava oportunidades às pessoas. Alguns viam na alegria dos brasi-
leiros a possibilidade de ganhar dinheiro. Um simples instrumento era su-
ficiente para animar uma festa. Havia um tocador que “era um tipo muito
alegre; que deixava elevado o moral dos militares no front. Levando con-
sigo um pequeno acordeão, deslocava-se de uma região para outra a to-
car e a contar piadas. Ao final das apresentações, pegava o chapéu e fazia
um giro recolhendo cigarros e doces. Nesse sistema, juntou dinheiro para
comprar um jipe”.
Destaca também que a religiosidade era mais um fator de integração:
“Os brasileiros eram, na maioria, de religião católica, e quando meu pai,
à noite, recitava o rosário, um grupo de soldados participava. Tinha um
sargento que estava sempre junto a meu pai. Esses militares haviam vin-
do de um país quente da América do Sul, e aqui era inverno... Alguns se
vestiam a seu modo, desafiando o frio, e estavam sempre alegres. Quan-
do os canhões americanos disparavam, gritavam com entusiasmo: ‘A co-
bra está fumando.’ Sabem o que é a cobra? Era a figura de uma serpente
com a língua para cima e estava impressa na manga esquerda da jaqueta.
Sempre me lembro...”
Claudio Carelli, morador de Vergato, relata: “À época dos fatos,
eu tinha 4 anos; por isso as minhas lembranças são bastante limitadas.
Porém, durante a vida, meus pais me contaram muitas coisas. Eu lembro
que morava em Riola com meus avós e meus pais. Dois brasileiros vi-
nham sempre à nossa casa; como se tinha pouco para comer, eles traziam
caixinhas de chocolates. Depois comiam conosco; o pouco que tínhamos,
dividíamos e éramos exatamente uma grande família naquele momento.
Eu me lembro desses dois brasileiros; lembro os nomes. Um se chamava
Goulart, e outro, Meyer. Brincavam sempre comigo; portanto, não posso
esquecer.
Vinham até nossa casa, fazíamos castanhas assadas em uma estufa
parisiense, que estava sempre acesa durante o inverno. Tinha sempre
uma garrafa de vinho... Cantavam canções brasileiras e bebiam esse vinho.
Goulart estava um pouco embriagado e pegou uma ‘mão’ de castanhas, que
estavam quentes, em cima da estufa. Comeu e disse: ‘Hum... Boas, mas um

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334 VOZES DA GUERRA

pouco duras.’ Mas tinha comido com a casca... Este é um detalhe. Estavam
quentes, porém conseguiu comê-las e achar que estavam boas.”
Carelli acrescenta que se lembra de alguns detalhes, reforçados pelas
histórias que contavam seus pais: “Como nós morávamos perto da esta-
ção de Riola — e disso recordo —, minha mãe sempre fugia comigo nos
braços, mas eu não entendia o porquê. Porém, era porque bombardea-
vam... Havia os americanos que jogavam bombas com os aviões. Caíam
bombas por todos os lados... Os alarmes durante todo o dia eram tantos
que tínhamos que descer do quarto pavimento e ir para a galeria da esta-
ção de trem.
A certo ponto, não se podia mais viver daquela maneira... Os
alemães tinham o comando no Castelo della Rocchetta; portanto, faziam
patrulhas de rastreamento continuamente. Os americanos bombarde-
avam... e aquela era [então] uma região inabitável. Nós tínhamos que
fugir dali e ajudaram-nos Goulart e Meyer, procurando um caminhão
militar para nós; carregaram os móveis indispensáveis que tínhamos e
nos ajudaram a nos refugiar em um lugar que se chama Lodio, que dista
uns 10km de Riola.
Quando eu comprei este sítio [em Vergato], há 20 anos, comecei a
perguntar... Eu queria conhecer a história deste lugar. Um senhor, que na
época era garoto e trabalhava de estafeta entre o comando e as posições
dos brasileiros, contou-me que tinha um tenente que se chamava Gonçalves
e esteve aqui... Ele ficou bastante impressionado e, quando chegou aqui,
encontrou os corpos de dois brasileiros que provavelmente eram dois
amigos que morreram naquela noite... Depois, eu recebi a visita de veteranos
brasileiros, que vieram até aqui. Conheci o próprio tenente Gonçalves, que,
se não me engano, então era coronel. Ele relatou-me os acontecimentos
que se passaram neste local; do sofrimento de seus soldados. Contou-me
que certa noite houve um ataque muito forte dos alemães; fugiram porque
as forças inimigas eram tão fortes que eles não conseguiram se defender.
Portanto, correram por este campo abaixo, à noite, e quando chegaram
lá no limite, eles não sabiam, mas havia um penhasco de 20m... Muitos
caíram lá embaixo e se machucaram muito.
Noutro ano veio um sargento; contou-me sua experiência dentro das
galerias que haviam escavado no solo, nas posições ali ao lado [da casa onde
reside hoje]; dizia-me do inverno atroz de 1945; porque fazia tanto frio, e
eles não estavam acostumados. E havia esses buracos no chão; não podiam

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Apêndice VI 335

se lavar, não tinham água, estavam congelados, havia toda esta neve, era
muito frio lá dentro... E enquanto me contava, ele chorava. Colocamo-nos a
chorar juntos, porque eu sentia muita pena ao pensar nas experiências que
passaram esses soldados trazidos do Brasil, onde o clima era quente... Vir
aqui, com o frio e com o risco de morrer a cada minuto — porque os alemães
estavam lá em cima, naquela rocha, o Soprassasso, que é uma posição
favorável em relação a esta. Portanto, bastava que eles [brasileiros] se
mostrassem para que os alemães imediatamente disparassem... Atiradores
de elite... morteiros — e aqui dispararam muito, porque todas as vezes
que aramos esta terra, aparecem bombas de morteiros —, granadas que
não explodiram, estilhaços, cartuchos de todos os tipos... Portanto, esses
rapazes suportaram algo que é quase indescritível, digamos.”
Carelli destaca a diferença entre os brasileiros e os soldados de
outros exércitos: “Nós não tivemos relacionamentos muito estreitos
com outros. Os americanos eram mais presunçosos; os brasileiros eram
como se fossem de nossa família; eram gentis. O fato de cantarem essas
canções nostálgicas nos fazia sentir com eles; em suma, sofriam... Talvez
os americanos também fizessem, mas não faziam conosco. Porque nós
tínhamos sempre os brasileiros em casa, e os americanos nós víamos
passar com os caminhões, com os jipes. Jogavam chocolates, balas, todas
aquelas coisas; porém, não tivemos aquele relacionamento fraterno como
tivemos com os brasileiros. Tínhamos um relacionamento como filhos e
irmãos. À noite, vinham à nossa casa... Com eles não tínhamos nenhum
melindre, enquanto que, com os outros, com os americanos, não havia
essa confiança. Não sei por que, mas não havia. Provavelmente o caráter
dos americanos era... ou se colocavam de uma maneira diferente, menos
humilde, talvez... Os brasileiros não se comportavam como libertadores; os
americanos, talvez um pouco. Aquela presunção não dava a possibilidade
de haver familiaridade.”
Inquirido sobre a reação que teria se encontrasse algum desses vete-
ranos, Carelli diz: “Eu me colocaria a chorar novamente, porque recorda-
ria muitas coisas, lembraria não somente do pouco que vivi; lembraria de
meus pais; de meu pai que já morreu, que me contava essas coisas, de meu
tio Natalino, que também já morreu, e que também me contava... Portanto,
não sei se consigo me explicar... É que estou perdendo alguns pedaços de
minha história, e qualquer um que me fala disso me comove... certamente
me vêm as emoções...”

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336 VOZES DA GUERRA

Foto: Sirio S. Fröhlich

Claudio Carelli e a homenagem aos brasileiros: “Para a honra e lembrança de


Francisco Gomes de Souza e José Alves de Abreu, dois valentes pracinhas da Força
Expedicionária Brasileira, que aqui tombaram em batalha, no alvorecer de 1945,
lutando pela liberdade”

Em reconhecimento, ao lado de sua casa, Carelli construiu “um peque-


no memorial a dois soldados brasileiros que morreram aqui, lutando pela
liberdade; pela minha liberdade. Se hoje eu sou um homem livre, sinto-me
grato a essas duas pessoas e quis recordá-las. E recordar quer dizer que
também meus filhos e meus netos saibam de minha história, da história da
Itália e também do Brasil. Portanto, eu exprimo ao Brasil minha gratidão,
porque sinto que essas pessoas vieram a morrer por mim também. Gosta-
ria, se esses dois rapazes ainda tivessem familiares, de cumprimentá-los e
também de abraçá-los, nem que fosse mentalmente. E agradeço também a
vocês por terem vindo aqui para recordar”.
Carelli transmite a seguinte mensagem aos jovens: “Não esqueçam
nunca de que a guerra não é justa em nada. Precisamos evitá-la de todas as
maneiras; e a memória é aquilo que pode nos ajudar, porque, se não existe
a lembrança do passado, não haverá também o futuro.”
Iolanda Marata reside em Preccaria, comuna de Vergato, e é vizinha
de Carelli. Sua casa está localizada sobre um morro, nas proximidades de
Castelnuovo. Conviveu com os pracinhas por longo tempo, quando tinha
cerca de 10 anos: “Em um domingo pela manhã, os brasileiros estavam
avançando com os carros de combate e vinham para cima, aqui por trás.
Quando vi esses carros de combate que eu nunca tinha visto, corri para
casa para contar aos parentes. Eu tinha uma irmã de 18 anos, que tam-
bém correu para ver, porque daqui de trás se via bem a estrada por onde

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eles começavam a subir... Muitos refugiados de Castelnuovo estavam aqui.


Dormiam no estábulo, no feno e no pórtico; onde se acomodavam melhor.
Alguns ficavam na casa; outros se acomodavam assim.
Minha irmã correu para dar comida aos porcos e, enquanto ela estava
lá perto, chegou o primeiro tiro de canhão... no meio do terreiro. Ela ficou
ferida... Ela e um senhor, de Castelnuovo, que era refugiado. Começou um
bombardeio.” Os alemães disparavam de um lado, e os americanos de ou-
tro: “Estávamos exatamente no meio dos fogos. Era um fogo infernal, que
durou todo o dia; não se saiu mais da porta... E, das 8h até o meio-dia, os
dois feridos morreram. Minha irmã teve uma perna partida na panturrilha
e o outro senhor na coxa... Terminado o inferno, havia dois mortos: minha
irmã e esse senhor... Para fazer o funeral dos dois, no dia seguinte, meus
pais e meu irmão, que viera para casa no dia anterior, pois fazia parte dos
partisanos... Mal havia chegado e teve que ir a Riola pegar as caixas para
colocar os dois mortos.
Depois, passaram-se uns 10 dias, e não sabíamos nada de nada; não se
ouvia disparar... Nada! Certa manhã, chegou um grupo de brasileiros, que
tinha um sargento e 11 soldados, dos quais um era negro. Eu, que nunca
tinha visto negros, estava com medo e ficava escondida atrás de minha mãe.
Então o sargento perguntou: ‘Por que a menina está se escondendo?’ Minha
mãe disse: ‘Porque tem medo... Ela nunca viu um negro.’ Então ele disse: ‘Ah,
bom! Bandeira, Bandeira...’”
Acervo: Iolanda Marata

Iolanda guarda a foto do grupo de militares que recebeu em 1944.


A foto havia sido tirada quando o grupo ainda estava no Brasil

Iolanda diz que posteriormente chegou outro grupo de brasileiros: “Um


tenente e uns 40 ou 50 soldados.” Os alemães estavam em Castelnuovo, de

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338 VOZES DA GUERRA

onde bombardeavam a posição brasileira: “De manhã cedo, metralhadoras


que, do Soprassasso até aqui, pareciam que quebravam nozes... Não se
podia sair. De dia, nunca saíamos; nós tínhamos uma vaca e íamos dar
comida a ela à noite, no escuro... Estiveram aqui por seis meses. De Casa
Verona vinham com as mulas para trazer comida para esses soldados. No
Natal, recordo que minha mãe fez tortellini, que os brasileiros chamavam de
lombrigas... Ajudaram-nos a amassar e levaram ao Comando, em Porretta.
Trouxeram para nós tantas coisas para comer... Passamos a guerra junto
aos brasileiros.”
De acordo com Iolanda, os brasileiros “ocuparam todos os cômodos.
Para nós restou a cozinha, onde eles também tinham todas as coisas para
fazer a comida... Chegava muita coisa para eles. Um dia trouxeram para eles
um... avestruz. Mandaram um avestruz no Natal. Penduraram na trave da
cozinha e chegava até ao chão. Depois, cortavam os pedaços e cozinhavam.
Minha mãe fazia para eles a massa de tagliatelle, pois eles gostavam muito.
Fazia a massa, e eles faziam os condimentos com o avestruz em pedaços...
Até eu comia com eles. De manhã faziam... sim o mingau! Eles davam tam-
bém para mim, e eu comia com eles... De manhã faziam fatias de pão com
manteiga em cima. Era um gole de café com leite e uma mordida nesse pão.
Eu comia com eles; eram como se fossem da minha família”.
Ela descreve uma integração harmônica: “Nunca nos disseram para
sair. Ao contrário, foram sempre gentilíssimos conosco. Meu pai havia
enterrado, no bosque e por todos os lugares, caixas de grãos, porque os
alemães chegavam e, antes de eles levarem embora essas coisas, meus
pais procuraram escondê-las. E tinham escondido também caixas de
garrafas de vinho. Então, em casa tinha vinho... Quando terminava, meu
pai dizia: ‘Precisam que eu vá pegar?’ Então eles diziam: ‘Papai, vá pegar
vinho... Ajude a gente.’ Então, à noite, iam procurar o buraco e pegavam
o vinho; e eles bebiam com prazer, porque aqui se fazia um ótimo vinho.
Era bom!”
Iolanda faz questão de reforçar: “Sempre foram bons, respeitosos; seja
com a família, seja comigo, que era uma garotinha. Chocolate... quanto cho-
colate eu comi! Por muitos anos eu tinha chocolate. Deixaram tantos daque-
les chocolates achatados. Enchi... agora não me lembro... aquelas caixas de
fitas de metralhadoras de papelão, altas... Enchi duas ou três de chocolates
e duraram muito. Sempre foram bons e gentis com todos... Não devemos
nunca nos lamentar.”

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Apêndice VI 339

Certa noite, houve um contato mais sério entre os soldados brasileiros


e alemães, oportunidade em que Iolanda presenciou o pessoal do serviço
de saúde em ação: “Aquela noite foi feia... Vi esses rapazes todos ralados;
tinha quem havia machucado o ombro, o braço, a cabeça; tinha aquele que
sangrava... Medicaram-nos aqui. Vieram aqui em cima, pois chamaram e
vieram rápido. Chegou um coronel médico, médicos. Medicaram todos ali e
depois os levaram embora...”
E continua: “Ah! uma noite, tinha já dois ou três dias que minha mãe es-
tava mal: pegara uma amidalite e quase não conseguia respirar mais. Então
veio aqui em cima um coronel médico e perguntou: ‘Pode se levantar?’ Por-
que ela estava deitada; tinham colocado macas dentro de casa. Ela estava
com 40°C de febre. Pediu que ela chegasse perto da janela para ele poder
ver bem. Depois, olhou a garganta com uma lâmpada e disse: ‘Agora vou te
medicar. Deve tomar oito pastilhas de uma só vez.’ Ele a fez tomar oito pas-
tilhas à noite. Ela superou a amidalite e se recuperou rápido. Não sei o que
era, mas aquele era um bom remédio.”
Iolanda relata um emocionante reencontro após a guerra, em Riola:
“Eu cheguei e vi toda aquela gente que fotografava. Então, perguntaram: ‘A
senhora mora aqui?’ Eu disse: ‘Sim, eu moro aqui.’ Disseram que eram bra-
sileiros, que vieram da Embaixada e faziam uma entrevista. Eu disse: ‘Bem,
eu estava aqui no tempo de guerra, era uma garotinha.’ Perguntaram: ‘Se
lembra de alguma coisa?’ Disse: ‘Lembro-me de quando chegaram. Tinha
um sargento com os soldados e um que se chamava Bandeira; lembro-me
daquele que era negro, porque eu senti medo...’ Então disseram: ‘Ah, o sar-
gento está aí, foi com outros dois ver as posições. Daqui a pouco, ele chega.’
Enquanto chegava... eu não o reconhecia mais. Quando o havia visto, era
jovem. Agora, envelhecemos nós dois. Então chegou, e disseram para ele:
‘Olha! Esta senhora estava aqui no tempo da guerra.’ Então eu disse que
estava aqui e tinha conhecido um negro, Bandeira. E ele: ‘Eeeeh, Bandeira...’
Então me abraçou; abraçamo-nos e foi muito bonito nos rever. É ele de fato,
e por sorte tinha permanecido vivo, tinha salvado a pele; e lembrava daqui
e se lembrava de Bandeira... Esse Bandeira era um brincalhão. Era um rapaz
muito bom, me fazia brincar, correr. Não soube mais se morreu ou se conse-
guiu se salvar da guerra. Não soube mais nada dele. Eu gostaria de saber o
que aconteceu com ele. Mas acho que nem o sargento sabia...”
Mensagem: “Sabe o que diria de verdade aos jovens? Que procurassem
ser bons, sinceros e trabalhadores; e para não fazerem mais guerras; que

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340 VOZES DA GUERRA

deixem as guerras de lado. Amar uns aos outros e viver em paz. Isso eu diria
aos jovens! Porque eu me lembro de coisas da guerra que aterrorizam. Ti-
vemos de nos esconder, estar sempre fechados, ver mortos, ter medo, pen-
sar que podíamos perder nossos entes queridos... Em suma, é feio! Então
se poderia viver bem sem guerras; sem fazer guerras e sem mandar esses
pobres soldados ao massacre. Sim, porque isso é um massacre! Mandemos
esses jovens trabalhar... Pode-se viver em paz. De todo coração, eu mando
para eles uma cara saudação e que estejam bem. Que estejam em paz e não
em guerra”, conclui Iolanda.
Vittorio Bernardi nasceu em novembro de 1935, em Castel d’Aiano,
província de Bolonha. Para ele, a guerra começou quando tiveram início os
bombardeios a Vergato e Castel d’Aiano, em 1943: “Estávamos na comuni-
dade de Casino, em uma casa, no campo... Os aviões despontavam, vindos
de Bolonha e de Marzabotto; passavam sobre Vergato, soltavam algumas
bombas e iam embora. Bombardeavam de Crisana e de Porreta. E nós es-
távamos entre dois fogos, entre os alemães e os brasileiros... Nossa casa
ficava no alto de uma colina; não nos movíamos em torno da casa; se viam
qualquer coisa se mover, começavam os bombardeios que não terminavam
mais... dia e noite. Em uma única noite, 13 tiros de canhão atingiram a casa.”
Depois do massacre de italianos em Marzabotto, o pai de Vittorio viu
os alemães descendo pela estrada que passava ao lado de sua casa: “En-
quanto isso, vimos dois partisanos armados atravessando o bosque, indo
em direção ao local por onde passariam os alemães... Vimos os alemães,
que já estavam chegando perto das casas... Quando os alemães chegaram,
[os partisanos] deram duas ou três rajadas de metralhadoras e fugiram. O
que fizeram os alemães? Pararam... Outros chegaram e, dali, de Val di Vido
até Vergato, que são 5km, mataram todos que encontravam.” Eram as já
mencionadas represálias alemãs e fascistas.
Vittorio relata um episódio que o marcou profundamente: “Depois de
alguns dias, fizeram outro rastreamento em nossa casa. Passaram de ma-
nhã cedo, recolheram todos os civis que encontraram e os levaram para
uma posição onde deveriam ser mortos. Deixo claro que meu pai poderia
até ter escapado, mas como os alemães já o tinham visto e havia uma re-
gra: a história de que, quando um fugia, matavam todos... Se quisesse po-
deria até fugir, mas se deixou prender. Passou diante da casa; lembro que
disse: ‘Crianças! Vamos colocar a jaqueta.’ Era 17 de outubro, e já estava
um pouco fresco.”

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Apêndice VI 341

Segundo relata, esse grupo foi até um pequeno sítio, onde colocaram
uma forca presa a um carvalho. Posicionaram todos em fila. O pai de Vitto-
rio conseguiu fugir sem que os alemães percebessem, mas outro alemão,
que estava saindo de uma casa nas proximidades, tirou o revólver e dispa-
rou; acertou seu pai, que caiu: “Quando chegamos lá, não se via nada [de
sangue] nesse homem ou pelo chão. Então, minha mãe disse: ‘Mas como?
Não tem nada.’ Quem sabe teve medo e... Mas não, lembro que levantei um
pouco uma costeleta e vi sangue. Dava para ver o ‘fundo da bala’.”
Vittorio continua. “Então, os alemães disseram: ‘Um de nossos camara-
das foi morto, e um de vocês está morto. Queremos saber onde estão os par-
tisanos. Caso contrário, vamos matar todos.’ Imaginem: aqueles que esta-
vam para serem enforcados começaram a dizer: ‘Alemães... eles estão aqui,
estão lá, estão lá em cima e embaixo...’ Nós que estávamos ali fomos ver...
meu pai. Pegaram-me também e me fizeram levar uma caixa de munição
montanha acima... De qualquer forma, a situação foi esta: disseram que
mostrariam onde estavam os partisanos, e eles [alemães] deixaram todos
livres. Meu pai infelizmente deixou a pele.”
Em 30 de novembro, os alemães deram um ultimato à família: “Ou
vocês vão embora, em direção ao front americano, ou levamos vocês para
Zocca.” Era lá que estava o comando alemão. Com a família, Vittorio atraves-
sou as montanhas, rumo ao front brasileiro, perto de Castelnuovo: “Quando
chegamos lá em cima, era quase noite... Tínhamos um lenço branco; ba-
lançamos o lenço branco, porque diziam que era uma rendição e não ati-
rariam em nós. Em determinado momento, começamos a ver olhos e den-
tes... olhos brancos e dentes brancos... começamos a dizer: ‘Mas aqui não há
americanos, aqui tem bruxas!’ Lembro como se fosse agora... eu e meu pri-
mo estávamos na frente. Na verdade, víamos somente os dentes brancos e
os olhos brancos; e todos negros. Porque aqueles eram exatamente negros,
não eram mulatos. Eram negros, negros, negros. Eram altos, altos, altos.”
Vittorio continua: “Quando chegamos perto, lá em cima, exatamente do
front, começaram a nos chamar com as mãos e depois vieram os soldados.
Estávamos em nove ou 10 crianças; chamaram-nos e nos deram as mãos,
porque chovia e tinha lama por todo o lado... Lá havia uma fogueira, e nos
esquentamos bastante.”
Depois de serem conduzidos a Porreta e pernoitarem na prisão, foram
liberados: “Fomos para a praça, em Porretta... Encontramos algumas latas
velhas e fomos até os soldados para ver se nos davam alguma coisa para

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342 VOZES DA GUERRA

comer. Os soldados, pelo que me lembro, às crianças não davam comida


depois que já tinham comido; davam a elas uma parte antes de eles [mes-
mos] comerem. Tinham a marmita e davam um pouco de sopa, um pouco
de carne antes de comerem. Aos maiores davam o que sobrava, depois que
todos tinham avançado.”
Acervo: Wanda Pedroso

Acampamento de refugiados, nos Apeninos

Ainda lembra Vittorio: “Somente em um dia comemos assim porque,


no dia seguinte, fomos para perto da cozinha para ver se nos davam alguma
coisa para comer. Veio um senhor, sem dúvida era um oficial, pelo que me
lembro dos graus militares, e não queria que nos dessem mais nada. Não
queria que enchessem nossas latas. Colocaram-nos ali, de lado, e depois
que todos os soldados terminavam de comer, eles nos chamaram à cozi-
nha e encheram nossas latas com comida da marmita... Encheram com café,
com leite, um pouco de pão etc.
E todas as manhãs tomávamos café ali. Davam-nos as coisas para co-
mer. Davam-nos carne e pão para levarmos para casa... Quando iam até
Granaglione buscar suprimentos, ao voltarem os brasileiros sempre nos
jogavam uma forma de pão, pois tínhamos um pequeno terraço sobre a es-
trada. E eles sempre jogavam alguma coisa. Depois, minha mãe lavava para
os soldados; em suma, davam-nos afazeres porque precisavam. Depois, co-
nhecemos um oficial brasileiro que era médico. Era médico e desminador...
Então [mamãe] lavava para ele, fazia algum serviço, e ele sempre trazia
alguma coisa.
Os brasileiros, em suma, sempre nos consideraram, nos deram de co-
mer, deram cobertores; sempre nos trataram bem, bem, bem... Enfatizo bem
não porque vocês são brasileiros, mas porque era assim. Sempre comemos
o pão branco... Davam-nos sempre formas de pão; aquele pão branco, macio

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Apêndice VI 343

que agora seria como estes pães finos Kraft.” Vittorio não esquece um
soldado que para ele era especial. Descreve um negro baixinho, de um cora-
ção enorme: “Se chamava Quim; eu sempre me lembro dele. Ele trabalhava
na cozinha. Por isso, nós, crianças, íamos à cozinha, e nos davam sempre
alguma coisa. E nos davam muita coisa para levar para casa. Carne de peru
e miúdos de peru... Eles o cortavam, abriam e separavam miúdos. Então
esse Quim nos chamava e nos dava uma bolsa; dentro tinha essas coisas.”
Vittorio continua falando em solidariedade, agora mencionando um
médico: “Eu e meu primo tínhamos enfiado dois pregos nos pés... E veio
uma infecção tremenda. E esse oficial brasileiro... ele fez tudo; tratou, fez
um corte em nós dois porque tínhamos infecção nos pés. Então tinha a pe-
nicilina, que nós não sabíamos o que era. Tratou-nos e melhoramos. Fica-
mos ali, em Porretta.
Estávamos em 30 de novembro. Novembro, dezembro, janeiro e creio
que... em fevereiro, partiram os brasileiros e chegaram os americanos... Os
americanos eram um pouco mais duros do que os brasileiros; davam me-
nos. Porém, não levaram aquilo que tínhamos; o que tinham nos dado os
brasileiros. E nos davam comida também. E também porque sabe... já sa-
biam que minha mãe lavava, passava; em suma, fazia aquilo que eles preci-
savam, e então nos davam sempre alguma coisa.
Depois, acredito que foi em março, os americanos se retiraram. Fize-
ram a troca, e vieram os ingleses. Oh, os ingleses eram duros... Os ingleses
eram maus, inclusive com as crianças. Eram maus! Eu te digo que eu era
um pouco esperto... Pegava os cigarros que jogavam fora, aqueles fumados
somente pela metade... Eu tinha sempre os dedos machucados, porque pi-
savam com os sapatos em cima das minhas mãos. Não podíamos recolher
tocos de cigarro no chão; não podíamos pegar balas; não podíamos nada...
Nós recolhíamos tocos de cigarros para os civis... Se tinha um perto e abai-
xávamos para pegar um toco de cigarro, eles pisavam nas mãos. Mas pisa-
vam como se apaga um cigarro. Maus!
Então passaram por todas as casas e recolheram tudo que era [artigo]
militar. Nós tínhamos cobertores, panos, roupas etc. e também um belo
presépio. Eu lembro que os agarrei pelas pernas com os dentes. Queriam
levar embora o presépio... Imaginem! Para nós que tínhamos vivido no
campo... o presépio, assim... era uma coisa... uma coisa tão importante...
e, então, eles levaram embora... Não pudemos fazer nada. Os ingleses o
levaram embora.

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344 VOZES DA GUERRA

Depois avançaram, e nós deveríamos voltar para casa em 25 de abril,


mas retornamos no dia 27. No dia 25 de abril, o oficial brasileiro para o
qual minha mãe havia lavado e passado desminou o lugar. Ele era médi-
co, mas era também desminador... E nós não encontramos nem projéteis e
nem minas na nossa terra... E depois levou para nós uma caminhonete com
um reboque, cheio de roupas, comida etc., mas nós não estávamos em casa,
porque o caminhão não tinha ido nos buscar em Porretta; e ele deixou com
outra família, que não nos deu [repassou] nada. Pensamos que ele não ti-
nha deixado nada para nós. E quando esse oficial escreveu para minha mãe,
dizendo que havia deixado essas coisas, minha mãe respondeu para ele que
não havia encontrado o que ele tinha deixado. ‘Sim, deixei’, respondeu ele.
Ele deixou com aquela família, e eles não nos deram nada... Esse oficial que-
ria me levar para o Brasil... para estudar... Eu estudaria e depois de estudar
voltaria para casa, mas minha mãe... Naquela época ir para o Brasil parecia
o fim do mundo. Ele continuou a escrever até 1950.
Foto obtida na Itália

Ao retornarem, geralmente só encontravam destruição

Nós retornamos para casa só em 47. Nossa casa estava no chão. Restou
minha mãe com quatro filhos pequenos, e não encontramos nada em casa.
Encontramos somente uma balança, para pesar as coisas. Nós conseguimos
recuperar por intermédio de um amigo de meu pai, que era comerciante,
uma vaca... Da guerra nós recuperamos isso. Muito pouco, porque meu pai
tinha o hábito de esconder as coisas... Ele tinha, naquela época, 400 mil li-
ras; e 400 mil liras em dinheiro era uma bela soma. E tinha enterrado, mas
não se sabia onde e não encontramos.
A guerra é sempre amarga para todos, mas para nós, que perdemos o
pai, foi muito, muito amarga... não pudemos fazer nada... A nós não faltou
nada durante a guerra porque os brasileiros nos deram o que comer; os

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Apêndice VI 345

americanos, a mesma coisa; e os ingleses levaram embora o pouco que


tinham nos dado os soldados. É verdade! Eu disse também aos ingleses,
em Castel d’Aiano, quando vieram e me perguntaram. Eu disse: ‘Ah! Vocês,
ingleses... Vocês não têm culpa, mas os ingleses, como soldados, foram
terríveis conosco.’”
Vittorio, caso encontrasse um veterano brasileiro, “diria sempre que
ele é o máximo. Daria um abraço como se fosse um irmão, sinceramente”. A
emoção cala suas palavras.
Bianca Bernardi, irmã de Vittorio, nasceu em 1939, no município de
Castel d’Aiano, província de Bolonha: “Nós éramos uma família de quatro
irmãos mais meu pai e minha mãe. Porém, o destino levou muito cedo nos-
so pai. O destino... A guerra! Disseram que ele procurou a morte, mas não é
verdade... porque nesse fato todos erraram, todos. Se meu pai não estivesse
lá, não seria morto... Os alemães erraram, os partisanos erraram; todos que
estavam ali erraram muito, e sobrou para nós.
Então, veio a miséria, a ingratidão dos parentes... nem sei como chamar.
Digo a verdade: o Senhor que me castigue, mas não fizeram o bem a nin-
guém. Porque todos tinham medo de ter de nos dar uma fatia de pão. Essa
é a verdade! Depois, após a morte de meu pai, que meu irmão já explicou,
chegou o período em que éramos refugiados... Porque os alemães chegavam
armados até os dentes, e minha mãe me pegava nos braços, pois eu era a
menor, e dizia: ‘Se nos mandarem embora, o que vamos fazer? O que vamos
comer?’ E eles diziam: ‘Vocês devem ir embora, se não os levamos para a
Alemanha, para os campos de concentração...’ Então, o medo nos fez partir.”
Bianca descreve a travessia das montanhas: “Eu trazia sempre pelas
mãos meu primo, que tinha um ano a menos do que eu. Eu tinha 5 e ele 4
anos. Nós tínhamos também outro priminho, que fazia parte da família do
irmão de meu pai, que nasceu em abril de 1944, e era pequenino. Ele cho-
rava, então minha tia tinha de colocar um lenço em sua boca para que os
alemães não ouvissem, até que chegássemos lá em cima, em Marano, pois
as montanhas estavam todas cercadas. Antes de chegar a Porretta, onde
disseram que estavam os aliados, minha mãe e meu pai começaram a ba-
lançar o lenço branco... Para descer, era uma escadaria cheia de água, e,
quando chegamos ao final, tínhamos lama até nos cabelos.
Encontramos os brasileiros, que tinham uma caminhonete; disseram-
nos para continuarmos andando, que iríamos encontrar um caminhão, que
nos levaria até Porretta, onde havia muitos refugiados de nossa região.

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346 VOZES DA GUERRA

Mas antes — volto atrás, um pouco antes do lenço branco —, no castanhal


encontramos uma casinha usada para secar castanhas. Ali havia pessoas
de Vergato que nos disseram: ‘Estarão bem aqui conosco. Não vão lá para
baixo para que os levem a Porretta, vamos todos amanhã.’ Nós não ficamos
e, à noite, bombardearam ali, e alguns ‘deixaram a pele’; nem todos mor-
reram. Deu para sentir que nós não deveríamos morrer. Deveríamos so-
breviver até aqui. Depois... Recomeço a história: fomos pela escada até lá
embaixo. Lá nos embarcaram e nos levaram a Porretta, às prisões. Ficamos
ali somente aquela noite e, pela manhã, saímos. Fomos para uma casa em
ruínas... E nos estabelecemos ali, porque não tinha nada de melhor.
Minha mãe, minha tia e meu tio foram até os camponeses procurar
palha. Fizemos as camas com a palha, mas, certo ponto, a cama caminhava,
porque com os piolhos que havia, a palha caminhava. Porém, sempre a
beatitude — eu chamo assim — dos brasileiros e americanos, que nos
deram aqueles belos potes verdes com pó; depois de uma semana, não havia
mais esses piolhos. Portanto, nos salvaram também destes... E vivemos
com as cobertas deles, que eram de um tecido militar, até que chegaram
os ingleses, que levaram tudo. Porém, quando eles chegaram, não era mais
inverno, era já, mais ou menos, março... vamos adiante!
Imagem obtida na Itália

Soldado brasileiro com os italianos


Então os rapazes — meu irmão não disse, pois deve ter esquecido
— trabalharam também de serventes na cozinha, descascando batatas,
cenouras, sempre pelo fato de aquele militar pequeno, escuro, que
trabalhava na cozinha e que os levava para a cozinha, mas sempre com o
consentimento do comandante... Então... um pouco nos davam, um pouco
levavam para casa, pois trabalhavam ali, e um pouco porque os brasileiros,

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Apêndice VI 347

à noite, vinham em três ou quatro para nos trazer comida... Traziam-nos


um pouco de pão, potes de queijo fundido... E traziam também chocolates,
traziam frutas em potes.
Mas sigamos em frente: Se tinham alguma coisa também de vestuário...
davam-nos calças, pois tínhamos poucas roupas para usar. Porém, coletes
e jaquetas não, pois tinham as divisas. E foi assim. Eles nos trataram bem...
como senhores. Nós podemos dizer — eu tenho 73 anos e espero que acre-
ditem em mim — que fomos tratados melhor pelos brasileiros e pelos ame-
ricanos que pelos nossos parentes, inclusive depois. Sim... com isso eu disse
tudo. Ao contrário, os outros vieram para nos levar tudo embora. Porque
nós tínhamos dois presépios. O primeiro, os ingleses pegaram; o outro, os
donos da casa nos fizeram deixar, porque tínhamos que pagar o aluguel,
naquela casa em ruínas.”
Bianca fala na mágoa que a acompanhou por longo tempo: “Agora volto
atrás... Eu não era a menor de toda a família, porém era aquela entre meus
primos que tinha perdido o pai... Eu tinha alguma coisa que trouxe dentro de
mim por mais de 20 anos... Eu não quero chamar de ódio, porque não se deve
ter, porém passei dos limites... Vinham os caminhões que passavam abaixo
da janela, na rua Mazzini, em Porretta, e tinham os soldados alemães feridos,
sem pernas, sem braços, e eu fazia o gesto mais feio que existe no mundo...
Minha mãe dizia: ‘Qualquer hora você cai lá embaixo na rua...’ Eu cuspia ne-
les... Uma vez aconteceu que um [deles], que estava melhor, fez o mesmo ges-
to... Eu tinha 5 anos, mas entendi e não fiz mais. Ninguém tinha me ensinado;
veio de dentro... Não fiz mais porque... Penso sobre isso agora: Pobre... Pode
ser que ele também não tivesse culpa; fez aquilo que devia fazer. Porém, ver
assassinar seu pai é algo que não se deveria ver nunca.” É o tempo o senhor
da razão, cicatrizando algumas das feridas deixadas pela guerra.
Bianca diz que “só os brasileiros davam comida a todos. Não digo isso
porque vocês estão aqui. O coronel [adido militar] me disse que [o Bra-
sil] não era uma nação rica [na época da guerra]. Então eu perguntei: ‘Me
desculpe, como vocês faziam para ter a possibilidade de ter uma cozinha
grande com tanta coisa para dar comida? E não é que davam só a nós, havia
os outros...’ Então ele me disse: ‘Estávamos aliados aos americanos. Então
tínhamos a possibilidade, pois as coisas chegavam ao front, e podíamos dar
a comida que nós não comíamos”.
Ela descreve o encontro com uma delegação de brasileiros: “Um belo
rapaz, que devia ter uns 30 anos, disse: ‘Senhora! Poderia falar um minuto

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348 VOZES DA GUERRA

com a senhora?’ O destino... Eu disse: ‘Sim, diga!’ Ele disse: ‘Eu gostaria de
saber se a senhora... vejo que tem certa idade; pode me dizer alguma coisa...
lembra-se da última guerra, a Segunda Guerra Mundial, que se passou por
aqui; da Linha Gótica?’ Eu disse: ‘Ah, posso dizer aquilo que sei, mas me
lembro do correto, sim porque eu era pequena, porém...’ Então, eu disse que
poderia dizer aquilo que falei para vocês. Que nós estávamos refugiados
em Porretta, que os brasileiros e americanos nos trataram bem... Agora que
vejo o senhor, agradeço ao senhor, mas quem sabe a quem mais deveria
agradecer... Então ele me disse: ‘Bem, então façamos de conta que eu sou
filho de um daqueles militares da época da guerra; a senhora está aqui e
perdeu seu pai; façamos de conta que somos irmãos, nem que sejamos ado-
tados...’ Daquele abraço vou lembrar enquanto viver, porque tinha imagina-
do tanto... Se um dia vir alguém, quero agradecer. E depois nós conhecemos
aquele senhor, o que já contou meu irmão. Pessoas encantadoras, melhores
que o pão.”
Bianca se emociona: “Estamos aqui... Sinto uma grande vontade de cho-
rar... É o que faço quando os vejo... Porque eu tenho dentro de mim uma re-
cordação muito grande. Porque aqueles militares que me pegavam nos bra-
ços e diziam: ‘Venha aqui comigo, pois amanhã à noite te trago chocolate...
Agora vem aqui cantar comigo.’ Eu não esquecerei nunca... Mesmo porque,
sabe... a falta de meu pai pesava... e encontrar alguém que me pegasse nos
braços era uma grande coisa. Porque minha mãe, coitadinha, tinha quatro
filhos e fazia o que podia. Porque tinha outras coisas para fazer. Essa foi a
nossa aventura!”
Giancarlo, marido de Bianca desafia: “Agora faça a canção que cantavam
os brasileiros”. “Ah... Mas agora estou muito emocionada... Ah! Ele [o irmão
Vittorio] vem cantar comigo”, diz Bianca. Emocionados, Vittorio e Bianca
cantam: “Quem parte leva saudade de alguém, que fica chorando de dor,
por isso não quero lembrar quando partiu meu grande amor... Ai, ai, ai, ai...
Está chegando a hora; o dia já vem raiando meu bem; eu tenho de ir embo-
ra.” Vittorio fala: “Nós sabemos cantar somente isso.” Bianca complementa:
“Temos a voz muito ruim, mas acredito que conseguimos.” Discordo: a mú-
sica entoada por vozes tão doces foi dos mais belos sons que ouvi na Itália.
Bianca novamente se emociona: “A música nos faz lembrar deles. Eles
nos ensinaram... Vinham à nossa casa à noite e diziam: ‘Agora vamos cantar
para ter um pouco de alegria.’ E pensem; eu tinha 5 anos, não mais do que
isso.” Vittorio complementa: “Não me lembro bem do nome; lembro aquele

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Apêndice VI 349

da cozinha, aquele negro que se chamava Quim. Certas coisas não se pode
esquecer. Quando nos jogavam uma forma de pão branco, que nós comía-
mos como açúcar, como doces. Rapazes! Acreditem em mim... precisariam
passar por isso para saber”
Bianca diz: “Eu deixo clara uma coisa... em casa às vezes me repreen-
dem. Porém, eu não sou capaz de — qualquer estrangeiro que chega à mi-
nha [porta] — mandá-lo embora. Um euro, dois euros preciso dar. Porque
digo... alguém estendeu a mão para nós. Então, por que eu não devo esten-
der a mão para eles? Por que eles, os brasileiros, para nós eram estrangei-
ros, quem os conhecia? Porém, nos deram pão... por seis meses.”
Fabio Gualandi nasceu em Gaggio Montano, em 1935: “Estive duran-
te cinco meses com os soldados brasileiros. O soldado brasileiro chegou
aqui em 1º de novembro. E chegou não como um exército de conquista.
Compreendeu rapidamente a situação dos habitantes, que depois de tanto
tempo festejavam a libertação. O soldado brasileiro permaneceu aqui exa-
tamente por cinco meses. A linha de frente estava 1km acima. Eles gosta-
vam de estar aquecidos e em casa a falar.
A população, tendo em casa tantos soldados, se sentia segura, protegi-
da. Não era mais como antes, que era fugir daqui, fugir de lá; esconder-se ou
não se esconder. E realmente todos nesta região lembram-se dos soldados
brasileiros com afeto e com bondade. De um dia para o outro, de viver com
medo, de viver com pouca comida... quando eles chegaram, chegou comida,
chegou chocolate, chegou tudo! E se tornaram o soldado, a população e a
comunidade verdadeiramente amigos.
Imagem obtida na Itália

Capela de Ronchidos destruída pelos bombardeios


Soldado brasileiro contempla imagem sacra intacta

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350 VOZES DA GUERRA

Durante a guerra, aconteceram coisas muito, muito terríveis. Matan-


ças... A vida não valia nada: era um número. Se pensava em um número e
pronto... Sobraram 10, sobraram oito. Não se podia levar os mortos para o
cemitério... não tinha nem ao menos um caixão... Era algo que, quem não
experimentou, não pode imaginar como era. Como tantos talvez dissessem
‘me deixe morrer’, porque não podia mais... Os brasileiros nos deram um
pouco do bem da vida, de viver”, ressalta.
“Eu já fui ao Brasil 9 ou 10 vezes. Fui acolhido muito bem. E todos os
amigos que eu tinha — que agora são menos — não viam a hora de eu che-
gar; vinham me apanhar no aeroporto... Eu amo o Brasil, talvez mais que a
Itália. Compreendi que, se você tem um amigo brasileiro, tem um verdadei-
ro amigo... São tantos que já morreram; eu sinto muito, pois perdi verda-
deiros amigos. E quando eles vêm, são acolhidos por todos... Os pracinhas
merecem! Foram, naquela época, verdadeiros amigos... Só com a vinda dos
brasileiros é que começamos a viver e a reviver, amar a vida, ter amigos,
todas aquelas belas coisas”, conclui Gualandi.
Giuliana Menichini, moradora de Pistoia, diz que, após 8 de setem-
bro de 1943, quando foi divulgado o armistício com as tropas aliadas, a
guerra começou a mostrar-se mais real, pois começaram os bombardeios
e as represálias dos alemães contra o povo italiano: “Foram meses e anos
de medo, de dor, porque muitos morriam... No momento que passaram a
nossos inimigos, ficamos muito retraídos; os alemães levavam os homens
para a Alemanha. Era uma situação de não liberdade, muito difícil... Antes
de os Aliados chegarem, enquanto os americanos bombardeavam a cidade
para que os alemães retraíssem, nós éramos sfollato. A vida, como se diz, é
como uma medalha: tem sempre dois lados — não é tudo negativo e nem
tudo é positivo; porém, naquele período prevaleceu o medo, o sofrimento.
Tivemos um contato muito breve com os ingleses, que não nos davam
muita confiança... Com os americanos tive contato bastante superficial;
ficava com a impressão de que eles não vinham para nos libertar... Não é
que fossem soberbos, mas era algo como eu tenho muito; vocês não têm
nada... Portanto, o que eu dou — uma camisa, um sapato, um cigarro ou
comida — dá no mesmo... Vocês não têm nada mesmo; peguem tudo...”
“Quando as tropas americanas, inglesas e todas as tropas aliadas che-
garam a Pistoia, nós começamos a sentir certa liberdade.” Giuliana destaca:
“Quando chegaram os brasileiros, foi uma impressão muito boa; sobretu-
do de liberdade, porque, até aquele momento, não tínhamos liberdade. A

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Apêndice VI 351

diferença é que os brasileiros não davam... Eles dividiam! Se tinham café,


levavam café em casa... se tinham chocolate, levavam chocolate em casa... o
mingau, o pão branco. Era uma divisão, o que era muito diferente. Era como
confraternizar com os brasileiros. Eles se integraram logo à família. Acre-
dito que a origem latina ajudou; era uma convivência muito boa, familiar.”
Giuliana ressalta que, a despeito da guerra, a vida continuava: “Lem-
bro que jovens da minha idade continuavam a viver, de qualquer maneira,
procurando comida, pois tudo era racionado; havia pouca coisa, mas ha-
via momentos em que conseguíamos nos divertir, brincar um pouco, rir...
Na rua em que eu morava, chegou uma tropa brasileira de caminhão, com
uma estação retransmissora, com vários soldados... Como não os conhecí-
amos, ficamos um pouco retraídos. Depois os brasileiros quiseram fazer
uma festa. A proprietária da casa onde eles moravam convidou as moças da
redondeza para irem a essa festa. Ficamos com receio, não muito dispostas
a ir, mas fomos; eu e várias amigas. Começamos a conversar e ficou... uma
impressão de simpatia.”
Giuliana diz que, vencida a desconfiança inicial, a convivência com os
brasileiros passou a ser muito boa e até familiar: “Os brasileiros começa-
ram a entrar nas casas levando chocolate, café, mingau... O convívio com os
soldados brasileiros era bom porque, assim que chegavam às casas, trata-
vam as pessoas por ‘pai’, ‘mãe’; eu era a irmãzinha. Foi um encontro muito
bom, afetivo, muito belo, de amizade, de confiança. De nós para com eles e
deles para conosco.”
Ela recorda o relacionamento com o sargento Miguel Pereira, com
quem veio a se casar: “Ele era integrante da equipe de transmissões — era
radiotelegrafista. O caminhão em que estava montada a estação ficava bem
na frente da minha casa. Ele me cumprimentava: ‘Bom-dia, senhorita.’ Eu
não dava muita bola não; sempre um pouco indiferente. Depois, ele fez
amizade com meu pai, que tinha lutado na Primeira Guerra Mundial e era
mutilado; tinha um braço ferido, com uma cicatriz bem grande. Meu pai
era operário em uma fábrica de Pistoia, e ele o cumprimentava pela manhã
quando saía e, à noite, quando voltava... Depois, meu pai o convidou para vir
à nossa casa; ele levava café, chocolate... E assim ele foi entrando em nossa
casa, e digamos assim, no meu coração. E também no do meu pai e da minha
mãe, que o queriam muito bem, verdadeiramente.”
Ao final da guerra, diz Giuliana, “o general Mascarenhas de Moraes in-
cluiu Miguel na guarda do cemitério, e ele permaneceria por um ano. Em

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352 VOZES DA GUERRA

junho de 1945, noivamos e planejamos casar em outubro. Mas, quando foi


publicado o boletim oficial dos componentes da guarda ao Cemitério Mili-
tar Brasileiro de Pistoia, Miguel não havia sido incluído... Ele saiu [voltou ao
Brasil] em setembro de 1945, pensando em voltar com a segunda guarda...
Mas não foi assim, porque a segunda guarda foi composta por soldados que
não tinham participado da guerra. Nesse ponto, pensamos em casar por
procuração, para que eu pudesse viajar para o Brasil, porque eu tinha 18
anos e, naquele tempo, era inimaginável que uma moça de 18 anos viajasse
sozinha de navio, sobretudo para casar lá. Então casamos por procuração.
Acervo: Giuliana Menichini

Fotografia de Miguel Pereira: “A Giuliana. Como se trabalha no campo de batalha.


Recordação com amor. (a) Miguel Pereira. 25-12-44. ITÁLIA.”

Eu iria embarcar para o Brasil com outra moça que também se casara
por procuração e, nesse ponto, Miguel escreveu para que eu não embarcas-
se, porque ele havia conseguido ser incluído na terceira guarda, que chega-
ria em fevereiro de 1947. Chegaram em 5 de fevereiro de 1947.” Recorda
que não foi um período fácil; era casada por procuração, mas não havia vida
em comum: entre eles havia um oceano e só se comunicavam por carta.
“Depois que ele voltou [à Itália], passamos uns dois dias sem começar a
vida em comum. Fomos à minha paróquia pedir uma bênção e só então co-
meçamos nossa vida em comum. E foi assim que começou! Miguel deveria
ficar dois anos com a guarda, com a qual havia chegado aqui; era composta
por um tenente, Miguel [sargento], um cabo e quatro soldados. Depois de
um tempo, veio uma ordem de que todos deveriam regressar [ao Brasil],
e que deveria ficar somente uma pessoa de guarda ao cemitério, e ficaria
Miguel Pereira por dois anos, quando haveria uma troca”.

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Apêndice VI 353

Giulianna conheceu várias italianas que se casaram com brasileiros. A


maioria adaptou-se bem à nova pátria. Outras tantas não se acostumaram
e retornaram à Itália, sozinhas. Como o marido, o veterano Miguel Pereira,
permaneceu como guardião do cemitério e, depois, do Monumento Votivo
Militar Brasileiro, em Pistoia, o casal fixou residência na Itália. Contudo, diz
que, “chegando ao Brasil pela primeira vez, eu tive a impressão de voltar,
não de chegar pela primeira vez. Foi uma impressão maravilhosa. Com to-
das as pessoas que falava me sentia bem. Com os parentes, foi amor à pri-
meira vista. Eu me sentiria bem se tivesse ficado, pois estaria com a pessoa
com que me casei”.
“Creio que hoje não se ensina muito na escola sobre o que foi a história
do século passado. Portanto, os jovens não têm muito conhecimento sobre
os acontecimentos do século passado, que foram grandes acontecimentos,
e não estão muito atentos para conservar [a paz], porque não têm essa me-
mória; mas deveria ser uma luta comum, pois guerras não deveriam mais
existir, em nenhuma parte do mundo. Os jovens poderiam ter essa consci-
ência e lutar por isso”, conclui Giuliana.
Francesca Coniglio Ducceschi nasceu em Palermo-Itália, em 1920.
Reside em Porto Alegre, onde a conheci em 2011, durante a Feira do Livro,
na qual expunha seu livro, em edição bilíngue O Catavento da Vida (La Gi-
randola della Vita). Em certo momento, perguntou-me: ‘Por que o Brasil foi
lutar contra a Itália? O que tinha feito a Itália contra o Brasil?’
Posteriormente, em correspondência eletrônica, escreveu-me:

No seu livro (Longa jornada — Com a FEB na Itália), leio que o


Brasil viu-se envolvido (na guerra) com base na Carta do Atlân-
tico, que previa o apoio recíproco entre os países americanos
em caso de ataque. Foi com base em um tratado parecido que
a Itália aliou-se à Alemanha e, sinceramente, foi um desastre.

Segundo Francesca, que era professora em Florença antes e durante


a guerra, a Itália aliou-se à Alemanha, quando a Inglaterra, em represália
à invasão da Etiópia pelos italianos, impôs sansões comerciais e políticas,
interrompendo o fornecimento de matérias-primas para a indústria
italiana. Assim, a associação aos alemães teria se tornado uma questão
de sobrevivência.
Para Francesca, a versão de que submarinos alemães e italianos na-
vegavam pelo Atlântico Sul e atacavam navios brasileiros merece ser mais

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354 VOZES DA GUERRA

estudada: “Quem fez isso foram os americanos, para obrigar o Brasil a se


juntar a eles. É difícil acreditar, pois a situação para a Itália e Alemanha
era tão complicada que quase não tinham condições de defender o próprio
Mediterrâneo dos americanos e dos ingleses.”
“No momento em que a Itália viu que a guerra estava perdida, tratou de
pedir armistício, o que a Alemanha não quis fazer, pois para eles a situação
era ainda pior. Assim, os alemães se revoltaram contra os italianos, vindo a
massacrá-los. Foi nessa ocasião que eu perdi um de meus irmãos, Giovanni
Coniglio, aos 22 anos, estudante de faculdade, pois os alemães afundaram
o navio no qual estavam os militares italianos que voltavam para a casa.”
Francesca continua: “Meu marido não tinha sido convocado para a
guerra, pois fora considerado arrimo da família, por ter meu sogro perdido
as pernas durante a Primeira Guerra Mundial; mas no fim a situação era tão
grave que estavam chamando até guri de 16 anos. A esse ponto foi chama-
do também meu marido, o qual, para não ser deportado para a Alemanha,
desertou e foi se esconder no palheiro do sitio do avô dele, junto com ou-
tros quatros amigos. Acabada a guerra, saíram do esconderijo. As primeiras
pessoas que encontraram no meio do campo foram uns pracinhas brasilei-
ros. Tanto meu marido quanto os outros rapazes estavam de barba compri-
da, e um dos pracinhas perguntou se naquele vilarejo não tinha barbeiro,
ao que meu marido perguntou se ele tinha vindo à Itália para fazer a guerra
ou para passear. Decerto não tinha ideia do que tínhamos passado e de que
não tinham tido condições de fazer a barba.”
“Quando os pracinhas apareceram em Pistoia, dois dos meus cunhados,
ainda adolescentes, conheceram alguns deles. Certo dia, eles levaram um
dos pracinhas para casa. Se não lembro mal, o nome era Pedro [de Jesus]
Parada, morador nos arredores do Rio de Janeiro, me parece Nova Fribur-
go. Esse rapaz foi considerado pelos meus sogros como um filho, sempre
vinha à nossa casa e almoçava ou jantava conosco. Certa vez, ele recebeu
um pacote da família e me deu sem nem sequer abrir; eu abri e disse: ‘Tem
aqui uma carta da tua família e doces’, que comemos juntos.
Pedro falava tanto do Brasil que meu marido acabou se apaixonado por
essa terra e a escolheu como segunda pátria, depois da guerra. Dois anos
depois, mandou-me a passagem para eu encontrá-lo no Brasil. No navio em
que viajei, conheci uma moça que estava vindo ao Rio porque tinha casado
na Itália, por procuração, com um pracinha, e só então iria encontrar-se
com o marido.

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Apêndice VI 355

Acervo: Francesca Ducceschi

Pistoia, 1956 – Francesca, junto ao filho, deposita flores no Cemitério Brasileiro,


a pedido dos colegas e alunos. À direita, Miguel Pereira, curador do cemitério

Quero dizer que os pracinhas eram bem vistos, e muitas mulheres se


apaixonaram por eles e muitas delas casaram. Do pracinha que cuidava
do Cemitério de Pistoia, se não lembro mal, chamava-se Miguel Pereira,
casou-se com uma amiga de infância, vizinha de meu marido.
Depois de alguns anos no Brasil, naturalizei-me brasileira e fui nomea-
da professora de artes em Rio Pardo-RS. Os colegas sabiam que durante as
férias eu ia à Itália, pois lá estava a família — minha e de meu marido, razão
pela qual eu ia sempre a Pistoia. Em uma dessas oportunidades, pediram-
me para levar um buquê de flores ao cemitério dos pracinhas brasileiros,
desejo que eu atendi com muito prazer. Assim comprei as flores, convidei
um jornalista, o qual fez a reportagem; quando voltei ao Brasil, levei o jor-
nal para os colegas.”
É importante destacar que a admiração pelos brasileiros não se
restringe aos que conviveram com eles durante a guerra. Muitos jovens e
adultos de gerações que sucederam à guerra também conhecem e divulgam
os feitos dos pracinhas; receberam dos pais e avós a missão de manterem
acesa a chama de gratidão e respeito que arde no peito daqueles que convi-
veram com os brasileiros que “fizeram a guerra” na Itália.
Giovanni Sulla, natural de Montese, é um dos maiores divulgadores
da FEB na Itália. Historiador e colecionador de artigos militares, comprova
sua admiração ao mostrar a “cobra fumando” tatuada no braço. Entretanto,
é ao falar dos soldados que cruzaram o oceano para libertar sua terra que
fica mais evidente o amor que sente pelos pracinhas.

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356 VOZES DA GUERRA

Em sua terra natal, está materializada sua admiração: no museu loca-


lizado na torre do castelo medieval de Montese, uma seção é dedicada à
FEB. Cada cenário, conjunto ou peça tem uma história. O entusiasmo com
que as relata é de encher de orgulho qualquer brasileiro que tem a oportu-
nidade de assistir à sua exposição. Sulla diz: “Em anos e anos de pesquisa,
em vários lugares, em várias casas, em Gaggio Montano, Montese e outras
localidades, encontrei a maioria do material que está nesta sala. É uma sala
única no mundo porque fora do Brasil não existe outro museu dedicado à
FEB. Aqui [cenário] procurei realizar um posto de primeiros-socorros com
um padioleiro da FEB. Imagina... Esta gandola [blusa de combate] que tem
nas costas uma marca de estilhaço foi doada por uma senhora que esperava
que o soldado voltasse para pegar sua farda após a guerra... Todo material
é original. Temos a farda de esquiador. Norte-americana, mas devemos nos
lembrar de que muitos brasileiros, pracinhas brasileiros, foram treinados
para usar este tipo de material, o esqui; e lembrava sempre a major Elza
Cansanção Medeiros que, de toda a tropa brasileira, os melhores esquiado-
res eram os índios do Mato Grosso, porque os índios eram muito flexíveis e
muito adaptados a usar o esqui.”
Evandro Fernandes Cordeiro

Giovanni Sulla no espaço do museu destinado à FEB

Para Sulla, a sala do museu dedicada à FEB é especial, pois foi a FEB
que conquistou Montese: “Nesta cena tem caixa de comida, caixa de mu-
nição, tudo encontrado nos lugares de combate. Nesta vitrine coloquei
material de minha coleção dedicado especificamente à FEB. Já falei que
muito material era de proveniência norte-americana, mas na realidade o
Exército Brasileiro, o governo brasileiro produziu muito material militar
no Brasil. Primeiro porque era motivo de orgulho. Como os soldados bra-
sileiros tinham orgulho? Ok! O capacete é norte-americano, mas o símbolo
é febiano; é da FEB; é brasileiro! É muito importante lembrar a todos que

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Apêndice VI 357

esses 25.350 homens eram integrantes do V Exército [americano], mas


eram soldados brasileiros independentes, da 1ª Divisão Expedicionária
Brasileira. Muito interessantes são estes pares de luvas feitas de lona pe-
las mulheres italianas para os soldados brasileiros em troca de comida ou
qualquer pequeno presente.”
Em seu acervo pessoal, em Montese, Sulla mantém muitas peças que
marcaram a trajetória da FEB em solo italiano. Segundo diz, o valor mate-
rial não é o mais importante. Cada objeto, além do valor histórico, traz agre-
gado o valor subjetivo, para o qual não há parâmetros em valor material.
Entre os objetos, destaca o oratório completo que pertenceu ao padre Achi-
les, do 6º RI; a certidão de sepultamento do frei Orlando; e o símbolo oficial
da cobra fumando pintado à mão. Contudo, Sulla dá destaque especial a
uma maca para transporte de feridos: “Aqui vemos a impressão em sangue,
provavelmente da parte superior do corpo de um soldado brasileiro... Eu
a chamo de a minha Senhora Sagrada. Ela traz a marca de um soldado que
saiu de sua pátria para conquistar a liberdade para a minha gente, para o
meu país.”
Sulla enfatiza a gratidão para com os brasileiros: “Lembremo-nos sem-
pre que este museu foi criado por mim e pelo município de Montese, mais
do que para os estudiosos ou colecionadores de materiais da FEB, para as
novas gerações de italianos e brasileiros. Este é um museu didático, ótimo
para as escolas, para se aprender uma parte muito importante da história
da Itália e do Brasil. Repito! Naquele período de 1942 a 1945, o Brasil doou
ao mundo o melhor da própria juventude. No Exército Brasileiro, foram se-
lecionados 25.350 dos melhores homens, com o melhor treinamento possí-
vel e foram mandados para combater na Itália pela minha liberdade e pela
minha democracia.”
Giuliano Cappelli, custódio da capela de Nossa Senhora de Lourdes e
historiador em Staffoli ao saber que os brasileiros haviam construído uma
gruta no acampamento do Depósito de Pessoal, incansavelmente procurou
por ela, até encontrá-la em um parque florestal gerido pelo Estado: “Todos
sabiam que ela existia, mas ninguém tinha entendido a importância deste
monumento. E graças também a Giovanni Sulla, do qual tive o incentivo de
vir a este lugar e encontrar este monumento. Dessa visita nasceu a ideia
de fazer uma cerimônia com a Embaixada do Brasil em Roma. Daí nasceu
uma série de cerimônias que desencadearam o interesse dos prefeitos, dos
municípios e, também, do povo da região. Foi um prazer fazer a restauração

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358 VOZES DA GUERRA

do monumento; havia absoluta necessidade porque havia passado muito


tempo, e ele estava muito danificado.”
Cappelli explica que o monumento é a representação simbólica da Gru-
ta de Nossa Senhora de Lourdes, cuja imagem é colocada no local a ela des-
tinada somente nas cerimônias, cabendo exclusivamente ao adido militar
do Exército na Itália fazer isso. Com a restauração, efetuada com o apoio
da Embaixada do Brasil em Roma e do adido militar, foi possível a recons-
trução das peças que faltavam, e o monumento reassumiu a configuração
que tinha em 1945: “A imagem da Nossa Senhora original infelizmente se
perdeu logo após a guerra. No dia da cerimônia, é colocada uma réplica
pelo adido militar do Brasil, que é a única pessoa que pode fazer um gesto
destes, porque foi feito por vontade do Exército do Brasil, e só o Exército
do Brasil, digamos, pode reposicionar a imagem de Nossa Senhora em seu
lugar original.
Acervo: MNMSGM

O oratório, em 1945
No local em que nos encontramos [junto à gruta], se reuniam o povo
italiano e o povo brasileiro nas cerimônias. E isso é muito importante, por-
que uniu simbolicamente esses dois povos na época da guerra; união essa
que permanece até hoje. Tanto que participam das cerimônias os prefeitos
da região, quais sejam, de Santa Croce Sull’Arno, de Fuccechio e de Castel-
franco di Sotto e também a população local. Penso que, neste mundo cheio
de divisões e de guerras, este lugar tenha uma importância excepcional e é
uma página partilhada da história do Brasil e da Itália.” Capelli ressalta: “A
importância histórica deste monumento é enorme: primeiro porque é uma
página dividida da história do Brasil e da Itália; depois, porque também é

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Apêndice VI 359

um ponto de agregação de dois povos em um mundo cheio de tensões, de


guerras e tantas outras coisas... Devemos valorizá-lo e entender sua impor-
tância, porque devemos sempre dar muita importância àquilo que une e
procurar não pensar naquilo que divide.
Estamos orgulhosos em contribuir com sua manutenção e convidamos
todo o povo do Brasil a tomar conhecimento deste tesouro que deixaram na
Itália e convidamos todos para virem até este lugar em peregrinação. Jul-
go que este lugar tenha uma importância também em nível espiritual, pois
se trata de um monumento construído por pessoas que, neste momento,
talvez não estejam mais vivas e, depois, houve uma série de mortos... Gra-
ças também às suas memórias e honra, é que me dedico com esta paixão à
manutenção do monumento, e isso me distingue. Em honra aos mortos e à
daqueles que combateram pela libertação e restauração da democracia em
nosso país. É, sobretudo, um gesto de gratidão.”
Nas placas afixadas à base do monumento, consta: “Homenagem do
Exército Brasileiro — Do município de Santa Croce Sull’Arno e ao município
de Castelfranco di Sotto, na ocasião do 60º aniversário da presença na Itá-
lia da FEB — Força Expedicionária Brasileira. Montefalcone-Staffoli, abril
de 2005”; e “11º Batalhão de Depósito de Pessoal da Força Expedicionária
Brasileira, acampando neste lugar, durante a Grande Guerra Mundial, colo-
cou uma recordação sacra inspirada na tradição católica do povo brasileiro.
Solenemente inaugurado em 11 de março de 1945.”
Giuliano Tessera, professor de história e filosofia, morador de Mi-
lão, conta: “Até cinco, seis anos atrás, eu não conhecia esse pedaço da his-
tória, que chamei de ‘Pouco Notória História da Itália’. Obviamente que,
como professor, estudei a Segunda Guerra Mundial e vários acontecimen-
tos, mas os detalhes e, sobretudo o ‘papel’ dos brasileiros nunca chegara
a conhecer.”
Tessera recorda que, durante uma viagem de instrução escolar, quando
conduzia estudantes italianos e dinamarqueses para visitar a primeira das
repúblicas partisanas, em Modena, ficou sabendo que o Brasil combatera
na Itália. No Castelo de Montefiorino, a guia mostrava vários aspectos
daquela República. Terminada a explanação, Tessera ficou surpreso com a
presença de uma Bandeira do Brasil: “Eu disse para mim mesmo: ‘Futebol
aqui de novo, não!’ Não era futebol. Disse a guia: ‘O senhor não conhece
a experiência dos brasileiros?’ Sinceramente, confesso minha ignorância,
pois não tinha conhecimento desse fato.”

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360 VOZES DA GUERRA

Tessera começou a pesquisar e encontrou um texto em italiano dedica-


do ao desempenho da FEB e do Brasil na Itália durante a Segunda Guerra
Mundial. Na época, como presidente de uma associação de formação pro-
fissional, tinha a possibilidade de organizar eventos culturais, aproximan-
do-se da comunidade brasileira: “Fiz contato com o Instituto Cultural Ítalo
Brasileiro, com o Consulado Brasileiro de Milão... e organizei uma recepção
em San Donato Milanese, onde estava a sede de minha associação.” A partir
de então, ficou “tão apaixonado por esse pedaço da história” que passou a
transmiti-lo aos jovens e em nível universitário, onde percebeu que poucos
conheciam o tema.
Ele destaca que, além do futebol e do carnaval, “tem outra parte do
Brasil extremamente importante e interessante... e, através desse evento de
guerra, porque é de guerra que se trata, vim a conhecer... Aproximei-me do
conhecimento do Brasil, país que infelizmente não conheço diretamente.
Mas me sinto muito ligado, porque há cinco, seis anos, estou levando esse
assunto para frente. Com conferências, com encontros nas escolas em mui-
tas escolas superiores de Milão e lugares importantes, como alguns Rotary
Clubes da cidade.
Tive a felicidade de conhecer alguns veteranos, neste ano [2012],
em Montecatini, em uma reunião organizada por Mario Pereira... Tive o
prazer finalmente de ver em carne e osso esse refúgio essencialmente de
veteranos, que todos os anos vêm à Itália para reverem os lugares onde
combateram quando jovens, e vi que sempre mantiveram com a popula-
ção um esplêndido relacionamento. Soa sempre na minha mente: alemães
maus; brasileiros bons. E por vários acontecimentos, como se portaram
com as populações locais, como mataram a fome das populações locais;
e esses pedaços de história são extremamente significativos... Não estarei
contente até que veja o tema nos livros, na normalidade do estudo, não
como coisa excepcional, não como folclore, mas como coisa real e efetiva.
Em suma, se chegarmos à Segunda Guerra Mundial nos livros de texto, já
teremos feito muito.”
Maria Elisabetta Tanari, prefeita de Gaggio Montano, fala sobre a
importância de manter o vínculo entre Brasil e Itália, tendo os pracinhas
como elo: “Eu acredito que seja um compromisso e uma necessidade man-
ter essa memória institucional, porque o Exército Brasileiro operou aqui e
resolveu, digamos assim, o impasse daquele momento histórico, no que se
refere à Linha Gótica e à Tomada de Monte Castelo e, portanto, contribuiu

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de maneira verdadeiramente importante para a libertação de nosso territó-


rio. Portanto, acredito que devemos manter presente e continuar transmi-
tindo às novas gerações o quanto é importante o acontecimento histórico
que envolveu nosso território, mas que se insere integralmente na história
nacional de nosso país... da Itália. Junto a isso, e tenho certeza, pelos tes-
temunhos constantes e cotidianos que recebo das pessoas e vejo também
dentro de projetos escolares — porque até pouco tempo eu era professora
— creio que tudo tenha um aspecto humano, que valoriza ainda mais essa
importante experiência, repito, histórica e institucional, que, portanto, a
torna única.
O que permanece nos corações dos Gaggesi, ou seja, de meus cidadãos,
é o relacionamento humano, importante e profundo, que se criou com o
Exército Brasileiro. As grandes afinidades peculiares e humanas que, repito
novamente, deixaram marcas importantes. Os episódios que nos transmi-
tem — e isso é importante, a meu ver — não são nunca casos de guerra; pa-
recem episódios que podem voltar à memória e serem inseridos em qual-
quer tipo de contexto; são episódios que falam de humanidade, de amizade
e de troca; também de momentos, como posso dizer..., quase de alegria. É
quase paradoxal imaginar, dentro do contexto, e devido a tudo isso, serve
também para humanizar um momento, uma experiência cruel e inumana
como aquela da guerra. Essa é uma experiência fundamental que precisa
ser conservada e transmitida”, conclui.
Mario Pereira, filho de Miguel Pereira e Giuliana Menichini, tem a
missão de hastear diariamente a Bandeira do Brasil no Monumento Votivo
Militar Brasileiro, em Pistoia. Além dessa, tem a missão de zelar para que
a chama perpétua, que representa a tenacidade do soldado brasileiro, per-
maneça acesa e ilumine o túmulo do “soldado desconhecido”, único corpo
que permanece sepultado no local.
Mario esclarece que o monumento votivo é o único monumento
brasileiro no exterior dedicado à Segunda Guerra Mundial, mantido pelo
governo brasileiro. Foi projetado após o translado dos restos mortais dos
pracinhas que tombaram na Itália para o Monumento Nacional aos Mortos
da Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro, em 1960. Construído a
partir de 1965, foi inaugurado em 1966.
Em 1967, Miguel Pereira, que era o guardião tanto do cemitério
quanto do monumento, conseguiu recuperar os restos mortais de mais
um brasileiro. Apesar de ser tido como o “Soldado Desconhecido”, pois

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foi encontrado sem placa de identificação por uma série de coincidências


[estava em Montese quando desapareceu; a farda era brasileira com a
imagem de Nossa Senhora Aparecida no bolso], Mario acredita tratar-se
do cabo Fredolino Chimango.
Foto: Sirio S. Fröhlich

Monumento votivo. Em primeiro plano, a chama que permanece acesa sobre o


túmulo do “Soldado Desconhecido”. No muro, ao fundo, o nome dos brasileiros que
tombaram lutando pelos ideais de liberdade e paz

Segundo diz, “na solenidade de inauguração do monumento, um velhi-


nho falou a meu pai que ele tinha enterrado um brasileiro durante a guerra,
em Montese. Meu pai fez várias pesquisas para ver se esse depoimento ti-
nha fundamento. Quando ele percebeu que a história podia se tornar rea-
lidade, ouvindo depoimentos de outras pessoas, olhando documentos etc.,
foram cavar no local que o velhinho tinha indicado, e lá se encontrou um
corpo, que seguramente é de um brasileiro, só que não se sabe de quem é.
O velhinho alegou que não tinha falado até a inauguração do monumento,
porque, na época da Segunda Guerra, quando enterrou o corpo, ele retirou
desse soldado as botas e o relógio, que, naquela época de carência de tudo,
eram necessários a uma pessoa viva, e não mais a uma pessoa infelizmente
morta. Ele, tendo medo de ser aprisionado por ter retirado esse material do
morto, não falou até ter mais de 80 anos.”
Mario continua: “Aqui eu passo o dia inteiro... Pela manhã, hasteio a
bandeira brasileira neste solo, que é um solo sagrado, e depois recebo visi-
tas.” Após o arriar a Bandeira, permanece por mais um tempo trabalhando,
atendendo aos pedidos que chegam pela internet. Destaca que as visitas

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Apêndice VI 363

têm aumentado muito nos últimos anos. Julga de suma importância divul-
gar essa história, que é desconhecida por muitas pessoas, inclusive profes-
sores de história: “Autoridades de todas as localidades por onde passou a
FEB vêm ao monumento; isso é o reconhecimento da população italiana
pela postura adotada pelos brasileiros durante a guerra, que não era ape-
nas de lutar no campo de batalha mas também de ajudar a população, de
compartilhar os suprimentos que tinham.” Isso deixou uma ligação muito
forte entre Brasil e Itália, ressalta.
Para Mario, sua missão é seguir os passos do pai, que “não falava em
trabalho; ele falava em missão. E minha missão é manter acesa essa chama,
que não é uma mera chama: é a chama da memória”. “Atualmente é mais fá-
cil divulgar a FEB, com o uso dos recursos tecnológicos. Como a história da
FEB é uma história de amor dentro do drama que é uma guerra, muita gen-
te se apaixona e ajuda a divulgar.” Outra coisa que ajuda na divulgação “é a
estatura moral dos soldados da FEB, que não somente venceram a guerra,
militarmente falando, mas nunca perderam o sentimento de seres humanos
e trataram as pessoas justamente como seres humanos...”. Por esse legado,
deixado pelos soldados, a FEB é homenageada em todas as localidades por
onde passou, seja em solenidades, seja em monumentos ou pequenos, mas
significativos, memoriais.
Annalisa Pisaneschi não conviveu com nenhum soldado brasileiro
em sua infância. Ela pertence à geração que aprendeu a admirar a FEB
pelas histórias que ouviu falar: “Quando eu era pequenininha, meu avô
sempre me contava uma história de quando os brasileiros estiveram em
nossa casa... Meus avós moravam em uma cidadezinha perto de Porretta
Terme; um dia, um pequeno grupo de soldados brasileiros veio até a casa
de meu avô para descansar. A casa de meu avô era muito grande, porque
tinha sido uma pensão; portanto, havia quartos para hospedar esses sol-
dados, mas não havia camas para todos. Então o sargento que comandava
esse grupo, primeiro acomodou os soldados na casa e depois procurou um
lugar para ele. Na casa, não tinha mais lugar. Perto da casa de meu avô, ti-
nha um cômodo onde se armazenava comida para os animais... e tinha um
forno para pão. Esse sargento colocou os pés dentro do forno, porque havia
neve e fazia muito frio naquele inverno de 1944... E meu avô me contava
que, depois que a família se deu conta que esse sargento estava ali, no frio,
porque era um quarto onde a porta fechava mal... o chamaram para dentro
de casa e o acomodaram em um sofá, em uma sala, onde geralmente as

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pessoas comiam. E ele, esse sargento, naquele sofá, teve um sonho. Sonhou
que teria permanecido na Itália, teria se casado com uma italiana e estaria
feliz... Assim ele contou depois.”
Annalisa continua: “Meu avô sempre me contou a história desse sar-
gento, que era uma pessoa da qual ele havia gostado tanto... Dizia que ele
era verdadeiramente um homem, porque tinha dado o lugar em casa, em
lugar aquecido a seus soldados e, para si próprio, havia reservado um lugar
no frio.” Chegou um momento que ela achava aquelas histórias um tanto
fantasiosas, exageradas até. Mas o destino fez que, passados alguns anos,
conhecesse um jovem que lhe disse ser filho de um pracinha que veio do
Brasil para combater na Itália... Contou que seu pai havia sofrido muito no
frio; tanto era verdade que, certa noite, tinha dormido com os pés dentro de
um forno... “Depois, esse rapaz se tornou meu companheiro... porém, essa é
uma história inacreditável... e agora estou comovida.”
“Às vezes eu chego a pensar que nossas histórias nasceram bem longe...
Porque esse soldado, esse sargento que dormiu com os pés no forno, era
Miguel Pereira. Partiu do Brasil e veio dormir na casa de meus avós... Eu
sempre ouvira contar essa história e chegara a pensar que não fosse verda-
deira, porque as crianças vivem as histórias como se todas fossem fábulas.
E, quando eu descobri que era uma pessoa real, para mim foi realmente
uma grande emoção; sobretudo descobrir que era o pai do Mario [Pereira].”
Foram outras tantas histórias que ela ouviu quando era pequena... “Depois
de grande, você se dá conta que não são fábulas, que foi realidade... de ver-
dade!”, finaliza emocionada.
Concluo este capítulo acreditando ter conseguido captar e transmitir
a essência dos depoimentos dos italianos: os pracinhas foram soldados de
valor, foram libertadores, foram amigos e foram, sobretudo, solidários. E,
na memória dos que conviveram com eles, os brasileiros continuam sendo.

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Referências bibliográficas
e fontes de consulta

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so de uma trajetória. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,
1985.
• CAMERINO, Olímpia de Araújo. A mulher brasileira na Segun-
da Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Capemi, 1983.
• CAMPELLO, Ruy Leal. Um capitão de infantaria da FEB. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército, 1999.
• CANSANÇÃO, Elza. Eu estava lá. Ágora da Ilha.
• CURY, Miled. Memórias de um mogiano na FEB. São Paulo:
Com-Arte, 2011.
• DUCCESCHI, Francesca Coniglio. O catavento da vida. Porto Alegre:
Prosapiens, 2010.
• FRÖHLICH, Sirio Sebastião. Longa jornada — com a FEB na Itá-
lia. Brasília: EGGCF, 2011.
• GÓES, Walder de; CAMARGO, Aspásia. Diálogo com Cordeiro de
Farias: meio século de combate. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 2011.
• LOPES, José Machado. 100 vezes responde a FEB. Edição do
autor
• MASCARENHAS DE MORAES, João Baptista. A FEB pelo seu co-
mandante. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2005.
• ____________. Memórias. 2ª ed., v. 1. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1984.

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366 VOZES DA GUERRA

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• RIGONI, Carmen Lúcia. Diários de Guerra I. Curitiba: Progres-
siva, 2010.
• SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Ja-
neiro: Biblioteca do Exército/Expressão e Cultura, 2001.
• SULLA, Giovanni; TROTA, Ezio. Gli Eroi Venuti dal Brasile. Mode-
na-Itália: Edizioni Il Fiorino, 2005.
• VALADARES, Altamira Pereira. Álbum biográfico das Febianas.
Batatais-SP: Centro de Documentação Histórica do Brasil.
• HISTÓRIA ORAL DO EXÉRCITO NA SEGUNDA GUERRA MUN-
DIAL. Tomos 2, 5 e 7. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,
2001.
• Jornal A Razão, Santa Maria-RS (várias edições).
• Jornal Correio do Povo, Porto Alegre (várias edições).
• O Cruzeiro do Sul, Coleção completa do órgão especial da FEB
na Itália — 34 edições. Roberto Mascarenhas de Moraes,
organizador. 2ª Ed., Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial/
Biblioteca do Exército, 2011.
• Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro (várias edições).
• www.anvfeb.com.br
• www.fab.mil.br
• www.portalfeb.com.br
• www.segundaguerramundial.com.br
• www.sentandoapua.com.br
• www.olapaazul.com

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Relação de depoentes

Nome Posto/Graduação Naturalidade Esc.de emb.


Alcides Basso soldado Santa Maria-RS 5º
Alfredo Luiz Dalla Costa soldado Santa Maria-RS 5º
Ângelo França terceiro-sargento São José dos Campos-SP 2º
Antônio André terceiro-sargento Rio de Janeiro-RJ 2º
Aribides Rodrigues Pereira soldado Júlio de Castilhos-RS 3º
Ary Dal Pozzolo soldado Santa Maria-RS 5º
Ary Roberto de Abreu terceiro-sargento Venda Nova-MG 3º
Benedito Bernardino cabo Mogi das Cruzes-SP 1º
Carlota Mello segundo-tenente Salinas-MG 19/10/44
Cleir de Carvalho cabo Nioaque-MT 4º
Cleto Pellegrinelli segundo-sargento São João Del Rei-MG 3º
Divaldo Medrado terceiro-sargento Joaíma-MG 1º
Enéas Sá de Araújo segundo-sargento Caçapava-SP 1
Eugênio Lombardo soldado Santa Maria-RS 3º
Ewaldo Meyer terceiro-sargento Rio de Janeiro-RJ 1º
Francisco Arthur Gomes cabo Caçapava-SP 1º
Geraldo Antônio Sanfelice soldado Júlio de Castilhos-RS 5º
Geraldo Campos Taitson soldado Ibirité-MG 2º
Hélio Marques Gomes terceiro-sargento Ponte Nova-MG 1º
Israel Rosenthal aspirante a oficial Rio de Janeiro-RJ 5º
Ivan Esteves Alves segundo-sargento São João Del Rei-MG 3º
Ivo Ziegler soldado Santa Maria-RS 5º
Jarbas Dias Ferreira cabo Mogi das Cruzes-SP 1º

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368 VOZES DA GUERRA

João Gonzalez terceiro-sargento São Paulo-SP 1º


João Pedro Paz soldado Cachoeira do Sul-RS 5º
José Candido da Silva cabo Pilar-AL 1º
José João Pereira cabo São Pedro do Sul-RS 5º
José Marcelino de Holanda terceiro-sargento Pau dos Ferros-RS F. Noronha
Mário Machado dos Santos soldado Santa Maria- RS 5º
Miled Cury Andere cabo Mogi das Cruzes — SP 1º
Neraltino Flores dos Santos soldado Tupanciretã-RS 3º
Newton Lascalea (La Scaleia) terceiro-sargento São Paulo-SP 1º
Orlando Rodrigues de
segundo-sargento Salesópolis-SP 1º
Camargo
Osvaldo Carnevalli cabo São José dos Campos-SP 1º
Pacífico Pozzobon soldado Santa Maria-RS 5º
Paulo Pereira de Carvalho soldado Coxília-MG 1º
Pedro Solano Vidal soldado São Sepé-RS 5º
Raul Kodama cabo São Paulo-SP 2º
Rubens Leite de Andrade soldado Campos-RJ 4º
Samuel Silva terceiro-sargento José Bonifácio-SP 1º
Sérgio Pereira soldado Nepomuceno-MG 3º
Severino Francisco de Oliveira segundo-sargento Santo Antônio-RN 4º
Taltíbio de Melo Custódio cabo Júlio de Castilhos-RS 5º
Vasco Duarte Ferreira soldado Rio de Janeiro-RJ 2º
Virgínia Maria de Niemeye
segundo-tenente Rio de Janeiro-RJ 07/07/44
Portocarrero

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Relação de abreviaturas

AD Artilharia Divisionária

BCC Batalhão de Carros de Combate

BIB Batalhão de Infantaria Blindado

DI Divisão de Infantaria

DIE Divisão de Infantaria Expedicionária

ELO Esquadrilha de Ligação e Observação

FAB Força Aérea Brasileira

FEB Força Expedicionária Brasileira

OM Organização Militar

RAM Regimento de Artilharia Montada

RI Regimento de Infantaria

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Número de página 376 Páginas
Formato 15,5 x 23 cm
Mancha 29 x 45 paicas
Tipologia Cambria
Corpo/entrelinha 11/14,5 pt
Papel miolo Pólen Soft 80g
Papel capa Cartão Supremo 240g (plastificado)
Impressão e acabamento Ediouro Gráfica

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