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Vozes Da Guerra
Vozes Da Guerra
Comandante do Exército
General de Exército Eduardo Dias da Costa Villas Bôas
Conselho Editorial
Presidente
General de Brigada Aricildes de Moraes Motta
Beneméritos
General de Divisão Ulisses Lisboa Perazzo Lannes
Coronel Nilson Vieira Ferreira de Mello
Professor Arno Wehling
Membros Efetivos
General de Exército Gleuber Vieira
General de Exército Pedro Luís de Araújo Braga
Embaixador Marcos Henrique Camillo Côrtes
General de Brigada Sergio Roberto Dentino Morgado
Coronel de artilharia César Augusto Araripe de Almeida Lacerda
Coronel de artilharia Luiz Sérgio Melucci Salgueiro
Professor Guilherme de Andrea Frota
Professor Paulo André Leira Parente
Professor Wallace de Oliveira Guirelli
Biblioteca do Exército
Palácio Duque de Caxias, 25 — Ala Marcílio Dias — 3º andar
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Biblioteca do Exército
Rio de Janeiro
2015
ISBN 978-85-7011-551-5
CDD 940.5381
BIBLIOTECA DO EXÉRCITO
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Índice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
A Segunda Guerra Mundial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
Brasil abandona a neutralidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Força Expedicionária Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Ações da FEB na Itália. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31
Chamado para a guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
Voluntários para a guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Verificando a saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
Despedida da família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
Começa a longa jornada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
A caminho do Rio de Janeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
Preparativos para a guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
A travessia do Atlântico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
Chegada ao cenário de guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Começa a caminhada em solo italiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
Adaptação e treinamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
A vida no acampamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
Seguindo para o front . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
Contato com o inimigo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
Ações em combate . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
Vítimas da guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166
“Muitos falam que a FEB não foi para a Europa bem preparada. Dentro
das circunstâncias, eu acredito que até foi. Acompanhei toda a instrução
do Onze e vi chegar gente de tudo que é lugar do Brasil: do Rio Grande
do Sul, do Paraná, de Santa Catarina — de onde veio um grupo de mais
de 100 homens que não falavam português; falavam só alemão... eram de
origem alemã, mas eram bons soldados brasileiros. Eles aprenderam a falar
português no Onze; no começo não falavam nada, mas com o tempo, foram
Nas operações no vale do rio Reno, muitas vidas brasileiras foram cei-
fadas. Monte Belvedere, Monte Castelo e Castelnuovo eram pontos fortifi-
cados de difícil conquista. Sem a expulsão dos alemães desses redutos, as
forças do IV Corpo de Exército não conseguiriam prosseguir para o norte. A
partir de 24 de novembro de 1944, foram feitas quatro tentativas para con-
quistar Monte Castelo; contudo, a vitória somente foi alcançada em 21 de
fevereiro de 1945. Rompida a Linha Gótica, seguiram-se a conquista de La
Serra, em 24 de fevereiro, e Torre de Nerone e Castelnuovo, em 5 de março.
A terceira fase de atuação ocorreu no vale do rio Panaro. Em 14 de abril
de 1945, a 1ª DIE recebeu a missão de atacar as elevações de Montese e
Montello. A primeira era um maciço de vital importância para os alemães
após terem perdido Monte Castelo. Foi lá que a FEB travou a mais sangrenta
das batalhas em solo italiano. Prosseguindo em sua missão, chegou a Zocca,
importante entroncamento rodoviário.
A quarta fase da campanha da FEB aconteceu no vale do rio Pó. O ini-
migo, quase batido, retraía em direção à Alemanha. A perseguição às tropas
alemãs desenvolveu-se na direção de Vignola e Alessandria. Em 27 de abril,
as tropas brasileiras encontraram resistência alemã em Collecchio e Forno-
vo di Taro. Em 29 de abril, a 148ª Divisão de Infantaria Alemã foi alcançada
pela FEB. Depois da negociação da rendição, 14.779 prisioneiros de guerra,
cerca de 4 mil animais, 2.500 viaturas, além de grande quantidade de arma-
mento e equipamento restaram apreendidos.
Em ação de perseguição e limpeza do vale do rio Pó, a FEB prosseguiu
sua caminhada. Em 30 de abril, ocupou Alessandria e fez a junção com a
92ª Divisão do exército norte-americano. Em 1º de maio, após ultrapassar
a cidade de Turim, realizou a junção com as tropas francesas, em Susa.
A partir de então, a FEB permaneceu em missão de ocupação e ma-
nutenção da paz até 3 de junho de 1945, quando as tropas começaram a
retrair para o acampamento de Francolise, onde iriam aguardar o regresso
ao Brasil, concluído em 3 de outubro de 1945.
A missão estava cumprida após 239 dias de combate em prol da liber-
dade e da democracia. O Brasil perdeu 465 valiosas vidas; houve mais de
2.800 baixas, entre feridos, acidentados e extraviados. Contudo, ficou o le-
gado de heroísmo do sargento Max Wolff Filho, dos Três Bravos Brasilei-
ros e outros soldados anônimos, além do exemplo de abnegação e amor
à Pátria, proporcionado por todos os que lutaram pela restauração e pela
manutenção da paz.
Ary Roberto de Abreu era militar quando foi convocado para a guer-
ra. Apresentara-se com pouco mais de 17 anos, em Belo Horizonte. Vo-
luntário, serviu em Ouro Preto, em março de 1942, no 10º Batalhão de
Caçadores (BC), que, em maio de 1943, foi deslocado para Porto Segu-
ro-BA. Depois de muitas andanças, acabou embarcando para a Itália no
4º escalão. Cleir de Carvalho havia sido incorporado no 1º Batalhão de
Engenheiros, no Rio de Janeiro: “Fui voluntário para ir para o Exército;
mais tarde veio a guerra e fui convocado. Precisavam de 100 praças e
de alguns oficiais para completarem o contingente. Eu era cabo e fui um
dos escolhidos.”
Hélio Marques Gomes era reservista. Aos 23, estudante de Odon-
tologia, recebeu um telegrama da 1ª Região Militar, convocando-o para
compor o efetivo da FEB: “Na ocasião, minha família conhecia pessoas
influentes, que até poderiam me tirar desta convocação, mas eu era o
mais novo filho e tinha grande preocupação em preservar meus outros
irmãos, alguns já casados e com família constituída.”
entre Santa Maria e Rio Grande, na Estação de Cacequi-RS, alguns não te-
riam retornado ao trem. Severino Oliveira diz que muitos dos 300 soldados
provenientes do 16º RI saltaram nas águas do rio Capiberibe e deserta-
ram enquanto o navio aguardava para desatracar do Porto de Natal. New-
ton Lascalea lembra que, ainda no Rio de Janeiro, muita gente desistiu: “Na
hora do embarque, estava só o saco no lugar do soldado.”
“As notícias sobre a guerra, divulgadas pela propaganda nazista,
impunham medo; mesmo assim, o sentimento de cumprir o dever
cívico foi mais forte, e muitos atenderam ao chamado da Pátria”, conclui
Taltíbio Custódio.
Mário Machado dos Santos saiu do Brasil com a convicção de que iria
combater o nazismo e o fascismo, que representavam grande perigo para
a humanidade: “Não era só o Brasil que estava em perigo. Fomos lutar pela
liberdade universal.” Recorda que o presidente Getúlio Vargas declarou que
os pracinhas partiam para defender o porvir, a liberdade futura, não só do
Brasil mas do mundo todo.
Ivo Ziegler inspirou-se na tradição guerreira do povo gaúcho: “Meu avô
havia combatido na Revolução Federalista; meu pai, na Revolução de 1923;
e um tio, na Revolução de 1932.” A tradição de lutar pela liberdade e pelos
ideais estava no sangue. Tinha consciência do que o esperava na Itália, pois
outros companheiros do Regimento Mallet já se encontravam na guerra e
mandavam notícias de lá. Além disso, todos os dias havia notícias nos jor-
nais. Conta que foi à guerra pelo “dever cívico de lutar pelo Brasil e pela
liberdade; quando pediram voluntários, me prontifiquei na hora.”
Pacífico Pozzobon comenta que um dos irmãos e um primo haviam
sido combatentes na Revolução Constitucionalista; em 1932, estiveram em
São Paulo, ao lado das tropas do 7º RI. No retorno a Santa Maria, eles foram
recepcionados como verdadeiros heróis: “Na minha imaginação de criança,
desenvolvi a ideia de que, para ser herói, bastava participar de uma guerra.
Quando soube que precisavam de voluntários para a Segunda Guerra, senti
que havia chegado a minha vez de ir para o combate.” Para ser considerado
apto à guerra, precisou fazer tratamento dentário intensivo antes da inspe-
ção de saúde.
Vasco Ferreira recorda que, embora seu pai fosse português, toda a fa-
mília cultivava o patriotismo: “Antigamente, antes de começar a aula, a gen-
te cantava o Hino Nacional, da Independência, da Bandeira ou outro hino.
Acreditávamos no Brasil! Cultuávamos os heróis brasileiros como o almi-
rante Barroso, Tamandaré, Marcílio Dias, Duque de Caxias, general Osorio,
Ruy Barbosa, os costumes e as tradições; o Governo incentivava isso. Era o
nacionalismo; o Brasil acima de tudo. A gente tinha orgulho de ser brasilei-
ro... O padrinho de um dos meus irmãos, marinheiro da Marinha Mercante,
havia sido torpedeado por duas vezes e sobreviveu. Outra vez, um freguês
de meu pai, marinheiro também, ficou sem perna. Naquele ambiente, deci-
di ir para o Exército. Achava que ia cumprir meu dever de civismo.”
Miled Cury, filho de um libanês que emigrou para o Brasil no início do
século XX, conviveu com o patriotismo desde criança: “Meu pai era um pa-
triota! Ele achava que, estando no Brasil, vivendo no Brasil, nós tínhamos
que ser brasileiros. Entendo muito pouco de árabe; ele não admitia que se
falasse árabe quando havia brasileiros em casa. Meu pai foi sempre muito
consciente nesse sentido. Era muito culto; embora tivesse pouco estudo...”
Desse exemplo de patriotismo nasceu sua intenção de ir para a guerra e
defender os ideais de sua Pátria.
No mesmo sentido, Raul Kodama, nascido em São Paulo e filho de ja-
poneses que chegaram em 1908, no navio Kasato Maru, é enfático: “Eu sou
brasileiro com cara de japonês. De japonês não sei nada... Meu pai e minha
mãe não falavam japonês; na família ninguém falava japonês. Meus irmãos
se chamam Maria, Roberto, Eli Carlos, Helena. Tudo nome brasileiro; ne-
nhum nome japonês. Eu fui moleque de rua... você vê esses meninos pobres,
moleques de rua... eu era assim! Propriamente dito, brasileiro!”
Kodama sempre sonhou ingressar no Exército; queria ser sargento. No
entanto, quando serviu no TG, não foi muito bem sucedido: “Naquela época,
japonês não fazia diferença... não tinha valor... mas eu queria saber mais.” Ao
sair do Exército, começou a trabalhar como carregador na empresa de um
japonês que, reconhecendo seu potencial, estimulou-o a estudar: “Comecei
a trabalhar como motorista. Então o patrão disse que, pelo conhecimento
que eu tinha, não deveria ser só motorista... Ele estava me preparando para
ser um graduado na firma dele. Quando eu melhorei de vida, fui convocado
para o Exército. Fui convocado por carta. Eu queria ser soldado... Quando
fui convocado, fui com prazer.” Era a guerra mudando o destino.
embarcar. Para mim foi bom porque eu era da cidade, mas quem era de
outro lugar não teve a mesma sorte.”
Acervo: 11 o BI Mth
Navio Santarém
festividades, e ninguém sabia quem eram e nem para onde estavam indo
aqueles jovens fardados.
Entre os militares que embarcaram em Cruz Alta, estava Neraltino
dos Santos. Para ele a viagem também foi bastante cansativa: “A gente não
tinha nenhum conforto. Íamos sentados no assoalho do vagão, pois não
havia bancos. Nas estações ferroviárias, no Rio Grande do Sul, éramos re-
cebidos com festa, e nos serviam comida quente. Depois, acabaram as re-
cepções calorosas e, na hora das refeições, quase sempre, recebíamos um
sanduíche simples.”
Enéas Araújo diz que, em 12 de março de 1944, o 2º Batalhão e os ór-
gãos regimentais do 6º RI seguiram para o Rio de Janeiro: “O 3º Batalhão
já havia deslocado de Lins para Pindamonhangaba, e o 1º Batalhão havia
deslocado de Caçapava para Taubaté, pois não havia espaço no regimento
para todo o efetivo.”
Sérgio Pereira deslocou-se para o Rio de Janeiro, também em março de
1944, com o efetivo do 11º RI. Foram cerca de 10 horas de São João del-Rei
até o destino: a Vila Militar do Rio. Ivan Alves, que fez o mesmo trajeto,
comenta: “Depois que embarcamos na estação, seguimos até Juiz de Fora,
onde embarcou o pessoal do 12º RI. O túnel Oito, em Paulo de Frontin, ha-
via desmoronado. Ficamos aguardando a desobstrução do túnel; atraves-
samos a pé e pegamos outra composição, do outro lado do túnel. Seguimos
viagem, mas isso atrasou a nossa chegada ao Rio.”
Alcides Basso, Geraldo Sanfelice e Pacífico Pozzobon concordam
quanto ao desconforto da viagem, iniciada na véspera do Natal de
1944. De acordo com Pozzobon, o maior problema “eram os vagões
boiadeiros sujos, fedorentos, sem beliches e, sequer, bancos. Estávamos
amontoados no vagão como bichos”. Relata que, em Cruz Alta, houve
um princípio de revolta: os pracinhas exigiam mais respeito e melhores
condições para seguirem viagem.
Mesmo com o acréscimo de vários vagões, o conforto melhorou
pouco. Faltavam espaço e banheiros, o que produziu situações cômicas
e constrangedoras: buracos feitos no assoalho do trem eram latrinas;
os trilhos, as fossas. Para urinar, faziam malabarismos junto à porta
do vagão. As roupas sujas iam sendo descartadas. Quando o motivo do
descarte não era a sujeira, eram as brincadeiras entre os pracinhas que
despojavam os companheiros, fazendo a alegria dos agricultores que
trabalhavam ao longo da via férrea.
Pacífico Pozzobon
Preparação no Rio de Janeiro – 1945
O embarque
discurso. Do local em que eu estava, eu podia ver e ouvir a voz emitida pelo
alto-falante. Lembro que ele disse que podíamos ir despreocupados, pois
nossas famílias não ficariam desamparadas. Em parte tinha razão, por cau-
sa de nossos vencimentos [a família recebia um terço].”
Acervo: AHEx
nada. Consta que pediram para todo mundo que tinha barco sair da Baía
da Guanabara; dali a pouco, apareceu aquele monstro de navio... o sigilo
era difícil.”
Francisco Gomes diz que “o embarque deu-se em três períodos. Uma
parte do pessoal embarcou no dia 28 de junho; o 2º grupamento, ao qual
eu pertencia, em 29 de junho, e o último, em 30 de junho. Aí nos permane-
cemos no navio até 2 de julho, quando o navio desatracou. Nesse período,
entre o embarque e a desatracação, treinamos as medidas e procedimen-
tos para o caso de torpedeamento. Durante o dia, ficávamos no convés.
Assim que começava a escurecer, éramos obrigados a nos recolher para
nossos compartimentos”.
Lascalea esclarece como os pracinhas conduziam seus pertences para
a guerra: “No saco A levávamos as coisas de uso diário, como escova e
pasta de dentes, material de barba etc. No saco B, algumas outras coisas,
como cobertor e roupas mais pesadas.” Recorda ter sido um “dos primei-
ros a embarcar. Em consequência, fui para o quarto andar inferior. Íamos
entrando e vendo aquelas comportas... Se houvesse algum problema, fe-
chariam as comportas, e estaríamos em maus lençóis. Navio é assim: se
dá para salvar todo mundo, ótimo; se não, alguns pagam com a vida para
salvar a maioria. Eu estava numa grande desvantagem: em caso de torpe-
deamento, um ou dois andares seriam sacrificados para salvar os demais.
Como eu estava no último...”.
Aribides Pereira passou pela experiência do embarque em 20 de se-
tembro de 1944: “Seguimos de caminhão até São Cristóvão, onde dormi-
mos. De madrugada, tocou alvorada. No escuro, em silêncio, embarcamos
no trem e seguimos até o cais do porto, onde iniciamos o embarque no
navio General Mann.” Os primeiros a embarcar permaneceram o dia e a
noite seguintes no navio, enquanto os demais pracinhas (mais de cinco
mil) faziam o trajeto até o cais e embarcavam. Ivan Alves, também embar-
cado em 20 de setembro, mas no General Meigs, diz que “na entrada do
navio havia uma relação de embarque; a cada militar que ia embarcan-
do, tiravam a falta”. Taltíbio Custódio afirma que cada compartimento era
cheio de beliches de lona: “Para caminhar entre os beliches, tinha que ser
de lado. Se alguém sofresse de claustrofobia, teria sérios problemas.”
Pedro Vidal passou pela experiência em 8 de fevereiro de 1945. Lem-
bra que no dia da partida havia até escola de samba no cais: “Coisa linda!
A Estação Primeira de Mangueira e o Salgueiro tocando... A gente olhava
A alimentação
Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos pracinhas dizia
respeito à alimentação servida a bordo. Com um efetivo de cerca de cin-
co mil militares embarcados, as refeições eram servidas em sistema de
rodízio. A cozinha funcionava 24 horas por dia, e não podia ser diferen-
te, pois eram duas refeições diárias para cada homem. “Sempre havia
filas para o rancho. Ao clarear o dia, já havia filas. Na hora de dormir,
elas continuavam lá”, recorda Alcides Basso.
tamanha era a fraqueza, que só não era maior porque os amigos traziam
as laranjas ou maçãs da sobremesa. Paulo Carvalho declara: “Abaixo do
nível do mar fazia um calor infernal; fiquei 15 dias sem ir ao banheiro;
só me alimentava com um pouco de leite e uma maçã.”
A falta de adaptação à comida, aliada ao balanço do navio, fez que
muitos dos pracinhas adoecessem logo após a saída do Rio de Janeiro.
Taltíbio Custódio lembra que “a viagem foi terrível; não parava nada no
estômago. Quando o navio subia e descia, parecia até que o estômago
ia sair pela boca”. Neraltino Santos faz graça ao recordar que “chegava
a juntar uns quatro ou cinco soldados em torno de um balde, fazendo
rodízio para vomitar. O calor, aliado aos enjoos, fazia que o mau chei-
ro fosse muito grande”. Contudo, o navio contava com bons exaustores,
e havia escalas de responsáveis pela limpeza e regras bastante rigo-
rosas, visando à não proliferação de doenças. Ary Abreu confirma: “A
faxina tinha que ser rigorosíssima; e eu, como castigo pelo atraso para
o embarque, havia sido encarregado pela faxina... O americano chegava
com um papel higiênico e, se não estivesse bom, dizia ‘It’s bad! Come
back!’. Ou seja, ‘Está ruim! Volte!’. Tinha que fazer tudo de novo. Eu pe-
gava junto: o soldado brasileiro... só mostrando! Até que o americano
dissesse ‘good’ — bom —, a gente repetia.”
Hélio Marques diz que, por falar inglês, no navio fazia a ligação dos
brasileiros com os cozinheiros norte-americanos. Recorda que os orien-
tou a colocarem mais sal na comida, a fim de diminuir os enjoos e o
mal-estar dos brasileiros.
Para a maioria dos pracinhas a travessia foi tensa e cansativa. José Pe-
reira lembra que, quando as coisas ficavam muito calmas, para deixar a tro-
pa em estado de alerta, davam-se alguns tiros de canhão. Era o sinal para os
treinamentos de evacuação das cabines e desembarque. Precisavam estar
preparados para o caso de torpedeamento ou afundamento do navio. Seve-
rino Oliveira recorda que por esse motivo muitos preferiam ficar no convés
em vez de irem para os compartimentos.
Pedro Vidal menciona que, pela manhã, seguindo a balaustrada, andava
da popa à proa do navio para fazer o tempo passar e diminuir a ansiedade:
“Havia dias em que o mar estava agitado, mas, em outros, era só calmaria.”
Para ele a travessia foi desgastante; passou muito mal. Eugênio Lombardo
conta que para passar o tempo jogavam baralho e assistiam a sessões de
cinema. O ambiente era descontraído, e a viagem foi tranquila.
Acervo: AHEx
Ary Abreu relembra que todos, mesmo sabendo que estavam sendo
muito bem comboiados, tinham medo, pois os botes salva-vidas eram
poucos para o tamanho do efetivo a bordo. Ele concorda que os treinamentos
de evacuação eram organizados, mas, no interior do navio, tudo era escrito
em inglês; para quem não entendia, era complicado: “Pelos alto-falantes
davam a ordem de evacuação, por compartimentos; primeiro em inglês;
depois, em português. Em inglês, para a tripulação; em português, para nós,
A chegada a Nápoles marcou o fim da jornada marítima para muitos dos pracinhas.
Na linha do horizonte, o Vesúvio
pele. Isso, somado à água salgada dos banhos, me deixou em mau estado.
Tive de ficar baixado ao hospital até estar curado.” Pereira diz, ainda, que
o médico, quando não conseguia diagnosticar alguma enfermidade, costu-
mava dizer: “É a doença da água! Assim que você pisar em terra firme, a
doença cura por conta própria.” Como diz, na maioria dos casos, o diag-
nóstico restou comprovado. Geraldo Sanfelice se lembra desses efeitos: “De
tão fraco que eu estava, precisei ser apoiado pelos amigos, para descer do
navio. Em dois ou três dias, estava inteiro. Tanto é verdade, que fui para o
front na primeira leva.”
Hélio Marques recorda: “Antes mesmo de atracarmos no porto de Ná-
poles, alguns repórteres americanos subiram a bordo em busca de infor-
mações e relatos sobre a viagem... vieram conversar comigo. O trecho da
entrevista está no livro Os Brasileiros Chegam ao Front, editado pelo Minis-
tério do Exército:
D e N ápoles a V ada
De acordo com Enéas Araújo, os integrantes do primeiro escalão deslo-
caram-se do navio até a estação, onde embarcaram no trem. Diz ter achado
muito interessante que logo na saída de Nápoles o trem passou por extenso
túnel. Depois de cerca de meia hora, a composição parou. Todos desceram
e foram a pé até Bagnoli, na cratera do vulcão Astrônia. A área não estava
preparada para receber a tropa: não havia barracas, e foi servida comida
enlatada. Além disso, havia incômoda camada de pó vulcânico, que tomava
conta do ar a qualquer movimento. Francisco Gomes complementa: “Em
Nápoles conheci o subway. Eu sabia que existiam estradas por dentro da
terra, mas nunca havia visto um trecho tão longo. A distância entre o porto
e o local onde desembarcamos não devia ter mais de 10km.” Cabe esclare-
cer que nem todo esse percurso era subterrâneo.
A tropa passou cerca de 15 dias nesse local. Enéas lembra que o lugar pos-
suía uma só entrada e era cercado pela boca do vulcão: “Sabe como é brasilei-
ro... Não demorou muito e havia soldado saindo de lá para ir até uma cidade-
zinha perto dali. Então o general Zenóbio fez uma coisa que até hoje o pessoal
detesta: um cercado de arame farpado. O sujeito que saísse e fosse preso iria
para aquele cercado. Eu e outro sargento combinamos de sair em um domingo
para nos divertirmos um pouco. Acabei caindo de serviço e não pude ir. Ele foi
e se perdeu por lá; na volta, já no escuro, veio um jipe, e o sargento pediu caro-
na. Na viatura estava o general Zenóbio. Que azar o dele! O Zenóbio deu lugar
a ele, mas em vez de seguir para o acampamento parou ao lado do cercado, e
o sargento ficou lá preso.” À meia-noite, como o amigo não havia retornado ao
acampamento, resolveu dar uma olhada no cercado: “Ele estava lá, encolhido
de frio, pois havia saído só com a roupa do corpo... Eu fui até barraca e peguei
uma manta para ele; mas só passou a noite lá. No outro dia, cedo, ele foi solto.
Essa é uma história que não consta em nenhum lugar”, confirma Enéas.
De Bagnoli o 6º RI seguiu de trem até uma estação perto de Roma, onde
havia centenas de caminhões. Todos já embarcados seguiram até o acampa-
mento de Tarquínia, de onde era possível avistar Civitavecchia. Enéas recorda
que antes de passarem ao lado de Roma foram por outra cidade onde os ame-
ricanos lutaram com os alemães por longo tempo. O lugar fora arruinado havia
cerca de um mês, e ainda era possível sentir o mau cheiro de gente insepulta. A
tropa permaneceu em Tarquínia por duas semanas: “Recebemos armamento
e equipamento, instruções de ataque, de defesa, enfim, de todo tipo; até ins-
truções de ouvir tiros tivemos. Levaram-nos para um morro e deram tiros de
canhões, de morteiros, de fuzil; era para nós identificarmos o tipo de arma e a
que distância eles estavam atirando.”
Francisco comenta que, em Civitavecchia, ocorreu a primeira baixa bra-
sileira: “O comando permitiu que descêssemos até o mar para tomar banho.
Nessa ocasião, desapareceu o primeiro soldado brasileiro [Antônio Aparecido,
natural de Mococa-SP]. Outro soldado, desportista, mergulhou várias vezes,
mas não conseguiu encontrá-lo. Foi dado como morto por afogamento.”
Depois de 15 dias, os integrantes do regimento deslocaram-se para
Vada. Porém, antes de chegarem ao acampamento, pernoitaram em um de-
terminado local, sem montar as barracas. Enéas relata que pela manhã o
comandante da companhia chamou alguns militares, todos com mais de
1,70m de altura: “Eu estava no meio dessa turma. Fomos deslocados até o
comando-geral; disseram para pegarmos o saco, colocarmos a melhor far-
De Nápoles a Pisa
Diferentemente do primeiro escalão, os demais seguiram de Nápoles
a Livorno por via marítima. Aribides Pereira relembra que após o desem-
barque do General Mann os pracinhas se acomodaram em barcaças, nas
quais seguiram para Livorno. A flotilha era de cerca de 60 embarcações de
transporte de pessoal (LCI), mais a escolta de segurança: “Dormimos nas
barcaças. Partimos na manhã seguinte. Que viagem braba! O inverno esta-
va chegando. O mar muito agitado jogava as barcaças para todos os lados.”
As palavras de Neraltino Santos ilustram o desconforto do deslocamento:
“Essas barcaças pulavam como um zebu bravo, soltas no mar agitado.”
Acervo: AHEx
Acervo: AHEx
Acervo: MNMSGM
Vidal continua: “A gente caprichava nas meias, mas tinha que cuidar
para os pés não ficarem molhados de suor. Com a temperatura baixa,
os pés úmidos poderiam congelar. O pé de trincheira era um perigo a
mais, pois podia levar à necessidade de amputação dos pés. O frio gera-
va grande mal-estar; a roupa em excesso incomodava bastante. Com a
roupa grossa, o corpo esquentava. Aí vinham o calor, o suor e a coceira.
Em decorrência, vinha o mau humor. Por várias vezes, eu vi soldados
com arma na mão chorando de frio.”
Não demorou muito para os pracinhas aprenderem vários meios de
amenizar os efeitos das baixas temperaturas. Geraldo Sanfelice recorda
que “os gaúchos estavam mais acostumados, mas não a um frio como
aquele. O mais importante era manter os pés aquecidos. Para tanto, o
macete era pegar um combat boot maior do que os pés. Após forrá-lo
com feno ou palha de trigo seca, a gente colocava mais um par de meias
de lã e pronto. O frio não tinha vez”.
Vasco Ferreira ressalta que a adaptação à neve foi muito difícil: “Co-
nheci o frio e a geada em Ponta Grossa, mas nada se comparava à neve.
Era mesmo um frio danado! Ainda bem que nós recebemos agasalhos
americanos. As botas, as luvas de couro forradas de lã, a jaqueta e o ca-
pote forrados e a capa de camuflagem branca amenizavam o frio.”
O potiguar Severino Oliveira relembra que certa manhã, em San Ros-
sore, ao sair da barraca para tomar banho, “parecia que havia pisado em
uma brasa... O gelo também queimava a pele”. No front era ainda mais
difícil encarar o frio: “Fazíamos patrulhas quase todas as noites, com as
roupas brancas para neve. Manejar o armamento era muito complicado;
o frio encrenca a gente.”
Para Hélio Marques a adaptação foi extremamente difícil, especial-
mente no front: “Nos Apeninos, pegamos frio de -18°C, -19°C. Os dedos
de tão duros não fechavam. Por vezes precisamos apertar emendas de
fios telefônicos com os dentes. O inverno foi rigoroso, mas as roupas que
recebemos dos americanos tornavam o frio mais suportável. Em um ano
na Itália, não tive uma gripe sequer e nunca baixei à enfermaria.”
Orlando Camargo confirma as dificuldades enfrentadas na linha de
frente: “Como o batalhão estava sempre em movimento, precisávamos de
mobilidade; dormíamos na cama-rolo. Fazíamos um buraco do tipo para
defunto, um tanto raso; forrávamos e jogávamos a cama. Se caísse neve, era
só jogar mais um cobertor por cima.” Cleir de Carvalho diz que “era muito
frio; abaixo de zero. O local onde dormíamos era um buraco que fazíamos
com nosso material. Forrávamos com papelão dos caixotes de ração, manta
e roupa. Banho não existia. Fiquei mais de um mês sem tomar banho”.
Acervo: MNMSGM
Paura, diziam os italianos. Eu diria que era superpaura, muito medo”. Em uma
escaramuça, seu grupamento aproximou-se de uma casa onde havia quatro
idosas: “Quando viram a gente e perceberam que estávamos assustados, disse-
ram algo como não tenham medo; o inimigo está distante. Havia sempre algum
soldado descendente de italianos, e isso facilitava a comunicação... O medo era
constante, mas era palavra proibida. ‘Tá com medo, soldado?’ ‘Não, senhor!’
era a resposta mais apropriada. Bom mesmo, mas muito difícil, era nem pen-
sar no medo. O problema é que o capacete alemão, mesmo sem soldado em-
baixo, impunha respeito; tirava sono até de criancinha”, conclui brincando.
Acervo: AHEx
para a missão; depois que saíamos, o medo não existia mais. Passávamos o
dia pensando na patrulha, e aquilo era desagradável. Mas quando chegava
a hora e vestíamos a roupa para partirmos em missão, o medo desapare-
cia. Durante a missão a gente precisava ter atenção em tudo: no inimigo, na
gente mesmo, em não errar o caminho; não dava nem tempo para pensar
no medo. E quando a gente voltava seguro se sentia muito bem”. Newton
Lascalea concorda que o medo existe, mas é preciso vencê-lo: “Depois que
começa o combate, o medo desaparece; é uma questão de sobrevivência!”
José Cândido confirma que “na hora do combate, tudo muda. Eu tive
muito medo, mas nunca demonstrei, nem aos superiores e nem aos subor-
dinados. Eu sempre animava o pessoal e, como alagoano, não admitia de-
monstrar o medo. Em muitas ocasiões, quando os soldados diziam ‘Cabo,
não vamos não, que nós vamos morrer’, mesmo sabendo que era perigoso,
eu nunca demonstrei medo; eu os encorajava e seguíamos em frente”.
Para Enéas Araújo o chefe precisa compreender que o medo é natural e
que cada um o enfrenta de modo diferente. Menciona o caso de um soldado
que, após recuperar-se no hospital, voltaria ao combate no dia seguinte:
“Ele havia saído do front em razão de cabeça ruim. Perto do lugar onde a
gente estava, havia uma bateria inglesa que ao atirar fazia tudo tremer. Eu
vi um inglês colocando uma bomba em um canhão e pus as mãos nos ou-
vidos. Quando deu o tiro, a casa sacudiu. Esse soldado que iria retornar à
frente de combate ficou igual a um louco: entrou embaixo da cama e tremia
de medo. Quando serenou, levei-o ao comandante de companhia e disse-
lhe que o soldado não tinha condições de voltar ao combate. Acabou não
indo.” Orlando Camargo acrescenta que não teve medo, mas na condição de
chefe “devia entender a situação de cada comandado e respeitá-la. Quando
alguém tinha muito medo, a gente precisava removê-lo para a retaguarda.
Isso era raríssimo; a maioria encarou o medo e foi para a guerra”.
Ivan Alves relata que, depois do duro revés sofrido pelo 1º Batalhão
(do 11º RI), em Bombiana, no dia 2 de dezembro, o 3º Batalhão, que estava
no sopé do Monte Castelo, teve que guarnece ainda mais sua posição. “O
comandante empregou todo mundo que estava disponível. Um soldado
corneteiro, com apelido de Mansinho, foi designado para guarnecer um
daqueles becos. Havia a possibilidade de aparecer alemão por qualquer
lado, e a ordem era não deixá-los passar. Havia outro soldado, Gilberto
Orlandi, do Paraná, que era do meu grupo. Gilberto vinha subindo, e
Mansinho mandou que ele parasse e se identificasse. Quando Gilberto se
Custódio conclui: “Era instrução para tudo: como usar novos fardamentos
e armamentos, sobrevivência, proteção contra o frio etc. As primeiras
instruções foram ministradas por sargentos norte-americanos, que usavam
Ivo Ziegler recorda que, apesar de haver chegado à Itália um dia após a
tomada de Monte Castelo, a guerra continuava. Entre os preparativos para
o combate, estavam o treinamento físico e as instruções de tiro com novos
equipamentos e armamentos, tais como canhões, bazucas, metralhadoras,
morteiros, granadas etc. Esses treinamentos eram realizados com munição
real, o mais próximo possível do que encontrariam em combate. Essa era a
rotina dos pracinhas que permaneceram no Depósito de Pessoal para even-
tual reposição das tropas em ação na linha de frente: “A reserva devia estar
preparada em caso de necessidade.”
Para Alcides Basso os treinamentos foram rigorosos, cansativos. De dia
ou à noite eram sempre com munição real. Alega que não tinha medo, pois
sabia que era treinamento. Contudo, como a munição era real, tudo preci-
sava ser exercido com muita correção: “Nas pistas de progressão, devíamos
rastejar de costas para o chão, com o fuzil roçando no arame farpado. Acima
do arame, a bala ia comendo. À noite, a munição traçante impunha ainda
pé, meio curvado; não havia água corrente; luvas não existiam na época; o
esterilizador era uma caixa metálica com uma lamparina embaixo.” A rotina
diária por seis meses foi levantar às 6h; das 7h ao meio-dia e das 13h às
17h atendia no consultório. A partir das 17h, no inverno escurecia. Por dia
atendia de 12 a 15 pacientes: “Apesar de ter ido à guerra para lutar contra o
inimigo, não dei um tiro sequer. O único sangue que tive nas mãos foi o dos
companheiros dos quais eu extraía os dentes.”
Relata que sua missão era atender os integrantes do 3º e 4º batalhões.
Porém, certa noite um soldado do 1º Batalhão estava com muita dor de
dente, e, mesmo não cabendo a ele o atendimento, um sargento de sua com-
panhia, que trabalhava no aprovisionamento, insistiu para que ele assis-
tisse o soldado, considerado irmão por tal sargento. Como o caso era de
urgência, à meia-noite fez uma cirurgia para extrair o dente, com a precária
iluminação de uma lanterna, em um frio terrível. Depois de atender o rapaz,
deu um laudo para que ele repousasse no dia seguinte. A partir do almoço
seguinte, o sargento, que havia ficado muito agradecido, convidou-o para
almoçar com os integrantes do aprovisionamento: “Lá havia ovo em pó que,
misturado à água e batido, dava uma omelete e tanto. O almoço era maravi-
lhoso! Depois de dois dias almoçando com eles, achei desagradável, porque
o pessoal da companhia ia almoçar de marmita, e eu comendo melhor do
que eles... Esse foi um fato pitoresco que vivi”, conclui Rosenthal.
No Brasil, Pozzobon havia tido instrução básica de comunicações. Co-
nhecia o Código Morse, no qual cada letra ou número equivale a um conjun-
to de pontos (sinais sonoros curtos) e traços (sinais sonoros mais longos).
Na Itália, estava preparado para trabalhar com as peças de artilharia como
observador avançado. Munido de binóculo, bússola, telégrafo e radiotrans-
missor, teria a tarefa de reorientar os tiros de artilharia no front. Por sorte,
segundo diz, nunca foi destacado para ir à frente de combate. Entre os me-
ses de abril e julho, realizou o curso de comunicações com o novo equipa-
mento, adquirido dos norte-americanos. Seu objetivo era permanecer no
Exército após o retorno ao Brasil.
Alguns veteranos, embora poucos, ainda fazem distinção entre os pra-
cinhas que efetivamente combateram os alemães e italianos e os que per-
maneceram no Depósito de Pessoal. Para Alcides Basso, “é injusto desme-
recer o trabalho de qualquer integrante da FEB. O fato de alguém não ter
ido para o front não o faz menos pracinha do que qualquer outro. Até diria
que teve mais sorte quem não precisou enfrentar o inimigo frente a frente.
não sabíamos que a área estava minada... Várias minas explodiram por
pisada ou por indução. O cabo Ladeira pisou em uma; ficou despedaçado...
O soldado Orlando Martins também pisou. Eu saí correndo e bati nas costas
de um colega, o soldado Neri. Eu tinha só 19 anos... Na minha frente, houve
uma explosão. Aquilo tudo levantou... areia, pedras, uma nuvem horrível.
Conforme eu vinha correndo, me faltou o chão. Quando eu dei por mim,
estava dentro de uma cratera, com as pernas dobradas na posição que os
muçulmanos rezam... Atrás de mim, estava o Neri em pé, com o rosto todo
arrebentado e sangue escorrendo nos cantos dos olhos... Ele dizia: ‘Estou
cego! Estou cego!’ O tenente ficou de pé; estava com as costas arrebentadas
e com as orelhas ensanguentadas. Então ele disse: ‘Me dá a mão!’ Disse
a ele que não estava sentindo as pernas... Eu ouvia os companheiros me
animando: ‘Levanta, Vasquinho, levanta!’ De tanto me incentivarem,
levantei! O tenente disse para eu pisar onde ele pisasse. Devagar, saímos
do campo minado. Com esse ato heroico e anônimo, ele arriscou a vida
para me salvar. Era o primeiro-tenente Luiz Gonzaga de Moura, de Santa
Catarina. Eu fiquei com alguns fragmentos de pedra e areia cravados no
rosto... O soldado Neri ficou com o rosto todo inchado e foi para o hospital.
O tenente também foi para o hospital; a jaqueta dele ficou despedaçada nas
costas. Depois de algum tempo, o tenente e o Neri voltaram para o pelotão,
para participarem da guerra conosco. O Neri, depois da guerra, ficou cego
em razão das sequelas... Estranho é que todas as áreas minadas eram
demarcadas por fitas, mas aquela não.”
Geraldo Sanfelice, apesar de ter descido do navio carregado pelos ami-
gos, logo recompôs as forças e foi incluído no efetivo do 11º RI, de Minas
Gerais: “Nunca fui a Minas, mas conheci muitos mineiros, que eram gente
muito boa.” Com menos de duas semanas em solo italiano, por ser bastante
experiente foi escolhido para ir ao front. Recorda que encontrou o capitão
Henrique C. Cardoso, com o qual servira no 7º RI, em Santa Maria. Este lhe
disse: “Amigo, como é que tu ‘deixou’ te pegarem para vir para a guerra? E
agora tu ‘vai’ para a linha de frente...” Sanfelice respondeu-lhe que não podia
nem queria fugir da obrigação e que estava na Itália justamente para isso: “O
jeito foi me entrosar ainda mais com os amigos mineiros e seguir em frente.”
Rubens Andrade saiu do Brasil no 3º contingente, como tropa de re-
completamento: “Em janeiro de 1945, fui incluído no 11º RI. Havia falta
de padioleiros, pois dois deles haviam sido feridos em combate. Como eu
havia feito a preparação para ser padioleiro, pude optar; perguntei qual
era a arma do padioleiro, e disseram que era a cruz vermelha. Preferi ficar
mesmo na infantaria, pois lá eu teria um fuzil para me defender. Na minha
primeira patrulha, abaixo de neve intensa, vesti um casacão de lã fornecido
pelos americanos. Quando vi os companheiros só com a farda, com poucos
agasalhos, achei estranho. Na volta da patrulha, percebi por que: o casacão
encharcado pesava uns 100kg, e eu nem podia jogá-lo fora.”
Alcides Basso diz que, no Depósito de Pessoal, era possível ouvir os
tiros de artilharia ao longe. Recorda que “o barulho produzido pelo bom-
bardeio de Montese, a partir de 14 de abril de 1945, era assustador até
para quem estava distante. Imagina para mim, que justo no dia 14 parti
para o front rumo ao norte da Itália. Com pouco mais de um mês e meio
de treinamento e preparação psicológica na Itália, havia chegado a minha
vez de conhecer o inimigo. Se pelo barulho dava para perceber que o com-
bate estava acirrado, ao passarmos por Montese o impacto foi ainda mais
chocante: o silêncio era total, tudo estava destruído e havia alguns focos de
fumaça. Pela primeira vez senti o cheiro da guerra e posso dizer, com toda
segurança, que não é nada agradável”.
Acervo: AHEx
ao longo do rio Arno havia um trator arrumando uma estrada bastante es-
treita: de um lado estava a montanha; do outro, o despenhadeiro. Como era
uma missão de estafeta, usava somente a pistola. Quando estava parado,
aguardando a passagem pelo trator, saltaram seis italianos do mato, arma-
dos de fuzil. Por sorte, estavam com braços levantados e o fuzil sobre a ca-
beça, prestes a se renderem. Foi um baita susto. Recolhemos o armamento
e entregamos os soldados a um major do exército norte-americano, que os
conduziu para a retaguarda.”
No relato de José Cândido, fica claro que, apesar do sentimento de re-
vanche, os prisioneiros de guerra, além de serem tratados segundo conven-
ções de guerra e recomendações do comando da FEB, recebiam tratamento
humanitário de nossos soldados: “Em uma patrulha antes de Monte Cas-
telo, meu grupo fez alguns prisioneiros. Os inimigos haviam se rendido e
estavam com as mãos para cima, após serem desarmados por nós. Alguns
soldados quiseram se vingar e fuzilar os alemães. Não permiti nenhuma
morte. Na volta dessa patrulha, já sob o comando do tenente, perguntei a
ele se podia dar um cigarro aos prisioneiros. Recordo como se estivesse fa-
lando isso hoje. O tenente disse: ‘Você sempre com essa bondade, seu Can-
dinho, ou melhor, cabo Cândido. Pode dar um cigarro a eles.”
Acervo: Vet. Wanda Pedroso
Na bacia do Serchio
No dia 15 de setembro, Samuel Silva entrou em linha nos Apeninos,
“próximo à Linha Gótica, linha de defesa preparada por um exército que,
na época, era o melhor exército do mundo. Substituímos a tropa do 370º
Regimento de Infantaria Americano; só que, no meu caso, com meu pelotão,
com minha gente, não houve uma substituição com passagem de função.
Quando nós chegamos, eles já haviam saído. A rotina era subir morro, des-
cer morro, sem nenhuma experiência de combate em montanha. Os ale-
mães tinham soldados especializados no combate em montanha, os ameri-
canos tinham a 10ª Divisão de Montanha. Nós tínhamos uma infantaria de
planície, mas que era também de montanha, de selva, de neve, de calor... era
de tudo. A infantaria brasileira era de tudo!”
Hélio destaca sua participação nesse evento: “Eu era o chefe da equipe
de transmissões da 1ª Bateria, a que deu o primeiro tiro da artilharia bra-
sileira na guerra. O pessoal das transmissões sempre ia à frente. Munidos
de um croquis [esboço do terreno], levávamos a ponta do fio ao local deter-
minado, para que, quando a peça de artilharia chegasse à nova posição, já
estivesse estabelecida a comunicação com o PC. Eu era o sargento-chefe da
equipe de transmissões e levava o fio para que o tenente Ramiro, o obser-
vador avançado da bateria, pudesse repassar as orientações e as correções
necessárias ao tiro.”
Enéas Araújo comenta a dificuldade de recordar datas e nomes exatos
de vilas e comunas por onde passaram, pois a região era muito acidenta-
da. Feita essa ressalva, diz que o 1º Batalhão do 6º RI, no dia 16, enfrentou
os alemães e tomou Massarosa, e, no dia 18, Camaiore. Esclarece que, en-
quanto o 1º e o 3º batalhões ficaram na zona de baixo do rio Serchio, ele,
integrante do 2º Batalhão, precisou enfrentar a serra dos Apeninos: “Era
subir, subir, e, a cada cidadezinha que chegávamos, os italianos falavam
que os alemães já tinham passado por lá; só deixavam uma pequena tropa
para retardar o nosso avanço. Quando chegávamos perto, eles se afasta-
vam. Isso foi por vários dias; sempre colocando patrulhas para procurar
naquelas alturas.”
Depois que o Brasil entrou na guerra, Newton Lascalea sempre esteve
na linha de frente: “Meu primeiro combate foi em Massarosa; depois Bol-
zano, Zocca... Naquela cordilheira alpina, estive em muitos lugares, pois
em cima de cada pico daqueles tem uma cidadezinha. Castel d’Aiano, Pie-
tracolora, Belvedere, Monte Castelo, Torre de Nerone e outras que nem
lembro mais.”
João Gonzalez era integrante da Companhia de Petrechos Pesados do 1º
Batalhão do 6º RI, cujo comandante era o capitão Atratino Cortes Coutinho,
que se destaca por sua integridade. Conta Gonzalez: “Entrei em combate
em 15 de setembro. Nesse dia, substituímos uma companhia de america-
nos, cujo comandante era mexicano. Na passagem do comando, meu co-
mandante mandou me chamar, porque eu descendo de espanhóis. Eu falava
alguma coisa em espanhol e entendia muita coisa, mas o mexicano falava
um espanhol meio esquisito... Fiquei na companhia durante o dia; à noite,
fui para a linha de frente. A primeira noite foi triste: de madrugada, estava
tudo quieto. De repente, começou um tiroteio tremendo de metralhadoras.
Temíamos muito a metralhadora deles, que só depois fomos conhecer. Era
uma arma com poder de fogo muito grande. Enquanto a cadência de tiro de
nossa metralhadora era de 250, a cadência da metralhadora deles era de
1.300 tiros por minuto. É quase inenarrável: nos assustou muito.”
Gonzalez era chefe de transmissões e, por isso, estava em constante
perigo. Assim narra sua última missão: “Fui ferido em Camaiore. Houve o
rompimento de uma linha telefônica pelos fogos da artilharia alemã. Nós
apoiávamos a 1ª, a 2ª e a 3ª companhias. O capitão falou: ‘Olha, você precisa
consertar essa linha.’ Eram 11h da noite. Eu falei: ‘Vamos tentar!’ Arrumei
quatro soldados, e pegamos algumas bobinas... Cada bobina tinha 500m de
fio. Saímos! Em um determinado momento, nós estávamos em um lugar
onde caía uma bomba a cada 20 segundos... mas isso é modo de dizer, por-
que caía uma atrás da outra... Eu telefonei para ele [capitão] — andávamos
com a linha na mão para ver onde o cabo estava rompido — e falei: ‘Capitão,
aqui o negócio está muito perigoso. Estou me arriscando e arriscando a
vida dos quatro soldados que estão comigo.’ Então ele disse: ‘O que é isso,
rapaz! Você está com medo? Você nunca demonstrou medo, como é que
agora você não quer seguir?’ Disse a ele: ‘Não é propriamente medo, estou
querendo me precaver e resguardar meus soldados.’ ‘Não, não... Vá em fren-
te’, insistiu o capitão. Ah, mas não andei mais 200m. O estilhaço de uma das
bombas me atingiu no pulmão direito e não vi mais nada. Só lembro que caí
e perdi os sentidos.”
Gonzalez continua: “Eu temia muito as patrulhas alemãs... Antes de sair,
eu havia dito para os soldados: ‘Se nós formos surpreendidos, que cada um
procure se safar, porque não tem como um ajudar o outro nessa hora.’ E o
atingido fui justamente eu... Eles correram, recuaram. Não sei quanto tem-
po depois eu tentei me levantar, mas a hemorragia era muito grande e me
enfraqueci muito; havia perdido muito sangue. Depois de algum tempo, eu
ouvi vozes — assim quando se ouve mal ao telefone... Parecia muito distan-
te, mas estavam próximos. Eu me ajeitando no mato, eles atiraram contra
mim, contra meus soldados, julgando que eu fosse um inimigo. Como eu
não reagi, chegaram perto e me encontraram. Então me carregaram até um
posto avançado de saúde, onde recebi soro ou sangue, e depois me levaram
para um hospital.”
Samuel Silva narra seu primeiro contato com o inimigo: “Íamos
caminhando, descendo um morro. Um soldado carregava a metralhadora;
outro, o reparo; os soldados que vinham atrás, as caixinhas de munição;
o fuzil em bandoleira, cruzado. O sargento vinha igual a um camelo:
um soldado lá naquela casa para saber se o tenente ainda estava lá. Olha
só... eu também fiz o mesmo. Comecei a perceber isso, ali, no primeiro
contato com o inimigo.”
Enéas estava nas proximidades de Fiano, vilarejo de duas ruas e uma
igrejinha: “Foi ali nosso batismo de fogo. O capitão mandou o sargento Se-
rigato ir até lá com seu grupo. Ele foi e não encontrou ninguém; igreja fe-
chada, nenhum movimento. Voltou e fez o relato ao capitão. No outro dia,
o capitão mandou o mesmo grupo reconhecer o local; somente acrescen-
tou o sargento Onofre, que era o sargento orientador do pelotão. Antes de
tal grupo chegar lá, o capitão soube pelo rádio que os alemães estavam no
morro, mas não deu tempo de avisar a patrulha. Serigato conversou com
um italiano que lhe disse que o povo todo da vila estava escondido no mato,
com medo dos alemães. O italiano disse que tocaria o sino para avisar que
os brasileiros estavam chegando, pois, dependendo do tipo de toque, o
povo deveria permanecer fora ou poderia voltar para a vila; era uma con-
venção que haviam adotado. Quando ele saiu da igreja, após tocar o sino,
os alemães abriram fogo na praça... Foi uma correria daquelas! Serigato foi
atingido por um ricochete acima do olho. Voltaram correndo pela estradi-
nha, mas os alemães não atiraram na estrada, só na praça. Serigato estava
todo ensanguentado; pensou que estivesse cego.”
Enéas diz que faltaram dois soldados; no resto do dia, tudo permane-
ceu em silêncio. À tardinha apareceu um italiano para avisar ao capitão que
ele havia recolhido os dois feridos. Um deles, gaúcho, o Dorneles, havia le-
vado um tiro na perna; o italiano, tirado a bala e feito o curativo. O outro
levou um tiro que furou o capacete de aço; o projétil desviou no capacete de
fibra [o capacete de aço é afixado sobre o capacete de fibra] e saiu por trás e
para baixo, arrebentando suas costas e nádega; estava muito ferido; ambos
foram cuidados por uma senhora, em uma daquelas casinhas.
Enéas foi chamado pelo capitão, que lhe falou: “‘Você reúne seus
homens; eu vou pegar mais alguns para aumentar seu grupo, e vocês vão
buscar os feridos. Vocês vão se deslocar às 7h30min [da noite]. A artilharia
vai bater o morro. Às 8h, a artilharia vai diminuir os tiros, e, nessa hora,
vocês entram na vila e resgatam os dois, com padiolas.’ A artilharia
começou a bater o morro, e eu saí com a patrulha. Eu fui à frente com o
italiano, que ia mostrar o lugar. Quando eram 8h, diminuíram os fogos.
Foi tudo muito bem. O rapaz estava lá, e o pusemos na padiola. Saímos!
Quando entramos na estradinha, eles [alemães] começaram a bater de
morteiro. Os tiros pegavam todos na nossa frente. Ainda bem que tinha
uma valeta boa, protegida por um barranco. Ficamos mais de hora ali,
e os alemães atirando. O italianinho disse que mais à frente havia uma
curva e uma passagem pelo meio do mato. Fomos rastejando pela beira do
barranco. Depois que pegamos a curva, o difícil foi subir com as padiolas,
pelo meio do mato, mas conseguimos. Eu sei que quando chegamos ao
local onde estava a companhia, a mais ou menos 1km, eram quase duas da
manhã. Quando chegamos lá, já havia uma ambulância à espera. O capitão
nos liberou para dormir. No outro dia, cedo, veio ordem para avançar.
Passamos por Fiano, já sem tiros, pois os alemães haviam recuado.”
Enéas continua: “Passamos por várias cidadezinhas sem encontrar os
alemães. Fazíamos patrulhas, mas sempre nos informavam que os alemães
já haviam passado por lá. Chegamos a Trassilico. Quase no final de outubro,
o capitão me chamou: ‘Você vai fazer uma patrulha que é perigosa. Tem
um coronel partisano [cidadão armado, integrante do movimento de re-
sistência] mais no alto, que vai dar todas as coordenadas de onde estão os
alemães. Leve papel para fazer um croquis. Depois você volta.’ Saímos. Sobe
morro, desce morro, atravessa mata, riozinho... Chegamos ao local depois
das cinco. O coronel disse que estávamos atrasados e me levou até certo
ponto, perto de Garfagnana, onde havia um entroncamento ferroviário. To-
mei nota de tudo. Começou a escurecer, e o coronel perguntou se eu tinha
bússola. Quando disse que não, ele falou que seria perigoso voltar durante a
noite e me aconselhou a pernoitar ali. Reuni meu grupo e disse que era pe-
rigoso, pois podia haver tropa alemã. Eu era o mais ‘criança’, com 20 anos.
Os soldados todos eram mais velhos do que eu. Falei com eles, e disseram
que a decisão era minha. Resolvi pernoitar ali.”
Conforme Enéas, “o partisano arrumou uma espécie de bar, onde pernoi-
tamos. No bar, havia uma saída pelos fundos, na direção que deveria voltar.
Ele falou que todas as noites os alemães patrulhavam a cidade e passariam na
porta do bar onde estávamos. Fomos à casa do partisano, jantamos e toma-
mos vinho. Por volta das 10h, voltei ao bar, e já estava todo mundo dormindo,
menos a sentinela. Antes de clarear o dia, desloquei a patrulha. Quase uma
hora depois, chegamos a Trassilico. O capitão já havia montado outra patrulha
para nos procurar. Ele veio me dar uma bronca, mas eu tinha jeito de falar com
o capitão, e ele não conseguia ficar brabo comigo. Mostrei a papelada que fiz, e
ele pegou o jipe e foi ao comando. Nossa companhia foi até uma cidadezinha,
onde tivemos um descanso de três dias em casas. Até então, não tínhamos
passamos alguns dias. Ali a chuva nos pegou! De jeito nenhum podia pôr
barraca. Nós tínhamos recebido dois cobertores: já estavam prevendo um
inverno rigoroso, mas não contavam com essa chuva... Um usávamos para
fazer uma espécie de barraca, estendendo-o a uns 30cm do chão. Nós nos
enrolávamos no outro e entrávamos embaixo. Não adiantava muito porque
o cobertor de cima encharcava. A água empossava e acabava molhando
tudo. Passamos uns oito dias naquela situação.”
Em Barga de Garfagnana, Paulo Carvalho sempre acompanhava o te-
nente na condição de mensageiro, com os grupos de combate: “Havia um
soldado chamado Alcebíades [Bobadilha da Cunha], do Mato Grosso; era
muito meu amigo; era aquela amizade gratuita, que não sabemos por que,
e não nos larga... Ele era assim: amigo! Falava guarani e queria me ensinar.
Eu era mensageiro, e ele fuzileiro, mas eu ia junto para todo lugar. Coitado!
Naquele dia, depois de eu ter deixado os prisioneiros alemães na retaguar-
da e voltado para junto da companhia, naquele ataque alemão, ele levou um
tiro na testa e caiu do meu lado; segurou minha mão e disse ‘Paulo...’ e caiu.
Foi uma coisa muito triste... Até hoje eu choro [emoção e lágrimas]. Alcebí-
ades... filho de índios... do Mato Grosso. São as passagens tristes da guerra.”
Paulo Carvalho recorda que, em 7 de novembro, em Barga di Garfag-
nana, dois alemães se renderam: “Eles estavam com duas metralhadoras
Lurdinha. O tenente deu a missão de levá-los para a retaguarda... A pro-
paganda nazista recomendava aos alemães que não se entregassem aos
brasileiros; que nós éramos selvagens, que os mataríamos e não fazíamos
prisioneiros... O tenente Carrão tirou as metralhadoras e os pentes de mu-
nição do peito deles. Eles me olharam meio assustados, e um disse: ‘Non
kaput!’ Quer dizer, ‘Não me mate!’ Eu lhe respondi: ‘Non kaput!’ Ele não
acreditou e repetiu: ‘Non kaput!’ Confirmei: ‘Non kaput!’ Quando os mandei
seguirem em frente, com gestos, eles insistiam: ‘Non kaput!’ Eu sempre con-
firmava... Eles estavam com medo que eu os matasse mesmo. Ofereceram
um cigarro, e eu aceitei para ficar um ambiente mais ameno, menos tenso.
Durante o deslocamento, eles repetiram várias vezes o Non kaput. Até que
chegamos a uma encruzilhada. Eu era meio ruim de caminho e ia virar à
direita. Eles disseram: ‘Non, non, germans, germans!’ Era o local onde estava
a companhia deles. Quer dizer: era para eu seguir à esquerda, se não iria
dar em cima da companhia deles, e eles não queriam voltar para lá. Eu não
sabia se podia confiar neles, mas resolvi acreditar. Se eu não tivesse ido por
onde eles disseram, eu teria sido prisioneiro... Eram dois mocinhos de 17,
nós embaixo. Ficava fácil para eles...”. Benedito Bernardino explica que os
brasileiros usavam uma técnica parecida: “Eu era cabo atirador de morteiro
60mm. Dávamos muitos tiros de inquietação. Assim que atirávamos, já
esperávamos a resposta. Saíamos da posição que estava o pelotão para não
denunciar a posição e para tirar a atenção sobre o deslocamento da tropa.
Fazíamos barulho de um lado, e o pelotão deslocava do outro. Assim que
começávamos a receber tiros, voltávamos para a posição, junto ao pelotão.”
Porreta Terme
Neraltino Santos relata que a artilharia estava acampada em Porreta após
o início de novembro e de lá fazia concentração de fogos sobre Monte Castelo:
“Eu era ordenança, sacristão e carpinteiro, mas no dia anterior ao ataque final a
Monte Castelo o tenente estava procurando voluntários para uma patrulha de
reconhecimento. Fui voluntário.” Na verdade, o tenente estava apenas testando
a coragem dos pracinhas, pois não haveria patrulha nenhuma. Assim, Neraltino
carregou muita munição para as peças de artilharia, que foram de suma impor-
tância para a vitória em Monte Castelo, em 21 de fevereiro. Em Monte Castelo,
os combates seguiam intensos e faziam aumentar o número de baixas. Estava
na retaguarda com a Artilharia, mas o movimento de padiolas com soldados
feridos e mutilados era grande. Segundo diz, seu conterrâneo João Moreira Al-
berto estava entre os heróis que perderam a vida durante as ações que culmina-
riam na tomada do Monte Castelo.
Acervo: AHEx
nhã você vai fazer coleta, poderia levar o pessoal para tomar banho...’ Eu lhe
respondi: ‘Ah, pode ser.’ No dia seguinte, preparei tudo e levei os soldados.
Enquanto fazia a coleta, eles foram para o banho. Quando cheguei, fiquei
esperando eles voltarem. Foi quando começou o bombardeio... Fui ferido.
Passava um jipe também. O estilhaço degolou o oficial — acredito que era.
O corpo ficou sentado no jipe, e a cabeça caiu. Como era em uma ladeira, a
cabeça do homem foi parar na beira da estrada. Vi aquele cenário... Eu quis
andar e não pude. Feriram minha perna, então saí rastejando. O soldado
Cortez disse que era para ir embora, porque viu o caminhão recolhendo os
feridos... Aí veio o caminhão e me levou para o hospital. Fui para Pistoia,
Livorno, Nápoles e depois Nova Orleans, nos Estados Unidos.”
Porreta Terme – Fios telefônicos chegam à cidade. Na base inferior, viatura da FEB,
com o emblema do Cruzeiro do Sul, junto a uma viatura norte-americana
Monte Castelo
A partir de 24 de novembro, foram feitas quatro tentativas infrutífe-
ras para conquistar Monte Castelo. Duas foram realizadas em conjunto
com o exército norte-americano e duas por tropas exclusivamente bra-
sileiras. Após longa pausa imposta pelo rigoroso inverno, durante o qual
não cessaram as atividades de patrulhas, a FEB partiu para a 5ª tentativa,
em 21 de fevereiro de 1945, conquistando o até então inexpugnável pon-
to de defesa alemão.
Nesse esboço é possível visualizar os locais onde se passaram muitas das histórias
narradas neste capítulo
Ainda segundo Ivan Alves, “no dia 12 de dezembro, em mais uma ten-
tativa brasileira de tomar o Castelo, os alemães fizeram um contra-ataque
ao 1º Batalhão do 11º e outro batalhão do 1º RI. Meu batalhão estava na
reserva. Era uma época de muita chuva e muita lama; era difícil progredir”.
Tal episódio ficou conhecido como “Os Dezessete de Abetaia”. Na verdade,
o número de brasileiros mortos foi maior. Os corpos não puderam ser res-
gatados, pois a operação poria mais vidas em risco, permanecendo insepul-
tos, cobertos pela neve, até a FEB tomar o Monte Castelo.
Divaldo Medrado integrava o 2º Pelotão da 1ª Companhia do 1º Bata-
lhão do 11º RI. Em suas palavras é fácil depreender a brutalidade do com-
bate em Abetaia: “Foi necessário um esforço muito grande para vencer o
frio, o barro e o fogo inimigo... Ver um companheiro tombando causa uma
dor sem explicação. É o pior momento da guerra! Um companheiro cai a
seu lado, pede socorro, e você não pode oferecer porque está com as vis-
tas voltadas para o inimigo. É uma dor muito grande estar nessa situação.
Fazíamos de tudo para atender a um companheiro ferido na medida do
possível, mas sabíamos que não podíamos tirar a atenção do que estava
à nossa frente, se não também seríamos eliminados. Devíamos acionar os
enfermeiros para cuidar daquele ferido.”
Medrado continua: “Quando tomei os tiros em Abetaia, nas raias do
Monte Castelo, a impressão que eu tive era de estar morto. Só quando al-
guém me chamou pelo nome é que eu percebi que continuava vivo. Foram
13 tiros que me acertaram... Arrebentaram a omoplata, a clavícula e o úme-
ro. Fiz o curativo, mas um ferimento nas costas não foi bem fechado, e per-
di muito sangue. Quando cheguei ao posto de atendimento médico, já não
conseguia andar. Fui amparado por companheiros que me levaram para
dentro. Os padioleiros fizeram o primeiro atendimento. Depois me levaram
para um posto médico, com maiores recursos. Credito isso a Deus; é ele que
nos dá a vida e pode tirá-la quando quiser.”
Sérgio Pereira participou também dessa tentativa de tomar o
Monte Castelo dos alemães. Assim narra sua participação na ação em que
seu comandante, o mato-grossense João Tarcísio Bueno, foi gravemente fe-
rido: “O capitão estava em combate, peito a peito, muito próximo do inimi-
go. Ele estava à frente da companhia, a meu lado quando caiu. Pegaram-no
feio mesmo! Arrebentaram as costelas com uma metralhadora... Os outros
voltaram. Eu enfrentei o desafio: não voltei; fiquei ao lado dele. Depois o co-
loquei nas costas e fui trazendo, até onde ele pudesse ser socorrido.” Sérgio
não sabe precisar a distância que carregou seu comandante, mas acredita
não ter sido muito; entregou-o aos padioleiros, que o conduziram ao hos-
pital. O capitão Bueno foi evacuado para o Brasil, onde se recuperou dos
ferimentos. O soldado Sérgio, pelo feito, não mais foi destacado para o front
e passou a trabalhar no posto de comando da companhia, na retaguarda.
Com humildade característica dos autênticos heróis, passadas quase
sete décadas, Sérgio lembra: “Foi uma ação normal! Era a missão a ser cum-
prida. Eu era ordenança dele, e era o meu dever!” Em poucas palavras, resu-
me um feito memorável, eternizado na seguinte Citação de Combate:
Abrigo alemão
hora será que eles dormem? De dia, era a resposta mais óbvia.” Então, re-
solveram fazer uma patrulha: “Chegando lá, estavam todos dormindo; não
havia nem uma sentinela. Íamos cutucando cada um com o fuzil; quando
acordavam, mandávamos com gestos — linguagem universal que todos en-
tendem — para se levantarem e ficarem quietos. O quinto alemão, que já
havia acordado, ao ser cutucado reagiu pegando o fuzil. Para não receber-
mos tiro dele, não nos restou alternativa... Com o tiro, todo mundo acordou.
Foi um alvoroço... Conseguimos voltar à nossa base. Informamos ao capitão
que tínhamos quatro prisioneiros. O capitão perguntou quem havia man-
dado fazer prisioneiros. A justificativa foi a de que havia quatro dias não
nos deixavam sossegados, e tínhamos resolvido acabar com o sossego deles
também. O capitão mandou buscar os prisioneiros, e eles foram evacuados
para a retaguarda.”
Rubens prosegue: “Nesse mesmo dia, fomos substituídos. Saímos da po-
sição e fomos até uma estrada. O pessoal do rancho estava lá. O cozinheiro
fritava ovos e os colocava em um tacho de cobre. Eu, morrendo de fome, olhei
de um lado e de outro, dei de mão em um ovo e o joguei na boca. O ovo estava
quente... Manobrar aquele ovo na boca não foi fácil... Ele batia em um lado
da boca e queimava; no outro, pelava... Engoli o ovo inteiro, sem mastigar.
Depois, entrei na fila... Eu era o último. Quando chegou minha vez de pegar
um ovo, o cozinheiro disse que havia fritado um para cada, que não estava
entendendo o que havia acontecido... Eu disse para ele: ‘Você não sabe, mas
eu sei!’ O castigo veio a cavalo, pois, em vez de ter apreciado um ovo, acabei
todo queimado.”
Nos fragmentos do relato da enfermeira Virgínia Maria de Niemeyer
Portocarrero, datado de 21 de fevereiro de 1945, é possível compreender
a crueldade dos combates em Monte Castelo: “Enfermaria cheia. Quanta
mutilação! Quanta miséria... Na sala de operações o aspecto é terrível. Pe-
daços humanos recolhidos em carrinhos de mão e enterrados em enormes
crateras nos fundos do hospital. Que coisa terrível é a guerra... As equipes
médicas se desdobram em operações sucessivas. Os sargentos enfermeiros
e nós, enfermeiras, trabalhando em horários cansativos e extenuantes... Es-
tou escrevendo estas notas depois da noite horrorosa que passei. Larguei
o serviço às 7h e já são 22h, e o sono não vem. As mutilações me tiraram
o sono... As chegadas foram em massa. Como sofri! São homens que nunca
vi. Entretanto, sofro por eles... Que competência mostraram os cirurgiões
brasileiros e americanos misturados na sala de operações salvando vidas!”
Torre de Nerone
Torre de Nerone era a posição de vanguarda das tropas brasileiras,
onde o contato era direto e constante. Enéas Araújo diz que “a distância en-
tre nossa tropa e a tropa alemã era de menos de 200m em linha reta. Eram
dois morros separados por uma ravina. Aquele era o posto mais avançado
da FEB na região”. Enéas continua: “Em 2 de novembro, Dia de Finados,
saímos da região do vale do Serchio. Viajamos o dia inteiro de caminhão;
passamos por Lucca e Pistoia. À noite, chegamos a Porreta Terme. No outro
dia, seguimos de Caminhão até Silla. De lá, avistamos a serra onde ficam
Monte Castelo, Belvedere e outros. Quando descemos para o vale, os ale-
mães começaram a atirar de canhão em nossa tropa. Quando vi aqueles ti-
ros caindo, pensei: ‘A guerra é aqui mesmo!’ Quase não tinha guerreado até
então; havia feito muitas patrulhas, mas era diferente... Uma das granadas
caiu no 3º pelotão e matou um soldado nosso.”
Reprodução: Gli Eroi Venuti dal Brasile
Acervo: MNMSGM
Quando viu o ferimento, o capitão disse que eu tinha sorte, pois havia sido
só de raspão... O médico disse que não, que o estilhaço estava no meu corpo
e que eu teria de ser evacuado. O capitão fez contato com o subtenente que
estava em Silla. Como já estava escurecendo, e a estrada, sob intenso bom-
bardeio, o subtenente não conseguiria chegar. Então, o capitão me deixou
onde estava o telefonista, com um cobertor. Logo chegou o enfermeiro e
me aplicou uma injeção contra a dor. De duas em duas horas, era mais uma
injeção, porque a dor era muito forte. Lá pela meia-noite, chegou um cabo,
auxiliar do subtenente, que foi designado para me substituir no comando
de meu grupo. Era meu amigo, de Caçapava, colega de escola. Eu lhe disse:
‘Olha, Chiquinho! Você não vai subir esse morro agora. Espere amanhecer,
se não você vai levar tiro...’ Ele já conhecia a área, pois sempre vinha trazer
comida. De madrugada, o jipe chegou, e fui evacuado para o hospital. Passei
por vários postos de atendimento. Verificavam o ferimento e me passavam
para o próximo.”
Acervo: MNMSGM
1944, segundo o que disseram, a temperatura de dois dias foi -20°C, -18°C,
-17°C, -15°C... Isso era normal.”
Jarbas lembra que deviam estar sempre atentos; os franco-atiradores
alemães eram muito precisos, e o menor descuido poderia ser fatal. Foi o
que aconteceu em 12 de dezembro de 1944, vitimando o soldado Alde-
mar Fernandes Ferrugem: “Esse é um daqueles momentos que jamais é
esquecido por quem o vivencia. Ver um amigo morrendo é muito triste.
Quando acertaram o Ferrugem, eram seis e meia da manhã. Lembro como
se fosse hoje: ele levantou na sua toca e gritou: ‘Cabo Dias, que horas são?’
Eu disse: ‘Seis e meia.’ Foi só um tiro, e ouvi o gemido dele. ‘Ih, acertaram
o Ferrugem’, pensei. Fui rastejando até lá, e ele estava quase nas últimas.
Ele falou para mim: ‘Me dá água!’” Nesse momento crucial surgiu a dúvida
entre seguir a orientação de não dar de beber a um ferido e atender ao
pedido do amigo. Inicialmente Jarbas negou, mas o amigo insistiu: “Estou
morrendo; não quero morrer com raiva de você... Estou sentindo que vou
morrer.” Jarbas enfim cedeu: “Já que ele ia morrer, era para morrer sem
raiva. Dei água! Foi só isso: dei água, e ele morreu. E isso quer dizer que
eu ajudei a matá-lo, porque eu dei água. Depois, tirei tudo do bolso dele, e
mandamos para a família.”
Depois que acertaram o soldado Ferrugem, “um mato-grossense fez
um buraco no morro e ficou por lá vários dias, esperando o franco-atirador
que aterrorizava os brasileiros. Certa manhã, lá veio o alemão...”. Jarbas con-
ta que, depois do tiro fatal, “o alemão ficou lá e foi coberto pela neve. Quan-
do avançamos, o corpo ainda estava lá. Havia sido descoberto [degelo]. Deu
para ver que era casado — usava aliança. No bolso, tinha documentos, uma
fotografia da mulher e da filhinha. Era um cabo, Hugo [preservado]”. Jarbas
descreve como reagiu diante dos horrores da guerra: “Nos primeiros dias,
nem comer direito comíamos. Não dá para comer... Depois de uns três ou
quatro dias, você começa a ficar que nem um animal... Nós acostumamos;
perdemos a noção.”
Francisco Gomes relata que, de 1º de novembro de 1944 até a tomada
do Monte Castelo em fevereiro de 1945, esteve em Soprassasso, que fica
praticamente ao lado da Torre de Nerone: “Enfrentávamos a neve ao ar li-
vre, em uma temperatura de até -18°C. Estávamos no fox hole, como o ame-
ricano chamava, e nos aquecíamos por ali mesmo como podíamos. No dia
que caía neve, se precisássemos sair para alguma patrulha, enterrávamos
as pernas até as coxas... Em uma camada de mais ou menos 1m de neve
Castelnuovo
Paulo Carvalho narra um fato ocorrido na região de Marano: “Depois
que voltei para junto do meu comandante com os telefonistas, os alemães
contra-atacaram. Eles haviam recebido uma ordem de Hitler para que todas
suas tropas atacassem os inimigos em todas as frentes. Foi um bafafá. A coisa
foi feia! O pelotão não conseguiu resistir; havia vários alemães com metralha-
dora e fuzis atrás das castanheiras. O tenente informou ao capitão, que mandou
recuar. Ele conseguiu retrair; eu e vários companheiros também. Nós descemos
rolando morro abaixo, e eles metendo fogo em cima da gente... Escapamos, mas
os alemães fizeram 10 prisioneiros só na minha companhia. Esses 10, quando
voltaram para a companhia depois que os americanos os liberaram em Berlim,
eram só pele e osso... Pareciam esqueletos. Eles passavam o tempo todo traba-
lhando e comiam só uma sopa de cascas de batata por dia... Se tivesse demo-
rado mais alguns dias [para serem libertos], acho que todos teriam morrido.”
Cleto Pellegrinelli já não comandava o pelotão quando os brasileiros
tomaram Castelnuovo em 5 de fevereiro, pois havia chegado um tenente
para assumir a função. Mesmo assim, participou da conquista: “Lá foi mais
fácil. Tivemos uma surpresa danada porque o alemão, ao ver que iria per-
der, saiu fora, mas deixou alguns soldados com metralhadora e munição à
vontade. Dava a impressão de que havia uma tropa enorme, em uma eleva-
ção grande, em uma frente bastante ampla. Nossa tropa subia a montanha,
e eles, de lá, metralhavam; dificilmente atingiam porque o terreno nos aju-
dava. A conquista foi muito bonita. Do lado de onde estávamos, assistíamos
aos nossos homens subindo. Os alemães resistiram enquanto puderam. Ao
final, se renderam, foram presos e conduzidos à retaguarda. Eu não subi até
lá, mas assisti a tudo.”
“Três Bravos”
Ao chegarem a Castelnuovo, as tropas brasileiras reencontraram três
pracinhas do 1º RI, até então dados como desaparecidos. Tratava-se do
cabo José Graciliano Carneiro da Silva e dos soldados Aristides José da Silva
e Clóvis da Cunha Paes de Castro, que haviam saído em missão de reconhe-
cimento, no ponto cotado 720, na região de Precaria.
Infelizmente, os três foram encontrados sem vida. Seus corpos repousa-
vam em uma sepultura simples. Sobre ela havia uma rústica cruz de madeira
Vergato
Rubens Andrade diz que, após Monte Castelo, o comando brasileiro
não sabia exatamente onde os alemães se encontravam: “Estávamos em
1
Leia a carta do sargento Virgolino em Brasileiras na Guerra.
Eram mais ou menos 16h30min. Então, ele pegou o rádio para falar
com o comandante da companhia: ‘Capitão, estou com dois homens feridos
aqui. Quais são as ordens?’ O capitão disse que a ordem permanecia a mes-
ma: ‘Cumpra a missão! Siga em frente e faça contato com o inimigo. Deixe
os feridos que padioleiros irão até aí resgatá-los.’ Depois, o sargento reuniu
todo mundo e disse: ‘Eu vou à frente, e vocês só pisem onde eu já tiver pi-
sado.’ Nós ficamos ali, esperando os padioleiros. Estava escurecendo. Dali
a pouco, buuuuuum! Alguém pisara fora da pegada do sargento. Enquanto
progrediam, ouvi ainda alguns estouros de minas. Os padioleiros chegaram
pelas 18h. Já estava escuro. Como as explosões haviam denunciado nossa
aproximação, os alemães atiravam bombas que explodiam no ar; uma luz
descia de paraquedas, iluminando toda a área. Durante o deslocamento, os
alemães jogavam bombas sobre nós. Quando ouviam o sibilar de alguma
granada se aproximando, os padioleiros primeiro me largavam no chão, de-
pois deitavam. Eles me levaram até uma estrada, e de lá fui evacuado até um
hospital de campanha.
Acervo: AHEx
Montese
Montese, nas palavras do general Mascarenhas de Moraes, foi a mais
sangrenta das batalhas da FEB. Em quatro dias de combate, foram mais de
460 baixas, entre mortos e feridos.
Geraldo Sanfelice diz que participou de vários combates, desde peque-
nas escaramuças até enfrentamentos mais sérios: “Porreta Terme, Giulia,
Modena, Montese, Zocca, Marano, Vignola, Collecchio, entre outras. Foram
tantas cidades e vilas pelas quais passamos, que nem me lembro mais de
todas. Talvez esqueça alguma ou até misture a sequência. No mapa, onde
consta o roteiro da FEB, estão representadas as batalhas mais importantes,
mas passamos por muitas vilas que não constam nele. Sempre que chegá-
vamos a algum lugar, a maior preocupação era cavar logo as trincheiras,
sempre mais profundas; a tropa precisava estar segura. A ordem era não
fazer algazarra, mesmo quando não havia iminência de combate. No entan-
to, descontrair era necessário. Sempre que havia uma folguinha, mesmo na
linha de frente, o velho e bom baralho entrava em cena.”
Sanfelice recorda que estava em Modena. O destino era Montese, pe-
quena cidade sobre uma elevação que os alemães se empenhavam muito
para manter pela importância que tinha para a defesa das demais posi-
ções que ocupavam: “Quando eles perceberam nossa aproximação, de-
sencadearam intenso fogo de artilharia. Era apavorante, mas nós seguía-
mos em frente, protegidos por uma cortina de fumaça lançada pela nossa
artilharia, ao mesmo tempo que desfechava intenso bombardeio sobre
eles. O barulho era ensurdecedor. A terra parecia tremer! Em Montese,
o cutuco foi forte. Os combates dentro de um centro urbano, e esse era o
caso: eram mais difíceis, mais acirrados, rua a rua, casa a casa... A tensão
e o perigo eram constantes. Não dava para relaxar. O inimigo podia es-
tar em qualquer esquina. Em qualquer casa ou ruína poderia haver uma
mina ou armadilha pronta para explodir.”
Neraltino Santos afirma que, durante o bombardeio a Montese, a or-
dem para a artilharia era atirar. Não havia tempo para rodízio de tiro en-
tre as baterias. Cada uma atirava o quanto podia. Como os alemães haviam
sitiado a infantaria da FEB, a missão da artilharia era descarregar o má-
ximo de granadas explosivas sobre eles. Ary Abreu diz que chegar a Mon-
tese foi complicado, pois, além de enfrentarem a artilharia alemã, tiveram
que encarar um terreno totalmente minado: “Eu tinha tomado café no dia
14, antes de sair da base de partida. Não almoçamos porque caíram duas
granadas em cima das marmitas. Saímos para Montese com a previsão de
chegarmos pelas 11h, mas a progressão foi lenta, e chegamos somente à
tardinha. A artilharia atirava e, a cada granada que caía, subia a fumaça
negra, característica da explosão de minas alemãs. O pessoal que me acom-
panhou na transposição de um terreno cultivado para chegar à cidade saiu
ileso. Era até estranho; caía uma granada e voava aquele negócio branco:
era batata inglesa.”
Ary continua: “Dois soldados meus, que desbordaram, tiveram proble-
mas: um perdeu o pé na explosão de uma mina, e o outro, por azar dele, foi
atingido no rosto por um estilhaço. Fui até eles; eu não tinha como atendê-los.
dois morreram, e outros dois ficaram feridos. Fui ferido pelas 22h do dia 14
de abril. Não posso precisar se foi no monte Serretto ou Paravento.”
Ary brinca, dizendo que foi ferido porque não aproveitou bem as ins-
truções: “Eu estava deitado, colado ao chão quando fui atingido. Nem sei
se foi ricochete ou tiro direto que me atingiu. Nós estávamos muito perto
dos alemães. O tiroteio era intenso, de um lado e de outro. Atirávamos e
recebíamos o troco na mesma hora. O alemão não arredava pé. Entramos ao
anoitecer, e eu saí ferido antes do amanhecer. Entrei e saí de lá no escuro. Se
voltasse no dia seguinte, não reconheceria o lugar.”
Acervo: MNMSGM
Acervo: MNMSGM
Sulla diz que, “na tarde de 14 de abril, o tenente Iporan entrou em Mon-
tese. Muitos falam que a tomada de Montese ocorreu no dia 14, mas a ver-
dade é que foi tomada a praça; a batalha continuou por mais três dias e foi
horrível. Somente na tarde de 14 de abril, assim que os brasileiros ocupa-
ram a praça, foram lançadas cerca de 1.500 granadas de morteiro de 81mm,
a maior arma da guerra de montanha. As grandes perdas da FEB foram cau-
sadas por tiros e por estilhaços, e, destes, 75% eram causados por estilha-
ços de morteiro de 81mm, sobretudo porque os alemães, tendo o topo do
monte, tinham a possibilidade de ter um ótimo ponto de observação... Mon-
te Castelo foi uma grande batalha, valente, mas com muito sacrifício. Com
três assaltos falidos. E depois de três meses de treinamento sobre a própria
pele, os pracinhas brasileiros, aqui em Montese, obtiveram praticamente
uma vitória decisiva. Foram muito bem usadas taticamente as tropas de
reserva. Imediatamente, quando um pelotão tinha dificuldades, existia ou-
tro para substituir, para dar apoio a ele. Foi verdadeiramente uma batalha
bem construída, bem planejada. Na Batalha de Montese, os três regimentos
da FEB — o 1º, o 6º e o 11º — participaram da batalha... O 1º Regimento,
o Sampaio, em direção à Greglia, junto à cota 778, do aspirante Mega. O 6º
RI, o Ipiranga, teve muitos mortos e muitos feridos no monte Buffone. E
naturalmente o 11º Regimento. A maior glória do Regimento Tiradentes foi
a tomada de Montese”.
O retrato da destruição
Collecchio
Geraldo Sanfelice diz: “Depois de Montese, seguimos em direção a Col-
lecchio e Fornovo, onde havia grande contingente alemão em fuga para o
norte.” Durante o deslocamento, em 27 de abril, ele sofreu grave acidente
que o tirou de combate: “Estávamos seguindo por uma lavoura de trigo,
que vinha até a cintura. Havia uma estrada de chão batido para atravessar.
Todos estavam descontraídos, porque a imagem era muito bonita, em um
dia ensolarado. O tenente disse que a ordem era avançar. No que pisei na es-
trada, só ouvi um forte zum! e senti uma ardência na perna.” Era uma mina
antipessoal que havia sido deixada pelos alemães e explodiu. Percebeu que
faltava um pedaço da perna e que estava todo ensanguentado: “Parte do
joelho havia sido arrancada, deixando ossos e nervos expostos. Por sorte, a
granada que explodiu pegou só na perna, e não morri.”
Foto obtida na Itália
alemães] tentaram romper nosso bloqueio. Era aquele silêncio... Dali a pou-
co, um soldado disparou sua arma. Foi tiro de ambos os lados; a disputa foi
grande. Os alemães atiraram muito na tentativa de liberar a estrada e irem
embora. Isso já era o começo do cerco. É só pegar o mapa e ver: Collecchio,
depois Respício e Fornovo di Taro. Quando amanheceu o dia, entramos em
Collecchio para fazermos a operação de limpeza. Havia armamento aban-
donado; metralhadoras, morteiros e algumas pessoas mortas.
Quando chegamos mais ou menos ao centro da cidade, vi o Esquadrão
de Reconhecimento, com seus carros de combate. Eles chegaram por um
lado, e nós, com a 8ª Companhia, chegamos de outro... Estava confirmada
a posse de Collecchio. A cidade estava abandonada; por onde passei, não
vi ninguém; provavelmente a população havia sido avisada do ataque e
abandonou a cidade. Lá morreu meu amigo, sargento Andiraz Nogueira de
Abreu, e mais um soldado. Eu o havia encontrado em Belvedere, onde ele
me disse: ‘Samuel, eu pedi para vir para a frente.’ Quando foi em Collecchio,
pouco antes da rendição, ele tombou...”.
Foto obtida na Itália
Fornovo di Taro
Depois de Collecchio, a FEB continuou a perseguição às tropas alemãs.
Nesse estágio da guerra, os alemães já não eram mais do que alguns atira-
dores isolados, que ficavam para trás e já não ofereciam muita resistência.
Alcides Basso, que havia sido incluído nas fileiras do 6º RI, participou dessa
Jarbas Dias Ferreira recorda que trocou chocolate por uma pistola au-
tomática (doada, em 2013, ao museu do 6º RI) e uma faca alemã: “Um cabo
alemão saiu lá do meio e veio falar comigo: ‘Você não tem pinga aí?’ Per-
guntei como ele falava tão bem o português, e ele: ‘Você conhece a Avenida
Atlântica, em Santos?’ Eu disse: ‘É no caminho da minha roça...’ Ele: ‘Eu ti-
nha um empório lá... Vendi para ir para a Alemanha.’ O alemão contou que
estava na Alemanha quando estourou a guerra; foi convocado e mandado
para a Frente Russa. Saiu de lá com água no pescoço, porque os russos es-
touraram uma represa e acabaram com quase uma divisão alemã inteira...”
Paulo Carvalho lembra: “Minha companhia estava bem em cima do
morro; foi a primeira a descer, quando eles, graças a Deus, se entregaram.
Chegamos perto e começamos a negociar com eles. Dava um chocolate e
recebia uma pistola. Vendi pistolas para vários oficiais que estavam na
retaguarda. Trouxe uma meia dúzia para mim. Todas elas e o meu capacete,
que tinha levado um tiro de raspão, sumiram junto com o meu saco ‘B’,
na volta para o Brasil. O dinheiro eu gastei todo por lá. Depois do fim da
guerra, ficamos em Voghera. Era só festa!”
cigarro [marca omitida], que tinha o rosto de uma loira na carteira. Eles
diziam: ‘Non me piace questa bionda cattiva’, algo como ‘Não gosto dessa
loira ruim’. Eles queriam cigarro americano, que era melhor.” Os cigarros
enviados pelos brasileiros eram muitas vezes provenientes de doações, re-
colhidos pela LBA em vários pontos de coleta Brasil afora, nem sempre em
condições apropriadas. Esse pode ser um dos motivos pelo qual apresenta-
vam a má qualidade mencionada.
Acervo: Wanda Pedroso
Eu tenho essa foto até hoje; não me desfiz dela. Não sei se ainda irei à Itália
alguma vez, mas se eu for lá, pretendo procurá-la.”
Acervo: João Gonzalez
A pequena Clorinda
na rua: ‘Vocês são brasileiros, não são?’ Estávamos de boina, com o distintivo
da cobra fumando... Eu respondi: ‘Somos!’ Ele disse: ‘Eu trabalhei com os
brasileiros na guerra.’ Ele disse que tinha trabalhado em uma cozinha e que
era guri na época. Em Guanela, outro italiano disse ter trabalhado com os
brasileiros, também na cozinha. Em 1994, em outra viagem, fui à Cá di Chei,
onde havia um italiano que ajudou o Cleto [Pellegrinelli] na guerra.”
Jarbas confirma o carinho que os italianos dedicavam aos brasileiros:
“Eles gostavam muito de nós. Em Fiano, estivemos na casa do Sr. Mazine. A
mulher dele levantava no meio da noite para nos cobrir. Ela chorou quando
saímos de lá. Tudo o que nós tínhamos de comida deixamos para eles; e
era bastante coisa. Despedimos da família e fomos embora.” Raul Kodama
conheceu uma italiana que sempre ia buscar comida no acampamento; em
troca de latinhas de comida, ela trazia algumas broas. Ela o convidava para
ir à sua casa, mas ele evitava: “De vez em quando eu ia lá para me esquen-
tar; os italianos falavam scaldare... Ela tinha uma menininha, que andava
com o pezinho descalço, no gelo; não tinha calçados, não tinha nada. Como
eu viajava muito, encontrei um sapatinho de couro com o solado de madei-
ra, parecido com um tamanco; comprei e levei de presente para a menina...”
Geraldo Taitson diz que, ao chegarem à região um pouco ao norte de
Montese, encontraram em uma casa dois velhinhos com mais de 70 anos de
idade: “Havia uma moça tomando conta deles — lembro até o nome; cha-
mava-se Virgínia. Perguntei a ela se não tinha irmãos. Ela disse as palavras
que mais se ouvia na região: Tedesco portato via; quer dizer, o alemão os
levou para trabalhar nas fábricas de munição ou para plantar batatas, na
Alemanha. Com esse exemplo, vemos que um povo que tem sua terra inva-
dida é um povo muito triste.”
Tristeza! Essa palavra tem amplificado sentido quando o tema é guer-
ra. Foi esse o principal sentimento dos soldados ao perceberem a situação
dos italianos. Em muitos relatos, é possível depreender o conflito que os
soldados enfrentavam para conciliar a necessidade física e os valores mo-
rais e éticos que traziam na consciência. Apesar do relacionamento qua-
se fraterno, Jarbas faz uma ressalva sobre o relacionamento dos soldados
com a população italiana: “Muitos se aproveitavam, pois eles [italianos] se
trocavam por chocolate e comida. Nem as bitucas de cigarro escapavam.
Pão, então...”
Ao final dos combates, muitos pracinhas gastavam o dinheiro que
recebiam na Itália com bebida e mulheres. A justificativa mais comum
Para Miled Cury, “a guerra tem um aspecto muito ruim, que diz respeito
aos sentimentos das pessoas. Passei por uma experiência com meus com-
panheiros. Quando estava descansando por alguns dias, na retaguarda, um
garotinho puxava o meu culote: ‘Volere signorina? Volere signorina?’ Se eu
queria mulher... ‘Andare, andare.’ Ele queria que fôssemos até a casa dele.
Fomos! Entramos e subimos a escada. O pai, a mãe e algumas moças, filhas,
precisavam de comida! Ele estava negociando as filhas dele em troca de
comida... O próprio pai... É a degradação total! E a guerra leva a essa degra-
dação. No meu entender, esse foi o pior momento da guerra. Inclusive, não
usamos as senhorinhas; demos toda a comida e material que tínhamos à
disposição e fomos embora”.
Cleir de Carvalho diz que essa decadência moral transmitia uma
sensação muito ruim: “Quem tinha mulher e filha estava sujeito a situações
degradantes e à fome também; eles não tinham meios. Estávamos perto
de Pisa... Nas horas de folga, íamos à cidade para nos divertir um pouco.
Enchi os bolsos da jaqueta de escatoletas de ração que recebíamos dos
americanos. Ao chegar à cidade, sombria, chuvosa, lúgubre até, encontrei
uma loirinha de 9 ou 10 anos. Fui até ela, pois fiquei tocado pela situação.
Ela fazia movimento com o braço, e a acompanhei até o fundo da casa
dela. Casa simples, pátio e corredor — lembro como se fosse hoje. A mãe
segurando uma criança, fogão aceso e uma garrafa de vinho na mesa —
eles faziam muito vinho —, mas não tinha comida nenhuma. Emocionado,
peguei aquilo tudo e pus na mesa. Eram umas 10 latinhas. Todo mundo
comeu, inclusive a menina... Esse é um ato bom que eu fiz e que me vale
até hoje. Foi Deus que me mandou ali... São essas coisas que fazemos
sem vaidade, que nos fazem vencer na vida; chegar aos 80 anos com a
consciência tranquila e gostando da vida. Por isso o brasileiro é bem quisto
na Itália até hoje. Pelo seu modo de proceder, de fazer muita caridade.
Isso é da índole do brasileiro; ele gosta disso, de ser bom. Distribuíamos
a ração que ganhávamos, comprávamos chocolates e cigarros para eles na
cantina, com a parte do salário que recebíamos lá. Isso fazia com que eles
quisessem bem aos brasileiros e quisessem estar perto de nós.”
Em muitas cidades, era perceptível que a guerra estava por aca-
bar. A população de certa forma estava aliviada. Em cada cidade liber-
tada, as tropas eram recebidas com festa. A vitória era uma questão
de tempo.
Acervo: MNMSGM
Ivan Alves conta que “a melhor coisa que podia acontecer na guerra era
receber cartas. Todo mundo ficava doido atrás delas. Receber cartas do pai,
da mãe, dos irmãos, da namorada. A melhor coisa era a chegada do correio,
mas ele falhava mesmo. Talvez fosse para aumentar a emoção: quando ele
chegasse, eram mais cartas para ler... O ruim é que o correio não funcionava
do Brasil para a Itália. Recebi as primeiras em 12 de dezembro, dia do 2º
ataque ao Monte Castelo. Foram mais de 20 de uma só vez”. Pedro Vidal
confirma que cartas, jornais e revistas eram muito disputados. No meio da-
quela algazarra, havia soldados de todos os lugares do Brasil: “Como todos
me conheciam e sabiam da minha origem, um baiano disse: ‘Gaúcho, o jor-
nal é lá de sua terra.’ Era A Razão que estava lá, na Itália, em minhas mãos.
Que emoção! Nunca esqueci esse dia”.
Neraltino Santos escrevia muitas cartas. As funções de sacristão e
ordenança deixavam-no com bastante tempo livre. Também dispunha de
uma mesa, o que facilitava bastante: “Na primeira carta que mandei de Pisa,
anexei uma fotografia que tirei, segurando uma gaita. Nunca toquei gaita,
mas, como minha mãe havia ficado muito triste quando parti para a guerra,
queria que ela visse que eu estava alegre e bem por lá. Por isso, mandei essa
foto.” Acrescenta que a gaita era do barbeiro que, nas horas sem trabalho,
alegrava o acampamento com sua música.
Acervo: Vet. Neraltino Santos
Para Benedito Bernardino, “as cartas eram uma sustentação muito im-
portante na guerra. Gostávamos de receber notícias da família, especial-
mente da namorada. Eu escrevia sempre. Enquanto ela respondia, é porque
não tinha arrumado outro”, brinca. “Depois que voltei ao Brasil, vi que eles
haviam rasurado várias palavras.” Ivan Alves afirma que namorava a moça
com a qual veio a se casar: “Escrevia todos os dias. Eu era o responsável
pela censura das cartas do pelotão; já sabia o que não podia escrever, mas
escrevia assim mesmo. Lógico que só o que não comprometia.”
Miled Cury era o censor de seu pelotão. Cabia a ele ler e carimbar as
correspondências. Ele sabia o que podia e o que não devia ser escrito. Nas
cartas, apenas uma face da folha podia ser usada; assim, ficava mais fácil
recortar as informações indevidas. Por outro lado, ajudava quem tinha difi-
culdades e até escrevia cartas para os que não podiam fazê-lo: “Estávamos
no mesmo barco”, conclui.
O jornal A Razão, fugindo da rotina dos despachos dos corresponden-
tes nacionais e das agências internacionais, em 24 de dezembro de 1944
É com grande prazer que lhe envio esta, daqui ‘da linha de
frente’ do 5º Exército, onde fico pedindo a Deus para que vá
encontrá-lo em meio à mais ampla saúde e felicidade, junto a
todos que lhe são caros.
Enquanto [sic] a nós, aqui, já cansados de correr atrás de ale-
mães, nos encontramos muito bem, com ótima saúde, absoluta
disposição e pleno vigor, para prosseguir até o fim da missão
que nos foi confiada. Assim, envidaremos todo o esforço, sem
avaliar sacrifícios, para vingar os ultrajes que sofremos pelos
piratas totalitários. Como por certo o amigo leu nos jornais,
já tivemos vários encontros com ‘eles’, mas acabam correndo
sempre, pois, desde o menor ao maior encontro, são sempre
massacrados.
Por toda a parte que andei nada vi mais importante do que o
nosso Brasil. O panorama triste da Costa Africana, quase sem
vegetação e os confins da Espanha. O fim da viagem foi Nápo-
les, a grande cidade do Mediterrâneo, transformada em ruí-
nas, consequência da guerra. Bem próximo dessa cidade, tive a
oportunidade de ver o Vesúvio, o grande vulcão onde morreu
Silva Jardim.
Atravessamos quase toda a Itália, até encontrarmos a ‘caça’.
Tenho recebido muitas cartas daí. Ainda no Rio, escrevi ao
Amauri Dela Porta, mas não obtive resposta. Por seu intermé-
dio quero transmitir a todos os baixados e embromadores o
meu abraço.
Desejo-lhes, a todos os amigos, boa sorte, esta origem do 7º R.I.
(a) Cabo Amaral.
O Cruzeiro do Sul
Editado e publicado na Itália pelo Serviço Especial da FEB, entre janei-
ro e maio de 1945, em duas edições semanais, O Cruzeiro do Sul levava aos
pracinhas assuntos de interesse coletivo.
Em várias e distintas seções, o periódico noticiava o desenrolar da
guerra nas frentes europeia e oriental, além de temas sobre o Brasil, cum-
prindo a missão de informar e manter elevado o moral da tropa.
A Volta
O mar, outra vez, pertencerá aos expedicionários. As ondas do mar tan-
gem, agora, para o Brasil. Será um mar sem barcaças, esperamos. As próprias
barcaças, porém, se sublimariam com esse mar que tange para o Brasil, no
cântico da volta.
Pássaros emigratórios, de plumagem verde, que tornam com o sol às pla-
gas de nascença. O sol derreterá a neve do fox hole, que ainda se acumula
sobre as fotografias. A volta dissolverá as lembranças do fox hole, mas o fox
hole é uma coisa que ficará sempre por cima da memória, insolúvel.
A sua tristeza, amanhã, a sua cãibra nas pernas, a sua dor, o seu cansaço,
os seus pés que incham de vez em quando, recordarão o fox hole. Mas a casa
é grande e antiga, a família está reunida, há o quintal com alguns pés de la-
ranja e a calçada com algumas cadeiras de balanço.
Há os jornais que de vez em quando dirão, a propósito disto ou daquilo:
“Os expedicionários”; “Fez parte da F.E.B.”; “Foi ferido em Monte Castelo”;
“Era do pelotão que entrou em Montese”; “Montou guarda à divisão que se
rendeu”. As dores da ferida aberta em Soprassasso ou a cabeça zonza com
Mas eu não tive coragem de matá-lo, porque eu não sou de briga; não sou
de guerra. Eu não conseguiria matar alguém a sangue-frio; ainda mais
um jovenzinho. Tentar prendê-lo seria arriscado, pois podia haver outros
militares dormindo na casinha. Nesse caso, haveria grande mortandade,
pois meu grupo estava esperando logo abaixo, aguardando minhas ordens.
Decidi retrair, pois já tinha a informação de que o comando precisava. O
soldado perguntou: ‘Por que o senhor não vai prendê-lo?’ Eu disse que não:
‘Ou eu o mato, ou ele me mata... E isso não vai resolver nada! O melhor é
voltar e informar ao capitão o que vimos.’ Descemos o morro.”
França continua: “A partir daí aconteceu algo impressionante: um dos
soldados, apesar de bem orientado, se descuidou e pisou em uma pedra,
que escorregou e bateu em outras, que rolaram e bateram em outras... O
resultado foi um grande deslocamento de pedras na encosta do morro. Isso
chamou atenção do soldado alemão, que já estava lá na casinha. Nós des-
cemos aquele morro para voltar para o local de onde tínhamos partido. A
parte mais baixa do morro todo o grupo conseguiu subir normalmente. Em
determinado ponto, quando entramos no ângulo de visada dele, começa-
ram as rajadas de metralhadora. Aí a coisa ficou feia: as rajadas varriam
tudo. Aí entrou na história o que eu considero a mão de Deus... As rajadas
sempre batiam atrás da gente ou acima de nossas cabeças levantando po-
eira. Talvez ele [o soldado alemão], entendendo que nós não o prendemos
e não o matamos, não quisesse nos matar também, mas quisesse apenas
brincar um pouco conosco. Ele tinha o controle da metralhadora e só não
nos acertava porque não queria. Subíamos o morro o mais depressa pos-
sível; e subir morro depressa cansa, esgota! Meus soldados estavam mais
bem preparados do que eu; subiram o morro correndo e ficaram escondi-
dos. Eu fiquei acompanhando um soldado mulato, forte, que caiu.
Aí é que surge o medo... Esse soldado, apesar de forte, estava aterrori-
zado. Ele havia caído e não levantava de jeito nenhum. Deitei ao lado dele.
Você leva tiro atrás e acima; você não sabe a hora de morrer... Ele colocava
as mãos na cabeça, como se esconder a cabeça fosse sua salvação. Eu gritava
para ele: ‘Vamos, fulano!’ Não lembro o nome dele agora. ‘Vamos embora!’
Cheguei a apontar a metralhadora para ele: ‘Vamos, fulano! Vamos ou eu
mato você!’ Eu, como comandante do grupo, não podia deixar um homem
meu para trás. Se estivesse morto, poderia até deixá-lo, mas vivo, não. Ele
não se movia de jeito nenhum. Bala na frente, bala atrás, bala por cima...
Isso demorou alguns minutos. Tem uma coisa que eu não posso deixar de
Equipamento individual e
instrumento musical – Companheiros de jornada
Ao final, escreveu:
que voltaria para buscá-la. Meu desespero maior era porque sabia que jamais
poderia cumprir; mas ela tinha certeza de que eu cumpriria a promessa...”.
Após a guerra, Paz foi morar em Porto Alegre. Sua situação não era
nada boa: “Depois de um tempo, recebi uma carta dela, dizendo que estava
grávida; e eu sem um tostão furado no bolso, dormindo no banco da praça,
na praça da Alfândega.” Foi aconselhado a procurar o Correio do Povo: “Qua-
se chorando, mostrei a carta. O Cândido Norberto — que Deus dê bom céu
para ele [falecido em 2009] —, repórter da Folha da Tarde, disse: ‘Vem cá!
Me conta essa história direitinho...’ Contei a história toda... Saiu na primeira
página! Quando saiu na primeira página, os jornais me procuraram e até
abriram uma conta no banco para mim... e [recebi] doações do comércio:
Nasci de novo...” Paz procurou o consulado e casou-se por procuração. Em
26 de outubro de 1946, Iole chegou a Porto Alegre com o filho nos braços,
conforme publicou a Folha da Tarde, em 29 do mesmo mês.
Acervo: João P.Paz
“Em todo esse período, procurei o Vicente Celestino, mas nunca o en-
contrei. Um belo dia [em agosto de 1968], em São Paulo, vi na televisão que
o Celestino estava hospedado no Hotel Normandie e faria uma apresenta-
ção no Canal 4 [TV Tupi]. ‘Vamos lá contar a ele que tu estás viva, que estás
aqui...’ Ele tinha criado essa história e não sabia que a minha Gioconda já
estava no Brasil.” Paz foi ao hotel, e informaram que ele estava gravando um
show para a TV Tupi. Deixou recado de que voltaria no dia seguinte. À noi-
te, assistiu à notícia da morte de Vicente Celestino, de um ataque cardíaco,
no Hotel Normandie. No final das contas, Celestino “não ficou sabendo de
nada, e a história morreu aí”, conclui Paz.
Neraltino Santos estava em Porreta Terme e tirou essa foto, em 8 de maio de 1945.
Salva de tiros de artilharia para comemorar o fim da guerra
Ivo Ziegler recorda que, que terminados os combates, grande parte das
tropas retraiu para o Depósito de Pessoal, local de concentração e reencon-
tro com os companheiros que estavam nas frentes de combate. Nessa etapa,
aconteceram coisas gratificantes: “Com outros integrantes da Companhia,
por oito dias, tive a oportunidade de conhecer boa parte da Itália e o Vatica-
no. De lá, trouxe diversos postais e medalhinhas, que ainda guardo em uma
maleta, também adquirida em Roma. É o meu baú de recordações.”
“A guerra havia acabado; era hora de fazer festa e liberar a tensão”, diz
Alcides Basso. Certo dia, no meio da tarde, ele e dois companheiros de bi-
cicleta (um gaúcho e um paranaense) foram a um povoado próximo dali.
Depois de muito vinho, ao voltarem para o acampamento, cruzaram com a
companhia, que já estava retraindo para o sul: “Quando chegamos ao acam-
pamento, não encontramos nossas mochilas e nem o armamento. Retorna-
mos ao novo acampamento sem nada. No dia seguinte, cientes de que as
mochilas haviam sido deixadas na enfermaria, retornamos para apanhá-las.
As mochilas estavam lá, mas haviam levado minha Parabelum”, lamenta.
Nessas andanças, acrescenta Basso, “o gaúcho, que era meio maluco e que-
ria explodir qualquer coisa que encontrasse, pegou meu fuzil e quis atirar
uma granada de bocal. Não deixei, pois poderia ferir alguém e dar confu-
são. Afinal, a guerra já havia acabado e não havia justificativa para aquilo.
Tirei meu fuzil dele, mas ele pegou a granada e pôs no fuzil do paranaense.
Quando ele deu o tiro, a granada detonou no cano, que estava entupido de
terra. Ele se tapou de fumaça! Pensei que tivesse morrido. Teve até sorte,
pois só um estilhaço o atingiu no peito, um pouco acima do coração. Um dos
estilhaços arrebentou o pneu da bicicleta. Ele, todo ensanguentado, ainda
quis briga com os italianos, pois cismou que eles haviam murchado o pneu.
Depois de rápido curativo para estancar o sangue, conseguimos carona no
caminhão de um partisano e retornamos para junto da companhia. Depois
de duas cirurgias, o gaúcho se recuperou da estupidez cometida.”
Taltíbio Custódio diz que, nas cercanias de Montese, acompanhado
por um correspondente de guerra e intergrantes do pelotão, aproximou-se
de um casarão, com aparência de convento ou mosteiro, para pedir água.
Por medida de segurança, colocaram uma metralhadora com a pontaria
fixada na porta da frente: “O correspondente bateu. Após algum tempo,
a porta foi aberta, e apareceu uma freirinha bem jovem, com um véu
branco. Depois do tradicional Buon giorno, o correspondente pediu água.
A porta fechou-se. Logo apareceu uma freira idosa, perguntando se éramos
Pedro Vidal conta que era facultada aos pracinhas a escolha dos luga-
res que gostariam de conhecer: “Não tive a menor dúvida de que iria conhe-
cer Roma. Se formos a um país e quisermos conhecê-lo, vamos primeiro à
capital. Desde pequeno, sonhava conhecer a Cidade do Papa, o Vaticano.”
Lembra que no dia da partida foi na lavadeira buscar umas roupas, che-
gou atrasado e perdeu a condução. Acabou pegando outro trem: “Mes-
mo preocupado por embarcar sozinho, cantava baixinho, comigo mesmo,
‘quem tem boca vai a Roma, vai a Roma. Pego o magneto, e vou a Roma, e
vou a Roma’. Cheguei a Roma e encontrei os amigos na pensão onde fica-
ríamos. Nesses oito dias, fiquei pelo centro de Roma. Era impressionante,
cheia de monumentos históricos.” Em outros passeios, conheceu Veneza,
Turim, Florença, Piacenza, Nápoles, Milão, Verona e outras. Em Milão, com
amigos de sua companhia, apreciou a famosa e saborosa cerveja italiana.
Vidal acrescenta que permaneceu em Alessandria por mais de um mês,
aguardando o retorno ao Brasil. Conforme relata, os pracinhas foram leva-
dos para conhecer Monte Castelo, Montese e outros lugares que marcaram
a campanha da FEB na Itália. Contudo, relata: “Fiquei encantado pelo Vati-
cano e voltei várias vezes; ele me fascinava.” Por isso, antes de regressar ao
Brasil, foi assistir a uma missa rezada pelo papa Pio XII em homenagem aos
membros da FEB. Segundo ele, o papa interrompeu as férias para rezar seis
missas; a última era em português.
Vasco Ferreira, nesse período de folga, entre outros lugares, foi a Pis-
toia e a Roma, onde permaneceu de 5 a 7 dias: “Ficamos no estádio dos
Mármores, ornamentado por dezenas de estátuas de mármore, represen-
tando as modalidades de esporte, que os fascistas haviam mandado cons-
truir. Nós dormíamos lá. Havia soldados ingleses, americanos e brasileiros.
Conheci o Vaticano, a praça de São Pedro, as catacumbas de São Calixto e
outros monumentos.”
Hélio Marques destaca que a prática adotada pelos americanos de
eventualmente retirar as tropas do front e enviá-las para cidades da Itália
como forma de recuperarem suas forças também foi adotada pela tropa
brasileira. Em uma dessas ocasiões, foi ao Vaticano para acompanhar uma
missa celebrada pelo papa Pio XII e a cerimônia da bênção: “Usava um uni-
forme que tinha o distintivo do 4º Corpo do 5º Exército no braço direito; no
lado esquerdo, a cobra fumando, com o nome Brasil. Durante a cerimônia
da bênção, o Papa desceu da cadeira cardinalística e veio em direção ao
povo, abençoando a todos. Durante sua caminhada, quebrou o protocolo e
Alfredo Dalla Costa relata que “certo dia, mandaram que apanhásse-
mos todo o material, pois partiríamos para outra missão. Arrumamos tudo
e subimos em um caminhão. Ao me dar por conta, estávamos ao lado do
navio Pedro II. Restava-nos embarcar e retornar ao Brasil”.
A rota de retorno não era padronizada. Dependendo do escalão, di-
ferentes países e portos foram visitados. Por isso, houve grande variação
entre os tempos de viagem. Aribides Pereira lembra que, quando estavam
prestes a retornar ao Brasil, os norte-americanos detonaram as bombas
atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki e que, ao saírem de Nápoles, em agos-
to de 1945, a bordo do navio Mariposa, os soldados não sabiam se estavam
Acervo: MNMSGM
Até sabres sumiram das armas. Era coisa de louco!” Tamanha euforia trou-
xe alguns dissabores para Pacífico Pozzobon: “Durante o desfile, roubaram
a máquina fotográfica que eu comprei na Itália e algumas lembranças que
tinha trazido da guerra. Foi uma pena, pois levaram junto alguns rolos de
filmes fotográficos. Infelizmente, muitos dos momentos passados na Itália
ficaram somente na memória”, lamenta.
Acervo: AHEx
Ewaldo Meyer diz: “Meu pai e minha mãe foram ver a chegada da FEB
para ver se eu tinha vindo junto e assistir ao desfile; eles nem sabiam se eu
estava vivo ou não. Acabei chegando em casa antes deles e tive que arrombar
a porta para entrar. Fiquei esperando por eles.” O desencontro foi justificado,
tamanha era a aglomeração popular, mas o reencontro em casa foi emocio-
nante para todos.
Enéas Araújo descreve seu retorno: “Chegamos ao porto. Formamos e
fomos para o desfile. O povo vinha para cima de nós, e acabamos em coluna
por um. Encontrei um soldado de minha companhia que veio antes. Saí de
lá com ele; fomos até um bar e tomamos uma cerveja. Depois desbordei e
fui para a estação. Estava um tumulto, porque o povo tomou conta. Fomos
para o Capistrano. Lá nos serviram arroz, jabá e mais alguma coisa. Os sol-
dados viraram tudo aquilo. Não era possível! Estávamos comendo bem no
mento. Havíamos ido à guerra para defender o Brasil; não havíamos sido
preparados para atirar em brasileiros”, conclui.
Ivan Alves, logo na chegada ao Rio de Janeiro, fez a tocha para São João
Del Rei: “Saí de noite e cheguei em casa de manhã cedo, pelas sete e meia.
Quando entrei, minha mãe estava tomando café. Quando me viu, ela des-
montou; foi um desmaio rápido, de emoção. Meu pai era mais contido, mas
foi muito bom reencontrar a família, os oito irmãos. Depois fui me encon-
trar com a namorada. Ela trabalhava na prefeitura e entrava no trabalho às
11h. Pelas 10h30min, saí de casa e me encontrei com ela na rua. Aí eu falei
para ela: ‘Hoje você não vai trabalhar. É feriado para você!’ Ela não foi ao
serviço naquele dia, e ficamos na praça matando a saudade.”
Carlota Melo, ao término da guerra, permaneceu na Itália por mais
três meses cuidando de feridos. Na chegada, a tão sonhada emoção do
reencontro deu lugar à tristeza decorrente da pior notícia de sua vida:
“Meu irmão mais velho morreu, e eu não fiquei sabendo... A carta foi
censurada e rasurada. Ele era o mais inteligente, meu conselheiro, um
pai para a família. Ele me aconselhou a ir para a guerra e iria me receber
no Rio. Fui recebida pelo meu segundo irmão, que deu a notícia de que
meu irmão, delegado em Curvelo (MG), tinha morrido. No Dia da Vitória,
ele tinha dado ordem aos militares que ficaram de serviço para deixarem
todos festejar, mas dentro da ordem, e que prendessem quem fizesse
bagunça. Prenderam o filho de um fazendeiro muito rico, que estava
bêbado e fazendo desordem. O fazendeiro, quando descobriu que o filho
estava preso, foi lá e desacatou os soldados. Foi preso também! Ficaram
pai e filho presos. Depois, conversando, soltaram o pai e o convenceram
de que o filho ficaria preso até dormir e ficar bom. No dia seguinte, ele
mandou os jagunços dele ficarem de tocaia e matar meu irmão quando
ele passasse. De manhã, quando ele estava indo para o trabalho, em
uma esquina perto da igreja, mataram ele com uns cinco tiros. Eu não
fiquei sabendo na guerra porque rasuraram a carta. Quando cheguei ao
Rio, meu irmão me contou essa tragédia toda. Eu só fui ao Ministério da
Guerra para me despedir. Falei que eu devia ficar com minha família, com
minha irmã.”
A maioria dos soldados que participou da guerra, por não ser mili-
tar de carreira e com a desmobilização da Força Expedicionária
Brasileira ainda na Itália, chegou ao Brasil praticamente na con-
dição de civil, apesar de ter voltado fardada.
Na época, o Exército não dispunha de uma estrutura que permitisse
incorporar às suas fileiras todos os soldados que voltaram da guerra.
Muitos se sentiram abandonados. A separação foi traumática, pois rompeu
amizades forjadas ao longo de vários meses. Mário Santos resume esse
sentimento dizendo que, apesar da pompa com que os pracinhas foram
recebidos no retorno ao Brasil, as marcas que a guerra deixou em todos
não foram levadas em conta quando os dispensaram.
Ivo Ziegler recorda que na chegada à Vila Militar procederam à devo-
lução do armamento e do equipamento e foram licenciados. Em 1º de ou-
tubro de 1945, recebeu o Certificado de Reservista. A frustração foi muito
grande, pois, pouco mais de nove meses após ter deixado sua terra natal em
defesa da Pátria, pela qual sacrificaria a própria vida se necessário fosse,
estava de volta à vida civil.
Neraltino Santos permaneceu apenas uma noite no quartel. No dia
seguinte, após receber o pagamento a que fazia jus, foi licenciado. Segundo
relata, havia lhe sido dada a opção de permanecer no Exército: “Eu só
queria receber o pagamento a que tinha direito e voltar logo para casa.”
Jarbas Ferreira não quis permanecer no Exército porque ficou desiludido
com muitos militares da época, que, segundo diz, “eram terríveis, se
julgavam superiores a todo mundo... Cheguei ao Rio, tirei a farda e vim
embora. Nunca mais voltei lá”. Afirma que hoje está mudado e faz questão
de comparecer às solenidades militares.
cura. Mas não teve jeito, afinal não éramos mais milicos.” Pedro Vidal recor-
da que ao chegar a São Sepé chorou de felicidade. A emoção pelo retorno e o
reencontro com a família foram muito grandes. Nunca mais seria o mesmo,
mas a vida voltara ao normal.
Geraldo Taitson diz: “O Getúlio não queria que permanecêssemos no
Exército. Ele era um ditador; nós havíamos saído do Brasil para lutar contra
duas ditaduras: uma alemã e uma italiana. Não ficava bem a FEB voltar para
o Brasil e encontrar um ditador aqui. Em 29 de outubro, ele renunciou. Eu
fui dispensado; havia sido convocado para a guerra. Fiz quatro concursos
para o Departamento Administrativo do Serviço Público. Fiz concurso para
o Ministério da Educação e fui trabalhar em Viçosa-MG. Fiz outro concurso
para escriturário; fui mandado para Niterói-RJ. Em Niterói fiz outro concur-
so para oficial administrativo; fui mandado para a fronteira com o Uruguai,
em Santana do Livramento-RS.”
Osvaldo Carnevalli preferiu sair do Exército: “Depois da guerra, botei
na cabeça que precisava esquecer toda a desgraça que vivi e seguir em fren-
te. Montei um armazém onde vendia cebola, arroz, feijão, batata, bacalhau,
foguete; vendia de tudo! Toda a semana eu ia de caminhão a São Paulo para
encontrar preços melhores. Carregava tudo e voltava pela estrada velha;
demorava a chegar; só no outro dia, com o caminhão carregado... E assim
fomos tocando o barco.” Carnevalli afirma que a pensão que recebe é muito
importante porque pôde sair de trás do balcão.
Vasco Ferreira recebeu o certificado de reservista assinado ainda na
Itália: “Embarcamos no navio Mariposa. Depois de 15 dias do mar, desem-
barquei no Rio. Fiquei por uma semana em casa. Apresentei-me no Sam-
paio, recebi a Medalha de Campanha e estava dispensado. Fui para a vida ci-
vil; poderia ter ficado no Exército, mas não quis. Voltei a trabalhar com meu
pai; fui aprender a polir joias. Ao voltar da guerra, a separação dos amigos...
Passados alguns meses, encontrava um ou outro soldado conhecido. Aque-
las amizades de guerra, mesmo dos oficiais conosco, ficaram para sempre.”
Vasco continua: “Eu trabalhei na indústria de joias para três ou quatro
judeus. Eles sabiam que eu tinha estado na guerra, mas eles nem me davam
importância, não. Eles estavam vivendo bem no Brasil graças à nossa con-
tribuição porque, se os alemães vencessem a guerra, eles estariam perdidos
mesmo. Quer dizer, em parte eles deviam a nós um ato de agradecimento.
Mas nada! E ainda nos tratavam com indiferença. Não estou me queixando
não, mas para ver como são as coisas...”
essa foto. Quando mandei a foto de meio-corpo, não calculei que haviam
dito que eu havia perdido as pernas...”
Outro que passou por essa experiência desagradável foi Geraldo San-
felice. Ao ser ferido em combate e ter a perna amputada, talvez por má in-
terpretação, sua baixa foi considerada como morte e noticiada no jornal.
Os parentes já haviam chorado a perda quando receberam a primeira carta
dos Estados Unidos informando que ele estava por lá, em tratamento. Ane-
xou uma fotografia na qual estava sem a perna. O morto havia renascido.
Souberam que o guerreiro havia perdido uma perna na guerra, mas isso foi
motivo de muita festa na 4ª Colônia...
Sanfelice recorda que o amigo Rubens era craque na sinuca e que, para
descontrair, eles iam ao clube tirar dólares dos americanos. Rubens lembra
que cada partida de sinuca normalmente era jogada a cinco centavos. Como
ele era bom no jogo e se garantia, apostava um dólar. Desse modo, chegava
a ganhar cerca de 150 dólares por semana. Com o dinheiro do jogo, ajudou
um companheiro que insistiu em visitar Carmen Miranda, em Hollywood.
Conforme diz, o amigo, após ser recebido na entrada de serviço, decepcio-
nado, gastou tudo o que tinha em bebida. Para conseguir retornar a Utah,
mandou um telegrama aos amigos pedindo dinheiro: “Fizemos uma coleta
e mandamos para ele. Só assim pôde voltar ao hospital.”
Segundo Sanfelice, entre os pracinhas que estavam lá, não havia baixo-
astral, pois os amigos se apoiavam mutuamente. Além disso, recebiam a
atenção das enfermeiras que, segundo ele, além de bonitas, eram muito
atenciosas. O atendimento psicológico foi muito importante para manter
a autoestima de todos: “O tratamento nos Estados Unidos foi muito bom.
Recebíamos atendimento completo, tanto na parte física quanto na psico-
lógica.” Para Rubens Andrade “o tratamento não foi apenas bom; mas foi
excepcional! Recebíamos alimentação especial; assim que sentávamos à
mesa, uma moça trazia a bandeja.”
Acervo: Vet. Geraldo Sanfelice
Reabilitação psicológica
missão, que foi difícil. Eles são verdadeiros heróis, que nos ajudaram a cum-
prir bem a missão que nos havia sido imposta”.
Cleto Pellegrinelli, quando voltou à Itália em 1995, sentiu-se muito bem,
“com sensação do dever cumprido, ainda mais porque que sou filho de ita-
lianos. O papai era de pertinho de Ferrara, e mamãe, de Bolonha. As posições
onde brigamos na guerra eram perto dessas cidades. Eu era um brasileiro, fi-
lho de italianos; eu me sentia filho de duas pátrias e lutei para libertar a Itália
como se fosse o Brasil, porque eu tinha paixão pelos meus pais e adorava ser
filho de italianos; ao mesmo tempo, estava representando o Brasil em uma
guerra tão difícil”.
Divaldo Medrado acredita ter cumprido bem sua missão, destacando a
solidariedade aos italianos: “Saímos do Brasil com a esperança de realizar-
mos nosso trabalho com eficiência e trazer um resultado positivo. Assim foi
nossa missão. Assim foi que agimos! Eu me sinto muito feliz por ter colabo-
rado com os italianos, mesmo indo contra o que os americanos pregavam.
Eles diziam: ‘Primeiro vamos ganhar a guerra; depois nós cuidaremos dessa
gente.’ Mas o brasileiro não fez aquilo; na medida do possível, ajudou as famí-
lias italianas. Apesar de a guerra ter sido uma desgraça, houve muitos fatos
que recordamos até com saudades, especialmente as amizades que fizemos
e a solidariedade.”
Ivan acredita que cumpriu seu dever: “Eu não fiz força para ir à guerra,
mas também não fiz nada para ficar no Brasil. Não pedi para ir; fui porque era
militar e estava em um regimento designado para a guerra. Cumpri minha
obrigação. O que eu tive que fazer na guerra ninguém fez por mim. O que era
atribuição de minha função eu fiz. Desempenhei bem minha função e pro-
curei ser eficiente. E fiz porque era a minha vez de fazer; se fosse hoje, outro
teria que fazer, e é bem possível que fizesse até melhor. Eu não fiz nada de ex-
traordinário. Não sou um herói! Até dizem que sou, mas para mim herói é um
cara que se destaca, como o Max Wolff, que enfrentou tudo sem demonstrar
medo. Não acredito que alguém não tenha medo. Ele é natural! É próprio do
homem, mas não pode é ser covarde e se deixar dominar.”
Taltíbio Custódio acredita que cumpriu bem sua missão, mas não se
considera um herói: “Heróis são aqueles que tombaram na guerra. Sou uma
pessoa que combateu por um ideal — a liberdade do mundo, que estava
sendo posta em risco pelo nazifascismo. Todo brasileiro deve defender a
terra onde nasceu. A Bandeira é um símbolo que representa a Nação; ela
merece respeito. A Pátria merece nosso sacrifício. Sinto-me honrado por ter
Acervo: Cmdo 3ª DE
era caro e disse a ele que eu era terceiro-sargento e não teria como pagar. Ele
me perguntou: ‘Você tem pijama?’ E respondi: ‘Tenho!’ Ele: ‘Tem chinelo?...
Tem escova de dentes? Então, amanhã às 7h, esteja aqui!’ Fiquei seis meses
no hospital. Entrei lá com 43kg de peso. Eu tenho 1,76m... Saí de lá com
49kg. Quando saí, ele me falou: ‘Olha, se você quiser viver mais dois anos,
pare de fumar e procure um lugar para morar que seja bem arborizado, que
tenha bastante oxigênio.”
Gonzalez, que tinha casado havia pouco tempo, juntou as economias
que restaram da guerra com as que haviam sido depositadas no banco para
sua mãe — ela recebia e depositava em uma conta para ele —, comprou um
terreno na Vista Inglesa e fez uma casa: “Por mais de 20 anos, fiquei meio
atrofiado, por conta dos tendões que haviam sido rompidos pelos estilha-
ços. O Dr. Alípio havia dito que isso desapareceria com o tempo, sem eu
perceber... Dito e feito! Mas a dor durou mais de 20 anos.”
Além da dor física, Gonzalez precisou conviver com outro drama: “Fi-
quei uma temporada agitado... Meu sono era agitado, tinha pesadelos à
noite, acordava assustado, aflito. Tanto é que, quando cheguei, fiquei seis
meses no Rio de Janeiro, no pavilhão neuropsiquiátrico. Eu não era louco,
mas eles praticamente me julgavam como tal. Era consequência da guerra;
eu estava traumatizado. Não é fácil... A guerra não é fácil! E quando o cara
é ferido nas condições em que eu fui é pior ainda. Depois que fui ferido, eu
ouvia um tiro e ficava apavorado. Antes eu nem ligava, mas depois que eu fui
ferido a coisa mudou. Não é fácil não! Eu levei uns 8 a 10 anos para superar
isso. Até hoje, volta e meia, ainda sonho com a guerra. No pesadelo, sofro,
mas quando acordo, fico aliviado. É triste; é muito triste uma guerra!”
Raul Kodama, que estava junto quando foi tomado o depoimento de
Gonzalez, lembra: “Quando cheguei da guerra, minha família pensou que eu
estava louco. Fui parar no Hospital das Clínicas, em São Paulo... Mas... é por-
que vivemos aquilo tudo; aqueles horrores da guerra. Em parte, acabamos
perdendo o sentimento humano. Isso é consequência da guerra. Eu não po-
dia ficar no meio de muita gente que dava vontade de bater, de quebrar. Essa
neurose foi passando; com o tempo, voltei ao normal.” Kodama teve sorte,
pois no Hospital das Clínicas era protegido do diretor, o Dr. Alípio Corrêa
Neto, companheiro de guerra. Francisco Gomes passou por drama parecido:
“Depois que dei baixa do Exército, me esforçava muito para não ficar contra-
riado com qualquer coisa, porque eu sabia que, se isso acontecesse, desen-
cadearia alguma coisa ruim que vivi na guerra. Isso durou uns dois anos.”
Ewaldo Meyer ficou com trauma até certa época, pois o bombardeio
era violento: “Noite e dia era tiro em cima de onde estávamos. Mesmo para
nós, que estávamos longe do front, não foi fácil, especialmente por causa
do famoso canhão de 170mm de bitola, que tinha uma explosão violenta;
instintivamente, nos abaixávamos. Certa vez, passando pelo Viaduto do
Chá [São Paulo], ouvi um foguete; instintivamente, me abaixei. Esse foi meu
trauma, mas aos poucos ele foi morrendo.” Meyer complementa: “Na mente
de qualquer ex-combatente, ainda hoje está nítido o terreno à nossa frente,
com os riscos e a satisfação de ter terminado a guerra; isso não sai da mente
de ninguém.”
Para Cleir de Carvalho, os primeiros anos foram mais difíceis: “Até me
readaptar à rotina de levantar pela manhã, tomar café, ir trabalhar, me re-
organizar espiritual e fisicamente, foi muito difícil. Brigava fácil! O dinheiro
que ganhei joguei todo fora... Houve um transtorno muito grande naqueles
primeiros cinco anos. Mas depois me ajustei. Era o trauma da guerra: como
é que ia voltar a ser uma pessoa normal depois de tudo que eu passei? Foi
muito difícil... Pouca idade... Foi preciso muita luta até ficar tudo engrenado
de novo, até que, em 1956, comecei a me estruturar, e essa reestruturação
vem sendo acompanhada ao longo dos anos. Hoje acabou tudo: Não tenho
mais traumas, mais nada. Acabou tudo!”
Newton Lascalea diz: “Os alemães vinham todas as noites, nem que fosse
para jogar uma bombinha para inquietar. Como não sabíamos a hora que eles
viriam, não podíamos dormir. Como eu praticamente não sentia sono desde
criança, eu ficava de sentinela quando os outros estavam cansados. Mas se
você fica olhando para aquela terra coberta de neve, noite após noite, você
cria uma vida paralela à realidade que você está vivendo; você se perde no
pensamento. Quando voltei, pegava o bonde e, quando chegava ao destino,
eu não descia. Pensava em alguma coisa e desenvolvia aquela ideia como se
estivesse em um filme... Eu entrava em transe. Para mim foi essa a marca que
a guerra deixou. Mas muitos ex-combatentes tiveram problemas mais sérios
e morreram na rua como indigentes, sem direito a nada.”
Divaldo Medrado, ao voltar ao Brasil, já no HCE, foi julgado incapaz
definitivamente para o serviço do Exército, sem poder prover os meios de
subsistência, e foi reformado: “Fiquei com os pensamentos da guerra na
memória por algum tempo, mas tive um bom tratamento e não fiquei com
nenhum trauma.”
Paulo Carvalho credita à fé sua sobrevivência e ainda hoje tem sonhos
desagradáveis: “A fé foi — e é — muito importante. Eu pedia a Deus para es-
capar da morte e à Nossa Senhora das Graças para me ajudar. Até hoje sonho
que estou na guerra de novo, sabia? Eu dizia para mim mesmo: ‘Paulo, você
escapou da guerra, mas se cuide, senão você não escapa de novo não.’ Você
trata de se esconder direito... Faz 68 anos, e sonho que estou na guerra de
novo. Então eu acordo com aquela sensação de sufocamento, porque para
quem foi de linha de frente foi duro.”
Vasco Ferreira ficou com “neurose de pisar na terra por causa das minas.
Eu tinha um medo danado de pisar nelas. Depois de 14 de novembro [data em
que foi atingido pela explosão de uma mina], onde eu pisava, tinha medo. Até
hoje tenho isso. Eu não vou à Itália de jeito nenhum! Para mim ainda tem mina
naquilo... É estranho isso, mas foi uma tragédia para mim.”
Pacífico Pozzobon diz que “muitos pracinhas não conseguiram superar
os traumas que trouxeram da guerra e se entregaram à bebida, sem ter
a quem recorrer... A pensão que passaram a nos pagar foi muito justa,
mas infelizmente muitos veteranos morreram sem ter recebido o justo
reconhecimento da Pátria”. Divaldo Medrado complementa: “Lamento que
muitos companheiros tenham ido embora sem receber o reconhecimento
que nós recebemos, em 1988, com a pensão para os ex-combatentes, que
aceitamos de bom grado. Muita gente se suicidou; havia muita gente que não
tinha emprego, e o Governo, na época, não se interessou por nós; não avaliou
o verdadeiro valor do soldado.”
Acervo do pesquisador Claudevan Melo
P ara a maioria dos pracinhas a guerra foi uma grande escola para a
vida. Quem conviveu com seus horrores não esquece. Os fantasmas
acabavam voltando... Mesmo assim, na opinião da maioria dos prota-
gonistas, os ensinamentos colhidos foram úteis ao longo da vida.
Para Alcides Basso, “na guerra, aprendemos a valorizar a vida e apren-
demos a importância da solidariedade”. Como exemplo, recorda que ele,
Júlio Dalla Porta e Geraldo Sanfelice formavam um trio inseparável até San-
felice ir para o front: “Já no navio, o Geraldo não comia. Ele nos cedeu seu
cartão de refeições. Eu e o Júlio repartíamos a comida que seria dele e fi-
cávamos com três refeições por dia. O Geraldo só comia a sobremesa [dos
três]. Ele ficou tão fraco que na chegada à Itália tivemos de carregá-lo do
navio, pois já não conseguia caminhar.”
Sobre essa passagem, Sanfelice relata: “Durante a travessia, eu me sen-
tia muito mal, e não parava nada no estômago... Os amigos tentavam me des-
contrair; a camaradagem era muito grande e fazia com que eu não entregas-
se os pontos. Eles cuidavam de mim. Quase morri de tantos enjoos que tive.
Para ficar hidratado, o João Baptista Pozzobon, que ajudava no cassino dos
oficiais, trazia mais laranjas, e eles espremiam o suco na minha boca.”
Em outros momentos, como quando sofreu o acidente e em consequência
restou amputada a perna, Sanfelice recorda que o cabo Benedito, que havia
sido seu companheiro nos tempos de soldado, em Santa Cruz do Sul, enquanto
ajudava a transportá-lo até o hospital de campanha, ficou ao lado da padiola
encorajando-o: “O companheirismo e a amizade na guerra fazem toda a
diferença. Eu, por exemplo, nunca fui a Minas Gerais, mas fiz muitos amigos
mineiros, que eram muito boa gente. As amizades forjadas na guerra são
amizades para a vida toda.”
Basso diz que “os soldados brasileiros em geral não tinham medo. Pelo
contrário! Eram topetudos até demais! Na guerra, não precisa ser valen-
tão; tem que ser cuidadoso. Encarar uma metralhadora de frente não é de-
monstração de coragem; isso é burrice!” Segundo ele, se o inimigo está bem
protegido, antes de pôr os homens a dar lanços e avançar, é necessário que
a artilharia e a aviação funcionem muito a fim de preservar vidas. Afirma
ainda que a falta de prática levou os brasileiros a cometerem erros e que
aprendeu a medir as consequências de seus atos antes de colocá-los em
prática. No mesmo sentido, Taltíbio Custódio diz que antes da guerra “era
metido a fazer de tudo. Aprendi a ser mais observador e agir com mais cau-
tela. Nunca se deve ser covarde, mas ser muito afoito pode ser perigoso e
pode até custar a nossa vida”.
Ângelo França, com a experiência de quem viveu uma guerra e tem
gravados na memória os resultados que ela causa, a princípio é contrário
a toda e qualquer guerra: “Os países deveriam resolver os conflitos pela
via diplomática. Eu penso muito sobre a inutilidade e a estupidez de uma
guerra e o sofrimento que ela causa. A guerra é algo absurdo, mas, quando
aparece algum fanático, ela é necessária para neutralizá-lo e para que ou-
tras nações continuem livres.”
Rubens Andrade diz que “uma guerra nunca trouxe e nem trará nada
de bom para ninguém. Guerra só é bom para ditadores e, mesmo assim,
quando vencem. Quando perdem, só têm a lamentar. A guerra é algo cruel;
você tem que matar para não morrer; isso é muito difícil... Bom mesmo é
viver em paz, em uma democracia mesmo que fantasiada. Entendo que não
deve mais haver uma grande guerra mundial; mas, se ela acontecer, nós
iremos lá para acabar com ela. Esse é meu pensamento”. Sérgio Pereira
concorda que “a guerra não traz nada de bom, mas nela se aprende o ver-
dadeiro significado da palavra solidariedade — o melhor sentimento que
conheci na guerra. Era muito bom poder ajudar os italianos que tinham
paura e vontade de mangiare”.
Ary Abreu diz não à guerra. Segundo ele, os homens que fazem a guerra
não dão valor ao sentimento religioso: “O pior da guerra que vivi e lembro
até hoje é a destruição de uma nação. Guerra é degradação moral, é a mi-
séria de ver mães oferecendo filhas de 8, 10 anos para manterem relações
sexuais a troco de comida, é ver o patrimônio de uma civilização milenar
destruído — ainda bem que tiveram a decência de respeitar Roma e algu-
mas cidades históricas com seus monumentos.” Taltíbio Custódio comenta
eu aceito mais as coisas; estou diferente, sou uma pessoa realizada. Sou
uma pessoa que foi feliz a vida toda. Não fiquei sentada esperando as coisas
acontecerem. Sempre tive coragem para seguir o caminho que pudesse me
levar a ser a tenente Carlota. Eu tentava! Se precisasse, eu pedia ajuda. Nada
recebi de mão beijada. Nem com ajuda política; nunca tive um padrinho.
Foi por conta própria, com muita ousadia e muita coragem que superei os
obstáculos que apareciam pelo caminho. Eu os enfrentei.”
Na opinião de Hélio Marques, “jamais deveria existir a guerra; ela não
leva a nada. Vi muitas pessoas inocentes morrerem, famílias inteiras se de-
sagregarem, chefes de família obrigados a prostituir a esposa para terem o
que oferecer de comida para seus filhos. Era comum ver homens nas estra-
das e cidades com fotos das esposas oferecendo aos soldados em troca de
dinheiro e comida [...] A guerra destrói a moral, destrói as cidades, acaba
com tudo”, conclui.
Taltíbio Custódio encerra dizendo que, após cumprir a mais árdua
missão de sua vida, passou a enxergar o mundo com outros olhos e
dar mais valor às coisas. “Quem presencia uma guerra aprende que o
progresso começa pela não destruição do que já se tem. Não poluir a água,
não cortar as matas sem necessidade, conservar a natureza. Essas são as
missões de hoje!”
Kodama recebeu e cumpriu muitas missões que não seriam propria-
mente suas, mas dizia sempre “Sim, senhor!”, e cumpriu-as da melhor for-
ma. Para concluir, deixa a seguinte mensagem aos jovens militares ou civis
que quiserem vencer na vida: “Devemos ter a vontade de sempre colaborar,
de sempre servir, de sempre encarar qualquer missão; e quando receber
uma missão e disser ‘Sim, senhor!’, que isso seja o sinal de que a missão será
bem cumprida.”
Determinei a ele: ‘Me passe seu fuzil; quem vai ficar com ele sou eu.’ O barulho
aumentava... Quando saíram do mato, vi que eram duas ou três famílias de
italianos, que vinham correndo com medo dos alemães. Eles estavam na
frente da minha arma. Tinha crianças, meninas, senhoras e senhores de
idade; eram 17 pessoas no total! Depois de reunidos, foram conduzidos
para a retaguarda e entregues no comando da companhia. O Toledo era um
soldado valente e corajoso, era grandão! Eu era pequenininho, mas disposto
como o filho de um leão. O que quero destacar é que, se eu não tivesse tido a
disposição de falar para o Toledo não atirar e se ele não tivesse me obedecido,
talvez não tivesse matado os 17, mas uns 10 ele teria rasgado com o fuzil.”
Cleto Pellegrinelli recorda que seu comandante, capitão Hésio, o influen-
ciou muito: “Ele era muito humano e defensor dos pequenos. Mantinha a
companhia sempre unida. Quando ia às reuniões do comando, e queriam que
fizesse coisas impossíveis, ele defendia os soldados. Ele nos dizia [nas reuni-
ões com os comandantes]: ‘Eles querem que a companhia faça isso! Eu não
vejo condições de fazer assim. Eu não vou ser assassino de meus homens!’
Ele se conduzia de maneira séria e não permitia que nos colocassem em risco
desnecessário. E ele falava para o general: ‘Eu aceito fazer. Nós vamos fazer!
Mas vai ser desta maneira...’ Ele sempre defendeu a tropa. Isso influenciou
muito o modo de vivermos na guerra.”
O então soldado Geraldo Taitson, da mesma companhia, diz: “O soldado
não quer bancar o covarde; enquanto seu comandante estiver resistindo, ele
quer ficar ao lado de seu sargento, tenente ou capitão. Alguns soldados têm
medo porque o medo é inerente ao homem... Na hora que o medo aperta, é
lembrar que a pessoa não pode ser covarde. Enquanto puder, ele tem que
resistir para não ser chamado de medroso, de covarde. O capitão Hésio, meu
comandante de companhia, entendia muito de psicologia: quando percebia
que alguém estava tomado pelo medo, ele o substituía imediatamente.”
Raul Kodama, como chefe, dava o exemplo e exigia que cada soldado
desse o melhor dele mesmo em prol do conjunto: “Teve um soldado que dis-
se: ‘Cabo Kodama, você quer que eu faça o impossível!’ Eu disse: ‘Não! Eu só
quero que você faça melhor do que eu. Fazer bem, eu sei. Você precisa fazer
melhor.’ E ele fazia! Na guerra, você não diz como o soldado tem que fazer,
você diz: ‘Sua missão é ir lá e fazer bem.’ Para você ensinar o soldado, existem
os treinamentos. Você tem que saber para onde, quando, como e por onde vai
mandar o soldado, mas ele também precisa entender o porquê dessas pala-
vras e botá-las em prática.”
Sargento Max Wolff Filho no comando de uma patrulha pouco antes de ser morto
Acervo: AHEx
Cleto Pellegrinelli sempre foi tratado com muita atenção nos quartéis
onde passou: “Éramos convidados a repassar os ensinamentos da guerra para
os demais militares. Eu sentia que éramos muito valorizados pelos nossos
comandantes pela maneira como procedíamos e pelo que podíamos transmitir.
O Ary sentia coisas diferentes, mas era em outras unidades. Eu saí do 11º
Regimento e voltei para ele após a guerra. Fiquei lá enquanto pude. Sempre fui
tratado com muita consideração. Na guerra, eu aprendi que o comandante era o
último sempre. Primeiro o bem-estar dos comandados, depois o do comandan-
te. Essas coisas nós começamos a aplicar aqui, depois da guerra.”
Alcides Basso destaca que durante a guerra a conduta com relação
ao material também começou a mudar. Segundo ele, no Brasil vigorava a
orientação no sentido de que o armamento era o fator mais importante;
o homem vinha em segundo plano. Na guerra, isso mudou: “Quando vis-
sem que não conseguiriam manter determinada posição no terreno e não
houvesse como levar os equipamentos mais pesados [viaturas, morteiros,
metralhadoras etc.], antes de retrair, esses deveriam ser destruídos, a fim
de evitar que caíssem em mãos inimigas. Um lema dos norte-americanos
passou a ser adotado pela FEB: para repor uma arma, bastam poucas horas
em uma linha de produção; para a vida humana, não há reposição!” Aribi-
des Pereira corrobora essa informação e relata que a orientação dos norte
-americanos era atirar quando necessário, sem economizar. A economia de
munição poderia significar a perda de valorosas vidas.
As relações humanas, como se pode perceber, tiveram grande evolução
após a guerra no âmbito do Exército Brasileiro. A evolução doutrinária e de
material também foi evidente com a introdução da mecanização na artilharia
e na cavalaria inicialmente, e também na infantaria e na engenharia. As
comunicações foram desmembradas da engenharia. A 1ª Companhia de
Transmissões foi o embrião das demais unidades da Arma do Comando.
Geraldo Sanfelice viveu essas duas fases. Como soldado do 3º Batalhão do
7º RI, em Santa Cruz do Sul, foi condutor de boleia em uma época em que
as metralhadoras e materiais pesados eram conduzidos no lombo de mulas.
Antes mesmo de ir para a guerra, presenciou a chegada dos carros de combate
blindados do 3º BCC a Santa Maria.
Se no aspecto do relacionamento interpessoal e no trato com o material
o Exército Brasileiro absorveu muitos valores e conceitos praticados pelos
norte-americanos, no quesito integração racial os brasileiros deram aula a
eles. Rubens Andrade diz: “No exército americano, não havia integração entre
front. Nele era prestado o atendimento inicial aos pacientes que não po-
diam ser transportados em consequência da urgência da intervenção ci-
rúrgica — que chegava a ser feita sobre a própria padiola; b) Hospital de
Evacuação (Evacuation Hospital). No esboço, percebe-se que progrediu por
várias localidades. Nele eram realizadas cirurgias e tratamento de doenças
infectocontagiosas; c) Hospital de Estacionamento (Station Hospital). Era
mais bem estruturado e recebia pacientes com órgãos perfurados, mem-
bros amputados e fraturas mais graves, que exigiam internação mais pro-
longada; d) Hospital de Convalescentes (Convalescent Hospital). A denomi-
nação é autoexplicativa; e) Hospital Geral (General Hospital). Era o único
dotado de uma estrutura de hospital de tempo de paz. Desse último, os do-
entes mais graves e os amputados eram evacuados para o Brasil ou para os
Estados Unidos, dependendo da complexidade do tratamento a que teriam
de ser submetidos. Evidente é que o SSE era composto por médicos, dentis-
tas, enfermeiros e padioleiros, que tinham o auxílio dos responsáveis pelos
sepultamentos. Contudo, pela complexidade do trabalho, tais segmentos
não serão abordados nesta obra.
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Imagem VP.03.06.V01.001.F212 -
Carlota Mello
Porto de Nápoles: “Que triste impressão tivemos” – Enf. Aracy Arnaud Sampaio
que cada um fosse à enfermaria, pegasse sua lâmpada e seguisse para o abri-
go, que era em um túnel. Todo o mundo correu. Quando peguei a lâmpada, vi
a geladeira e tive vontade de beber água. Era uma geladeira imensa, de ma-
deira. Quando abri, vi o caixote de penicilina. Sem saber ao certo o que estava
fazendo, porque normalmente eu não iria aguentar aquele caixote, pensei:
‘Nossa! Levaram os pacientes e esqueceram a penicilina...’ Não levei lâmpada,
nem mais nada. Peguei o caixote e saí correndo para o abrigo. Quando che-
guei ao abrigo, veio um bando de homens na minha direção, pegando o cai-
xote e dizendo: ‘Ela se lembrou; ela se lembrou da penicilina...’ Era um caixote
que normalmente eu não iria aguentar, mas, na época, eu andei quase 1km
para chegar lá... Abraçaram-me como se fosse um jogador de futebol quando
faz um gol. Colocaram-me lá em cima, porque eu me lembrei da penicilina.”
Virgínia diz que sua principal atividade foi em enfermarias de cirurgia
e em salas de operação em hospitais: “Muitas vezes o soldado nem percebia
que havia sido amputado, pois a perna era enfaixada e colocada uma
espécie de prótese no local. Quando o soldado dizia que sentia dor no pé,
e nem tinha mais perna, eu fazia como se ele realmente ainda tivesse o
pé; colocava um travesseiro embaixo para deixar mais confortável; fingia
mesmo! Era para o bem dele. Às vezes entrava uma pessoa na enfermaria
e dizia: ‘Eu quero falar com o doente fulano que perdeu uma perna.’ Eu não
deixava falar. ‘Tudo bem! Você pode visitá-lo, mas não fale que ele perdeu
a perna; ele não sabe.’ Essa era a orientação que seguíamos no teatro de
operações; era ordem, e nós cumpríamos.
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Imagem VP.03.06.VO2.126
1
P. Ex. do inglês Post Exchange – espécie de cantina dentro de bases americanas que
vende artigos diversos a preços especiais.
Enéas Araújo conta: “Eu tinha sido operado em Pistoia a primeira vez
em um hospital de campanha às 13h do dia seguinte ao ferimento. Lembro
que a enfermeira até ria, porque ela passava álcool e tinha que usar uma
espátula, tamanha era a sujeira. Desde que nós tínhamos passado por Por-
reta Terme, eu não tinha mais tomado banho. Quando acordei, na manhã
seguinte, eu estava amarrado. Perguntei o porquê, e o sargento respondeu:
‘Ah, você fez um escarcéu de madrugada; mas não se importe, pois quase
todo mundo que vem do front, meio fraco, faz isso... É o efeito das injeções...’
Passei oito dias no hospital tomando penicilina de três em três horas. Não
tinha mais onde tomar... Depois fui para um hospital maior, no prédio de
uma sociedade. O salão de baile era a enfermaria.
Fui tratado por uma enfermeira da FEB. Se não me engano, era a mais
velha de todas. Certo dia ela ia arrumar um livro para eu ler; fui com ela
até a barraca. Sentei na cama dela enquanto ela procurava o livro. Entrou
a Elsa Cansanção e me viu lá. Ela esculhambou comigo, e eu não aceitei
dia 14 que não tomo água e nem como.’” O desfecho da aventura frustrada
não foi o esperado por Ary, mas certamente foi o indicado e o mais correto.
Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação
Imagem VP.03.06.V01.001.F130
Virgínia em Pistoia
A carta
A carta escrita pelo sargento Inácio de Loyola de Freitas Virgolino, do
Regimento Sampaio, traz detalhes históricos de suma importância, não só
sobre a enfermeira que o tratou mas sobre a função que desempenharam as
enfermeiras na guerra. Independentemente de país, bandeira ou ideologia, é
possível depreender sentimentos que movem os profissionais de enferma-
gem: humanismo e solidariedade!
Pistoia — Itália. Enfermaria 3 de Cirurgia
Tenente, de quando em vez me vem na cabeça o tempo em que
eu fui prisioneiro dos alemães.
A senhora fez bem em dar igual tratamento a esses homens
que são na guerra os nossos inimigos. Esse artigo que saiu hoje
no jornal do hospital, tirando a ração de cigarros dos brasi-
leiros me fez pensar profundamente, e quando vejo a senhora
distribuir a sua ração porque a senhora não fuma e por isso
mesmo perdê-la, é uma coisa muito bonita.
Holanda deixa uma mensagem aos jovens: “Na época da guerra, eu fui
voluntário para defender meu país e me sentia bem, porque estava defen-
dendo o Brasil. Os jovens deveriam servir à Pátria. Isso aqui é nosso, de
mais ninguém! Nós devemos defender o que é nosso! Eu me sinto um brasi-
leiro de todo o coração. Eu amo meu povo; eu amo minha Pátria.”
Este capítulo não estaria completo caso não fossem mencionados os
“soldados da borracha”. O tema é complexo e merece aprofundamento.
No entanto, mencionar as dezenas de milhares de brasileiros, sobretudo
nordestinos que se deslocaram para a Amazônia a fim de participarem
do esforço de guerra mediante a extração de látex para a indústria da
borracha é uma questão de justiça. O inimigo deles não usava armas: era
a própria floresta, com suas feras e doenças que vitimaram milhares de-
les; outros tantos ficaram abandonados à luz da própria sorte. A luta dos
sobreviventes continua. A vitória para eles só virá com o reconhecimento
da Pátria pelo esforço que eles e os milhares de companheiros que não
tiveram a ventura de sobreviver às agruras da selva empreenderam pela
paz mundial.
Homenagem musical
A música “Longa jornada” é uma homenagem aos pracinhas, baseada
em depoimentos de protagonistas, transcritos neste livro, e dos veteranos
Ary Dal Pozzolo e João Baptista Pedro Pozzobon. Da junção desses frag-
mentos, surgiu um roteiro. João Chagas Leite, vencedor de diversos festi-
vais de música gaúcha, com talento ímpar, sensibilidade musical, violão e
voz marcantes, fez mais do que sonorizar uma história: deu vida ao “Sol-
dado da Paz”.
Sugeriram arranjos e participaram da gravação os integrantes da Banda de
Música da 3ª DE, Fabiano Ribeiro dos Santos (violão e guitarra), Fábio Corrêa
Rosa (teclado e contrabaixo), Flávio Marion Sant’Ana Gonçalves (trompete) e
Amilton Mendes dos Passos.
A primeira execução pública aconteceu em 19 de fevereiro de 2010 duran-
te a solenidade alusiva à Tomada de Monte Castelo, no Regimento Mallet, na
presença de veteranos de Santa Maria e região. Em 2012, “Longa jornada” foi
adaptada para banda de música, com arranjos de Fabiano Ribeiro dos Santos.1NA
Letra:
Em destaque na avenida, ante a tropa perfilada,/O pracinha,
emocionado, relembra sua jornada:
1
Os audiovisuais podem ser assistidos em www.youtube.com.br, digitando “Lon-
NA
Preso no quartel...
José João Pereira, nascido em 1915, em São Pedro do Sul-RS, perdeu o
pai, José Luis, muito cedo. Sua mãe, sem condições para criá-lo, permitiu
que o dono das terras onde a família morava, seu padrinho, o fizesse. Ocor-
re que, depois de algum tempo, o padrinho mudou-se para o Uruguai a fim
de plantar arroz. José João o acompanhou, permanecendo fora do Brasil por
mais de três anos. Assim, na época de prestar o serviço militar, encontrava-
se no exterior.
Quando retornou ao Brasil, mais especificamente a Santa Maria, em
1937, precisou tirar a carteira profissional, pois iria trabalhar na cantina da
Brigada Militar (no Rio Grande do Sul, designação da Polícia Militar). Para
tirar a carteira de trabalho, precisou do documento comprobatório de que
estava em dia com o serviço militar. Orientaram-no a comparecer à Junta do
Serviço Militar; lá chegando para se informar sobre os procedimentos, sou-
be que era refratário (situação do cidadão que não se apresenta na época
oportuna) e teria de se apresentar no QG da então Infantaria Divisionária
da 3ª Divisão de Infantaria, hoje 3ª Divisão de Exército: “Quando me apre-
sentei no QG, viram que minha situação estava irregular e mandaram que
Viagem pitoresca
Vasco Ferreira diz: “Eu fiz a guerra toda e não dei um tiro sequer. Ape-
sar de ter tido contato com o inimigo, não estive em situação de combate
em que fosse necessária. Certa vez, fui salvo por um cidadão italiano: como
eu era baixinho, era o último homem da coluna de marcha. Eu estava dis-
traído, com o fuzil atravessado nos ombros, e nem percebi que ficava para
trás, cerca de 50 a 100m; acabei sozinho. Na volta da patrulha, eu percebi
que em determinado momento todos eles correram e se protegeram, mas
não me dei conta do motivo. Eu ia fazer o mesmo quando chegasse lá... Ti-
nha uma casa abandonada com um velho e uma criança na frente. Quando
Sozinha em Casablanca
Para Carlota Mello os dois momentos em que sentiu mais tristeza na
guerra ocorreram logo na chegada e antes da partida: “Nesses dois mo-
mentos eu chorei. A impressão ao chegar a Nápoles foi horrível: teatros,
cinemas, igrejas, castelos... tudo bombardeado! Foi uma tristeza. Logo que
cheguei ao hospital, quando estava começando a me adaptar, a Roselys
[companheira inseparável] se hospitalizou. Eu estava triste e resolvi sair
sozinha. Eu peguei uma carona e fui para Nápoles. Quando cheguei lá, não
sabia o que fazer, mas vi uma placa escrito Cinema da Cruz Vermelha. Quan-
do entrei, perguntei ao porteiro onde é que ficava o cinema. Ele disse: ‘Sobe
essa escada, que é a primeira porta.’ Eu olhei, e era uma escada rolante. Eu
nunca tinha visto escada rolante. Eu não conhecia! Eu disse: ‘Acho que vou
bambear’, não queria subir não. Perguntei: ‘Não tem elevador, escada fixa
ou outro jeito?’ Ele disse que não: ‘É só aqui. É só subir.’ Eu fui. Bambeei, me
ajeitei daqui e de acolá, até chegar lá em cima. Quando cheguei, era um an-
fiteatro imenso. Só soldados; só militar; só farda! Estava superlotado. Uma
mão, lá no meio, falou comigo que tinha um lugar. Deram-me passagem.
Eu entrei e sentei... Tinha alguma enfermeira militar por ali; no mais, tudo
era homem. Logo que cheguei, abriram-se as cortinas de um palco imenso.
Começou a cantar uma francesa. Foi aplaudida; os militares franceses se
levantaram. Daí saiu uma americana; quase todo o auditório se levantou.
Depois, a inglesa...”
Carlota continua: “Depois saiu a bandeira brasileira seguida de uma
brasileira muito bem vestida para representar o Brasil. O homem [apresen-
tador] falou que ela ia cantar A Casinha Pequenina. Quando eu vi a bandeira
brasileira tremulando e a mulher cantando ‘Tu não te lembras da casinha
pequenina onde o nosso amor nasceu; tinha um coqueiro do lado, que, coi-
tado, de saudade já morreu...’ [Carlota reproduz os versos cantando], eu
chorei convulsivamente, soluçando. Quando vi, tinha mãos em minha cabe-
ça, em meus ombros, me confortando... Quando vi que estava incomodan-
do o público, tentei parar de chorar; mas chorei, chorei, chorei... Quando
terminou a música e saíram outras bandeiras, meu soluço foi se amainan-
do. Quando terminou [o espetáculo], os americanos me colocaram em uma
viatura e me levaram de volta ao hospital. Foi a primeira vez que chorei.”
Somente antes da volta, Carlota chorou novamente, apesar de haver
prometido a si mesma que nunca mais o faria. Conforme relata, havia previsão
uma conferência das Nações Unidas. Eu fui passando aquelas cadeiras; ha-
via o nome de representantes dos Estados Unidos, França, Inglaterra... Em
uma delas estava escrito ‘Getúlio Vargas, presidente do Brasil’. De novo cho-
rei, chorei, chorei... Mas olha, nunca tinha visto um mulato, um negro tão
inteligente. Então ele disse: ‘Olha, não foi o presidente do Brasil que esteve
aqui, pois ele não gosta de viajar para fora do Brasil. Foi o ministro dele, o
Dr. Noraldino Lima quem sentou nesta cadeira. Agora você vai sentar nessa
cadeira que eu vou bater um retrato.’ Ele montou o tripé, montou a máqui-
na e bateu meu retrato sentada lá. O papel do retrato era tão ruim que com
o tempo diluiu... Eu fui tirar ele do álbum, e ele desmanchou. Quando vi o
nome do presidente do Brasil, chorei de emoção, porque eu já tinha chora-
do à noite por estar sozinha.
Quando nós estávamos ali, chegou um americano com um carro, que
veio me buscar para ir ao aeroporto. Agora, eu me pergunto: ‘Como é que
esse americano me descobriu, se eu tinha escrito lá destino desconhecido?’...
A organização deles era tão perfeita que eles sabiam de tudo... Eu não falei
nada a ninguém; esse marroquino também; não deu para ele ter falado para
alguém. Como é que o americano foi me descobrir ali? Mas descobriram;
levaram-me ao aeroporto, e eu vim embora para o Brasil. Cheguei a Natal e
encontrei os oito companheiros... Eu chorei duas vezes na guerra: quando
cheguei e no final. Durante o período que estive lá, não dava para chorar,
para ter saudade, porque tinha o trabalho.”
Carne de cavalo
Marinha de Guerra
A missão da MB durante a Segunda Guerra Mundial era patrulhar o
Atlântico Sul, protegendo os comboios de navios mercantes nas rotas entre
o Caribe e o nosso litoral contra a ação dos alemães e italianos. Também
coube a ela proporcionar segurança aos navios que conduziram os efetivos
da FEB até a Europa.
A capacidade de combate da MB era muito modesta para fazer frente
às forças do Eixo em operação no Atlântico. Fruto de um esforço conjunto
“Nós não combatemos em terra, mas nosso trabalho contribuiu para que
a FEB alcançasse a glória em Monte Castelo, em Montese e em outros comba-
tes. Nossa missão era colocá-la na Itália, em segurança e em condições para o
combate. Fomos atacados, e o navio foi avariado por um submarino inimigo.
Companheiros marinheiros morreram; contra-atacamos e não permitimos a
perda de vidas na FEB durante a travessia do Atlântico. Isso foi uma grande
vitória! Nossa batalha era ininterrupta e silenciosa, sem grande destaque na
imprensa. Corremos risco de morte, mas demos conta do recado. Acredito
que cumprimos muito bem nossa missão.”
Acervo: MNMSGM
A
dos EUA.
Força Aérea Brasileira (FAB), ainda em fase de organização, co-
laborou no patrulhamento do litoral e na proteção de comboios
no Atlântico Sul, em ação conjunta com as marinhas do Brasil e
Liberatori
corajoso, muito corajoso e muito bom soldado, para a Itália... para todos...
Os brasileiros ajudaram a libertar a Itália. É um mérito que necessitamos
dar a eles. Se estamos nestas condições, é mérito também dos brasileiros.”
Nas palavras de Castagnoli, um panorama da Itália de então: “Naquela
época, tinha muita miséria, poucas roupas, poucos sapatos... Eu era garoto
e passava fome, porque nos davam pouca comida. Comia-se pouco, porque
tinha pouca comida. Depois mudou tudo; e foi mérito, muito mérito dos
brasileiros. O fascismo era uma ditadura, e as ditaduras, em suma, não são
belas... Tinha que se estar um pouco calado, falar pouco. Sabe como é nas
ditaduras... A guerra é uma coisa muito ruim, dolorosa. As guerras... se nun-
ca acontecessem seria melhor, muito melhor!”
Mario Turini, também morador de Montese, tinha 9 anos por ocasião
da guerra. Morava em Montese e abandonou sua residência por causa da
guerra, indo para Porreta Terme, onde encontrou os brasileiros: “Só quando
os brasileiros conseguiram expulsar os alemães, nós voltamos para casa.”
Turini acrescenta: “Nós estivemos lá [em Porreta] por seis meses e co-
memos sempre, tudo bem que não havia vendas; não tínhamos dinheiro, mas
sempre tínhamos comida dos brasileiros. Éramos crianças; éramos seis ir-
mãos; íamos com o balde até aos brasileiros, e os menores eram os primeiros
a quem eles davam comida... Éramos pequenos e, quanto menor, mais recebia
o que comer. Eu digo somente uma coisa: os brasileiros foram a sorte de Mon-
tese, de Maserno; enfim, de toda a cidade, porque Montese é uma cidade gran-
de, que tem 11 distritos. Os brasileiros estavam sempre prontos para tudo.”
Turini sintetiza o reconhecimento e o agradecimento pelo que os bra-
sileiros fizeram: “Minha Nossa Senhora! Se eu encontrasse um pracinha,
começaria a chorar... Por sorte os brasileiros chegaram a Montese para ex-
pulsar os alemães. Porém, pobres dos brasileiros! Aqui em cima, no monte
Montello, ficaram muitos mortos. Pobres brasileiros... Mas expulsaram os
alemães. Os brasileiros são respeitados por todos os cidadãos, até mesmo
por aqueles que nasceram depois, pois eles ouviram os pais falarem bem
dos brasileiros.”
Mesmo em uma história pitoresca, restam evidenciadas as agruras da
guerra: “Nós éramos uma família de católicos. Um par de sapatos ia à mis-
sa três vezes, todos os domingos. Sabe por quê? Porque se trocava entre
os filhos. Nossos pais diziam: ‘Você vai à primeira missa, você à segunda
e o outro vai à missa da noite...’ Porém, os sapatos eram sempre os mes-
mos.” Com a experiência advinda do sofrimento, Turini conclui: “Coisa mais
não merecer tanto. Merecem mais aqueles soldados que perderam a vida
pela minha pátria, pela liberdade da minha Itália.”
Maciantelli continua: “Em minha casa de Gaggio, estava a Cruz Verme-
lha americana, onde operavam os soldados brasileiros. Quando voltamos
para Gaggio, os colchões estavam encharcados de sangue, sangue brasilei-
ro. Talvez sangue americano também, mas muito mais de brasileiros, pois
os americanos não estavam naquela região. Estavam longe; se resguarda-
ram bem; fizeram um assalto e foram forçados pelos alemães a retornar e,
depois disso, deixaram todas as posições para os brasileiros. Portanto, os
feridos que foram tratados na minha casa em Gaggio eram brasileiros. Cor-
taram pernas, cortaram braços, e os colchões cheios de sangue brasileiro...”
Os idiomas, de origem latina, facilitavam a comunicação: “Falando,
conseguíamos nos entender, mesmo porque muitos desses soldados eram
filhos de italianos, netos de italianos, e arranhavam um pouco de italiano.
Portanto, mesmo que eles não falassem claramente, entendiam muito bem
o que nós dizíamos. E esses soldados diziam: ‘Nós saímos de 40°C do Rio
de Janeiro.’ Eu sei! E quando chegaram aos Apeninos, eram -15°C. E, de-
pois naquele ano, veio abaixo uma avalanche de neve... Nem todos tinham
visto neve, tido experiência de frio... E isso trouxe o congelamento de pés,
congelamento de mãos, resfriados, bronquites, todas as doenças... Quan-
do chegavam até nós, em nossas casas de montanha, não tinha sistema de
aquecimento, tinha a lareira... Todos ‘grudados’ ao fogo para esquentarem.
Faziam patrulhas e vinham se esquentar em nossas pobres casas de cam-
poneses da montanha.”
Maciantelli reforça essa integração: “Minha família tinha uma casa em
Granaglione; era uma casa que usávamos muito pouco, na qual não havia
nem ao menos camas e cobertas. Nós também estávamos em crise, total-
mente confusos. Porém, aceitamos em nossa casa esses soldados. Em vez
de dormirem nas trincheiras cobertas com tela para se protegerem da neve
e da chuva, fazíamos que viessem para nossa casa. E ali nos contavam um
pouco de suas famílias no Brasil, da saudade, que era muita. Uma vez es-
tabelecida a confiança, se desencadeava toda aquela alegria brasileira que
podia aparecer de uma caixa de fósforos... tum, tum, tum, tum, tum, tum... a
bater em panelas de alumínio, de lata, com bastões, para fazer um pouco de
ritmo. Era uma diversão, um passatempo. Ao sentirmos essa cordialidade,
nos ligávamos mais e mais a esses soldados. Não existia mais o medo... dos
negros que comiam crianças, como nos diziam os jornais fascistas.”
Não a jogo, mas a faço cair educadamente, digamos gentilmente dentro de sua
panelinha. Mesmo que junto à tapioca, à mandioca vinham também alguns
pedaços de carne, tudo vinha bem. Os americanos não. Os americanos queriam
demonstrar um distanciamento também. E isso me desagrada...”
Como bom italiano, faz questão de contar alguns episódios considera-
dos cômicos. A confusão tem a ver com os falsos cognatos (palavras de mes-
ma grafia ou som, porém, de significados diferentes em distintos idiomas).
O fato aconteceu com sua mãe, quando o médico aconselhou que o pai co-
messe somente o macarrão branco: “Minha mãe foi à cozinha brasileira,
onde havia um tenente.” Seguiu-se o seguinte diálogo:
— O que a senhora deseja?
— Gostaria de um pouco de burro...
— Burro? Não temos burro!
— Mas o médico disse para pegar burro para cozinhar o arroz.
— Não... Não temos burro!
Então, ele mostrou para ela um pedaço de carne de boi, mostrou a ela a
caixa de carne de porco. E ela dizia ‘Non, maiale non’. Então ele disse: ‘Venha
ver; procure a senhora mesma.’ Então minha mãe começou a girar dentro
dessa grande cozinha que os brasileiros tinham e disse: ‘Eis, é aquilo! É
aquilo!’. ‘Não, senhora... Manteiga! Burro, não; aquilo é manteiga!’ Foi uma
grande risada, porque a partir daí aprendemos que ‘burro’ quer dizer man-
teiga, em português.”
Maciantelli, se encontrasse alguns dos pracinhas com os quais convi-
veu na guerra, não saberia qual seria sua reação, mas que, como reconheci-
mento, “simplesmente deixaria nascerem duas enormes lágrimas nos olhos
e iria abraçá-los; porque a saudação deles era o abraço... [iria] beijá-los nas
bochechas, dar-lhes tantos, tantos, tantos, mas tantos agradecimentos por
aquilo que fizeram pelo meu país, pelos sacrifícios que tiveram de aguentar,
seja pelas dificuldades climáticas, pois tiveram uma grande falta de sorte
vindo à Itália em um inverno tão desagradável — poderiam ter tido mais
sorte e chegarem à Itália na primavera e encontrarem um belo verão ou um
belo outono, mas vieram a sofrer um frio tremendo—, seja porque tinham
pela frente os soldados mais determinados do mundo”.
Maria Rosa Palmiere nasceu em outubro de 1943, em Porretta Ter-
me. Segundo diz, antes da guerra era um lugar tranquilo, onde quase nada
acontecia. Seus pais haviam chegado à localidade em 8 de setembro, após
a dissolução do Exército: “Meu pai era capitão médico e tinha um hospital
Maria Rosa recorda das histórias transmitidas pela mãe: “As coisas mais
preciosas que [os Aliados] procuravam, devo dizer, eram licor e vinho.” Eram
valiosas moedas de troca por latas de alimentos: “Minha mãe recordava que
comia somente castanhas, em suma... Eu me alimentava, no sentido de que
fui amamentada... É sabido que as crianças podem sobreviver com leite.
Portanto, o importante era que ela comesse. Quando finalmente chegaram
os Aliados, alguma coisa de agradável aconteceu.” Seus pais sempre recor-
davam que “eram muito alegres esses Aliados que tinham chegado e, embo-
ra tivessem tido muitas perdas — e as batalhas foram terríveis —, chegaram
e tinham grande vontade de viver, de dançar, de tocar instrumentos”.
Os traumas da guerra ficam evidentes independentemente da idade da
personagem: “Eles [os pais] diziam que a primeira palavra que eu disse foi
‘bum!’ Acho que o único som que eu ouvia verdadeiramente era o desse
canhão, desse famoso canhão que disparava... Também me levavam para
fora para ver os traçantes, os fogos de artifício... A diversão à noite era ver
os traçantes que iluminavam o céu...”
Maria Rosa, com a experiência e as histórias ouvidas dos pais, diz que
a guerra foi desumana, pois “aconteceram matanças violentas e inúteis de
mulheres, crianças, velhos... Acredito que a guerra é uma tragédia a ser evi-
tada com todas as forças, porque absolutamente não faz bem a ninguém”.
Giuseppina Malfatti nasceu em Viareggio, em 1939: “Durante a
guerra, eu era muito pequena, mas tenho recordações muito vivas, muito
fortes. Minha família evadiu-se de Viareggio, em maio de 1942. Nós vive-
mos todo o terrível período de 1943/44 ao longo daquela que se chamava
Linha Gótica. Vimos queimar Sant’Anna di Stazzema; tivemos parentes — a
minha avó paterna — mortos pelos alemães. Tenho a lembrança de nos-
sas fugas nos bosques, perseguidos pela SS com cani lupo [pastor alemão].
Por anos eu não pude suportar os cães... Depois da guerra, naturalmente
procuramos esquecer um pouco. Mas a impressão de certos eventos per-
maneceu forte em mim, a ponto de ter tido pesadelos por anos... e talvez
ainda os tenha.
Minha avó tinha alugado uma casa grande, antiga, que estava exatamente
junto à estrada da Linha Gótica; estava quase em frente a uma ponte. Portanto,
era um ponto nevrálgico. Tivemos de fugir de lá por várias vezes para a
floresta.” Essa casa não foi bombardeada, mas os alemães haviam minado a
ponte, por baixo; caso explodissem a ponte, a casa também iria pelos ares:
“O verão de 1944 passamos nos bosques, onde havia a luta partisana. E nós,
Monumento
todos os tipos: feijão, grão-de-bico etc. “Nós comíamos a comida que vinha
do rancho dos brasileiros. Depois que eles comiam, éramos muitos a comer
lá. Em casa não tínhamos nada; só tínhamos a roupa do corpo.”
Segundo relata, a guerra, a despeito da destruição que causava, pro-
porcionava oportunidades às pessoas. Alguns viam na alegria dos brasi-
leiros a possibilidade de ganhar dinheiro. Um simples instrumento era su-
ficiente para animar uma festa. Havia um tocador que “era um tipo muito
alegre; que deixava elevado o moral dos militares no front. Levando con-
sigo um pequeno acordeão, deslocava-se de uma região para outra a to-
car e a contar piadas. Ao final das apresentações, pegava o chapéu e fazia
um giro recolhendo cigarros e doces. Nesse sistema, juntou dinheiro para
comprar um jipe”.
Destaca também que a religiosidade era mais um fator de integração:
“Os brasileiros eram, na maioria, de religião católica, e quando meu pai,
à noite, recitava o rosário, um grupo de soldados participava. Tinha um
sargento que estava sempre junto a meu pai. Esses militares haviam vin-
do de um país quente da América do Sul, e aqui era inverno... Alguns se
vestiam a seu modo, desafiando o frio, e estavam sempre alegres. Quan-
do os canhões americanos disparavam, gritavam com entusiasmo: ‘A co-
bra está fumando.’ Sabem o que é a cobra? Era a figura de uma serpente
com a língua para cima e estava impressa na manga esquerda da jaqueta.
Sempre me lembro...”
Claudio Carelli, morador de Vergato, relata: “À época dos fatos,
eu tinha 4 anos; por isso as minhas lembranças são bastante limitadas.
Porém, durante a vida, meus pais me contaram muitas coisas. Eu lembro
que morava em Riola com meus avós e meus pais. Dois brasileiros vi-
nham sempre à nossa casa; como se tinha pouco para comer, eles traziam
caixinhas de chocolates. Depois comiam conosco; o pouco que tínhamos,
dividíamos e éramos exatamente uma grande família naquele momento.
Eu me lembro desses dois brasileiros; lembro os nomes. Um se chamava
Goulart, e outro, Meyer. Brincavam sempre comigo; portanto, não posso
esquecer.
Vinham até nossa casa, fazíamos castanhas assadas em uma estufa
parisiense, que estava sempre acesa durante o inverno. Tinha sempre
uma garrafa de vinho... Cantavam canções brasileiras e bebiam esse vinho.
Goulart estava um pouco embriagado e pegou uma ‘mão’ de castanhas, que
estavam quentes, em cima da estufa. Comeu e disse: ‘Hum... Boas, mas um
pouco duras.’ Mas tinha comido com a casca... Este é um detalhe. Estavam
quentes, porém conseguiu comê-las e achar que estavam boas.”
Carelli acrescenta que se lembra de alguns detalhes, reforçados pelas
histórias que contavam seus pais: “Como nós morávamos perto da esta-
ção de Riola — e disso recordo —, minha mãe sempre fugia comigo nos
braços, mas eu não entendia o porquê. Porém, era porque bombardea-
vam... Havia os americanos que jogavam bombas com os aviões. Caíam
bombas por todos os lados... Os alarmes durante todo o dia eram tantos
que tínhamos que descer do quarto pavimento e ir para a galeria da esta-
ção de trem.
A certo ponto, não se podia mais viver daquela maneira... Os
alemães tinham o comando no Castelo della Rocchetta; portanto, faziam
patrulhas de rastreamento continuamente. Os americanos bombarde-
avam... e aquela era [então] uma região inabitável. Nós tínhamos que
fugir dali e ajudaram-nos Goulart e Meyer, procurando um caminhão
militar para nós; carregaram os móveis indispensáveis que tínhamos e
nos ajudaram a nos refugiar em um lugar que se chama Lodio, que dista
uns 10km de Riola.
Quando eu comprei este sítio [em Vergato], há 20 anos, comecei a
perguntar... Eu queria conhecer a história deste lugar. Um senhor, que na
época era garoto e trabalhava de estafeta entre o comando e as posições
dos brasileiros, contou-me que tinha um tenente que se chamava Gonçalves
e esteve aqui... Ele ficou bastante impressionado e, quando chegou aqui,
encontrou os corpos de dois brasileiros que provavelmente eram dois
amigos que morreram naquela noite... Depois, eu recebi a visita de veteranos
brasileiros, que vieram até aqui. Conheci o próprio tenente Gonçalves, que,
se não me engano, então era coronel. Ele relatou-me os acontecimentos
que se passaram neste local; do sofrimento de seus soldados. Contou-me
que certa noite houve um ataque muito forte dos alemães; fugiram porque
as forças inimigas eram tão fortes que eles não conseguiram se defender.
Portanto, correram por este campo abaixo, à noite, e quando chegaram
lá no limite, eles não sabiam, mas havia um penhasco de 20m... Muitos
caíram lá embaixo e se machucaram muito.
Noutro ano veio um sargento; contou-me sua experiência dentro das
galerias que haviam escavado no solo, nas posições ali ao lado [da casa onde
reside hoje]; dizia-me do inverno atroz de 1945; porque fazia tanto frio, e
eles não estavam acostumados. E havia esses buracos no chão; não podiam
se lavar, não tinham água, estavam congelados, havia toda esta neve, era
muito frio lá dentro... E enquanto me contava, ele chorava. Colocamo-nos a
chorar juntos, porque eu sentia muita pena ao pensar nas experiências que
passaram esses soldados trazidos do Brasil, onde o clima era quente... Vir
aqui, com o frio e com o risco de morrer a cada minuto — porque os alemães
estavam lá em cima, naquela rocha, o Soprassasso, que é uma posição
favorável em relação a esta. Portanto, bastava que eles [brasileiros] se
mostrassem para que os alemães imediatamente disparassem... Atiradores
de elite... morteiros — e aqui dispararam muito, porque todas as vezes
que aramos esta terra, aparecem bombas de morteiros —, granadas que
não explodiram, estilhaços, cartuchos de todos os tipos... Portanto, esses
rapazes suportaram algo que é quase indescritível, digamos.”
Carelli destaca a diferença entre os brasileiros e os soldados de
outros exércitos: “Nós não tivemos relacionamentos muito estreitos
com outros. Os americanos eram mais presunçosos; os brasileiros eram
como se fossem de nossa família; eram gentis. O fato de cantarem essas
canções nostálgicas nos fazia sentir com eles; em suma, sofriam... Talvez
os americanos também fizessem, mas não faziam conosco. Porque nós
tínhamos sempre os brasileiros em casa, e os americanos nós víamos
passar com os caminhões, com os jipes. Jogavam chocolates, balas, todas
aquelas coisas; porém, não tivemos aquele relacionamento fraterno como
tivemos com os brasileiros. Tínhamos um relacionamento como filhos e
irmãos. À noite, vinham à nossa casa... Com eles não tínhamos nenhum
melindre, enquanto que, com os outros, com os americanos, não havia
essa confiança. Não sei por que, mas não havia. Provavelmente o caráter
dos americanos era... ou se colocavam de uma maneira diferente, menos
humilde, talvez... Os brasileiros não se comportavam como libertadores; os
americanos, talvez um pouco. Aquela presunção não dava a possibilidade
de haver familiaridade.”
Inquirido sobre a reação que teria se encontrasse algum desses vete-
ranos, Carelli diz: “Eu me colocaria a chorar novamente, porque recorda-
ria muitas coisas, lembraria não somente do pouco que vivi; lembraria de
meus pais; de meu pai que já morreu, que me contava essas coisas, de meu
tio Natalino, que também já morreu, e que também me contava... Portanto,
não sei se consigo me explicar... É que estou perdendo alguns pedaços de
minha história, e qualquer um que me fala disso me comove... certamente
me vêm as emoções...”
deixem as guerras de lado. Amar uns aos outros e viver em paz. Isso eu diria
aos jovens! Porque eu me lembro de coisas da guerra que aterrorizam. Ti-
vemos de nos esconder, estar sempre fechados, ver mortos, ter medo, pen-
sar que podíamos perder nossos entes queridos... Em suma, é feio! Então
se poderia viver bem sem guerras; sem fazer guerras e sem mandar esses
pobres soldados ao massacre. Sim, porque isso é um massacre! Mandemos
esses jovens trabalhar... Pode-se viver em paz. De todo coração, eu mando
para eles uma cara saudação e que estejam bem. Que estejam em paz e não
em guerra”, conclui Iolanda.
Vittorio Bernardi nasceu em novembro de 1935, em Castel d’Aiano,
província de Bolonha. Para ele, a guerra começou quando tiveram início os
bombardeios a Vergato e Castel d’Aiano, em 1943: “Estávamos na comuni-
dade de Casino, em uma casa, no campo... Os aviões despontavam, vindos
de Bolonha e de Marzabotto; passavam sobre Vergato, soltavam algumas
bombas e iam embora. Bombardeavam de Crisana e de Porreta. E nós es-
távamos entre dois fogos, entre os alemães e os brasileiros... Nossa casa
ficava no alto de uma colina; não nos movíamos em torno da casa; se viam
qualquer coisa se mover, começavam os bombardeios que não terminavam
mais... dia e noite. Em uma única noite, 13 tiros de canhão atingiram a casa.”
Depois do massacre de italianos em Marzabotto, o pai de Vittorio viu
os alemães descendo pela estrada que passava ao lado de sua casa: “En-
quanto isso, vimos dois partisanos armados atravessando o bosque, indo
em direção ao local por onde passariam os alemães... Vimos os alemães,
que já estavam chegando perto das casas... Quando os alemães chegaram,
[os partisanos] deram duas ou três rajadas de metralhadoras e fugiram. O
que fizeram os alemães? Pararam... Outros chegaram e, dali, de Val di Vido
até Vergato, que são 5km, mataram todos que encontravam.” Eram as já
mencionadas represálias alemãs e fascistas.
Vittorio relata um episódio que o marcou profundamente: “Depois de
alguns dias, fizeram outro rastreamento em nossa casa. Passaram de ma-
nhã cedo, recolheram todos os civis que encontraram e os levaram para
uma posição onde deveriam ser mortos. Deixo claro que meu pai poderia
até ter escapado, mas como os alemães já o tinham visto e havia uma re-
gra: a história de que, quando um fugia, matavam todos... Se quisesse po-
deria até fugir, mas se deixou prender. Passou diante da casa; lembro que
disse: ‘Crianças! Vamos colocar a jaqueta.’ Era 17 de outubro, e já estava
um pouco fresco.”
Segundo relata, esse grupo foi até um pequeno sítio, onde colocaram
uma forca presa a um carvalho. Posicionaram todos em fila. O pai de Vitto-
rio conseguiu fugir sem que os alemães percebessem, mas outro alemão,
que estava saindo de uma casa nas proximidades, tirou o revólver e dispa-
rou; acertou seu pai, que caiu: “Quando chegamos lá, não se via nada [de
sangue] nesse homem ou pelo chão. Então, minha mãe disse: ‘Mas como?
Não tem nada.’ Quem sabe teve medo e... Mas não, lembro que levantei um
pouco uma costeleta e vi sangue. Dava para ver o ‘fundo da bala’.”
Vittorio continua. “Então, os alemães disseram: ‘Um de nossos camara-
das foi morto, e um de vocês está morto. Queremos saber onde estão os par-
tisanos. Caso contrário, vamos matar todos.’ Imaginem: aqueles que esta-
vam para serem enforcados começaram a dizer: ‘Alemães... eles estão aqui,
estão lá, estão lá em cima e embaixo...’ Nós que estávamos ali fomos ver...
meu pai. Pegaram-me também e me fizeram levar uma caixa de munição
montanha acima... De qualquer forma, a situação foi esta: disseram que
mostrariam onde estavam os partisanos, e eles [alemães] deixaram todos
livres. Meu pai infelizmente deixou a pele.”
Em 30 de novembro, os alemães deram um ultimato à família: “Ou
vocês vão embora, em direção ao front americano, ou levamos vocês para
Zocca.” Era lá que estava o comando alemão. Com a família, Vittorio atraves-
sou as montanhas, rumo ao front brasileiro, perto de Castelnuovo: “Quando
chegamos lá em cima, era quase noite... Tínhamos um lenço branco; ba-
lançamos o lenço branco, porque diziam que era uma rendição e não ati-
rariam em nós. Em determinado momento, começamos a ver olhos e den-
tes... olhos brancos e dentes brancos... começamos a dizer: ‘Mas aqui não há
americanos, aqui tem bruxas!’ Lembro como se fosse agora... eu e meu pri-
mo estávamos na frente. Na verdade, víamos somente os dentes brancos e
os olhos brancos; e todos negros. Porque aqueles eram exatamente negros,
não eram mulatos. Eram negros, negros, negros. Eram altos, altos, altos.”
Vittorio continua: “Quando chegamos perto, lá em cima, exatamente do
front, começaram a nos chamar com as mãos e depois vieram os soldados.
Estávamos em nove ou 10 crianças; chamaram-nos e nos deram as mãos,
porque chovia e tinha lama por todo o lado... Lá havia uma fogueira, e nos
esquentamos bastante.”
Depois de serem conduzidos a Porreta e pernoitarem na prisão, foram
liberados: “Fomos para a praça, em Porretta... Encontramos algumas latas
velhas e fomos até os soldados para ver se nos davam alguma coisa para
que agora seria como estes pães finos Kraft.” Vittorio não esquece um
soldado que para ele era especial. Descreve um negro baixinho, de um cora-
ção enorme: “Se chamava Quim; eu sempre me lembro dele. Ele trabalhava
na cozinha. Por isso, nós, crianças, íamos à cozinha, e nos davam sempre
alguma coisa. E nos davam muita coisa para levar para casa. Carne de peru
e miúdos de peru... Eles o cortavam, abriam e separavam miúdos. Então
esse Quim nos chamava e nos dava uma bolsa; dentro tinha essas coisas.”
Vittorio continua falando em solidariedade, agora mencionando um
médico: “Eu e meu primo tínhamos enfiado dois pregos nos pés... E veio
uma infecção tremenda. E esse oficial brasileiro... ele fez tudo; tratou, fez
um corte em nós dois porque tínhamos infecção nos pés. Então tinha a pe-
nicilina, que nós não sabíamos o que era. Tratou-nos e melhoramos. Fica-
mos ali, em Porretta.
Estávamos em 30 de novembro. Novembro, dezembro, janeiro e creio
que... em fevereiro, partiram os brasileiros e chegaram os americanos... Os
americanos eram um pouco mais duros do que os brasileiros; davam me-
nos. Porém, não levaram aquilo que tínhamos; o que tinham nos dado os
brasileiros. E nos davam comida também. E também porque sabe... já sa-
biam que minha mãe lavava, passava; em suma, fazia aquilo que eles preci-
savam, e então nos davam sempre alguma coisa.
Depois, acredito que foi em março, os americanos se retiraram. Fize-
ram a troca, e vieram os ingleses. Oh, os ingleses eram duros... Os ingleses
eram maus, inclusive com as crianças. Eram maus! Eu te digo que eu era
um pouco esperto... Pegava os cigarros que jogavam fora, aqueles fumados
somente pela metade... Eu tinha sempre os dedos machucados, porque pi-
savam com os sapatos em cima das minhas mãos. Não podíamos recolher
tocos de cigarro no chão; não podíamos pegar balas; não podíamos nada...
Nós recolhíamos tocos de cigarros para os civis... Se tinha um perto e abai-
xávamos para pegar um toco de cigarro, eles pisavam nas mãos. Mas pisa-
vam como se apaga um cigarro. Maus!
Então passaram por todas as casas e recolheram tudo que era [artigo]
militar. Nós tínhamos cobertores, panos, roupas etc. e também um belo
presépio. Eu lembro que os agarrei pelas pernas com os dentes. Queriam
levar embora o presépio... Imaginem! Para nós que tínhamos vivido no
campo... o presépio, assim... era uma coisa... uma coisa tão importante...
e, então, eles levaram embora... Não pudemos fazer nada. Os ingleses o
levaram embora.
Nós retornamos para casa só em 47. Nossa casa estava no chão. Restou
minha mãe com quatro filhos pequenos, e não encontramos nada em casa.
Encontramos somente uma balança, para pesar as coisas. Nós conseguimos
recuperar por intermédio de um amigo de meu pai, que era comerciante,
uma vaca... Da guerra nós recuperamos isso. Muito pouco, porque meu pai
tinha o hábito de esconder as coisas... Ele tinha, naquela época, 400 mil li-
ras; e 400 mil liras em dinheiro era uma bela soma. E tinha enterrado, mas
não se sabia onde e não encontramos.
A guerra é sempre amarga para todos, mas para nós, que perdemos o
pai, foi muito, muito amarga... não pudemos fazer nada... A nós não faltou
nada durante a guerra porque os brasileiros nos deram o que comer; os
com a senhora?’ O destino... Eu disse: ‘Sim, diga!’ Ele disse: ‘Eu gostaria de
saber se a senhora... vejo que tem certa idade; pode me dizer alguma coisa...
lembra-se da última guerra, a Segunda Guerra Mundial, que se passou por
aqui; da Linha Gótica?’ Eu disse: ‘Ah, posso dizer aquilo que sei, mas me
lembro do correto, sim porque eu era pequena, porém...’ Então, eu disse que
poderia dizer aquilo que falei para vocês. Que nós estávamos refugiados
em Porretta, que os brasileiros e americanos nos trataram bem... Agora que
vejo o senhor, agradeço ao senhor, mas quem sabe a quem mais deveria
agradecer... Então ele me disse: ‘Bem, então façamos de conta que eu sou
filho de um daqueles militares da época da guerra; a senhora está aqui e
perdeu seu pai; façamos de conta que somos irmãos, nem que sejamos ado-
tados...’ Daquele abraço vou lembrar enquanto viver, porque tinha imagina-
do tanto... Se um dia vir alguém, quero agradecer. E depois nós conhecemos
aquele senhor, o que já contou meu irmão. Pessoas encantadoras, melhores
que o pão.”
Bianca se emociona: “Estamos aqui... Sinto uma grande vontade de cho-
rar... É o que faço quando os vejo... Porque eu tenho dentro de mim uma re-
cordação muito grande. Porque aqueles militares que me pegavam nos bra-
ços e diziam: ‘Venha aqui comigo, pois amanhã à noite te trago chocolate...
Agora vem aqui cantar comigo.’ Eu não esquecerei nunca... Mesmo porque,
sabe... a falta de meu pai pesava... e encontrar alguém que me pegasse nos
braços era uma grande coisa. Porque minha mãe, coitadinha, tinha quatro
filhos e fazia o que podia. Porque tinha outras coisas para fazer. Essa foi a
nossa aventura!”
Giancarlo, marido de Bianca desafia: “Agora faça a canção que cantavam
os brasileiros”. “Ah... Mas agora estou muito emocionada... Ah! Ele [o irmão
Vittorio] vem cantar comigo”, diz Bianca. Emocionados, Vittorio e Bianca
cantam: “Quem parte leva saudade de alguém, que fica chorando de dor,
por isso não quero lembrar quando partiu meu grande amor... Ai, ai, ai, ai...
Está chegando a hora; o dia já vem raiando meu bem; eu tenho de ir embo-
ra.” Vittorio fala: “Nós sabemos cantar somente isso.” Bianca complementa:
“Temos a voz muito ruim, mas acredito que conseguimos.” Discordo: a mú-
sica entoada por vozes tão doces foi dos mais belos sons que ouvi na Itália.
Bianca novamente se emociona: “A música nos faz lembrar deles. Eles
nos ensinaram... Vinham à nossa casa à noite e diziam: ‘Agora vamos cantar
para ter um pouco de alegria.’ E pensem; eu tinha 5 anos, não mais do que
isso.” Vittorio complementa: “Não me lembro bem do nome; lembro aquele
da cozinha, aquele negro que se chamava Quim. Certas coisas não se pode
esquecer. Quando nos jogavam uma forma de pão branco, que nós comía-
mos como açúcar, como doces. Rapazes! Acreditem em mim... precisariam
passar por isso para saber”
Bianca diz: “Eu deixo clara uma coisa... em casa às vezes me repreen-
dem. Porém, eu não sou capaz de — qualquer estrangeiro que chega à mi-
nha [porta] — mandá-lo embora. Um euro, dois euros preciso dar. Porque
digo... alguém estendeu a mão para nós. Então, por que eu não devo esten-
der a mão para eles? Por que eles, os brasileiros, para nós eram estrangei-
ros, quem os conhecia? Porém, nos deram pão... por seis meses.”
Fabio Gualandi nasceu em Gaggio Montano, em 1935: “Estive duran-
te cinco meses com os soldados brasileiros. O soldado brasileiro chegou
aqui em 1º de novembro. E chegou não como um exército de conquista.
Compreendeu rapidamente a situação dos habitantes, que depois de tanto
tempo festejavam a libertação. O soldado brasileiro permaneceu aqui exa-
tamente por cinco meses. A linha de frente estava 1km acima. Eles gosta-
vam de estar aquecidos e em casa a falar.
A população, tendo em casa tantos soldados, se sentia segura, protegi-
da. Não era mais como antes, que era fugir daqui, fugir de lá; esconder-se ou
não se esconder. E realmente todos nesta região lembram-se dos soldados
brasileiros com afeto e com bondade. De um dia para o outro, de viver com
medo, de viver com pouca comida... quando eles chegaram, chegou comida,
chegou chocolate, chegou tudo! E se tornaram o soldado, a população e a
comunidade verdadeiramente amigos.
Imagem obtida na Itália
Eu iria embarcar para o Brasil com outra moça que também se casara
por procuração e, nesse ponto, Miguel escreveu para que eu não embarcas-
se, porque ele havia conseguido ser incluído na terceira guarda, que chega-
ria em fevereiro de 1947. Chegaram em 5 de fevereiro de 1947.” Recorda
que não foi um período fácil; era casada por procuração, mas não havia vida
em comum: entre eles havia um oceano e só se comunicavam por carta.
“Depois que ele voltou [à Itália], passamos uns dois dias sem começar a
vida em comum. Fomos à minha paróquia pedir uma bênção e só então co-
meçamos nossa vida em comum. E foi assim que começou! Miguel deveria
ficar dois anos com a guarda, com a qual havia chegado aqui; era composta
por um tenente, Miguel [sargento], um cabo e quatro soldados. Depois de
um tempo, veio uma ordem de que todos deveriam regressar [ao Brasil],
e que deveria ficar somente uma pessoa de guarda ao cemitério, e ficaria
Miguel Pereira por dois anos, quando haveria uma troca”.
Para Sulla, a sala do museu dedicada à FEB é especial, pois foi a FEB
que conquistou Montese: “Nesta cena tem caixa de comida, caixa de mu-
nição, tudo encontrado nos lugares de combate. Nesta vitrine coloquei
material de minha coleção dedicado especificamente à FEB. Já falei que
muito material era de proveniência norte-americana, mas na realidade o
Exército Brasileiro, o governo brasileiro produziu muito material militar
no Brasil. Primeiro porque era motivo de orgulho. Como os soldados bra-
sileiros tinham orgulho? Ok! O capacete é norte-americano, mas o símbolo
é febiano; é da FEB; é brasileiro! É muito importante lembrar a todos que
O oratório, em 1945
No local em que nos encontramos [junto à gruta], se reuniam o povo
italiano e o povo brasileiro nas cerimônias. E isso é muito importante, por-
que uniu simbolicamente esses dois povos na época da guerra; união essa
que permanece até hoje. Tanto que participam das cerimônias os prefeitos
da região, quais sejam, de Santa Croce Sull’Arno, de Fuccechio e de Castel-
franco di Sotto e também a população local. Penso que, neste mundo cheio
de divisões e de guerras, este lugar tenha uma importância excepcional e é
uma página partilhada da história do Brasil e da Itália.” Capelli ressalta: “A
importância histórica deste monumento é enorme: primeiro porque é uma
página dividida da história do Brasil e da Itália; depois, porque também é
têm aumentado muito nos últimos anos. Julga de suma importância divul-
gar essa história, que é desconhecida por muitas pessoas, inclusive profes-
sores de história: “Autoridades de todas as localidades por onde passou a
FEB vêm ao monumento; isso é o reconhecimento da população italiana
pela postura adotada pelos brasileiros durante a guerra, que não era ape-
nas de lutar no campo de batalha mas também de ajudar a população, de
compartilhar os suprimentos que tinham.” Isso deixou uma ligação muito
forte entre Brasil e Itália, ressalta.
Para Mario, sua missão é seguir os passos do pai, que “não falava em
trabalho; ele falava em missão. E minha missão é manter acesa essa chama,
que não é uma mera chama: é a chama da memória”. “Atualmente é mais fá-
cil divulgar a FEB, com o uso dos recursos tecnológicos. Como a história da
FEB é uma história de amor dentro do drama que é uma guerra, muita gen-
te se apaixona e ajuda a divulgar.” Outra coisa que ajuda na divulgação “é a
estatura moral dos soldados da FEB, que não somente venceram a guerra,
militarmente falando, mas nunca perderam o sentimento de seres humanos
e trataram as pessoas justamente como seres humanos...”. Por esse legado,
deixado pelos soldados, a FEB é homenageada em todas as localidades por
onde passou, seja em solenidades, seja em monumentos ou pequenos, mas
significativos, memoriais.
Annalisa Pisaneschi não conviveu com nenhum soldado brasileiro
em sua infância. Ela pertence à geração que aprendeu a admirar a FEB
pelas histórias que ouviu falar: “Quando eu era pequenininha, meu avô
sempre me contava uma história de quando os brasileiros estiveram em
nossa casa... Meus avós moravam em uma cidadezinha perto de Porretta
Terme; um dia, um pequeno grupo de soldados brasileiros veio até a casa
de meu avô para descansar. A casa de meu avô era muito grande, porque
tinha sido uma pensão; portanto, havia quartos para hospedar esses sol-
dados, mas não havia camas para todos. Então o sargento que comandava
esse grupo, primeiro acomodou os soldados na casa e depois procurou um
lugar para ele. Na casa, não tinha mais lugar. Perto da casa de meu avô, ti-
nha um cômodo onde se armazenava comida para os animais... e tinha um
forno para pão. Esse sargento colocou os pés dentro do forno, porque havia
neve e fazia muito frio naquele inverno de 1944... E meu avô me contava
que, depois que a família se deu conta que esse sargento estava ali, no frio,
porque era um quarto onde a porta fechava mal... o chamaram para dentro
de casa e o acomodaram em um sofá, em uma sala, onde geralmente as
pessoas comiam. E ele, esse sargento, naquele sofá, teve um sonho. Sonhou
que teria permanecido na Itália, teria se casado com uma italiana e estaria
feliz... Assim ele contou depois.”
Annalisa continua: “Meu avô sempre me contou a história desse sar-
gento, que era uma pessoa da qual ele havia gostado tanto... Dizia que ele
era verdadeiramente um homem, porque tinha dado o lugar em casa, em
lugar aquecido a seus soldados e, para si próprio, havia reservado um lugar
no frio.” Chegou um momento que ela achava aquelas histórias um tanto
fantasiosas, exageradas até. Mas o destino fez que, passados alguns anos,
conhecesse um jovem que lhe disse ser filho de um pracinha que veio do
Brasil para combater na Itália... Contou que seu pai havia sofrido muito no
frio; tanto era verdade que, certa noite, tinha dormido com os pés dentro de
um forno... “Depois, esse rapaz se tornou meu companheiro... porém, essa é
uma história inacreditável... e agora estou comovida.”
“Às vezes eu chego a pensar que nossas histórias nasceram bem longe...
Porque esse soldado, esse sargento que dormiu com os pés no forno, era
Miguel Pereira. Partiu do Brasil e veio dormir na casa de meus avós... Eu
sempre ouvira contar essa história e chegara a pensar que não fosse verda-
deira, porque as crianças vivem as histórias como se todas fossem fábulas.
E, quando eu descobri que era uma pessoa real, para mim foi realmente
uma grande emoção; sobretudo descobrir que era o pai do Mario [Pereira].”
Foram outras tantas histórias que ela ouviu quando era pequena... “Depois
de grande, você se dá conta que não são fábulas, que foi realidade... de ver-
dade!”, finaliza emocionada.
Concluo este capítulo acreditando ter conseguido captar e transmitir
a essência dos depoimentos dos italianos: os pracinhas foram soldados de
valor, foram libertadores, foram amigos e foram, sobretudo, solidários. E,
na memória dos que conviveram com eles, os brasileiros continuam sendo.
Relação de abreviaturas
AD Artilharia Divisionária
DI Divisão de Infantaria
OM Organização Militar
RI Regimento de Infantaria