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2023
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1. Introdução
Utilizamos todos os dias de uma forma natural – e ainda bem que assim é – uma ferramenta
extraordinária, a nossa língua, sem nos interrogarmos sobre todos os mecanismos biológicos,
sociais, culturais, que tornam possível esse uso. E o que parece tão fácil, é na verdade
extremamente complexo.
Conseguimos expressar ideias com frases, com palavras e com sons, e isso já é extraordinário, mas
como garantimos que aqueles que nos ouvem compreendem essas mesmas frases, palavras e sons?
Poderá parecer trivial, mas não é, pois cada um de nós pronuncia cada som constituinte de cada
língua de uma forma diferente. E cada som vai depender do som que o precede e do som que o
segue. Os sons são entidades contextuais. Para além disso, em qualquer fonema, os sons
elementares constitutivos de uma língua, o som gerado por cada um de nós é diferente, esse som é
mesmo identitário – a voz tal como o fundo do olho, a iris ou a impressão digital permite identificar-
nos. Por isso reconhecemos um amigo ao telefone de imediato. E, para além disso, o som varia com
a idade, com o género, com a cultura, com a origem social ou com a região geográfica, com o estado
de saúde e até com a estrutura do aparelho fonador de cada um de nós.
É, portanto, uma pergunta pertinente: Como se garante, por exemplo, que quando pronunciamos
“capa” [kapɐ] o nosso interlocutor lhe associa o significado que pretendemos, relativo a uma peça
de vestuário usada, por exemplo, quando chove, e não ouve em vez disso “copa” [kɔpɐ], não
compreendendo o que queremos dizer, porque lhe vai associar um significado totalmente
diferente? Para tal incompreensão ocorrer, bastará mudar o timbre da vogal tónica da palavra, e o
que poderá parecer impossível, observamos, por exemplo, nos falantes do dialecto açoriano de S.
Miguel, onde aconteceu uma rotação fonética em cadeia das vogais e um [a] pode ser pronunciado
como [ɑ] ou mesmo como [ɔ]. Por isso, temos tanta dificuldade em compreender as pessoas que
connosco falam, usando o dialecto cerrado de S. Miguel.
A percepção de um fonema, de uma palavra ou de uma frase faz-nos interrogar sobre os atributos
de cada som que nos permitem identificá-lo e não o confundir com outros.
Saussure centrava a sua análise no conceito de signo, realçando o seu carácter opositivo. Importava
a forma como, quer no plano do significado da palavra, quer no do significante (sequência de sons),
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estes se opunham uns aos outros, se distinguiam. Se o significado e o significante se opõem em
Saussure, não se oporão também os sons elementares, que distinguem uma língua, os chamados
fonemas? A língua falada é construída por uma sucessão dos fonemas existentes nessa língua. Mas
tal oposição binária não acontece nos chamados fonemas.
2.1 O Fonema
A primeira unidade distintiva na fonologia é o fonema. O conceito de fonema é abstracto e teórico.
A sua concepção está estritamente ligada à história da Fonologia. Podemos, portanto, dizer que o
fonema é o conceito seminal da Fonologia, materializando de alguma forma a necessidade de uma
disciplina nova, autónoma da Fonética, criada nas primeiras décadas do século XX (Abaurre et al,
2006, p43).
A Fonologia, tal como a conhecemos, deve muito ao trabalho de Saussure, mas já muitos
foneticistas antes dele abordavam a necessidade de um conceito próximo do moderno fonema.
Estavam “preocupados com a função distintiva dos elementos fónicos que contribuem para marcar
as diferenças de significação entre as palavras das línguas naturais” (ibidem). Alguns deles poderão
terão influenciado o trabalho de Saussure: “estavam estabelecidas as bases conceptuais para uma
distinção metodológica, que acabou sendo levada às últimas consequências pelos linguistas
estruturalistas da escola de Praga” (ibidem), ainda que Fonologia tivesse para Saussure um sentido
diferente do que lhe é dado hoje: “enquanto a fonética é vista por ele como uma das partes
essenciais da ciência da língua, a fonologia não passa de uma disciplina auxiliar e só se refere à
fala”(ibidem, p44).
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Enquanto as gerações anteriores punham a enfase nas semelhanças na procura da história das
línguas, a Escola de Praga punha a ênfase nas diferenças, na identificação do sistema fonológico, e
em particular nas diferenças distintivas. Essa fonologia de base estruturalista daria lugar nos anos
60 e 70 a uma Fonologia Gerativa, proposta por Chomsky e outros linguistas, que poria a enfase na
competência fonológica, ao serviço da competência linguística. (Ibidem, p47).
Um fonema é uma unidade sonora distintiva numa língua, que não pode ser subdividida em
segmentos fónicos audíveis mais pequenos. Não tem significado, introduz diferenças. A ocorrência
de um fonema numa qualquer realização silábica de um qualquer morfema estabelece diferenças
relativamente a outras palavras, com outros significados.
É preciso ter cuidado, pois se há uma relação natural entre cada fonema e a grafia, essa relação é
imperfeita: o mesmo fonema pode ter escritas diferentes e a mesma escrita poderá corresponder a
fonemas diferentes.
A cada fonema corresponde um número infinito de realizações sonoras, deste que se mantenham
as mesmas funções distintivas na língua. Para isso a realização não pode afastar-se tanto do fonema
ideal que possa ser confundido com outro. Há também alterações fonéticas provocadas pelo
contexto do fonema na sequência de fonemas, que não sendo distintivas não criam novas
entidades: são variações contextuais do mesmo fonema. O mesmo fonema também pode ter uma
variação de realização dialectal, social ou mesmo individual. É preciso, portanto, distinguir fonema
de alofone, variações do mesmo fonema, em função do contexto silábico em que ele ocorre,
dependendo por exemplo da vogal ou da consoante seguinte. Existe ainda o conceito de
arquifonema, que corresponde a uma neutralização do fonema original, em determinados
contextos, caso por exemplo do /s/ de plural em português, que se neutraliza em função do fonema
seguinte, podendo transformar-se em /z/, /ʃ/ ou /ʒ/.
Os fonemas de cada língua são identificados e validados pela metodologia dos pares mínimos,
proposto por Jakobson. Por exemplo, se “pato” e “bato” são bem distintos no português, palavras
com significados diferentes, o /p/ e o /b/ têm de ser fonemas distintos do português. A distinção
entre o conceito abstracto de fonema e o conceito físico de som, que o realiza, levou a propor
simbologias de representação diferentes: /t/ e [t].
Se não existem oposições binárias nos fonemas, pensou-se que talvez cada som pudesse ter traços,
que o caracterizassem, que se opusessem a outros traços de outros sons. Reter-se-iam de cada som
elementar as propriedades que permitissem distingui-lo de outros, por exemplo o /d/ seria sonoro
(vozeado), porque tal propriedade permite distinguir “dó” de “tó”. Alcançaríamos assim unidades
distintivas, em oposição. Numa primeira abordagem, os sons elementares e as propriedades
distintivas não seriam universais para todas as línguas. Assim, por exemplo, as vogais portuguesas
nunca seriam descritas como breves ou longas, por este atributo opositivo não ser usado no
português, ao contrário do que acontece noutras línguas.
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Technical Report 13, 1952, ou bien N. Chomsky et M. Halle, Sound Patterns of English, New York, 1968)
(DUCROT et al, 1998)
Os Traços Distintivos foram propostos por Jakobson e al, em 1952, na célebre publicação intitulada
Preliminaries to Speech Analysis, que apresentou uma lista de traços binários para o inglês (ver
secção 4).
Os traços distintivos de uma língua são em pequeno número. Assim o /d/ tem o traço sonoro que o
distingue do /t/, o traço oral que o distingue do /n/ e o traço dental que o distingue do /g/. Verifica-
se que nos cerca de 30 fonemas, que cada língua possui, há cerca de uma dezena de traços, que se
combinam para distinguir cada um dos fonemas. Esta aparente simplicidade parece encorajar a
caracterização de cada fonema como um conjunto pequeno de traços distintivos.
Como o fonema era visto como uma unidade indivisível, Jakobson propôs a utilização do termo
segmento para designar cada unidade caracterizada por um conjunto de traços distintivos. Na
prática o que observámos, em várias fontes, é a utilização dos dois termos como sinónimos.
Mas se parece haver relativo consenso sobre a utilidade dos traços distintivos, há ainda polémica
quantos a alguns aspectos que os caracterizam:
a) São todos binários? Todos se reduzem a um par de valores, como ± traço X, ou seja, cada
fonema será caracterizado por n traços +? Para alguns traços, o carácter binário é evidente,
tal como, por exemplo, ±sonoro, mas há outros em que poderíamos ser tentados a usar
traços não binários, como, por exemplo, para os fonemas /p/, /t/ e /K/ poderíamos usar
respectivamente labial, dental e palatal como traços distintivos. Enquanto o fonologista
Martinet admite traços binários, ternários, quaternários, etc., Jakobson defende, no seu
modelo, o carácter binário de todos os traços. É uma das razões por que sustenta os traços,
não em características articulatórias, mas acústicas.
b) Corresponde cada traço a uma realidade sonora determinável, observável, mensurável?
Jakobson, novamente contra a opinião de Martinet, garante que sim. Cada traço é uma
característica observável, depois de fazer uma gravação, ainda que admita a possibilidade
de camuflagem por inclusão nos fonemas de características não-distintivas, a que chama
redundantes, que podem depender nomeadamente do contexto. Jakobson conclui que o
conjunto de traços distintivos seriam os mesmos para todas as línguas – Universais
Fonológicos - que os utilizariam e combinariam de forma diferente. Para Martinet não seria
sequer possível fazer uma definição rigorosa da oposição sonoro/surdo, porque tudo
depende do contexto.
Tal como vimos com “capa”, cada palavra pode ser facilmente confundida com palavras próximas,
que difiram num único som. Surge assim o conceito de par-mínimo, proposto por Jakobson; são
duas palavras que apenas diferem num som na mesma posição, por exemplo “sapo” e “papo”, ou
“chato” e jacto”. O conceito de par-mínimo permitiu não só ter um critério objectivo para identificar
os fonemas de cada língua, mas também conduziu a um outro conceito revolucionário na
fonética/fonologia, o conceito de traço distintivo, mais uma vez pela mão de Jakobson.
Traços distintivos são características de tipo binário, com valor zero ou um, que permitem distinguir
um som de outro som. Por exemplo no par-mínimo “pita”/”pinta” [pitɐ]/[pĩtɐ] o traço distintivo que
os distingue, no segundo fonema/segmento, é [±nasalidade]. Todos os traços têm um traço
simétrico redundante, e termos que optar por um deles. Assim em vez de [+nasalidade] poderíamos
dizer [-oralidade].
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Vamos concluir que há um conjunto relativamente pequeno de traços distintivos e que cada língua
depende de um subconjunto ainda mais pequeno desses traços linguísticos. Cada fonema será,
portanto, caracterizado por uma sequência de zeros e de uns, associados à sequência de traços
distintivos usada, por exemplo poderia ser 11000000110 – numa língua com 11 traços distintivos.
Uma nota: na fonética/fonologia é usual usar [+] e [-], em vez de 1 e 0. Será um conjunto de traços
distintivos ± que define a característica sonora de cada segmento, numa sequência de segmentos,
usando a terminologia que os autores, Jakobson et al, propuseram, pois consideravam o conceito
fonema desadequado, por ter sempre correspondido à ideia de unidade fónica mínima. Vejamos
por exemplo os sons [p] e [b]. Os dois sons têm os mesmos traços distintivos excepto no traço
[±vozeado]: [p] é [-vozeado] e [b] é [+vozeado]. O que difere entre [p] e [b] é apenas o traço
distintivo [vozeado], e não o segmento em sua totalidade (como nos proporia o modelo de
contraste fonémico).
O conceito de traços distintivos vai permitir compreender melhor a evolução diacrónica de uma
língua, por exemplo a evolução de [p][b] por alteração de UM único traço distintivo, como
aconteceu em muitos vocábulos do português, saponem sapone sapoe sapão sabão.
Um traço distintivo, até muito importante numa determinada língua, pode não existir noutra língua.
Por exemplo a [±nasalidade] é muito importante no português, mas há línguas em que não existe
como traço distintivo, ou seja, quer os falantes introduzam nasalidade ou não, isso não terá
implicação distintiva nos interlocutores.
O conceito de Traços Distintivos constituiu uma ferramenta muito útil para Chomsky et Halle no
desenvolvimento da chamada Fonética Gerativa, cerca de uma década mais tarde, no conhecido
trabalho The Sound Pattern of English, publicado em 1968.
Introduziram o conceito de Classe Natural que vai ser um conjunto de segmentos (fonemas) que
podem ser caracterizados por um subconjunto de traços distintivos, ou seja, os membros dessa
classe partilharão esse subconjunto de traços. Por exemplo, “vogais orais” e “vogais nasais” são
classes naturais, definidas cada uma por dois traços distintivos. Mas, se agrupadas na classe natural
“vogais”, apenas um traço distintivo é necessário, como se vê na tabela abaixo. As vogais são todos
os segmentos com o traço distintivo [+ silábico].
−nasal +nasal
O conceito de classe natural, que decorre do conceito de traço distintivos“ é um dos mais
importantes e produtivos conceitos da teoria fonológica” (Abaurre et al, 2006, p52). Muitas vezes a
aplicabilidade das regras fonológicas é relativa às classes naturais e não a segmentos particulares.
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A Fonologia Gerativa obriga-nos a abordar, ainda que de uma forma muito breve, a chamada
Gramática Gerativa.
Ora, para Chomsky et Halle, que propuseram o modelo gerativo em 1968, com o seu livro The
Sound Paterno of English, a base gerativa de uma língua natural residia na sintaxe. A fonologia e a
semântica seriam interpretativas, convertendo a sequência de morfemas geradas pelas regras
sintácticas em representação fonética ou semântica. Compete à competência fonológica do falante
atribuir uma solução fonética ao enunciado gerado pelas regras sintácticas, garantindo uma
coerência entre os sons, a sintaxe e a semântica. Para tal os linguistas gerativistas propuseram a
modelagem de gramáticas fonológicas para as línguas naturais.
A geração sintáctica assenta em regras que podem ser expressas por meio de uma simbologia.
Na geração vamos ter sequências de símbolos xi, que por aplicação de uma regra se transformam
em xi+1, até chegarmos à sequência terminal.
Haveria dois tipos de regras: regras de reescrita (RR) e regras de transformação (RT).
Uma gramática com Regras Sintagmáticas (PS) pode ser representada por uma árvore n-ária, em
que cada grupo de ramos a partir de cada ponto representa uma regra, como no exemplo
apresentado, que nos permite gerar uma frase em português1.
1
S – Sentence, SN – Sintagma nominal, SV – Sintagma verbal, A- Artigo, N- Nome, V - verbo
7
Um tipo especial de gramática será constituída por regras X Y em que Y é um símbolo terminal,
não transformável por regras, ou uma sequência de um símbolo terminal e outro não-terminal. São
as chamadas Gramáticas Regulares ou de Número Finito de Estados.
Nas Gramáticas Regulares, em cada aplicação de uma regra teremos um símbolo terminal. Chomsky
et Halle demonstraram que uma língua pode ser gerada apenas por Regras de Reescrita
Sintagmáticas CF (Context Free), mas que as Regulares não permitem representar muitas línguas.
Para conseguir gerar um número infinito de frases com uma Gramática Regular, esta terá de conter
recursividade.
Na figura abaixo temos um exemplo de recursividade indirecta (tipo a) e recursividade directa (tipo
b).
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A geração de uma língua natural obriga a associar as regras de reescrita sintagmáticas, que vimos, a
regras chamadas de transformação, que são mais complexas, pelo que as abordaremos mais
brevemente.
a) b)
A regra aplica-se a uma sequência de 5 símbolos, que tenha com antecedentes na árvore X, SN, V,
SN, Y (X, Sintagma Nominal, Verbo, Sintagma Nominal, Y), em que X e Y são qualquer símbolo. Em b)
temos a representação da sequência depois de transformada pela regra, que deve ser interpretada
como: mantêm-se os símbolos na 1ª e 2ª posição, o 3º símbolo passa a ser o morfema “se” e segue-
se o 3º e o 5º símbolo da sequência inicial. A RT que demos como exemplo é uma RT de
reflexivização que permitiria fazer por exemplo a seguinte transformação:
As regras de reescrita sintagmáticas (CF ou não) e as regras RT terão normalmente uma ordem de
aplicação na geração de uma língua:
O diagrama abaixo resume a classificação dos tipos de regras numa gramática gerativa.
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A conclusão importante é de que é possível encontrar para cada língua natural um conjunto de
regras sintagmáticas e de regras de transformação que possibilitam representá-la por árvores
gerativas n-árias, em que se obtém nas folhas dessas árvores todas as construções sintácticas
válidas.
Esta secção inspirada nas propostas de (Chomsky et Halle, 1968) teve como base (DUCROT et
TODOROV, 1998, p213-219).
Realmente, como vimos, uma Gramática Gerativa é caraterizada por um conjunto de regras, que
podem ser materializadas em árvores n-árias, que nos permitem construir todas as frases legítimas
de uma língua.
A abordagem gramatical pode parecer diminuir a importância da abordagem fonológica e dos traços
distintivos, pois o ponto de partida não é fonológico, mas sintáctico e semântico. A fonologia é
posta ao serviço da gramática. Mas, realmente, Chomsky recorre ao conceito de segmento e de
traços distintivos de cada segmento na sequência, para representar cada morfema. Não lhe dando
porventura a mesma importância, compreende-lhes a simplicidade e usa-os. E se o ponto de partida
não é fonológico, também o ponto de chegada não o é, na medida em que vai caracterizar a
pronúncia do fonema num determinado morfema, integrado numa determinada frase. Assim, por
exemplo, o /l/ de /alpe/ seria surdo, em vez de sonoro, devido à proximidade do /p/. O traço
surdo/sonoro é transmitido às consoantes próximas, por assimilação (ver regras fonológicas na
secção 3.3). Já o traço sonoro é claramente distintivo, para distinguirmos “tom” de “dom” por
exemplo. Chomsky acredita que no processo gerativo nunca se passará por uma etapa de evolução
fonológica pura, tal como seria caracterizada pelos fonólogos, sob pena de o processo gerativo ser
muito mais complexo e termos de eliminar certas regras incontestáveis, como a da assimilação.
A representação fonológica pura parece ser incompatível com o modelo gerativo, mas isso não lhe
diminui a importância como modelo teórico, com capacidade explicativa, por exemplo, dos
processos de aprendizagem de uma língua.
[Nos modelos gerativos] a pesquisa sobre o componente fonológico de qualquer língua passou a pressupor
a proposta de representações fonológicas abstratas para os morfemas, palavras e enunciados. Essas
representações são vistas como constituídas por uma sequência linear de matrizes de traços fonológicos
(as entidades fonológicas mínimas, constitutivas dos segmentos) e de junturas morfossintáticas. (Abaurre
et al, 2006, p51)
2. Uma representação subjacente ou forma subjacente que reflecte já uma análise dos dados
acústicos. Estas representações não são pronunciáveis: são teóricas e abstratas. Podem ser
compreendidas como agrupando atributos, denominados traços distintivos. São representadas
recorrendo ao conjunto de traços distintivos entre barras transversais: /…../.
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A passagem da representação subjacente à superficial é feita pela aplicação de um conjunto de
regras fonológicas ordenadas. Essas regras expressam processos de assimilação ou desassimilação,
inserem, eliminam ou movem segmentos e definem traços redundantes.
Na Fonologia Gerativa o conceito de fonema não existe. A Fonologia Gerativa utiliza o termo
“segmento” para caracterizar cada unidade sonora, em vez de fonema. Cada segmento é
constituído por um conjunto de traços distintivos, com natureza articulatória, acústica ou
perceptual. Como vimos, todos os traços distintivos são binários e por isso recebem o índice [+] ou
[-]. Portanto, o que era tradicionalmente interpretado como um fonema irá corresponder a um ou
mais traços distintivos.
Depois da publicação do SPE de Chomsky et Halle construiu-se uma teoria bem elaborada,
fundamentada num conjunto de sub-teorias.
A visão que hoje se tem do componente fonológico das línguas aponta, portanto, para um conjunto de
sub-sistemas (ou módulos) em interação, cada um dos quais é governado por seus princípios particulares
de organização e funcionamento. Cada uma dessas "fonologias” deve ser tomada como complementar em
relação às demais. (Abaurre et al, 2006, p54)
Cada elemento da regra – A, B, C, D – vão ser caracterizados por traços distintivos2. O contexto
fonológico é expresso pelo sinal ____, que pode ser precedido ou seguido por segmentos.
2
No entanto, por simplicidade, são por vezes utilizados símbolos, por exemplo V para vogal ou C para
consoante. Teríamos / V+acento / → [Ṽ] / ____ /C+nasal/
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Como exemplo da modificação que referimos teremos,
Uma regra que se lê: uma vogal acentuada torna-se nasal antes de consoante nasal. Estamos na
presença de um processo fonológico de modificação, pois o nº de segmentos mantém-se, só os
traços distintivos da vogal são modificados.
As regras podem ser ou não obrigatórias, podem implicar ou não uma ordem de aplicação, para
garantir o mesmo resultado, numa determinada língua.
Simbologia Contexto
Perante a importância do livro Preliminaries to Speech Analysis, pareceu-nos que o nosso trabalho
não poderia prescindir da sua leitura cuidada, o que fizemos e tentamos traduzir nesta secção numa
espécie de leitura comentada.
Hesitámos entre colocar esta leitura integrada no corpo deste nosso trabalho, o que faria sentido,
dada a sua importância, ou enviá-lo para um anexo. Optámos pela segunda solução, apenas por
termos ultrapassado o número de páginas esperadas. Quem for curioso poderá lê-lo. Não se
arrependerá, acreditamos.
Esta solução corresponde claramente a uma fase intermédia, a um estado que poderíamos designar
como de rascunho estabilizado do que poderia ser o nosso trabalho final, que exigiria prazos
diferentes e obrigaria ainda a mais leituras, nomeadamente o longo livro de Chomsky et Halle.
E no Anexo 2 apresentamos alguns resultados propostos por alguns autores para o português.
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O primeiro capítulo do livro é precisamente intitulado RESOLVING SPEECH INTO ULTIMATE UNITS.
12
5. Bibliografia
DUCROT, Owswald, TODOROV, Tzevtan, 1998, Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem,
Editora Perspectiva, p165-169, p213-219
JAKOBSON, Roman, 1932, A Escola Linguística de Praga, Selected Writings: Word and Language
p539-536
JAKOBSON, Roman, HALLE, Morris, FANT, C. Gunnar M, 1952, Preliminaries to Speech Analysis
MATEUS, M. H. Mira, ANDRADE, Amália, VIANA, M. do Céu, VILLALVA, Alina, 1990, Fonética,
Fonologia e Morfologia do Português, Universidade Aberta, pp.235-239
TOLEDO, Cecília, 2017, “Fonologia Gerativa”, UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
Sites:
https://fonologia.org/
https://www.linguisticsnetwork.com/
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ANEXO 1 - Preliminaries to Speech Analysis – Leitura Comentada
A. Introdução
Neste Anexo fazemos uma leitura comentada, ponto por ponto, do livro revolucionário
Preliminaries to Speech Analysis, publicado por Jakobson et al em 1952, e que permitiu a
identificação de todos os Traços Distintivos de uma língua.
Os autores começam por descrever um exercício em que um locutor pronuncia palavras isoladas e o
interlocutor procura perceber a palavra pronunciada. Sem contexto do discurso a percepção do
ouvidor fica resumida à percepção do som, que é o seu foco.
Os autores começam por dois pares de palavras “bill” e “bull” e “pill” e “pull”, para focar em
pequenas distinções: “the distinction between bill and bull is the same as that between pill and
pull” (JAKOBSON et all, 1952, p.1), e para identificar o [i] e [u] como segmentos mínimos indivisíveis.
À possibilidade de trocar um único segmento numa palavra, para obter outra, chamam comutação,
e às duas palavras, que diferem num único segmento, par-mínimo. “Minimal pairs are two or more
distinct words that differ in only one sound” (in linguisticnetwork site).
Definem a seguir diferença mínima (minimal distinction), conceito que implica já ver cada fonema
como um conjunto de atributos: “Phonemes can be thought of as a bundle of features. Any sound
you know, can be described by a list of distinctive features they bear such that if one feature is
altered, the sound is altered. For instance, /s/ is a voiceless, alveolar, fricative. By changing the
voicing feature to ‘voiced’ we change the sound to /z/” (in linguisticnetwork site)
The distinctions between bill and pill, or bill and vill or bill and dill are minimal distinctions since they
cannot be resolved into simpler discriminations, which are, in turn, capable of differentiating English
words. ((AKOBSON et all, 1952, p2)
Mas pode haver pares mínimos de palavras com diferenças duplas ou triplas, etc.
…the relation of bill to till is a duple distinction, composed of two minimal distinctions: 1) bill - dill and 2)
dill - till. The relation of bill to sill is a triple distinction: in addition to the two minimal distinctions cited, it
includes a third one: till - sill. (ibidem, p2)
Acreditamos que alguns exemplos usados no livro, que nos está a servir de guia, sejam
esclarecedores:
To discriminate between words such as bit and said, we need a triple distinction in their first segment and
one minimal distinction in each of the two others. (ibidem, p2)
14
Voltando ao cenário do locutor versus interlocutor, os autores concluem que para discriminar cada
palavra “the listener of a speech sample is faced with a series of two-choice selections” (ibidem,
p3), e os autores descrevem a forma como o ouvidor identifica “bill” à custa de decisões binárias4.
Any minimal distinction carried by the message confronts the listener with a two-choice situation. Within a
given language each of these oppositions has a specific property which differentiates it from all the others.
The listener is obliged to choose either between two polar qualities of the same category, such as grave vs.
acute, compact vs. diffuse, or between the presence and absence of a certain quality, such as voiced vs.
unvoiced, nasalized vs. non-nasalized, sharpened vs. non-sharpened (plain). The choice between the two
opposites may be termed distinctive feature. The distinctive features are the ultimate distinctive entities of
language since no one of them can be broken down into smaller linguistic units. The distinctive features
combined into one bundle form a phoneme. (ibidem, p3)
For example, the word bill is comprised of three consecutive bundles of distinctive features: the
phonemes /b/, /i/ and /l/. The first segment of the word bill is the phoneme /b/ consisting of the following
features: 1) non-vocalic, 2) consonantal, 3) diffuse, 4) grave, 5) non-nasalized (oral), 6) lax,7) interrupted.
Since in English 7) implies both 1) and 2), the latter two features are redundant. Similarly, 3) is redundant
as it is implied by 4). (ibidem, p3)
Como vemos no conjunto de traços que identificámos, há alguns que são redundantes, permitindo
simplificar oi processo.
Uma mensagem falada, uma palavra, uma sequência de palavras ou uma frase consistem assim
numa sequência temporal de fonemas, ou segmentos, cada um carregando um conjunto de
propriedades binárias sobrepostas, que os distinguem de outros segmentos. As propriedades
binárias sobrepostas têm de ser primárias no processo de audição, pois podem existir sem qualquer
sequência, em palavras monosons, como “à”, ou “é”, ou “o”, ou “a”, ou “há”, em português5, e o
contrário não é verdade.
Há, no entanto, regras, em cada língua, que limitam a arbitrariedade da sequência de sons, por
exemplo, “strong (tense) and weak (lax) consonants cannot follow each other within a simple
English word” (ibidem, p4)
Any bundle of features (phoneme) used in a speech message at a given place in a given sequence is a
selection from among a set of commutable bundles. Thus, by commuting one feature in the first phoneme
of the sequence pat we obtain a series bat - fat - mat - tat - cat. Any given sequence of phonemes is a
selection from among a set of permutable sequences: e.g. pat - apt - tap. However, /tp'a/ not only does
4
A Teoria da Informação utiliza uma sequência de decisões binárias (o bit) como base da sua análise do
processo de comunicação.
5
Os autores dão uma série de exemplos em francês onde estas palavras são comuns: “eau”, “où”, “y”, “on”,
“eu”, ”un”, “na”, etc.
6
Os autores usam a palavra “bundle”
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not, but could not exist as an English word, for it has an initial stop sequence and a single final vowel under
stress, both of which are inadmissible according to the coding rules of contemporary English. (ibidem, p4)
/b/, /f/, /m/, /t/ são segmentos/fonemas, são “bundles”, que diferem de “p” apenas numa
propriedade distintiva. Serão, portanto, naturalmente mais facilmente transformáveis.
O som de uma mesma consoante varia, dependendo, por exemplo, da vogal que vem a seguir. Os
autores apresentam o exemplo de “coo” e de “key” em inglês. No primeiro o /k/ baixa o centro da
área espectral e aproxima-se do /p/, devido ao /u/, no segundo eleva esse centro e aproxima-se
do /t/, por causa do /i/. (ibidem, p5).
Realmente, como podemos ver na figura, a frequência alta é bastante mais alta em /i/ do que em
/u/. Como se observa na figura, cada vogal é caracterizada por um par de frequências, uma baixa
frequência F1 e uma alta frequência F2. O /i/ e o /u/ têm uma baixa frequência idêntica, perto dos
300 H, mas enquanto o /i/ usa uma frequência alta próxima de 2400 Hz o /u/ usa uma próxima de
1000Hz.
Ora, em inglês /p/ e /t/ são dois fonemas distintos, respectivamente com a propriedade grave e
aguda. Já os dois /k/ referidos, apesar de diferentes no espectro que utilizam, aproximando-se de
/p/ e /t/, são o mesmo fonema. A variação do /k/ é chamada redundante pelos autores7, não é
distintiva,8pois depende do contexto vocálico. Há um outro tipo de redundância, criada pela
sobreposição de traços distintivos. É assim possível distinguir entre características distintivas e
características redundantes.
7
Preferiríamos chamar-lhe contextual, pois redundante parece ser ambíguo. Correspomde ao que alguns
autores chamam alofone.
8
Os autores consideram o “vozeamento” como um atributo redundante, alegando que por exemplo b, d, e g
podem em inglês, determinados contextos, perder o vozeamento, sendo o mesmo fonema
16
in French we find the velar stop /k/, the palatal nasal /ɲ/ (as in ligne) and the prepalatal obstructive /ʃ/ (as
in chauffeur ), we must consider the difference between this velar, palatal and prepalatal articulation as
entirely redundant, for this difference is supplementary to other, autonomous distinctions… (ibidem, p6)
O /p/ e /t/ são fonemas autónomos, ou seja, são diferentes no mesmo contexto, por exemplo “tool”
e “pool”, enquanto os dois /k/ acima referidos dependem da vogal a seguir. Curiosamente, segundo
os autores, estes dois /k/ em romeno correspondem a fonemas diferentes, sendo pronunciados
diferentes no mesmo contexto vocálico (par mínimo). Os autores apresentam vários exemplos de
sons diferentes que podem corresponder ao mesmo fonema ou a fonemas diferentes. É o caso do
fonema /l/ em português, que varia foneticamente, conforme está no início da palavra ou no fim,
sendo neste último caso palatizado, por exemplo, em “lago” e em “mal”.
A mínima distinção entre “tart” e “dart”, “try e dry” e “bet” e “bed”, entre /t/ e /d/ é a mesma
apesar de o som de /t/ variar em “energia”, em função do contexto nas três palavras. Continua a
haver uma oposição forte/fraco (tense/lax – ver tabela nas conclusões).
Suponhamos que um ouvidor de inglês ouve três palavras que desconhece “gip”, “gib” e “gid”.
Graças aos traços distintivos saberá que são 3 palavras diferentes, mesmo não sabendo o seu
significado.
O ouvidor distinguirá, por exemplo, /gib/ de /gid/ por uma única característica distintiva: o grave
de /b/ por oposição ao agudo de /d/. E distinguirá /gib/ de /gip/ por outra característica diferente: o
carácter fraco /b/ por oposição ao forte de /p/. (ibidem, p8)
Já em alemão “gip” e “gib” poderiam ser confundidas porque a distinção entre “p” e “b” desaparece
no fim de uma palavra.
17
Outros pares de palavras podem conter segmentos que se diferenciam (um ou mais) por mais de
um traço distintivo, em vez de um traço único. Há pares mínimos com a mesma oposição (≈) ou com
oposições diferentes (≠).
Como imagem do que acontece no modelo dos traços distintivos, ao dizer alguma coisa podemos
murmurar, falar normalmente, aumentar o nível da voz ou berrar com maior ou menor intensidade,
mas existirá uma única característica distintiva: haver ou não haver voz. O caracter binário dos
traços constitui um princípio base9 (ibidem, p9).
A figura acima permite compreender facilmente o erro de um eslovaco ao ouvir o som [ø].
O padrão da língua é tão forte que testes comprovam que “language pattern affects even our
responses to non-speechsounds”, que interpretamos como sons da nossa língua. (ibidem, p10)
Também há traços distintivos diferentes com tendência para coexistirem. É o caso por exemplo de
grave vs. acute e flat vs. plain. As vogais graves ideais são flat e as acute serão plain (ibidem, p10).
9
Os autores apresentam a possibilidade de uma excepção para o traço compacto/difuso nas vogais. Nalgumas
línguas, como no húngaro, o traço compacto apresenta 3 níveis.
18
É importante estudar as características acústicas e articulatórias associadas a cada par binário de
factores distintivos. Por exemplo
… as language uses an autonomous distinctive opposition of gravity and acuteness, we examine the
acoustical correlates of the linguistic values in question and the articulatory prerequisites of these stimuli.
… for the study of speech sounds on any level whatsoever their linguistic function is decisive. (ibidem, p11)
A decifração de uma mensagem seria feita por discriminação sequencial de padrões fonéticos de
cada língua; torna-se por isso mais difícil, em casos em que ocorre switching code, misturando
línguas com padrões fonéticos diferentes.
Para identificar um /p/ ou qualquer outro fonema teremos de discriminar os traços distintivos que
os caracterizam. Mas a que fase da transmissão do som nos referimos: articulatório, acústico,
auditivo, perceptual10? É fácil perceber que é possível prever cada etapa da mensagem, do
articulatório ao perceptual, a partir do resultado do nível anterior, mas tal não acontece em sentido
contrário. Realmente, por exemplo, a mesma percepção pode resultar de audições diferentes, e
uma mesma audição de curvas de som diferentes, etc. Há variáveis em cada etapa que são
irrelevantes para o nível seguinte. Isto significa que a especificação das oposições fonéticas pode ser
feita em qualquer etapa desde que escolhidas em função do resultado final que é a compreensão
do que é dito (ibidem, p12-13).
A unidade com significado mais simples numa língua é o morfema. Ao contrário dos morfemas, os
fonemas e s traços distintivos não conferem significados. Sinalizam apenas que dois morfemas, que
apresentem num ou mais fonemas traços distintivos, terão significados diferentes (se apenas um
fonema variar serão pares mínimos). São os traços distintivos atribuídos aos fonemas que servem
para discriminar esses fonemas e assim construir todos os morfemas de qualquer língua,
possibilitando a sua compreensão na comunicação.
It separates them from all other sound features functioning in language. Only these, purely discriminatory
and otherwise empty units are used to construct the whole stock of morphemes of all languages of the
world. (ibidem, p14)
10
O último realmente é opaco para o receptor
19
Podemos também considerar traços de Configuração que distinguem determinados sons numa
cadeia ao longo da frase. Por exemplo há línguas onde o início ou o fim da sílaba é marcado, e
funciona também como marca de início ou de fim de palavra; como tal esta marca não pode ser um
traço distintivo de fonema. Em inglês S. Harris identificou 3 traços de configuração associados a
pontuações na representação escrita: /?/ (subida ↑), /./ (descida↓) e /,/ (pausa entre frases││). A
subida ou descida do som podem constituir, em certas línguas, traços distintivos, se associados à
distinção de fonemas e consequentemente à distinção de morfemas na língua, mas não no inglês ou
no português, onde são meros atributos de configuração, em que a subida é interpretada como
uma pergunta e a descida como o fim de frase. (ibidem, p14-15).
Os traços Expressivos denotam emoções do locutor. Por exemplo o adjectivo “enorme” pode ser
pronunciado aumentando a duração do “o” tónico e com entoação especial para realçar a sua
interpretação. Tal como acontecia com os traços de configuração uma entoação marcada opõe-se a
uma entoação neutra, mas não é distintiva de fonemas/morfemas, nem em inglês, nem em
português.
A specific denotation unites the redundant features with the configurational and expressive features and
separates them from the distinctive features. The "emptiness" of the distinctive features sets these apart
from all other sound features. (ibidem, p15)
TF
S W
a) O output W pode ser estimado a partir da S apenas com os zeros e os polos da FT. Os polos
correspondem às frequências de ressonância, os zeros aos filtros. Os polos dependem da
configuração do trajecto do som da voz desde a laringe até ao exterior, que cria duas ou
20
mais cavidades ressonantes. Os zeros dependem da interacção entre os dois sistemas
ressonantes. Um zero próximo de um polo pode anular ou diminuir o efeito do polo.
b) Dependência da TF da localização da Fonte. A Fonte na laringe não origina zeros. Razão
porque uma vogal pode ser especificada apenas pelos dois polos da TF, que determinam as
2 frequências principais de cada vogal. Uma fonte localizada noutro ponto do trajecto
originaria zeros na TF.
c) A influência do formato do Tracto Vocal. A sua forma determina os polos da TF que não
dependem da Fonte (S). (ibidem, p16-17)
A chamada posição neutra do tracto vocal ocorre quando temos um tracto vocal de secção quase
constante, que corresponde a um som [ə], que pode ser representada por um tubo fechado numa
ponta. Um tubo de comprimento L ressoa a frequências em que L é um múltiplo ímpar de um
quatro do comprimento de onda do som. Ora a relação entre o comprimento de onda λ e a
frequência f é
Com o tracto vocal médio de um adulto masculino é cerca de 17.5 cm (= ¼, ¾ ou 5/4 de λ ) calcula-
se facilmente que as frequências de ressonância na posição neutra podem ser cerca de 500, 1500
ou 2500 Hz, etc. Na figura acima, que representa as vogais num espaço bidimensional de
frequências, vemos precisamente que a vogal a que correspondem 500 e 1500hz fica
aproximadamente no centro do trapézio. A medição do valor exacto da frequência na posição
neutra em cada individuo permite estimar as frequências formantes de todas as vogais.
Fronteiras do Fonema: Para efeitos práticos cada fonema pode ser representado por um espectro
estável, a menos de efeitos transitórios. Estes efeitos transitórios, originados na fonte, podem ser
usados para delimitar os fonemas. Os efeitos transitórios podem também estar associados a
abruptas mudanças da TF devidas a mudança do tracto vocal. (ibidem, p18)
Vamos agora identificar, um a um, todos os traços distintivos, numerados de 1 a 12, de acordo com
a proposta de Jalobson et al.
Os fonemas vocálicos têm fontes periódicas que geram os chamados formantes. Os formantes mais
graves têm maior intensidade na voz, mas como o ouvido humano é mais sensível na banda 1-2 kHz
há um efeito de equalização. (ibidem, p18-19)
As vogais são fonemas com a propriedade vocálica e sem a propriedade consonantal. São definidas
pelos formantes mais importantes no som. As consoantes, pelo contrário têm a propriedade
consonantal e não têm a vocálica. Podem ser percebidas pelo efeito que provocam nos formantes
das vogais adjacentes, mas são perceptíveis e identificáveis mesmo sem a presença de uma vogal,
ver por exemplo as palavras inglesas “whisp”, “whisk” ou “whist”.
21
A produção – As vogais não têm barreiras à saída do som na linha média do tracto vocal, ao
contrário das consoantes, que têm oclusão total ou parcial ou pelo menos a inclusão de um sistema
de produção de ruido. As líquidas são complexas por combinarem abertura e fecho, por vezes
intermitentes ou fechando a via central e abrindo uma passagem lateral.
Na percepção as vogais têm uma potência muito superior à das consoantes. Todas as línguas têm a
distinção vogal/consoante. Algumas línguas não têm líquidas.
Este grupo inclui dois tipos de características/traços associadas à fonte primária: a) Características
da envolvente e a estridência. b) Uma característica associada à inclusão de uma fonte secundária
(as cordas vocais): o vozeamento,
Os autores fazem para cada traço (feature) uma caracterização detalhada em 4 pontos: a) estímulo,
b) produção, c) percepção, d) ocorrência.
A mesma análise em 4 pontos é feita para 4. Checked (checked phonemes are marked by a sharper
termination) vs Unchecked; 5. Strident (Sounds that have irregular waveforms) vs. Mellow; 6.
Voiced (superposition of a harmonic sound source upon the noise source) vs. Voiceless (ibidem,
p21-25)
Este grupo inclui cinco características no ressoador principal: a) compactness/ diffuse, b) três
caracteristicas de tonalidade: grave/ acute; flat/ plain; sharp/ plain c) tenseness/ lax .
22
A mesma análise em 4 pontos ( a) estímulo, b) produção, c) percepção, d) ocorrência ) é feita para
estes novos traços distintivos: 7. Compact (characterized by the relative predominance of one
centrally located formant region) vs. Diffuse (esta oposição depende da relação de volume, à frente
e atrás da do ponto de estrangulamento maior do canal); 8. Grave (When the lower side of the
spectrum predominates, the phoneme is labeled grave) vs. Acute (oposição produzida através da
alteração das dimensões da cavidade bocal); 9. Flat (Flattening manifests itself by a downward shift
of a set of formants or even of all the formants in the spectrum). vs. Plain (oposição produzida
variando o tamanho do orifício dos lábios, flatness é introduzida fechando o orificio); 10. Sharp
(This feature manifests itself in a slight rise of the second formant and, to some degree, also of the
higher formants) vs. Plain (esta oposição está associada à chamada palatização); 11. Tense (tense
phonemes display a longer sound interval and a larger energy) vs. Lax (the tense consonants (called
strong or fortes) in comparison with their lax counterparts (called weak or lenes; the tense vowels
have a longer duration than the corresponding lax.).
O traço de nasalidade é partilhado por consoantes e vogais. A mesma análise em 4 pontos referidos
acima é feita para a 12. nasalidade. Produzidos por abertura do véu palatino adicionando uma nova
caixa de ressonância: a cavidade nasal. (ibidem, p39-40)
As figuras seguintes, que retirámos do ensaio de Jakobson et al, ajudarão a compreender alguns dos
pontos associados às 12 características (traços distintos) que os autores identificaram e que
numerámos de 1 a 12. Destas 12 características os autores utilizariam apenas 9 para a língua
inglesa. Ver tabela abaixo.
11
12
11
Because of the higher over-all level usually associated with a longer duration, the compact phonemes
display a higher "phonetic power" than the diffuse phonemes, ceteris paribus . Fletcher's calculations give
the following "average values" (Jakobson et al, 1952, p28)
12
Usually, however, a notable auxiliary factor in the formation of grave phonemes (back vowels and labial
consonants as well as velars if opposed to palatals) isa contraction of the back orifice of the mouth resonator,
23
As duas figuras abaixo mostram as oposições em triângulo dos traços distintivo compact/ diffuse e
grave/ acute, nas consoantes oclusivas e nas vogais.
As duas figuras seguintes mostram a configuração do tracto vocal na oposição grave /acute das
vogais e compact/ difuse em consoantes, dois pares de traços relacionados com a postura da
cavidade bocal. O grave/acute depende da dimensão da caixa ressonante. O compact/difuse
depende da relação entre a caixa posterior e anterior ao ponto de fecho do tracto vocal.
through a narrowing of the pharynx, whereas the corresponding acute phonemes (dental and palatal
consonants and front vowels) are produced with a widened pharynx. Here the widths of the cross-section of
the pharyngeal cavity for the two classes of Czech consonants deviate from its width in silence (13.3 mm) as
follows (measurements in mm) (Jakobson et al, 1952, p30)
24
A figura seguinte mostra um caso de a oposição entre estridente e doce (strident/mellow), usando
os fonemas /s/ - /θ/ em inglês. O espectograma mostra a separação gradual da região dos
formantes na consoante mellow /θ/ que não se vê no strident /s/. Na configuração do tracto vemos
que a estridência está associada a introdução de um obstáculo complexo no fluxo do ar, com o ar a
embater nos dentes inferiores antes de sair.
A figura seguinte mostra a oposição plain/ sharp em dois fonemas usados no russo / pʲ / e /p/. O
superscript j é símbolo fonético de palatização. Na consoante da esquerda vemos a língua encostada
ao palato.
25
A figura seguinte mostra a relação entre a oposição tense/ lax e as frequências observadas paras
vogais na língua francesa.
13
A.6 Conclusões
13
The sum of the deviations of the formants of a tense vowel is always greater than that of the corresponding
lax vowel. Tense vowels are usually considerably longer than the corresponding lax vowels(Jakobson et al,
1952, p37)
26
Línguas que apresentam por exemplo a chamada harmonia das vogais dão força aos argumentos
em favor dos traços distintivos. Línguas que obrigam no contexto de uma palavra a usar apenas
vogais compactas ou apenas vogais difusas: /o a e/ ou /u ə i/. Na maioria das línguas turcas as
vogais agudas e graves não podem fazer parte da mesma palavra.
Os autores apresentam vários exemplos em várias línguas que parecem dar significado a várias das
oposições propostas.
De notar que os traços distintivos propostos por Jakobson et al são todos de base acústica, ao
contrário de outros autores que valorizam por exemplo o ponto ou o modo articulatório.
A tabela seguinte resume a matriz de traços distintivos propostos por Jakobson et al, em 1952, para
o inglês. Como vemos no inglês esta lista fica reduzida a 9 dos 12 atributos binários identificados. De
notar que Chomsky irá propor uma lista de 22 traços distintos para o inglês.
Jakobson propõe uma simplificação, com apenas 6 traços, tomando a liberdade de usar ± na
caracterização dos traços distintivos
27
Exemplo de transcrição de texto usando os traços distintivos
Segundo Jakobson todas estas tabelas poderiam ser ainda simplificadas eliminando todas as
redundâncias.
No Anexo 1 apresentamos alguns resultados propostos por alguns autores para o português
28
ANEXO 2 – Traços Distintivos do Português
Apresentamos neste anexo duas propostas para a língua portuguesa.
I. As duas tabelas abaixo revelam as propostas da linguista brasileira Thaïs Cristófaro Silva
para o português do Brasil, em 2010. Apresenta uma lista de 15 traços distintivos, associando traços
de vários tipos, ao contrário do que tínhamos visto em Jakobson et al: Traços de Classe Principal, de
Modo de Articulação, de Cavidade, de Fonte e de Movimentos Suplementares.
3. Soante [+soante] quando é produzido com a configuração do aparelho Traço de Classe Principal
fonador de maneira que seja possível o vozeamento espontâneo.
[-soante] quando o vozeamento espontâneo não é possível.
4. Contínuo [+contínuo] quando a constrição principal do trato vocal permite a Traço Modos de
passagem do ar durante todo o período de sua produção. Articulação
[-contínuo] quando durante a sua produção ocorre o bloqueio da
passagem da corrente de ar no trato vocal
5. Soltura [+soltura retardada] quando é produzido com uma obstrução no Traço Modos de
Retardada trato vocal bloqueando a passagem da corrente de ar seguida pelo Articulação
escape desta corrente de ar provocando turbulência.
[-soltura retardada] quando não ocorre este fenômeno.
6. Nasal [+nasal] quando é produzido com o abaixamento do véu palatino Traço de Cavidade
permitindo o escape do ar através do nariz.
[-nasal] quando é produzido sem o abaixamento do véu palatino.
7. Lateral [+lateral] quando durante a sua produção o ar escapa lateralmente. Traço de Cavidade
[-lateral] quando o ar não escapa lateralmente.
8. Anterior [+anterior] quando é produzido com uma obstrução localizada na Traço de Cavidade
parte anterior à região alveopalatal.
[-anterior] quando é produzido sem uma obstrução deste tipo
9. Coronal [+coronal] quando é produzido com o levantamento da ponta da Traço de Cavidade
língua a um ponto superior à posição neutra.
[-coronal] quando a ponta da língua permanece na posição neutra
10. Alto [+alto] quando é produzido com o levantamento do corpo(dorso) da Traço de Cavidade
língua a uma posição acima daquela verificada na posição neutra.
[-alto] quando é produzido sem tal levantamento.
11. Recuado [+recuado] quando é produzido com a retração da língua da posição Traço de Cavidade
neutra
[-recuado] quando é produzido sem tal retração.
12. Arredondado [arredondado] quando é produzido com uma aproximação do orifício Traço de Cavidade
labial.
[-arredondado] quando é produzido sem tal aproximação.
13. Baixo [+baixo] quando é produzido com o abaixamento do corpo da língua Traço de Cavidade
a uma posição abaixo daquela verificada na posição neutra
[-baixo] quando é produzido sem este abaixamento.
14. Vozeado [+vozeado] quando durante a sua produção as cordas vocais Traços de Fonte
permanecem vibrando.
[-vozeado] quando não ocorre tal vibração.
15. Tenso [+tenso] quando é produzido com um gesto exacto e preciso que Traços Movimentos
envolve considerável esforço muscular. Suplementares
[-tenso] quando é produzido rápida e indistintamente.
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Tabela de Traços Distintivos do Português proposta por (Cristófaro Silva, 2003)
II. A matriz abaixo apresenta a lista de traços distintivos para o Português Europeu proposta
por MATEUS et al, em 2003. Contém apenas 13 traços. Faltam nesta lista: [soltura retardada] e
[tenso], se compararmos com a lista anterior, o que se compreende, pois, estes dois traços
correspondem a segmentos inexistentes no português padrão, as africadas e três sons vocálicos.
As tabelas abaixo mostram os traços distintivos que caracterizam segmentos vocálicos e dentro de
cada grupo de consoantes: oclusivas, fricativas, líquidas.
30
Tabela de Traços Distintivos do Português e variações de traços por grupos significativos, proposta por Mateus et al
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