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CRISTINA MENEGUELLO

JULIO BENTIVOGLIO
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Revisão
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Capa
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Autor: não citado, logo, tenho declarado que não existe intenção de violação de Atualizar monumentos e (des)ativar hist6rias ......................................... 7
propriedade intelectual Valdei Araujo
Semíramis Aguiar de Oliveira Louzada - aspectos
Monumentos, conflitos e narrativas da hist6ria ..................................... 17
Projeto Gráfico e Editoração Manica Lima, Hebe Mattos, Keila Grinberg & Manha Abreu
Lucas Bispo Fiorezi
Introdução .......................................................................................................... 35
Impressão e Acabamento Cristina Meneguello & Julio Bentivoglio
HelpBook
Ca1ne contra pedra .......................................................................................... 43
Cristina Meneguello

"O que é um monumento senão uma mem6ria permanente?" Os


memoriais confederados nos Estados Unidos contemporâneos ...... 83
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Arthur Lima de Avila
C822 Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e história/
Cristina Meneguello & Julio Bentivoglio (organizadores) Comemorando a ditadura, celebrando o capital: uma leitura do
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278 p.: 23 cm.
Caroline Silveira Bauer
ISBN: 978-65-5389-001-5
A mulher mais discreta: escritas do passado e do presente na Marcha
1. História 2. Monumentos 3. Estátuas I. Meneguello, Cristina das Vadias de Curitiba ................................................................................. 129
II. Bentivoglio, Julio III. Título. Cl6vis Gruner

CDD 909.83 A cidade em disputa: políticas de mem6ria e movimentos negros no


Recife (!990-2010) .......................................................................................... 149
Isabel Cristina Martins Guillen

~is são as vÍtimas de um monumento? Breves notas sobre a poHtica


de mem6ria na Hungria de Viktor Orban ............................................ 177
Alexandre de Sd Avelar
A "antiga" imperatriz acéfala da Martinica: iconoclastia e
antirracismo como problemas para o historiador/professor ......... 1477
Francisco das Chagas Fernandes Santiago JÚni.or e
Estatuas
1
em transe: v1"d a e morte dos monumentos c1v1cos
1.
............. 225
Marcelo Abreu (Ufop) Prefácio
substituição da esdtua de Unin em Odessa: ou o episodio em
que Darth Vader e a ficção triunfaram sobre Unin e o nacionalismo
ucraniano ........................................................................................................... 247
Julio Brntivoglio

Sobre as autoras e os autores ...................................................................... 275


Valdei Araujo

O tempo presente sempre foi um desafio para a


historiografia disciplinada. Nas lutas por sua delimitação como
ciência no século XIX a política era despolitizar o historiador
e afasd-lo dos conflitos da cena publica. Mesmo que a imagem
de um profissional frio e imparcial tenha servido tanto para o
elogio quanto para a crítica da disciplina, ela permaneceu como
alegoria de uma virtude historiadora. Mesmo que essa suposta
virtude venha sendo mais e mais questionada, a verdade e que
a historiografia teve sempre dificuldade em abordar o presente.
Não e este o caso deste livro.
Reunidos pelos organizadores, diversos historiadores foram
convidados a pesquisar, escrever e mobilizar seus repertorios
profissionais em torno de um fenômeno do tempo presente: a onda
crescente de ataques e deslegitimação de monumentos historicos.
O problema enfrentado e ele mesmo uma aporia se visto pelo senso
comum disciplinar que toma o historiador como uma especie de
guardião da memoria. o que teríamos a dizer sobre a derrubada
e. atualização de esdtuas e monumentos? A julgar pelos respostas
aqui reunidas, a historiografia tem muito a contribuir.
O livro funciona como um manifesto que convida os
historiadores a participar mais ativamente nas disputas pelas
historias que se materializam nos espaços publicas, a participar da

7
Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e história

relações de força e de usos do passado constantemente reencenados


e reatualizados, que se prendem a histórias e a lutas particulares.
Se Colston atirado à agua não inaugura nem e o apice desse confrontos entre corpos e estátuas
debate, cabe à sociedade organizada imaginar outras formas de
ocupar os espaços publicos, renomeando-os, substituindo-os,
confrontando-nos com outros monumentos, requalificando sua
iconografia. Ou mesmo avaliando a possibilidade de sua realocação
na cidade ou supressão. Claro esd que os monumentos têm uma
legitimidade construída de acordo com o próprio momento histórico
que os envolvem; e que se transformam em marcos, dentro de Cristina Meneguello

nossas cidades. Essas marcas, por vezes, são cicatrizes. Resultado de


E no que se tomará a humanidade no dia pr6ximo em que o povo das
lutas e, invariavelmente, de violências ou arbitrariedades. Se formos estátuas tiver se tornado tão abundante nas cidades e nos campos,
considerar a remoção das cicatrizes como forma de luta pertinente, que mal poderemos circular nas ruas de pedestais? (Louis Aragon, O
camponts de Paris, 1926)
resta aos historiadores considerar os mecanismos do relembrar e do
esquecer. Abre-se espaço, assim, para que os historiadores possam
refletir sobre o tema da destruição ativa dos monumentos e das Da morte das esdtuas
dimensões da memória e da história.
No ano de P-)46, foi lançado o enigrnatico La mort et les
Este livro reune ensaios produzidos desde meados de junho statues (A morte e as esdtuas), alburn fotogdfico com imagens
de 2020 e constituem uma radiografia bastante plural que toca no colhidas por Pierre Jahan e comentadas por Jean Cocteau. 1

problema dos monumentos, da memória e do ativismo envolvidos Durante a ocupação alemã em Paris, esdtuas de bronze retiradas
em sua inscrição e percepção na paisagem urbana em diferentes de seus pedestais pelos alemães foram acumuladas, como ferro
cidades. Eles versam sobre lutas atuais, mas tambem antigas velho, num arrnazern no 12º arrondissement. Clandestinamente,
em torno destas questões, oferecendo um conjunto de reflexões Pierre Jahan fotografou, entre 1941 e 1942, esdtuas de figuras
sistematicas desenvolvidas por historiadoras e historiadores publicas, crianças, centauros, braços e pernas, crocodilos,
brasileiros interessados neste campo de problemas; iluminando todos empilhadas com partes faltantes ou sendo carregadas
objetos particulares, examinando-os sob diferentes perspectivas por guindastes. Anos mais tarde, Jeam Cocteau percebeu a
mediante perguntas e respostas pontuais. Um significativo aporte potencialidade desse material reunido e teceu, para cada
para qualquer pessoa interessada, especialista ou não, em conhecer fotografia, cornendrios que oscilam entre a descrição e o surreal.
mais de perto e sob variados :ingulos a extensão de urna questão No "sonho mau de um poeta", um político em sobrecasaca jaz ao
permanente, vivenciada em diferentes realidades históricas e lado de um crocodilo; "Deitado em uma banheira, Marat encontra
2

culturais.
l O original encontra-se depositado junto ao Mus~e Carnavalet, em Paris, que

a
guarda algumas fotografias não utilizadas rnl edição e anotações mão. o album e demais
materiais podem ser visualizados em: https://www.parismuseescollections.paris.fr/fr/
m usee-carnavalet/ oe uvre s/ album-de-la-mort-e t-les-s tatues.
2 JAHAN, Pierre; COCTEAU, Jean. La more et les statues. Paris: Les Editions do
Compass, 1946, p. 14.

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Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e hist61ia Oistina Meneguello & Julio Bcntivoglio

sua segunda morte"3; "Condorcet repousa lado a lado com sua morte"4; - gesto de conquista e humilhação, tantas vezes repetido na
um jovem 6rfão perdeu não apenas sua fam1lia e casa; "perdeu sua hist6ria das cidades -, complementam-se com os dois últimos
época"5 (Figura 13). deslocamentos da ordem do suporte visual: a estátua vira imagem
e a imagem vira literatura. Perdida a dimensão física da estátua,
subsiste o testemunho visual de sua desaparição. Ao descrever um
M. 1hiers sendo içado num guindaste, Cocteau vaticinou: "Todas
essas máquinas de matar são perigosas. Uma bomba do futuro poderia
impedir a ruptura do tempo e pulverizar aquilo que foi".7
jtuNE ORPIH:UN dt !'i:xndF
ptis srnlEtflENT prndu 5'\ ÍAMilk
Se uma estátua, assim como a carne que ela representa, pode
! 1 5.1\ MAiSON, li A prndu 'itON ipüQllt... morrer, pouco lhe serviu ser de pedra, bronze ou mármore. As
Sim unt: 1n,wrn:sf dF
<lc t1HJAITT.lrn UN UNÍVf.11S dE 'lfllH:JliNES
estátuas destruídas sob Vichy ecoam destruições anteriores vividas
AUÇM1 il NC co11i1pm. Nd nitN: H Nt em territ6rio francês com a Primeira Guerra Mundial, ou, ainda
vwr Ni poudnt, Ni bt.llts. ll

ip/N( d'INS lf pit.d.


IJNf
antes, com o "vandalismo revolucionário" associado à Revolução
Francesa, em especial entre i793 e 1795. 8
O imaginário das ruínas do p6s-Segunda Guerra articulou-
se, ainda, com a visualização da tragedia do Holocausto nos corpos
insepultos denunciados por meio das fotograf1as dos campos de
concentração liberados pelas forças sovieticas (Auschwitz) ou
norte-americanas (Buchenwald).~ Desse modo, Cocteau e Jahan
registraram o melanc6lico fim de estátuas públicas que haviam
pontilhado o espaço urbano europeu na voga da "estatuamania" -
movimento que, segundo Maurice Agulhon, 10 estendeu-se entre as
MOMME POllllO~UE rn decadas iniciais do seculo XIX ate pelo menos a Primeira Guerra
m::dlNlfQ'ff., CH A1.liq11;1on si:: WNI' ru:N·
CONmE~ dAN~ l€ M.i.w.\b íi:Ê\lt d'ul"i 7 JAHAN, Pierre; COCTEAU, Jean. La more et les statues ... Op. cit., p. r8.
poüç, 8 Para a criação do Museu dos Monumentos franceses, Alexandre LenoiT empreendeu
a recolha de fragmentos e esculturas, entendendo-os corno prova da hist6ri:l e como 1ndice
da arte nacional e dos homens e mulheres celebres. Não por acaso nomeou urna de suas
obras como "História das artes na França, proYada pelos monumentos, seguida de uma
Figura 13: Páginas 2 e r4 de La more et les statues (https://www.parismuseescollections.
descrição cronol6gica das estátuas cm mármore e em bronze, baixos-relevos e tumbas de
paris.fr/fr/musee-carnavalet/oeuvres/album-de-la-mort-et-les-statues).
homens e mulheres celebres, reunidos no Museu Imperial dos monumentos Franceses". A
experiência mais próxima de uma onda de destruição de esdtuas em territ6rio íiancês,
Naquele novo arranjo de imagens de destruição, "a mais anterior a essa, h:tvia sido a destruição de imagens de cunho religioso pelos 1-luguenotes
medíocre das estátuas ganha a grandeza e o drama da solidão". 6 Esses entre 153º e 1600. RICHARD, Bernard. 0.t:trnd un peuple repute pour sa culrure atraque
des ceuvres d'arr: l'iconoclasme cn Francc. Revista de Hist6ria da Arte e da Cultura, v. r, n. 1,
múltiplos deslocamentos, que retiram as obras públicas de onde, p. 171-18} Traduções feitaas pela autora deste cap1tulo.
um dia, foram erigidas e as arremessam à quebra e ao esquecimento 9 Por meio de reportagens como a materia "Atrocities", publicada cm Life Magazine, 7
mai. 1945· Dispon!vel em: <https://books.google.com.br/books'lid=8UkeaaaambaJ &h1=pt-
3 JAHAN, Pierre; COCTEAU, Jean. La mort et les statues ... Op. cit., p. 4.
BR&source=gbs_alLissucs_r&cad=1>. Ver tambem: ZELIZER, Barbie. Rememhmng to forget:
4 Ihidem, p. 6. Holocaust Memory through the Camera's Eye. Chicago: University of Chicago Press, 2000.
5 lhidem, p. 2. ro AGULHON, Maurice. La "statuomanie" et l'histoire. Ethnologie Française, v. 8, n.
6 Ihidem, Prefacio, p. 7. 2/3, p. r45-r72, 1978.

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Corpos e Pedras: estátuas, nwnwnenralidade e hist6ria Cri~tina Nkneguello & ]uli:o Bentivoglio

Mundialn. A estatuária poHtica, cultural ou patriótica, experenciada e monumentos (...) de locais públicos e administrativos que não apresentem
como banal no século XX foi, à sua época, uma proposta de obra de interesse hist6rico ou artÍstico", 14 numa decisão conhecida como
arte ao ar livre, acess:ivel a qualquer passante e também uma ruptura "mobilização dos metais". Outros países optaram pelo derretimento
com os espaços das cidades que ate então só admitiam santos e reis. de sinos, por exemplo. Mas, na França, uma multidão de esdtuas
Tratava-se, nas palavras de Agulhon, da entrada em praça publica desapareceu, numa depuração dos que pareciam "indignos" de
de uma moral laica e de um humanismo liberal, em especial na
ocupar o espaço publico, em meio a uma reavaliação de homenagens
Terceira Republica Francesa (1879-1940), "estatuamaníaca" por
e homenageados. A direção de Belas Artes, enquanto durou essa
excelência (r978: 148). Como observou Knauss,
política, recebeu inumeros protestos sobre as escolhas realizadas.
essa estrutura narrativa explicita uma operação historiogdfica Por que alguns escritores permaneciam e outros eram retirados?
peculiar, selecionando os elementos a serem recordados e
produzindo o esquecimento de outros elementos, constitutivos Por que heróis locais, em estátuas erigi.das por meio de subscrição
do contexto história de referência, sustentando, assim, a memória pública nas cidades menores, deveriam ser considerados menos
construida. A lógica formal escultórica se submetia, portanto, a importantes do que personagens de Paris? Ou, ainda, por que obras
mna estrutura narrativa.T2
de escultores aclamados deveriam sobreviver às obras de escultores
A estatuamania - como o desejo de ter a carne eternizada considerados menores? Estima-se que, na campanha de mobilização
em pedra - é a narrativa contra a qual o gesto iconoclasta impõe dos metais, cerca de 1700 estátuas foram desmontadas e derretidas,
uma nova escrita, alteração ou apagamento. Nas primeiras décadas cerca de cem em Paris, as demais no restante do pais. A campanha,
do século XX, os surrealistas franceses apontaram para a crescente com declarados motivos econ6m1cos imediatos, reavivava os gestos
"estatuafobia", resultante direta da estatuamania. Em O camponês de humilhação contra o inimigo na guerra, na medida em que
de Paris (r926), Aragon adverte para um hipotético futuro em que rompia com a poHtica ic6nica do regime abolido, desta feita, por
haveria tantas estátuas que não sobraria mais espaço para as pessoas:
meio de leis e concessões realizadas pelo governo de Vichy, Nas
E no que se tornad a humanidade no dia próximo em que o povo decisões oficiais sobre quais estátuas seriam removidas, reafirmou-
das estátuas tiver se tornado tão abundante nas cidades e nos
se o patrim6nio como depositário de uma imagem de identidade e
campos, que mal poderemos circular nas ruas de pedestais, atraves
dos campos de poses? Perspectiva sufocante (... ) A humanidade de nação, numa narrativa que celebrou a capital e os grandes nomes
perecerá devido a estatuamania'. 11 e gerou exclusões e apagamentos.

Entretanto, alguns anos mais tarde, sob o regime Nesse contexto, foram gerados os documentos fotograficos
colaboracionista de Vichy, o metal tornou-se necessario para a do livro A morte e as estátuas (note-se, não "A morte das estátuas"),
industria e a agricultura. Por meio de um Decreto de rr de outubro lançado em 1946, no inicio do pós-guerra. Com uma seleção de 20
de 1941, estabeleceu-se, com vistas à fundição, a retirada de "estátuas pranchas, desfilam em pedaços os grandes homens da nação francesa
- Voltaire, Rousseau, Condorcet, Marat, Diderot. A destruição
n Agulhon aponta que a primeira aparição do termo "estatuamania" deu-se Dicion:lrio
Universal de Pierre L:uousse (Grand Dictionnaire Uni versei du XIXe siecle), produzido entre material faz eco "ao apagamento de figuras sinib6licas da vida intelectual,
1880 e 1890. Nas decadas iniciais do seculo XX, "escituamania" passa a ser termo corrente da democracia, da polfrica liberal e do pensamento progressista. 5 A segunda 1

nos textos dos surrealistas franceses.


12 KNAUSS, Paulo. Imaginaria urb:ma: escultura publica na paisagem construida do 14 Lei nº 4291 de II de outubro de 1941 sobre a retirada de est:ituas e monumentos
Brasil. ln: SALGUEIRO, Heliana Angotti (org.). Paisagem e arte. São Paulo: CBHA, 2000, cm metal para a fi.mdição. fournal Ojjiciel de l'État Français, n. 283, 15 oct. 1941, p. 4440. A
p. 412. lei pode ser consultada em https://gallica.bnffr/ark:/12148/bptGk963395or/L1. Acesso cm:
13 ARAGON, Louis. O camponês de Paris. ln: NASCIMENTO, Flavia Cristina de 7 jul. 2020.
Souza. O camponês de Paris de Louis Aragon: (tradução comentada). Dissertação (Mestrado 15 PITTNAUER, Beate. Perdre son ~poque. La destruction des statues parisiennes et
em Hist6iria). Universidade Estadual de Campinas, 1991, p. 175· leur conservation au moyen de la photographie. Une relation dialectique? Tradução de

47
Corpos e Pedras: estdtuas, monumentalidade e hist6ria Cristina Meneguello & Julio Bentivoglio

morte dos personagens faz eco as derrotas militares da França e públicas. Esqueceram-se do que elas significam e de quem elas
a preocupação de Cocteau com o futuro do pai'.s p6s-ocupação, representam.
preconizando as futuras tensões entre as responsabilidades alemãs,
os mitos de resistência e a parcela de colaboração que coube aos
franceses. Ainda, a função de testemunho adotada pela fotografia
e o livro lançado no imediato p6s-guerra contribuíram, como
estrategia ardstica, para a formação de uma imagem do património
desaparecido de uma nação em reconstrução.
Uma decada antes da chegada das tropas alemãs a Paris e,
portanto, antes de Jahan fotografar as "esdtuas mortas" e de
Cocteau descrevê-las, outro livro tratou do tema da interação com
os monumentos: em 1932, o escritor e jornalista Marcel Sauvage
lançou um romance surrealista, com pitadas de ficção cientifica. Em
La finde Paris ou La Revolte des Statues (O fim de Paris ou a revolta
das esdtuas), Sauvage descreveu uma revolta coletiva das esdtuas
da cidade, que ganham vida e movimento, lideradas pelas esdtuas
de Carlos Magno, Napoleão e Joana D' Are. O romance inicia com
o Monumento aos aeronautas no cerco de Paris 1870-1871 voando pelos
Figura 14: Prancha II da primeira edição. Fotomontagem "A primeira coluna de ataque
ares; o balão em bronze carrega ao ceu todo o seu grupo escult6rico vindo do Louvre". LANG, op. cit., 2007, p. 149.
16
. "Acima da multidão, dos engarrafamentos e das casas, duas toneladas
Ante a incredulidade ou zombaria as suas demandas, as
de pedra, como um balão de criança, nos céus de Paris".'7
estátuas de pedra e bronze preparam-se para a batalha. A edição
Comunicada, a policia acredita tratar-se de uma alucinação de 1932, da editora Denoel & Steele, trazia doze fotomontagens, na
coletiva, ate dar-se conta de que aquele não e o Único monumento melhor tradição surrealista, de autoria de um certo Constantinesco
com um comportamento fora do comum; há uma revolta - certamente um pseudónimo (Figura 14). São as fotomontagens que
generalizada entre as estátuas de Paris, que dão um ultimato aos permitem visualizar as estátuas fora de seus lugares perperuos. 18 Dessa
habitantes: ou abandonavam Paris ou seriam aniquilados. O que feita, a fotografia não tem caráter testemunhal, mas manipula os
esses seres de pedra e metal ressentiam era o fato de os homens referentes para criar realidades surreais.
viverem numa era "maquínica" definida pelo excesso de velocidade,
~'lndo decidem partir para a batalha, ate mesmo os
pelo consumismo e inconsciência. Nessa nova era condenada pelas
incompletos bustos improvisam pernas e braços, emprestados
estátuas, os homens não olham mais para as esculturas nas praças
de outras estátuas ou ajustados em chumbo e ferro. Ao final, as
Florence Rougcrie. Actualité en histoire de l'an, 2018, v. 2, p. 247. cinquenta estátuas de Joana D' Are (dentre as quais apenas uma
16 O monumento homenageava os aeronautas que, por meio de seus balões de e a Hder), as oito estátuas de Lu1s XIV e todas as demais acabam
ar quente, garantiram que a capital francesa, sitiada pelo exército prussiano em 1870,
vencidas pelos humanos, por destruição ou rendição.
mantivesse a comunicação com a restante do pais. Essa esdtua foi uma das retiradas e
derretidas pelo governo de Vichy.
17 SAUVAGE, Marc. La finde Paris ou la revolte des statues. Paris: Grasset, 2014, p. 4. 18 BAKER, Simon. Surrealism, history and revolution, Berna: Peter Lang, 2007, p. 149.

49
Corpos e Pedras: estcicuas, nwnumentalidade e história Ciistina Meneguello & Julio Bentivoglio

"Os fuzilamentos! Há cinquenta anos espero pelos fuzilamentos!" expandiu seu argumento já presente no magistral Cultura das
era o "discurso da estátua" em O Campon~s de Aragon, em 1926. Cidades (originalmente publicado em 1938), sobre a presença da
"Finalmente é preciso fixar com chumbo os homens que se movem e monumentalidade no espaço pt1blico, parcialmente n:aduzida
riem e deslizam na paisagem em que estou para sempre congelado". 9 No 1
na presença de monumentos na cidade. Para ele, a característica
romance de Sauvage º, que seguramente leu Aragon, os artilheiros
2
monumental pr6pria da cidade helenística fazia os mortos pesarem
que dão carga contra as estátuas acham mais simples considerá- sobre os vivos, pois cada geração deixava sua contribuição de
las tão somente como "objetos". Isso lhes permite vencer, ao final formas e imagens ideais em orat6rios, templos e palácios, fazendo-
da obra, o confronto surreal. Em O fim de Paris, as estátuas falam, se presente nas mentes das gerações posteriores e satisfazendo
tem sentimentos, livre-arbitrio e, de certo modo, declaram-se o antiquíssimo desejo por imortalidade. 3 Como já advertira em
2

mais humanas que os homens. Pacificadas, voltam a seu estado Cultura das cidades, a arquitetura monumental e expressão de poder
original de sono ou morte. o preço pago pela batalha, porem, e a e "a pedra proporciona uma falsa sensação de continuidade e uma enganosa
destruição de Paris; a nova capital da França passa a ser Orleans afirmação de vida". 24
, e toda a estatuária - ate mesmo os manequins de loja - passam
Alois Riegl, em Culto Moderno dos Monumentos, datado
a ser proibidos. A arte da escultura desaparece e a sociedade
de 1903, indicara que o monumento podia atravancar com seus
a
fica condenada impossibilidade de representar seus her6is no
vesdgios - e com sua decadência - o tempo presente.25 O livro,
formato de estátuas e monumentos. O romance finaliza com toda a
concebido como prefácio a uma proposta de legislação para
humanidade rendendo-se a ser, invariavelmente, iconoclasta.
proteção de monumentos hist6ricos no império austro-hungaro e
O dtulo das reflexões deste capitulo inspira-se no livro posteriormente lido como uma reflexão sobre arte e arquitetura,
Carne e Pedra de Richard Sennett que, em diferentes ensaios apontou para a natureza mutável do monumento. Se a hist6ria
cronologicamente distribu{dos, contrapõe a perenidade da dava lugar a diferentes monumentos ao longo do tempo, o
a
arquitetura fragilidade e falibilidade do corpo humano. 21 Nos mesmo ocorria com a apreciação a eles, o que poderia resultar
contatos e interações nem sempre pacíficos entre grupos sociais e em zelo e restauro ou em abandono e destruição. Riegl entendeu
a arquitetura como mortal, não como perene. O monumento
a cidade constru1da, sobressai a complexidade das negociações pelo
intencional por ele descrito e determinado por nossas percepções
espaço urbano:
do passado, numa condnua refração do ausente na mem6ria do
A cidade tem sido um locus de poder, cujos espaços tornaram-se presente. 26
coerentes e completos à imagem do pr6prio homem. Mas tambem
foi nelas que essas imagens se estilhaçaram, no contexto de OE:_ase cem anos depois das fotografias de Jahan e dos textos
agrupamentos de pessoas diferentes - fatores de intensificação da de Cocteau e Sauvage, a artista Giselle Beiguelman promoveu,
complexidade social - e que se apresentam umas às outras como
estranhas. Todos esses aspectos da experi~ncia urbana - diferença, no Arquivo Hist6rico de São Paulo, uma exposição de pedaços
complexidade, estranheza sustentam a resist~ncia à dominação. 22 de estátuas desmontadas que jaziam guardadas no dep6sito
O mesmo impulso havia sido observado por Lewis
do a
Caninde, pertencente Secretaria Municipal de Cultura. A
Mumford que, na decada de 1960, em A Cidade na Hist6ria, 23 MUMFORD, Lewis. Tlie city in History. London: Penguin Books, 1994, p. 83.
24 Idem. A cultura das cidades. São Paulo: Itatiai~t, 1961, p. 434.
19 ARAGON, Louis. O campon~s de Paris, 1991, p. 177.
25 RIEGL, Alais. O culto moderno dos monumentos: a sua esstncia e a sua origem. São
20 Cf SAUVAGE, Marc. La finde Paris ou la revolte des stawes. Paris: Grasset, 2014.
P~mlo: Perspectiva, 2014.
21 Cf SENNETI, Richard. Came e pedra. O corpo e a cidade na civilização ocidental. 26 FORSTER, Kurt W. Monument/Memory and the mortality of Architecure
Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1997· ln: HAYS, Michael K. (org.). Oppositions Reader: Selected Essays 1973-1984. Princeton:
22 Ibidem, p. 24. Princeton Architectural Press, 1998, p. 3r.
Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e história

exposição "Mem6ria da Amnesia" (2015) convidou a considerar


as estátuas rejeitadas pela lógica urbana e revelou os condnuos
deslocamentos dos monumentos pela cidade ate a sua retirada
institucionalizada do espaço publico. Em levantamento realizado
em fins de 2015, constatou-se que 63 estátuas haviam perambulado
- as vezes, por mais de um lugar- pela capital paulista. Esse
nomadismo das estátuas, que faz com que percam escala e carga
simb6lica, podia ser interrompido com as estátuas sendo levadas
para dep6sitos. 7 Beiguelman identificou as relações entre as
2

políticas urbanas publicas e as políticas do patrimônio na gênese


dos deslocamentos e retirada de monumentos, justificados por
obras urbanas, questões orçamentarias ou argumentos de ordem
moral ou ideológica. Esses ultimas se aplicam, por exemplo, ao caso
da estátua Beijo Eterno (Figura 15), escultura em bronze de Wiliam
Zadig, fragmento de um monumento maior em homenagem a
Olavo Bilac, inaugurado na confluência das avenidas Paulista,
Consolação e Angelica em 7 de setembro de 1922 e desmontado
em 1935, por ordem do prefeito Fábio Prado. Ao retratar um
jovem casal desnudo, num beijo apaixonado entre um europeu e
(assim entendeu-se) uma indígena, o monumento recebeu críticas
moralistas, ficou anos em um depósito e, ao voltar a cidade em
1956 e ser novamente ameaçado de voltar a um depósito, acabou
sendo "sequestrado", em 1963, pelos estudantes de Direito do Figura 15: O Beijo Eterno, decada de 1960, foto. Acervo: O Estado de São Paulo.

Largo São Francisco, local em que permanece ate hoje. 28 Na exposição Mem6ria da Amnésia, outros fragmentos do
mesmo monumento a Olavo Bilac foram distribuídos pelo chão
27 Cf Guüi dos Monumentos Nômades em www.desvirtu~11.com/mda/guü1-dos­ - os grupos escultóricos O escoteiro, pátria e Via Lactea (Figura 16).
monumentos-nomades. Ainda, dentre ~is intervenções urbanas de Beiguclmann, a
instalação lvionumenco Nenhum, no Beco do Pinto, em São Paulo, inspirou-se tambem em Mais uma vez vinculados a territórios provisórios, a decisão por
fragmentos encontrados no dep6sito do Caninde. Ver: http://outrosurbanismos.fau.usp. expô-los num arquivo fez parte da reflexão sobre um contexto
br/ monumento-nenhum-e-chacina-da-luz/ oi_ 7x3a8018/.
28 O monumento a Olavo Bilac foi parcialmente financiado pelos estudantes do
em que "o monumento opera como um migrante clandestino que teima
Centro Acadêmico Onze de Agosro (Faculdade de Direito do Largo São Francisco). Outras em sobreviver, a despeito das malhas institucionais que o amputam". 2 9
esculturas foram retiradas do espaço publico por serem consideradas imorais. O Menino e
o Catavento, removido uma vez porque o garoto esta nu; O Fauno, de Victor Brecheret, Os processos de esquecimento e apagamento fazem, assim,
retir~ido de uma praça no Centro depois que ~t!gumas pessoas começaram a fazer uma parte da própria lógica do urbano. Na melancolia da exibição
especic de culto noturno diante da obra ou mesmo O Monumento a Garcia Lorca, alvo do
Comando de Caça aos Comunisrns, durante a ditadura militar, por homenagear o poeta
dos fragmentos fisicamente presentes, vibra a percepção da
espanhol. Para mais informações: BARBUY, Helois~l. As esculturas da Faculdade de Direito.
Sào Paulo: Ateli2 Editorial, 2018 e o Invendrio de obras de arte nos logradouros p1tblicos 29 BEIGUELMAN, Giselle. Da cidade interativa ds mem6rias corrompidas: arte, design e
de SP disponível cm: https://www.prefcitura.sp.gov.br/cichde/upload/Inventario_de_ patrimônio hist6rico na cultura urbana contempontnea. Tese de livre-doc~ncia. São Paulo:
Esculturas_12Gr586G85.pdf Acesso em: 22 ago. 202r. FAU-USP, 2016, p. 237.

52 53
Corpos e Pedras: esráwas, monumenralidade e hist6ria Cristina Meneguello cir fulio Bentivoglio

inadequação e da obsolescência, numa realidade de visualidades Qg_ando escreveu as últimas linhas de sua análise sobre a
perdidas. Retornadas ao depósito, dessas peças restam as estatuamania, Agulhon identiflcou os riscos da crise da escultura
fotografias da exposição efêmera que fez relembrar que elas, em retratista e da sua presença na vida nas cidades. Não havia,
algum lugar, "existem". naquele momento, a percepção das estatuas que, superadas em sua
relev~ncia e alvo das lutas decoloniais, tornar-se-iam novamente
vivas e enervadas, por fazerem lembrar e pensar em situações
candentes, como o racismo estrutural, a invisibilidade dos grupos
ind1genas nas praças latinoamericanas, a celebração da violência
dos confederados no Estados Unidos ou mesmo a ausência quase
total de mulheres retratadas em monumentos públicos.
Se os monumentos e seus signiflcados são construídos de
acordo com a realidade política, histórica e estetica de dado
momento no tempo e no espaço, as artes plásticas parecem ter
precedido a historiografla na reflexão sobre o papel das estátuas e
monumentos no espaço público. O flzeram de forma estruturada
e desafladora, na criação constante de contra-monumentos e anti-
monumentos, como se vera' a segun-.
.

Contramonumentos, contra os n10numentos


No mesmo momento em que a estátua do colonialista
britânico Cecil Rhodes era retirada do seu pedestal, na
Universidade da cidade do Cabo, África do Sul, em 9 de abril de
2015, cerca de um mês após iniciados os manifestos #RhodesMustFall
por sua remoção, a artista sul-africana Sethembile Msezane
postou-se diante do monumento, a ele contrapondo seu corpo de
mulher transformado em pássaro. (Figura 17). Como em outras
performances em que monumentalizou o próprio corpo subindo
em um pedestal, a artista ali permaneceu por quatro horas. "Estou
representando a ave do Zimbcf.bue, da qual o colonialista britânico se
apropriou" - aflrmou. A artista :flcou em sua posição por quatro
horas. Erguia os braços por dois minutos a cada ro minutos e ali
permaneceu ate os pes azularem e o corpo sofrer com a exposição
Figura 16: Fragmentos no Dep6sito do Canindé e Abertura da exposição, 2or5. Fotos de
Ana Üttoni (http://www.desvirtual.com/mda/2or6/03/09/galerias/).
ao sol. "Parecia um recomeço".3º Carne versus pedra.

30 Entrevista de MSEZANE, Sethembile. T71e Guardían, 15 de maio de 2015, (https://


www. the guard ian .com/ artandde si gn/ 20 r 5/ may / r 5/se thembile-ms ezane-ce cil-r hodes-
statue-cape-town-south-africa).

54 55
Figura 18: Tr~s aves do Zimbabue fotografadas, circa r89r.
(h ttps:/ / archivc.org/ details/ruinedcitiesofmaoojthe).

#RhodesMustFall foi identificado, em especial por jornalistas,


Figura IT Sethembile Msezane, "Chapangu-111e Day Rhodes Fell" (2015). Foto de Charlie
como a gênese do movimento atual de derrubada de estátuas. A
Shoemaker, emhttp://www.sethembile-msezane.com. suposta origem não se sustenta, mas o acontecimento acabou
A menção a ave chapangu - aguia da região - recorda as por se tornar uma especie de paradigma de protestos estudantis
esculturas em pedra sabão encontradas nas antigas ruínas do Grande pela retirada de estátuas controversas dos campi universitários.3 3
Zimbabwe no seculo XIX, retiradas de suas colunas e enviadas para O protesto relacionava-se, evidentemente, a um contexto mais
países europeus. (Figura r8). Uma dessas estátuas pertenceu a Cecil amplo de luta para transcender o legado do Apartheid dentro
Rhodes, que fez dela seu súnbolo pessoal. Apenas em r98I, as aves da universidade. A cdtica as altas mensalidades cobradas -
foram compradas de volta ou trocadas pelo governo do Zimbabwe a hashtag "as taxas devem cair", #FeesMustFall, acompanhou
por outras coleções, para que retornassem a sua terra natal3I .. o #Rhodes MustFall desde o início -; a ausência de docentes
negros no staff e a decolonização dos currículos fazem parte do
A foto da performance de Msezane seleciona o ângulo para mesmo movimento.3 4 Os protestos acabaram respingando numa
c1ue uma das asas coincida com o guindaste, como se ele fosse guiado assustada Oxford que possuia uma bolsa de estudos batizada
por ela. A critica a 16gica masculina e territorial do monumento com o nome de Rhodes e em universidades norte-americanas,
eem si um ato monumental em busca de reparação. Num debate cujas estátuas de benfeitores escravocratas foram questionadas
promovido pelo World Monuments Fund, ocorrido em outubro e retiradas. Ainda, gerou nos dias subsequentes, uma onda de
de 2020, Msezane classificou sua manifestação como "uma Jarma
vernacular de rememoração, comparável a flores e velas nos locais dos 33 Ao mesmo tempo, a odiada/odiosa cst:ltua de Ceei! Rhodes ocupa o nicho,
na hist6ria da arte pública, de um dos raros monumentos encomendados a uma
altares ~fêmeros".32 mulher escultora, que pouco ou nada produziu depois dele. Rhodes devia cair,
mas sua dcrrubad:i etambem uma escolh:t por perpetuações e nào-pcrpetuações.
Sobre a escultora: W ALGA TE, Marion, ver https://sculpture.gla.ac.uk/view/person.
e
31 A ave do Zimb~buc emblema nacional, rctrata&i cm bandeiras nacionais e php'lid~msib4_r24r69350+
escudos de armas tanto do Zimbabwe quanto da antiga Rodesia.
34 AHMED, Abdul Kayum. 771e Rise of Fallism: 11Rhodes/\lfustFaU and the Movement to
32 MSEZANE, Sethembile. VVorld /\lfomrments Fund, 2020, minuto 36. Decolonizc the Univcrsity. Tese de doutorado. Nova York. Columbia University, 2019.

57
Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e história

ataques com tinta vermelha em diferentes lugares da África do


Sul.35
Em contraste com as tendências imediatamente
iconoclastas do #RhodesMustFall, a ave chapangu de Sethembile
Msezane constitui uma tentativa de criar um não-ícone e uma
contra-imagem. "O ato de contestação cultural da chapangu é assim
voltado d rememoração e d re-imaginação",3 6 numa forma alternativa
de ativismo. Ao se reapropriar das esculturas ancestrais como
um traço cultural precioso de um África pré-colonização a ser
celebrado, a artista faz a ave ancestral retornar como corpo
humano que preside a remoção de outra estátua, colonialista.
A esse corpo efêmero de mulher, é possível associar o contra-
monumento Rumours of War de Kenneth Winley, aparição efêmera
no Times Square em Nova York, entre setembro e dezembro de
2019.
A clássica pose do cavaleiro em batalha é aqui repetida,
com uma alteração significativa: o cavaleiro é substituído por um
jovem negro, agasalho urbano, tênis, cabelo com dreadlock. Ap6s
sua aparição na Times Square, Nova York - lugar carregado de
simbologia - a obra foi levada para o Virgínia Museum of Fine
Arts, onde permanece até esse momento. A estátua equestre é a
linguagem narrativa mais comum nos monumentos confederados.
Note-se que a pose escolhida por Wiley para o jovem gLterreiro
é exatamente a da estátua confederada do general E.B. Stuart
(r907), que ficou por mais de roo anos na Monument Avenue em
Richmond, Virginia, e foi finalmente retirada em julho de 2020
(Figura 19).

,,,,,
Figura I9: Justaposição das estátuas de E.B Stuart (removida em 2020) e R.umours of War,
35 Cf Listagem cm que esses atos são classificados como "vandalismo" http://www. de Wíley (Virginia Museum ofFmc Arts).
t hc heri t agepo rt ai. co. za/ th re ad/vandali sa ti 011-s t atues-sout h-afri e a.
36 PAU\X!ELS, Matthias. Agonistic Entanglements of An and Activism: Nas palavras do artista Kehinde Wiley, a inspiração para
#RhodcsMustFall and Scthembile Msez~tne's Chapangu Performances. De arte, v. 54, n. r, Rumours of War é o engajamento violento:
2019, P· II.

59
Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e hist6ria Cristina Meneguello c!r Julio Bentivoglio

Arte e violência tem, desde sempre, um estreito elo narrativoº No seculo XXI, a arte pública tem um importante papel
Rumores de Guerra tenta utilizar a linguagem da retradstica
na ambição por superação e reparaçãoº A resposta pode estar na
equestre para aceitar e subjugar a fetichização da violência
de Estado' CJ 'expondo o belo e terrível potencial da arte no construção de novos her6is ou novos monumentos, ou na contestação
momento de esculpir a linguagem da dominação 37 do pr6prio projeto de monumentalidadeº Tambem o efêmero tem
buscado conexões significativas entre a arte urbana e as comunidades
Os rumores da guerra encorajam a ampliar as perspectivas
marginalizadas ou ignoradas; essa realidade nos indica que as
de heroísmo e de sua representação na hist6ria norte-americanaº O
comunidades estão constantemente transformando e alterando suas
mesmo terna j a havia sido explorado por Wiley na serie de quadros de
necessidades poHticas} 8 A ave chapangu de Sethembile Msezane, o
mesmo dtulo, num redimensionamento dos retratos da aristocracia e
jovem cavaleiro de Kehinde Wiley: dois jovens corpos negros, um em
da pintura hist6rica, com a substituição dos personagens por homens
carne, outro em pedraº Ambos repõem a ausência de corpos negros
negros da contemporaneidade (Figura 20)º O duplo choque de
representados na esfera e na estatuaria pública: o confronto com os
anacronismo criativo e obtido pelas roupas atuais e pela substituição
monumentos, aqui, escolhe edificar figuras humanas reconhedveis
do her6i de pele branca pelo homem negro com roupas urbanasº
e resulta da criação de novos monumentosº
Esses mesmos dois modos de ativismo tiveram lugar na
possivelmente mais comentada - ao menos nas m1dias - remoção
de monumento de 2020, a do propriedrio de escravos Edward
Colston, puxado por cordas de seu pedestal na cidade inglesa de
Bristol, rolado pelas ruas da cidade e atirado ao rio Avonº (Figura
21)º A derrubada da esdtua de Colston, na esteira dos protestos
do Black Lives Matter que se seguiu ao assassinato de George Floyd
em Minneapolis, Minnesota, ganhou relevância corno imagem
paradigmatica da derrubada contemporânea de esdtuasº
Entretanto, a esdtua de Colston ja havia sido foco de varias
petições assinadas pela sua retirada e de interferências em tinta ou
com cartazes: era um alvo conhecido pelos habitantes da cidadeº A
remoção do nome de Colston de predios públicos e particulares vinha
ocorrendo sistematicamente ja ha alguns anosº Em 2018, Thangam
Debbonaire, do Labour Party, havia discursado no parlamento
afirmando que a cidade "não deveria estar prestando homenagem a
pessoas que se beneficiaram da escravidão"º 39 Ainda, a esdtua havia sido
e
38 Outro trabalho a ser mencionado o do artista Sam Duram que acusa a sobrevivência,
em territ6rio americano, de obeliscos e colunas (monumentos comemorativos sem a
Figura 20: Rumours of WaL N apoleon Leading the Army over The Alps, 2005, 6leo e
figura humana) que celebram, pelo territ6rio, massacres perpetrados contra as populações
esmalte sobre tela (https://kehindewileycom/works/rumors-of-war/)º
nativas ao longo de 200 anosº Sua instalação, Proposal for White and Indian Dead Monument
37 Press release de 13 dezembro de 2019, cm: https://wwwºvmfamuseum/pressroom/wp- Transpositions (zoo5), consiste na relocação, dentro de museus, de 30 obeliscos reduzidos em
content/uploads/s1tesh/2019/12/KW_ROW_Installation-12-n-19-_FINALpdf Ver tambem: lmp:// escala que reiteram os incómodos advindos dessas celebraçõesº
artsºtimessqu~m~nycorg/tnnes-square-arts/projects/at-the-crossroads/mmors-ofwar/indexºaspxº 39 Bristol MP calls for Edward Colston statue to be removed, BBC News Online, rr

60
Corpos e Pedras: esráwas, monumentalidade e história Cristina lvfencguello & Julio Bentivoglio

"brindada", em 2017, com uma placa de "património desautorizado" A queda de Colston tambem faz parte de uma busca por
(unauthorised heritage), par6dia das placas oficiais que o património reconhecimento, em territ6rio inglês, das marcas do enriquecimento
inglês apensa aos monumentos nacionais, na qual se lia: "Património obtido as custas do trabalho escravo em cidades como Liverpool, por
desautorizado. Bristol, capital do comércio de escravos atlântico 1730-1745. exemplo 4'. Ap6s a queda e rolagem de Colston ate o rio, o pedestal
Aqui comemora-se 12.000.000 de escravizados dos quais 6.000.000 morreram vazio tornou-se um convite. Desde o site People's Platform por meio
cativos". 4º A derrubada da esdtua de Colston, que agora jaz deitada em do qual os cidadãos poderiam sugerir diferentes ocupações para o
pedestal vazio (http://peoplesplatform.co.uk/), ate performances
um dep6sito da cidade enquanto aguarda sua provavel musealização,
fotogdficas ao redor do pedestal vazio, muitos usos se sucederam.
representou a culminação de uma remoção que, negociada por tempo
Oito dias ap6s a retirada de Colston, a bizarra esdtua de um
demais, foi assegurada pelas mãos dos manifestantes.
homem obeso enfiado em uma lata de lixo foi colocada ao lado do
local; 35 dias mais tarde, o pedestal foi ocupado por um manequim
representando o ped6filo Jimmy Saville e, finalmente, 38 dias ap6s
a remoção, a esdtua-manifesto de Jen Reid (executada pelo artista
K~r~ <; ~n
1hos~
1d2a thJ1c~tF.r>1or
,,·,ho n1i;;, tl1e Col:lon
ix>th
01~111~ Qfri
Marc OE:_ínn) ocupou, por um dia, o pedestal de Colston (Figura 22).
A esdtua da estilista londrina fotografada durante os protestos
foi executada em resina por Marc OE:_inn e secretamente colocada
no pedestal em r5 de julho de 2020. Surge of Power (Onda de Poder)
foi retirada pela municipalidade em 24 horas tendo, porem, mais
1,766,0-17çurtjdJS
uma vez, sido eternizada por meio de fotos. Nas palavras da ativista
Reid, a urgência em subir no pedestal e fazer o gesto característico
do movimento Black Power foi irresisdvel, "totalmente espontâneo
(. .. ) como se uma descarga elétrica de poder estivesse correndo por meu
corpo".42 o mesmo escultor ja trouxera incómodo a esfera publica
quando, anos antes, havia ocupada o quarto pedestal da Trafalgar
Square, em Londres, com uma imagem da artista Alison Lapper,
sem braços e gravida de seu filho. 43

41 No Reino Unido ha um debate razoavelmente recente a respeito de marcos


monumentais da escravidão com a inauguração de memoriais públicos que visam conscientizar
sobre o tema, como a ponte Pero's em Bristol, 1999; o memorial aos Africanos Capturados
em Lancaster, 2005 ou o monumento Gilt of Cain em Londres, 2008. MOODY, Moody,
Jessica. Sites of rnernory: bodies and the cityscape. In: Tlie persistence of memory - Remembering
slavery in Liverpool, 'slaving capital of the world'. Liverpool: Liverpool University Press, 2020.
O Movimento #BLM ocasionou uma campanha para criar fundos para a construção de um
Figura 21: Manifestantes rolando a est:ltua de Edward Colston pelas ruas de Bristol (foto monumento semelhante em Liverpool, liderada pelo historiador negro Laurence Westgaph.
de Giulia Spadafora/NurPhoto) e print do twittcr do artista Bansky que sugeriu, não (https://theguideliverpool.com/ campaign-for-permanent-memori alinliverpool-for-those-
sem alguma ironia, que se retornasse a est:ltua a seu pedestal para que se celebrasse a ação killed-in-the-slave-trade/). Sob esse olhar, o Nelson Memorial em Liverpool, com corpos
da sua derrubada, perpetuando em bronze tambem as cordas e os manifestantes. negros acorrentados àfigura principal, parece ser um forte candidato àremoção.
42 Cf portfolio online de ~inn, A joint sratemcntfrom Marc Qginn and ]en Reid 15 de julho
outubro 2018. https://www.bbc.com/ncws/uk-england-bristol-45825768. de 2020 http://marcquinn.com/studio/news/a-joint-statement-from-marc-quinn-and-jen-reid.
40 Em: https://chopsybaby.com/magazine/unauthorised-heritage-bristol-slave-trade-plaque/. 43 A perturbadora imagem de Lapper ocupou a coluna vazia da Trafalgar Square
Crisrina Mmeguello & Julio Brnrivoglio

De fato, os monumentos aos confederados são aparições que


distam cronologicamente da Guerra Civil, construidos de modo
reativo em períodos de conflito racial e de demanda por direitos,
como na introdução das leis Jim Crow entre o final do seculo XIX
e inicio do XX, ou durante os anos 1950 e 1960, concomitantes
ao movimento pelos direitos civis. O historiador Eric Foner
argumentou que
como todos os monumentos, essas esdtuas dizem muito mais
sobre a epoca em que foram erigidas do que sobre a epoca hist6rica
que evocam (. .. ) [são] parte da legitimação de um regime racista e
de uma definição excludente de America'.44

Segundo o Southern Poverty Law Center, a retirada de


roo estátuas em 2020 deixa ainda ilesos mais de 700 monumentos
questionaveis. A se considerar tambem as placas comemorativas,
bandeiras, nomes de praças e parques e outras menções aos
confederados e à guerra da Secessão, o território norte-americano
segue marcado por mais de dois mil símbolos, que podem ser palco
para novos embates entre corpos e estátuas, reinstaurando a disputa
pelo espaço pt'.tblico por parte de grupos organizados. 45 Em uma
entrevista à revista online Hyperallergic, a Monument Remova! füigade
(Brigada pela Remoção de Monumentos) descreveu sua própria ação
Figura 22: A estátua Surge of Power traz Jen Reid no pedestal de Colston. In: http:// como "um gesto contramonumental que traz danos simbólicos aos valores
marcquinn.com/ studio /news/ a-joint-statement-from-marc-quinn-and-j en-reid.
que a estátua representa: genocídio, desapropriação, expulsão, escravização
Se no Reino Unido há, ainda, uma diflcil reconstituição e terror promovido pelo estado." Na mesma linha de atuação, o Say
dos espaços que remetem à escravidão, nosw Estados Unidos a Something (Diga algo, https://projectsaysomething.org/) dedica-
discussão sobre a remoção e/ou derrubada de monumentos vem se ao combate à injustiça racial, o que inclui as manifestações do
sendo travada com intensidade há pelo menos duas decadas. Esse racismo no espaço pt'.tblico.
processo intensificou-se com o tiroteio na igreja em Charleston em
A colonização das Americas entendida como violência e
2015 (4 estátuas removidas); após o atropelamento e morte de uma
destruição das populações nativas e outra faceta desses movimentos.
ativista em Charlottesvi1le em 2017 (36 estátuas removidas); e com
Em 2016, Decolonize this place (Descolonize esse lugar, https://
os acontecimentos de 2020, com mais de roo estátuas removidas,
conforme observado na introdução a esse livro. 44 FONER, Eric Confederate sratues and 'our' History. 771e New Yor Times. 20/8/2oq
Ver: https://www.nytimes.com/campaignid=7UXFY&ds_c. Acesso em: 20 abr. 202r.
(utilizada para instalações ardsticas temporárias) entre 2005 e 2007. A visibilidade trazida 45 Para detalhes sobre o relat6rio "Whose Heritage? Public Symbols of the
pela estátua coincidiu, na Inglaterra, com a luta por direitos das pessoas com deficiência, Confederacy" (Património de quem - s1mbolos publicas dos confederados), cf https://
reunindo as referências a Vênus de Milo aos tabus em relação ao corpo nu da mulher, ao www.splcenter.org/20190201/whose-heritage-public-symbols-confederacy. O rdat6rio foi
corpo da pessoa com deficiência e ao corpo da mulher transformado pela gravidez. Cf elaborado, no inicio de 2019, pelo SPLC - organização de advocacia legal sem fins lucrativos
http://marcquinn.com/ artworks/ single/ alison-lapper-pregnan t. dos Estados Unidos, especializada em direitos civis e lidgios de interesse publico.
Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e história

decolonizethisplace.org/) havia organizado um tour "anti-Colombo"


ao Museu de Historia Natural em Nova York, com dez paradas
diante de vitrines e objetos do museu que enfatizavam a historia da
supremacia branca e do colonialismo. O passeio fina1izava do lado
externo do museu, diante da controversa estátua de Roosevelt, a
cavalo, ladeado por um indígena e por um homem negro. Em junho
de 2020, O Museu anunciou a retirada da estátua. O mesmo tipo
de manifestação esteve presente em países latino-americanos como
Venezuela, Colômbia e Chile, com ataques a estátuas de Colombo
e outros colonizadores. Meses antes do assassinato de Floyd, no
Chile, mais de 300 estátuas haviam sido pichadas e alteradas,
transformadas em suportes para a expressão de insatisfação,
mudando sua percepção e visualidade. (Figura 23)
A esse respeito, o historiador da arte Nicholas Mirzoeff
lançou a palavra de ordem "Todos os monumentos devem cair"
(#Allmonumentsmustfall), criando uma plataforma em constante
atualização com textos e manifestos sobre as remoções (https:// Figura 23: Detalhe do deus Mercúrio na Fonte Alemã de Santiago
(El País, 26 de janeiro de 2020).
allmonumentsmustfall.com/) e acompanhando cada nova remoção
ou "ataque" a monumentos. O ativismo constante de grupos Nessas interações, os banhos de tinta contra as esculturas são
organizados, alguns dos quais acima mencionados, indicam que comuns: as estátuas sangram. Como pontua o manifesto da Brigada
a derrubada de uma estátua, quando rompe as barreiras seletivas pela Remoção dos Monumentos, em "Prelúdio pai-a a Remoção de
da midía e torna-se evento, já vinha ancorada num modus operandi um Monumento":
continuo, com base no trabalho de conscientização e ativismo. Agora a esdtua esd sangrando. N6s não a fizemos sangrar. Ela
É fundamental compreender a remoção de estátuas como um e sangrenta por sua pr6pria fundação. Esse não e um ato de
vandalismo. É um trabalho de arte pública e um ato de critica
processo e não como uma irrupção irracional, para evitar os riscos de arte aplicada. Não temos a intenção de danificar uma simples
de ceder a uma narrativa de explosão desordenada aos moldes estátua. O dano real está no patriarcado, na supremacia branca,
da psicologia das multidões oitocentista, que desvaloriza as e no colonialismo personificado na estátua. São essas formas de
opressão que devemos danificar de novo e de novo, ate que elas
reivindicações e reflexões de grupos organizados. sejam varridas da existência.47
A memoria cultural e um processo continuo de rememoração e
Alguns anos antes, em 2013, quando de uma das muitas
esquecimento em que indivíduos ou grupos continuam a reconfiguraT
as suas relações com o passado e assim se reposicionam em relação a
manifestações que finalizam seu percurso no Monumento as
Bandeiras de Victor BTecheret, em São Paulo, tambem a tinta
lugares de memorias estabelecidos ou emergentes. Esse engajamento vermelha arremessada contra a pedra emulou o sangue. Tratava-se
ativo com o passado "é do reino da performance e não da reprodução". 46 de uma manifestação contra a Proposta de Emenda Constitucional
46 ERLL, A.; RIGNEY, A Introduction. Cultural memory and its dynamics. Jn: 215, que retirava a autonomia do Governo Federal para demarcar
BASU, L.; BIJL, P.; ERLL, A; RIGNEY, A (org.). Mediation, remediation, and the dynamics
of cultural memory. Berlin: \Y,f alter de Gruyter, 2019, p. r-r4. 47 Cf SAUVAGE, Marc. La finde Paris ou la revolte des statues. Paris: Grasset, 2014.

66
Corpos e Pedras: escáwas, monumentalidade e hist61ia

terras ind{genas e quilombolas, transferindo esse poder para o


Congresso Nacional. Em carta, Marcos Tupã, coordenador da
Comissão Guarani Yvyrupá, respondeu as
cdticas da imprensa
sobre a intervenção na escultura:
Para n6s, povos indígenas, a pintura não e urna agressão ao corpo,
mas urna forma de transforma-lo. N6s, da Comissão Guarani
Yvyrupa, organização poHtica autónoma que articula o povo guarani
no sul e sudeste do país, realizamos no ultimo dia 02 de outubro,
na Av. Paulista, a maior manifestação indígena que j{t ocorreu em
São Paulo desde a Confederação dos Tamoios. Mais de quatro mil
pessoas ocuparam a Av. Paulista, sendo cerca de quinhentas delas
dos nossos parentes, outros duzentos de comunidades quilornbolas
e mais de três mil apoiadores não-indígenas, que viram a força e a
beleza do nosso movimento. Muitos meios de comunicação, porem,
preferiram noticiar nossa manifestação corno se tivesse sido uma
depredação de algo que os brancos consideram ser uma obra de
arte e um património publico. Saindo da Av. Paulista, marchamos
em direção a essa estatua de pedra, chamada de Monumento as
Bandeiras, que homenageia aqueles que nos massacraram no passado.
La subimos com nossas faixas, e hasteamos um pano vermelho que
representa o sangue dos nossos antepassados, que foi derramado
pelos bandeirantes, dos quais os brancos parecem ter tanto orgulho.
Alguns apoiadores não-indígenas entenderam a força do nosso ato
simb6lico, e pintaram com tinta vermelha o monumento. Apesar da
critica de alguns, as imagens publicadas nos jornais falam por si s6:
com esse gesto, eles nos ajudaram a transformar o corpo dessa obra
ao menos por um dia. Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de
ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram
a
nosso povo e transformou-se em um monumento nossa resistência.
Ocupado por nossos guerreiros xondaro, por nossas mulheres e
crianças, esse novo monumento tornou viva a bonita e sofrida
hist6ria de nosso povo, dando um grito a todos que queiram ouvir:
que cesse de uma vez por todas o derramamento de sangue indígena
no país! Foi apenas nesse momento que esta esdtua tornou-se um
verdadeiro património publico, pois deixou de servir apenas ao
simbolismo colonizador das elites para dar voz a n6s indígenas, que
somos a parcela originaria da sociedade brasileira. 48

O corpo ataca as estátuas, as estátuas sangram. Recupera-se,


pelos gestos iconoclastas ou ardsticos, a dimensão de contestação da
arte pública. O monumento amplia-se para alem de suas qualidades
Figura 24: Do-Ho Sub. Piiblic Figures 1998 (Seoul, Cor~ia do Sul) (https://
intrínsecas porque não pode ser separado nem de sua vida pública,
aprojectondohosuh.wordpress.com/portfolio/).
nem de sua vida no espaço público.
O que os exemplos dos pedestais vazios e ocupados de
48 Comissão Guarani Yvyrup~t. Marcos dos Santos Tupã. Monumento aresistência do
novas maneiras nos trazem e a substituição de discursos possiveis,
povo guarani, 2013- Disponivel em: http://www.yvyrupa.org.br/monumento-a-resistencia-
do-povo-guarani-artigo-de-marcos-dos-santos-tupa/. Acesso em: 2 mai. 2021. contestando quem ou o que está monumentalizado. Na remoção do

68
Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e hist6ria Cristina Me11egt1ello &· Julio Bentivoglio

retratado, o pedestal é substituído - efêmera ou permanentemente - - essas expressões ardsticas podem ter a potência para contestar
e o vestÍgio do passado é confrontado, no mesmo espaço público que a história como a "cortejo triunfal de vencedores que desdenham dos
ocupava, por outra narrativa. Esta é uma barreira continuamente derrotados", 4 ~ arrancando da tradição o elemento de conformismo
questionada pela arte contemporânea, que se dissocia da luta que possibilita vislumbrar outros futuros possíveis.
imediata por representatividade e visa a abolição de toda e qualquer
figuração ou monumentalização. O monumento e o historiador
Nesse sentido, destaca-se a obra Public Figures, do A narrativa dominante dos monumentos comemorativos
artista coreano Do-Ho Suh (Figura 24). É um grande pedestal, no espaço publico, como se viu, começa a se fragmentar no pós-
continuamente vazio. Apenas quando o espectador se aproxima, Segunda Guerra, ainda que ressurja em situações de regimes
consegue divisar que não há heróis no pedestal porque os ditatoriais na Europa do Leste, no Oriente Médio e na América
protagonistas reais estão em sua base: são os minusculos homens e Latina, quando a fixidez das estátuas comemorativas denotou
mulheres que o sustentam. O anti-monumento, simultaneamente, a obtenção do consenso mediante violência e o desejo de
defende que não há heróis sem que multidões de pessoas comuns perpetuação na esfera pública. Como observou Daniel Fabre,5º
a
o sustentem; e convida inversão do olhar, celebrando o grupo quando defendeu a necessidade de se fazer uma etnologia dos
da base como o tema real da escultura. Ainda, Suh concebeu o monumentos, estes são uma das maneiras pelas quais nossas
monumento para que se desloque por diferentes lugares (por sociedades buscam "domesticar a história', atribuindo-lhes a
exemplo, a mesma peça já esteve na Bienal de Veneza e em função de concretizá-la e representá-la. Entretanto, também
diferentes praças nos Estados Unidos, onde o artista se radicou). os contra-monumentos, não-monumentos e anti-monumentos
Desafia-se a própria ideia da imobilidade da estátua. disputam as narrativas da celebração e da memória e, em
Os contra-monumentos, não-monumentos e anti- diferentes ocasiões, atuam como unificadores de prindpios,
monumentos desafiam as convenções do monumental, até mesmo na busca por um sentido comum e por valores que se almejam
quando memorializam o que se deseja esquecer, reinjetando universais. A explosão de museus memoriais5' e de monumentos
no espaço publico os espaços de contestação. São uma forma relembrando o holocausto e variados genoddios, em especial a
de lidar, pelo viés das artes, com a violência de Estado, com os partir dos anos 1980, é indicativa dessa renegociação de ideais
genoddios com vistas ao apagamento de povos e culturas, com a compartilhados, pois os monumentos "propagam a ilusão de uma
demarcação, no território, dos eventos traumáticos. Lidam com o mem6ria comum"Y
que não podem ser acomodado numa falsa continuidade histórica
e exigem ser notados no espaço publico, ainda que numa relação
de efemeridade ou desaparecimento. Com uma simplicidade 49 BENJAMIN, Walter. Teses sobre a hist6ria. ln: Obras escolhidas v. r. Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 225.
audaciosa, provocam sem apaziguar, contestam a fixidez,
50 _PABRE, Daniel (org.). Domestiquer l'Hístoire. Ethnologie des monuments historiques.
demandam a interacão , dos transeuntes. Não são irrelevantes. Paris: Editions de la Maison des sciences de l'homme, Ministere de la Culture, 2000.
Se, como na fórmula sensível de Benjamin, a transmissão da 51 SODARO, Amy. Museus memoriais: a emergência de um novo modelo de museu".
PerCursos, v. 20, n. 44, p. 207 - 231, 2020. Tradução de Cristina Meneguello. Dispon1vel em:
tradição, na forma de bens culturais, pode trazer em seu bojo os https://www.periodicos.udesc.br/indcx.php/percursos/article/view/1984724620442019207.
vencedores e as dores e padecimentos dos vencidos - pois nem a Acesso em: 4 jun. 202r.

cultura nem o processo de sua transmissão são isentos de barbárie 52 YOUNG, Jrn1es E. 1he Counter-monument: memory against itself in Germ:my
today. Criticai InquiJJ1, v. r8, n. 2, 1992, p. 25.
Cristina 1Vfeneguello & Julio Bentivoglio

O Monumento contra o Fascismo (Figura 25) marcou, na decada


de 1980, novos padmetros para que essas manifestações no espaço
publico fossem pensadas a partir de sua capacidade de gerar reflexão
e contestação. O surgimento de grupos neonazistas na Alemanha
levou a que fosse lançado um concurso, em 1979, para a elaboração
de um memorial contra o fascismo; a proposta concretizou-se no
monumento proposto pelo casal Gerz, em 1986. Instalada em local
quase banal - o topo de uma passagem de pedestres, em meio a
comercios de rua e passagem de carros - a coluna de 12 metros
de aço revestido de chumbo era um convite a que os passantes
marcassem, na superHcie, seus protestos contra o fascismo, a partir
de cinzeis que pendiam do pr6prio monumento. ~ndo as faces
do monumento ficavam tomadas de escritos e desenhos, a coluna
era "afundada" no chão, guardando sob a superfkie o que havia sido
anotado e liberando novas quatro faces para escritas e interações.
Como observa Seligmann, o obelisco tornava-se um monumento
cuja materia era aço, chumbo, palavra e tempo.5 3 Em 1993, os ultimos
dois metros da coluna foram enterrados e o anti-monumento
desapareceu do olhar, existindo apenas como coluna enterrada; as
assinaturas, os slogans anti-facistas ("Nazi Raus") e ate mesmo os
tiros que a obra recebeu, todos foram sepultados.
A ideia do monumento vandalizado e, aqui, renegociada:
a obra podia ser alterada, tocada, rabiscada. Os Gerz ficaram
especialmente fascinados pelo fato de que não se pode apagar
completamente as inscrições feitas em chumbo, mas apenas
rasud-las ou escrever sobre elas. Os artistas, ao encenarem o
desaparecimento, não estavam apenas reafirmando a arte como
algo alem de toda ilusão, mas tornando-a eminentemente polltica.
No local onde está a coluna, lê-se:
Convidamos os cidadãos de Hamburgo e os visitantes da cidade a
adicionar seus nomes aos nossos. Ao fazê-lo, nos comprometemos
a permanecer vigilantes. Conforme mais e mais nomes cobrirem
essa coluna de chumbo de I2 metros, ela sera aos poucos baixada
ao solo. Um dia ela desaparecera completamente, e o local do
monumento de Hamburgo contra o fascismo estará vazio. Ao
Figura 25: O Monumento contra o Fascismo em três momentos diversos, o terceiro ja sob
a terra e pessoas em interação com a instalação permanente. Fotos de Esther Gerz, in: 53 Cf SELIGMANN-SILVA, Mareio. Antimonumentos: trabalho de mem6ria e de
https://www .shalcv-gerz.nct/portfolio/monument-against-fascism/. resistência. Disponivel em: https://doi.org/ro.r590/oro3-655oorr. Acesso em: 2 ago. 202r.

72 73
Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e hist6ria Ois tina Meneguello 0· fulio Bentivoglio

final, apenas n6s mesmos podemos nos erguer contra a injustiça. os monumentos foram sempre consensuais, mesmo no momento
Harburg, 1986.54
que foram erigidos. A escolha por tipologias (estátua equestre,
~ais as relações possíveis entre os usos fascinantes dos figura sentada em cadeira, grupos escult6ricos em narrativas
pedestais vazios e os monumentos ocultos a visão dos transeuntes? paralelas ao redor do pedestal) são todas decisões informadas. Os
Nos pedestais ocupados de modo efêmero (a artista Sethembile confrontos com as estátuas obrigam o historiador a não esquecer
Msezane, a ativista J en Reid) ou com desejo de perpetuação (a esd.tua os processos hist6ricos que levaram os monumentos a existirem.
do jovem cavaleiro negro, a estátua de Jen Reid), a invisibilidade Tais narrativas, eivadas de intenções, contaram, a seu tempo, com o
é tornada visível. Novos/outros her6is emergem e questionam trabalho diligente de outros historiadores -positivistas, talvez, se de
os lugares públicos. Nos anti-monumentos, fragmentarias ou fato formos acreditar que estamos em uma relação "evolutiva" em
soterrados, ha uma conciliação entre a indizibilidade do horror relação aos que nos antecederam. Esses historiadores reuniram dados
ocorrido no passado e a necessidade da mem6ria e da rememoração. e produziram as documentações para os concursos de monumentos
públicos; a faina dos membros dos Institutos Hist6ricos, das
O vandalismo ou iconoclasmo estudados por Dario Gamboni55
personalidades letradas e dos memorialistas, em diferentes países,
explicam apenas parcialmente a potencialidade dos monumentos
impregnou-se na escolha das representações assumidas por estátuas
que, fisicamente acessíveis o tempo todo na cidade e definidores do
que, simplesmente, não "brotaram", tal qual erva daninha, em
seu entorno, são contestados. Não parece sensato considerar que
seus pedestais. Inumer:lveis processos de negociação levaram cada
todos os atos de ataque a estátuas, ao menos a partir da Revolução
estátua a estar ao lugar que ocupa: da escolha do tema a escolha
Francesa, sejam movidos pelo mesmo e constante gesto iconoclasta.
do escultor, não raro por meio de concurso; as doações, heranças
É necessario distinguir entre os gestos anticoloniais a partir de
deixadas em testamento pelos que queriam ser homenageados ou
#RhodesMustFall e outros ataques a símbolos do colonialismo,
as subscrições públicas para custear as construções; as custosas
como #LeopoldMustFall;5 6 distinguir entre a "de-comunistização"
disputas judiciais entre as municipabdades e os escultores durante
dos países do Leste Europeu, com a retirada ou degredo de estátuas
ou ap6s a construção da obra; a escolha de certas poses e alegorias
do regime57 numa onda massiva de urban fallism e a remoção das
(e o veto a outras), ainda na fase das maquetes e, finalmente,
estátuas de ditadores no Oriente Médio promovidas pelas tropas
escolha da narrativa que o monumento deve perpetuar. Repensar
norte-americanas; ainda, distinguir gestos da destruição, pelo ISIS,
os monumentos como um gesto de escolha e de poder e como desejo
'
d as estatuas na S'1na
. ou o ataque a estatuas
' cl'ass1cas
. em museus d e
de perpetuação de eventos e her6is implica também realizar uma
Berlim, em 2020, por grupos de ultra-direita. Ohomogeneização do
analise das formas dominantes da narrativa hist6rica.
ataque as estátuas como um mesmo movimento, igual a si mesmo,
prende-se ao gesto e perde a hist6ria. Em seu último livro publicado ainda em vida, A Memória, a
História, o Esquecimento, Paul Ricoeur5 8 contrapõe ao que considera as
Não nos deveriam faltar protocolos intelectuais para lidar
dimensões positivas do esquecimento os seus efeitos potencialmente
com a derrubada de esd.tuas nem deveria ser possível acreditar que
danosos, como o gesto forçado de apagamento da lembrança, que
ele denomina de "mem6ria impedida". É esse impedimento que
54 GERZ, Jochen. Laplace du monument invisible. Art Press, n. 179• abr. 1993, p. n.
fundamenta as poHticas que confundem anistia com amnésia e a
55 Cf GAMBONI, Dario. The Destructíon of Art - Iconoclasm and Vandalism since thc
French Revolution. Londres: Reaktion Books, 2007. associam ao perdão. Como observou Clovis Gruner, "O equívoco não
56 Movimento pela remoção da esd.tua de Leopoldo II no centro de Bruxelas, Belgica.
57 Cf BORI-l.ES, Kristna. A bricfMoment ofMonumcnt. Nuart fournal, v. 3, 202r. 58 Cf RICOEUR, Paul. A mem6ria, a hist6ria, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

74 75
Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e história Cristina Meneguello & fulio Bentivoglio

é apenas semdntico - anistia não significa necessariamente perdão nem, e ditadura milita. Os encontros entre esdtuas e caveiras foram
tampouco, esquecimento -, mas polfrico". 59 A interdição que impede, fotografados e postados em rede social; o grupo formado de modo
por exemplo, a discussão sobre a Lei de Anistia e as poHticas de online durante a pandemia, com cerca de mo pessoas, reverberou
esquecimento dela derivadas funcionam como um obsdculo à a força da intervenção por meio da fotografia, simultaneamente a
efetivação de uma cultura democdtica sensível. testemunha e a evidência da intervenção em si. 60
Vilem Flusser indicou que, no mundo contempod.neo, tudo
visa eternizar-se em imagem tecnica. Desse novo triunfo das imagens
resulta uma paradoxal relação com o tempo e a mem6ria, em que
o desejo de eternização se da pelo registro da imagem gravada,
fotografada, filmada. No limite, a imagem passa a ser a meta do ato
e a hist6ria passa a ser mem6ria imagetica.
Tudo, atualmente, tende assim para as imagens técnicas: elas são
a mem6ria eterna de todo o empenho. ~'llquer ato cientifico,
ardstico e poHtico visa eternizar-se em imagem técnica, visa ser
fotografado, filmado, videogravado. Como a imagem técnica é
meta de qualquer ato, este deixa de ser hist6rico, passando a ser
ritual de magia. Um gesto eternamente reconstitu{vel segundo
o programa. Com efeito, o universo das imagens técnicas vai-
se estabelecendo como a plenitude dos tempos. E, apenas se
considerada sob tal ~ngulo apocaHptico, é que a fotografia adquire
os seus devidos contornos. 6'

Figura 26: Bartolomeu Bueno da Silva, obra de Luigi Brizzolara inaugurada em 1924 e Desse modo, os atos de protesto tambem passam a se guiar
transferida para o local que ocupa hoje - ParL1ue Trianon- em 1935, com a intervenção pelos efeitos de visualidade que terão, uma vez compartilhados
realizada pelo Grupo de Ação. (Foto Junae Andreazza, Folha Cotidiano, 24/rn/2020).
nas redes sociais, na pe~formance e na mediação. 62 O protesto ganha
Não surpreende que um passado pontuado pela ausência de presença nos locais onde não esd ocorrendo.
politicas de reparação implique em interações, violentas oú não,
As esdtuas são, nesses atos, tratadas como corpos
entre corpos e monumentos, entre carne e pedra. Em outubro de
merecedores de castigo: arrastadas, chutadas, enforcadas, pintadas
2020, seguindo a onda de protestos focados nas esdtuas, um pequeno
com tinta vermelha, decapitadas, encapuzadas com sacos pretos 63
grupo de ativismo - o Grupo de Ação - colocou caveiras, recuperadas
ou derrubadas de seus pedestais. No ato de ataque ou "derrubação"
de um material de desfile de Carnaval, em diferentes lugares da
60 Em seu instagram, o pequeno coletivo Grupo de Ação se classifica como "aliança
cidade de São Paulo. Ora nas mãos de Bartolomeu Bueno da Silva suprapartidária e anticapitalista de pessoas movidas por uma força sem nome próprio, feita no
(o bandeirante Anhanguera) no Parque Trianon (Figura 26), ora aos acaso da necessidade". (www.instagram.com/ grupo de acao_/).
pes de Pedro Álvares Cabral no Parque do Ibirapuera, ora diante da 61 SELIGMANN-SILVA, Mareio. Fotografia ea destruição da hist6ria: Flusser e a vit6ria
da mem6ria sobre a hist6ria na era das imagens tecnicas. Pandaemonium, n. 21, v. 33, abr. 2m8.
esdtua de Borba Gato na bifurcação das avenidas Santo Amaro e
62 Ibidem. Ver tambcm: AULICH, Jim. Reflections on protest and political
Adolfo Pinheiro e mesmo junto ao Comando Militar do Exercito em Transformation since 1789. ln: MCGARRY, Aidan, ERI--lART, Itir et ai. Tlie Aesthetics of
Global Protest: visual culrure and communication Amsterdam: Universiry Press, 2020, p. 273.
São Paulo, as caveiras alinhavaram genoddioindígena, escravidão
63 Referência ao grupo 3N6s3 (Hudinilson Jr, Mario Ramiro e Rafael França) que, no
59 Cf GRUNER, Clovis. Celebrar o golpe representa uma derrota para a democracia. El final de decada de 1970, promoveu o ensacamento de est:ltuas na cidade de São Paulo, em
Pa{s, 27 / 05/2m9.https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/ 26/opinion/1553638697_638185.html. dialogo com o que ocorria nos porões do regime ditatorial.

77
Corpos e Pedras: estátuas, monumentalidade e hist6ria Cristina Meneguello ~ Julio Bentivoglio

(fallism), os monumentos publicas fundem-se, ao menos na imagem Estados Unidos, por exemplo. O patrimônio mostra-se constituído
registrada, com os corpos que as alteram. remoção das estátuas por narrativas desequilibradas sobre o passado e, por sua vez, os
pode ser considerada uma forma de luta contra o que e intoledvel monumentos tornam-se um reposit6rio coletivo de mem6rias
- o racismo, a violência, a segregação - remetendo às necessárias dispares. Em segundo lugar, a experiência mais perene de ataque
negociações sobre o que está sendo celebrado no espaço publico. A a monumentos no Brasil tem, de modo geral, tido as comunidades
disputa pela interpretação hist6rica e a disputa pela mem6ria não são oprimidas como vítimas. As representações em espaço público
exclusivas do historiador; alias, ele não tem nenhuma precedência constantemente vandalizadas e atacadas são as da tradição afro-
moral em relação a seus contempor:lneos na compreensão das brasileira: o Zumbi vandalizado por pichações no Rio de Janeiro,
insurgências contra a materialidade da hist6ria por meio das estátuas a estátua de lenunja decapitada em João Pessoa, a outra estátua de
no espaço publico. Apenas a sociedade organizada pode indicar os lemanj!1 vandalizada na Praia do Meio em Natal. O Relat6rio sobre
destinos dos monumentos. Ao mesmo tempo, há armadilhas de a Intolerância e Violência Religiosa no Brasil da Secretaria Especial de
linearidade nestes eventos virtualizados. Diante o brutal assassinato Direitos Humanos, publicado em 2016, mostra os desdobramentos
de Floyd, não cabe entregar-se à representação da hist6ria como da violência religiosa contra as religiões de matriz não cristã quando
um continuo genoddio, inevitável, repetindo-se a si mesmo sem materializadas no espaço público. 64 Por outro lado, as lutas contra
cessar; nem equiparar, como se fossem as mesmas, as experiências a violência policial ou pelas cotas de acesso ao ensino superior,
da escravização de seres humanos às lutas contempodneas contra entre outras, parecem muito mais relevantes para os movimentos
as heranças por ela deixadas, como o racismo estrutural. Se, por organizados, nesse momento. 65
um lado, estes gestos ampliam a compreensão hist6rica do que
Aos historiadores não cabe a defesa das estátuas, mas a defesa
conformou nossas sociedades a serem da forma como são, ha riscos
da vida, dimensionada pela compreensão do papel desses vesdgios
em fazer do passado e do presente um mesmo tecido homogêneo, o
na reinterpretação do passado permitida a partir do presente. Os
que pode, de forma traiçoeira, reiterar o lugar dos vencedores. Ainda,
monumentos que propõem novos ocupantes em seus pedestais
ha o risco da individuação de personagens na perpetuação de vilões
evidenciam, a seu modo, que a linguagem monumental não está
- Colombo passa a ser o anti-her6i responsavel pela colonização
necessariamente superada. A dimensão do ensino de hist6ria
e não a celebração do projeto colonizador europeu. A estátua e a
tem aqui um papel fundamental; os monumentos interferidos,
manifestação mais evidente de um projeto dissipado em incontaveis
interpretados ou confrontados por contra e anti-monumentos
expressões arquitetônicas e urbanas, menos 6bvias ao olhar.
podem ser uma arma dos professores de hist6ria em dimensionar
Por que razões os monumentos no Brasil têm, ate esse momento e visualizar os processos que condenam. Se a invisibilidade das
- salvo acontecimentos que possam vir a ocorrer - permanecido estátuas nas cidades desaparece quando as manifestações políticas
em seus pedestais? Em primeiro lugar, ha que se considerar a periodicamente as reativam, elas podem, uma vez no espaço publico
fragilidade das poHticas patrimoniais no Brasil em sua relação (e não transformadas em documentos museificados), trazer uma serie
com as comunidades. Os debates sobre a preservação, ainda que de incômodos e desestruturar certezas. Os passados intempestivos,
nos últimos anos mais voltados a uma consciência social por meio
de ações em n1vel do munidpío, estado ou federação, trazem uma 64 O relat6rio pode ser consultado cm https:/ /dircito.mppr.mp.br/arquivos/Filc/
RelatoriolmoleranciaViolenciaReligiosaBrasil.pdf Acesso em 20 ago. 202r.
leitura de patrimônio muito europeizada. Persiste a tutela por parte
65 PEREIRA, Amilcar Araujo. O mundo negro. A constituição do movimento negro
dos 6rgãos públicos e não ha a ideia de autogestão, muito forte nos contemporaneo no Brasil (r975-r995). Tese (Doutorado em Hist6ria). Universidade Federal
Fluminense, 2oro.

79
Corpos e Pedras: estáwas, monumentalidade e história Ciistina Meneguello & fulio Bentivoglio

inatuais, podem irromper pela porta de nosso presente, de modos Uma obra escult6rica que ultrapassou essa dicotomia, embora
anacrônicos ou não, na complexificação do pr6prio conceito de pouco celebrada pelos cânones, aponta para o esquecimento
monumento, ultrapassando a dicotomia erigir versus derrubar. criativo, oposto amem6ria impedida. Trata-se do destino dado a
estátua do ditador paraguaio Alfredo Stroessner, que ocupava um
nicho no Monumento a La Paz Victoriosa, erigido num dos poucos
pontos altos da cidade capital, Assunção, e inaugurado no ano de
a
1980. Concebido semelhança do memorial franquista do Valle de
los Caidos em Madri, Espanha e de autoria do mesmo escultor, Juan
de Ávalos y Taborda, a ideia inicial era usar o local como tumba do
ditador Stroessner, que, como se sabe, morreu sem responder por
seus crimes em Brasília, em 2006. A estátua de Stroessner ocupava
um nicho ao lado das estátuas de Bernardino Caballero, Francisco
Solano L6pez, Carlos Antonio L6pez e Gaspar Rodríguez de
Francia, sugerindo uma narrativa de continuidade entre os "her6is
nacionais" e o ardfice da mais longa ditadura entre os paises do
cone Sul, com o resultado de 425 desaparecidos e mais de 20 mil
presos e torturados, alem de mais de 20 mil exilados. 66

Figura 28: Monumento na Praça dos Desaparecidos, por Carlos Colombino. Fotografias
de Juan Carlos Meza, Fotociclo, Assunção.

Embora o Paraguai tenha aprovado uma lei, em 20I6, pela


retirada de placas e outras menções comemorativas relativas a
Stroessner, a estátua monumental provou-se insuportável já em 7
Figura 2T Esdtua de Stroessner momentos antes de sua retirada em l991(revista
Cor6nica Ndai katui pe hasa ko'apc, fevereiro 2017) e o monte Lambar~ com o 66 Segundo a Comissão de Verdade, Justiça e Reparação do Paraguai. Disponivel
Monumento a la Paz Victoriosa. https://www.abc.com.py/edicion-impresa/suplementos/ em: https://wv.'W.sitesofconscience.org/pt/membership/ direccion-de-verdad-justicia-y-
ab e-revis ta/ e]-cerro-si empre-e l-cerro-61488 l .h ttnl. reparacion-paraguai/. Acesso em: 20 ago. 202i.

80
Corpos e Pedras: estátuas, mo11w11entalidade e hist6ria

de outubro de 1991, ou seja, apenas dois anos apos o fim da ditadura


militar no Paraguai (Figura 27). Naquela data, o então prefeito de
"O e'
Assunção, Carlos Filizzola, ordenou que a esdtua fosse extirpada
do monumento e seus restos guardados em um deposito. Alguns
anos mais tarde, o artista Carlos Colombino decidiu utilizar Os memoriais confederados nos Estados Unidos
A
aqueles restos numa releitura, criando a escultura que atualmente contemporaneos
se encontra, também em Assunção, na Praça dos Desaparecidos, ao
lado do PaUcio do Governo (Figura 28).
No conjunto desordenado de mãos e face, que não raro são
interpretadosporpassantesdistra1doscomoumdesaparecidodesfeito
em pedaços, o torturador se transmuta em torturado. A reutilização
criativa do passado, que expressa e evidencia as suas sobrevivências
Arthur Lima de Avila
no presente, equilibra os dois tempos num esquecimento criativo e
convida a superação sem acomodação. Embora contido pelas pedras
pesadas e pelos tirantes que as mantém em posição, o passado A poeira nem havia baixado em Appomattox, em abril de
insiste em buscar se desvencilhar de sua contenção, constantemente 1865, quando a mitificação de Robert E. Lee e seus confederados
ameaçando o presente. Na relação criativa com os monumentos, a teve início. Em sua carta de rendição, o general lamentava a
memoria pode gerar vida e, o esquecimento, gerar historia. No ato "esmagadora" diferença de recursos e números entre Norte e Sul,
de desmemoria - ou des-rememoração -, ocorre a desconstrução que apesar da dedicação e devoção de seus soldados a Confederação
contradiz a intencionalidade que erigiu o monumento. A esdtua (galantes até o fim), e reafirmava, perante Deus e seus compatriotas,
morre e renasce, para contestar a si mesma. a justiça de sua causa. Até mesmo na rendição final, depois de
dois desastrosos anos nos campos de batalha, os exércitos de
Lee mantinham a sua caractedstíca altivez. Tão logo as armas
foram depostas, o breve documento circulou entre a população
sulista como uma prova de que seus homens eram moralmente
superiores aos invasores nortistas; enquanto esses assentavam
sua proeminência na superioridade numérica, aqueles eram
verdadeiros artistas da guerra, defensores dos maiores valores
militares e herdeiros de uma gloriosa tradição de combate agora
destruida pelo poder da União - os vinte e sete mil que entregaram
suas espadas aos homens de Ulysses Grant eram a representação
viva desse espírito. O adeus de Lee as suas tropas ressoava, assim,
além daquele instante para toda a eternidade, estabelecendo um
modelo a ser seguido pelo século dos séculos. A Confederação
estava morta; vida longa a Confederação!

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