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Monumentos, Destruição
Monumentos, Destruição
O incêndio do Borba Gato se somou aos muitos atos de agressões e/ou destruição
de estátuas que se tornaram famosos após a derrubada da estátua do escravagista
Edward Colston, na cidade de Bristol, na Inglaterra, em junho de 2020. Essa imagem
foi derrubada na internacionalização dos protestos do coletivo Vidas Negras Importam,
movimento negro dos EUA que protestou fortemente contra o assassinado do afro-
americano George Floyd, em maio daquele ano. De lá para cá, muitas estátuas de
personagens históricos, alguns mais famosos – Cristóvão Colombo, Antônio Vieira,
Leopoldo II – e outros nem tanto – General Robert Lee, Joséphine de Beauharnais –
foram agredidas, destruídas, retiradas etc. Com o caso do Borba Gato, o Brasil parecia
entrar na onda atual de questionamentos a monumentos que aparenta ter uma
“pegada” diferente, que tem sido chamada de anticolonialista.
*
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Pós-doutor pela Università di Bologna (2018). Professor
do Departamento de História, no Programa de Pós-Graduação em História e do PROFHISTORIA UFRN.
1 Neste texto, usa-se o termo agressã o como uma proposta heurística da qualificação dos atos, evitando a
moralização destes por meio do uso do termo depreda ção (destruição de coisas).
7º Curso de Formação Continuada da Olimpíada Nacional em História do Brasil: “Patrimônio Cultural e Ensino de
História: Desafios do e no Tempo Presente” - Campinas – 06 de fevereiro a 16 de abril de 2023 - ONHB-Unicamp
O que é um monumento?
Para além desses, teríamos os monumentos históricos, cuja noção foi produzida
no século XIX e consistia em uma nova forma de conferir sentido às construções e
artefatos já existentes. Os monumentos eram objetos dotados de intenção/vontade de
memória, ao passo os monumentos históricos tinham (e têm) uma vontade de memória
atribuída posteriormente. Um templo religioso (uma igreja), uma construção militar
(um forte), uma prisão policial (uma cadeia) são construções que surgiram com funções
determinadas, respectivamente culto religioso, defesa militar e aprisionamento.
Quando consideramos que a Igreja de São Francisco, em Salvador (BA); o Forte dos
Reis Magos, em Natal (RN); ou a Casa de Contos, em Ouro Preto (MG), são
monumentos históricos, estamos atribuindo um valor de memória que esses lugares
originalmente não tinham. Eles foram ressignificados.
nas ruas e praças de São Paulo, ou da imagem de D. Pedro I2, no Rio de Janeiro. Com
o tempo, passou-se a homenagear os considerados “sujeitos ilustres” de cidades ou
comunidades. Foi assim que surgiram as estátuas para o escravagista Edward Colston3,
em Bristol, ou do integralista Luís da Câmara Cascudo, em Natal.
Mas se tais figuras eram tão importantes, por que parece que ninguém olha ou
lembra das estátuas, mesmo elas sendo tão comuns nas ruas e praças das cidades?
Para o ensino de história, portanto, a primeira pergunta a ser colocada é: quem lembra
do passado quando olha um monumento? Muitas das pessoas que hoje defendem as
estátuas das agressões que ocorrem só saíram em sua defesa quando as viram
ameaçadas por outros grupos sociais. Paradoxalmente, as pessoas que lembram de
alguma coisa quando olham as estátuas pertencem aos grupos sociais que não se
sentem representados por elas. Mais do que perguntar o que é um monumento,
podíamos começar perguntando: quando e para quem uma estátua é um monumento?
Vandalismo ou manifestação?
O ato de atacar uma estátua é certamente uma agressão que, em muitos casos,
resulta na destruição de um objeto ao qual alguém atribui um valor. O esforço por
destruir algo indica que o que foi agredido possuía importância suficiente para dele se
fazer um foco de uma ação extrema. Por isso é importante perguntar: para quem um
monumento é visível ou invisível? Um ataque a um monumento indica que ele não é
invisível para todos os grupos sociais e que sua narrativa continua ressoando na
sociedade, mesmo que parecesse “invisível”. Quando o Revolução Periférica ou o Vidas
Negras Importam questionam as homenagens aos bandeirantes ou aos confederados
estadunidenses4, estão evidenciando como as narrativas ali contidas incomodam as
2 A mais antiga das esculturas como monumentos no Brasil, instalado em 1862, no Rio de Janeiro.
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Colston foi um filantropo em sua cidade natal. Muitas das homenagens a ele usam por base seu trabalho de
filantropia em Bristol como sinal de sua contribuição à cidade. Contudo, as ações de Colston foram uma tentativa
de apagar a origem de sua fortuna e enriquecimento: o tráfico de escravizados africanos. A estátua mais do
homenagear o ancestral desaparecido, também serviu para ocultar o passado do escravagista. Em realidade, há
décadas havia forte questionamento dessas homenagens pela população de Bristol.
4 Os monumentos aos confederados foram construídos por todo o território dos EUA como forma de homenagear
os derrotados da Guerra Civil, que durou entre 1860 e 1865, cuja causa maior era a divergência entre a manutenção
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Em muitos dos casos, todos esses atos foram qualificados de vandalismo por
grupos conservadores e progressistas. O termo vandalismo foi cunhado no século
XVIII, a partir da retomada da memória dos povos vândalos, que invadiram a península
itálica no século V d.C. Os vândalos são, na memória histórica, um símbolo das invasões
bárbaras que destruíram a civilização romana. Durante a Revolução Francesa, para
suprimir os atos populares de destruição dos prédios, artefatos e monumentos
da escravidão africana no país. Os estados separatistas – a Confederação – foram derrotados, a escravidão foi
abolida, mas os derrotados construíram toda uma memória celebrativa de monumentos e instituições históricas que
passaram a celebrar a honra dos escravagistas derrotados.
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herdados do Antigo Regime, que eram pensados como símbolos da nobreza e clero, o
governo revolucionário iniciou medidas de proteção pública que se tornariam os
primeiros decretos de preservação patrimonial. Ao qualificar os movimentos populares
de vândalos e sua ação de vandalismo, os revolucionários estavam designando a
destruição intencional de patrimônio e propriedade como um ato bárbaro, irracional e
criminoso (MACHADO, 2020).
Por usa vez, quando os coletivos ou movimentos sociais são qualificados como
manifestantes e expressam os motivos pelos quais derrubam uma estátua, apresenta-
se um questionamento da memória na praça pública. A construção das estátuas
nacionalistas, que começou no século XIX – os artefatos atualmente mais questionados
–, tinha por fim firmar uma história pública na paisagem urbana acessível a todos os
habitantes de uma cidade. Pode ocorrer de as estátuas incomodarem por homenagear
personagens atrelados a valores hoje tidos como intoleráveis: as esculturas de
confederados (EUA), dos bandeirantes (Brasil), de Josephine (Martinica/França), de
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O caso das estátuas de orixás revela um diálogo de surdos. As esculturas não têm qualquer valor religioso para
os praticantes do candomblé, por exemplo. Os orixás não possuem forma humana e essas estátuas na praça ou
parques públicos não são artefatos usadas no culto religioso. Trata-se de homenagens e celebração antropomórficas
da cultura negra no Brasil. Para muitas das variações do cristianismo no Brasil, porém, as esculturas são imagens
religiosas, ou seja, tem papel cultual, funcionando como ídolos (falsos deuses ou diabos) que devem ser destruídos.
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6 Localizado em Salvador, BA, foi o primeiro bem cultural de matriz afro-brasileira tombado, em 1984, o que ocorreu
sob intensa resistência na época.
7 Descoberto em 2011, transformado em sítio histórico pela prefeitura do Rio de Janeiro, em 2012, e finalmente
tombado como Patrimônio da Humanidade, em 2017, trata-se de um patrimônio das memórias traumáticas, uma
vez que foi um porto de desembarque de africanos escravizados.
8 Respectivamente registrados em 2002 e 2005. Entendido como fórum de valorização da diversidade cultural
multiétnica do Brasil, o registro da Arte Kusiwa pertencente ao Povo Wajapi, do Amapá, foi o primeiro bem imaterial
registrado na história.
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REFERÊNCIAS