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7º Curso de Formação Continuada da Olimpíada Nacional em História do Brasil: “Patrimônio Cultural e Ensino de

História: Desafios do e no Tempo Presente” - Campinas – 06 de fevereiro a 16 de abril de 2023 - ONHB-Unicamp

Monumentos, destruição e aprendizado de história

Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior*

Em 24 de julho de 2021, a estátua do bandeirante Borba Gato, situada no bairro


de Santo Amaro, cidade de São Paulo, foi incendiada pelo coletivo Revolução Periférica.
Naquele momento, diversos profissionais perguntaram como e por que aquilo havia
ocorrido, se se tratava de crime ou de protesto, gerando, em decorrência, uma onda
de posicionamentos frente ao acontecido. Jornalistas, professores de história,
museólogos, antropólogos, entre outros pesquisadores, tentaram entender a agressão
à estátua, usando de alguns termos-chaves que permitiriam caracterizar o ocorrido,
expondo posicionamentos contra e a favor à agressão1 de monumentos:
vandalismo/depredação, qualificando o coletivo como vândalos/criminosos;
manifestação/protesto, para pensar o grupo como manifestantes políticos.

O incêndio do Borba Gato se somou aos muitos atos de agressões e/ou destruição
de estátuas que se tornaram famosos após a derrubada da estátua do escravagista
Edward Colston, na cidade de Bristol, na Inglaterra, em junho de 2020. Essa imagem
foi derrubada na internacionalização dos protestos do coletivo Vidas Negras Importam,
movimento negro dos EUA que protestou fortemente contra o assassinado do afro-
americano George Floyd, em maio daquele ano. De lá para cá, muitas estátuas de
personagens históricos, alguns mais famosos – Cristóvão Colombo, Antônio Vieira,
Leopoldo II – e outros nem tanto – General Robert Lee, Joséphine de Beauharnais –
foram agredidas, destruídas, retiradas etc. Com o caso do Borba Gato, o Brasil parecia
entrar na onda atual de questionamentos a monumentos que aparenta ter uma
“pegada” diferente, que tem sido chamada de anticolonialista.

*
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Pós-doutor pela Università di Bologna (2018). Professor
do Departamento de História, no Programa de Pós-Graduação em História e do PROFHISTORIA UFRN.
1 Neste texto, usa-se o termo agressã o como uma proposta heurística da qualificação dos atos, evitando a

moralização destes por meio do uso do termo depreda ção (destruição de coisas).
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Seja como vandalismo ou anticolonialismo, esses atos tentam debater a tolerância


e preservação de imagens de personagens históricos que atualizam o racismo na
sociedade contemporânea. Do ponto de vista patrimonial, a preservação de
monumentos tombados é um dever do estado e da sociedade, e, nesse sentido, agredir
monumentos é crime contra o patrimônio cultural. Por outro lado, coletivos como Vidas
Negras Importam e Revolução Periférica combatem a desigualdade racial por meio do
debate da memória na praça pública. Mais do que derrubar estátuas, porque seriam
contra bandeirantes ou escravocratas do passado, esses grupos entendem que aquelas
homenagens mantêm os ideais racistas na atualidade. Dessa maneira, retirar os
monumentos se converte em um ato antirracista.

Os termos mencionados acima parecem convergir para uma certa maneira de


debater a questão dos monumentos no Brasil e no mundo: vandalismo,
anticolonialismo, patrimônio cultural, antirracismo, ocupam um lugar central na
construção dos argumentos sobre o assunto. Aqui, tentaremos organizar esses termos,
estabelecendo algumas direções aos professores no ensino de história.

O que é um monumento?

O que diferencia um monumento de uma escultura pura e simples? Ou o que


caracteriza uma estátua como um monumento ou como um monumento histórico? Não
existe uma definição geral do que seja um monumento. Alguns autores tentaram
encontrar a resposta a partir da própria forma material ou do conceito de obra de arte.
Contudo, essas definições gerais esbarram na diversidade dos artefatos, objetos ou
coisas que podem ser chamados de monumentos.

O que eles têm em comum, porém, é o fato de serem universais culturais, ou


seja, apresentam-se em quase todas as culturas conhecidas, sendo que sua forma mais
antiga, provavelmente, foram as expressões funerárias (tais como a lápide), para
indicar a presença/ausência dos mortos. No entanto, isso não significa que se
apresentam da mesma maneira ou tenham a mesma tipologia. Os monumentos são
objetos dotados de uma vontade de trazer à memória uma figura ancestral morta e
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considerada importante para um grupo social. Pouco depois, teriam surgido os


monumentos do poder, aqueles artefatos que, além de apontar a memória dos mortos,
adquirem função de marcar a fundação política das comunidades. As inscrições
históricas pérsicas ou os arcos do triunfo romano são exemplos de monumentos do
poder. Monumentos aos mortos (funerários ou de líderes políticos ou não) e eventos
históricos são os tipos de celebração memorial mais famosos e antigos conhecidos na
tradição.

Para além desses, teríamos os monumentos históricos, cuja noção foi produzida
no século XIX e consistia em uma nova forma de conferir sentido às construções e
artefatos já existentes. Os monumentos eram objetos dotados de intenção/vontade de
memória, ao passo os monumentos históricos tinham (e têm) uma vontade de memória
atribuída posteriormente. Um templo religioso (uma igreja), uma construção militar
(um forte), uma prisão policial (uma cadeia) são construções que surgiram com funções
determinadas, respectivamente culto religioso, defesa militar e aprisionamento.
Quando consideramos que a Igreja de São Francisco, em Salvador (BA); o Forte dos
Reis Magos, em Natal (RN); ou a Casa de Contos, em Ouro Preto (MG), são
monumentos históricos, estamos atribuindo um valor de memória que esses lugares
originalmente não tinham. Eles foram ressignificados.

Mas e as estátuas? O atual tipo de monumentos públicos que mais comumente


tem sido agredido é o do modelo escultórico, geralmente, representações clássicas ou
naturalistas dos personagens históricos. Essas estátuas são monumentos no sentido
antigo do termo, porque são homenagens a fundadores da comunidade política na qual
são inseridos. São em alguma medida monumentos históricos, porque estão atrelados
a uma narrativa histórica e comunitária da história da nação. Acima de tudo, estão
localizados na praça pública, porque essa é a forma hegemônica de homenagens,
herdada do século XIX, quando os estados europeus deram início a uma “mania de
estátuas” (KNAUSS, 2022), para rememorar os fundadores nacionais. Essas estátuas
surgiram para comemorar os ancestrais da nação, como é o caso dos bandeirantes,
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nas ruas e praças de São Paulo, ou da imagem de D. Pedro I2, no Rio de Janeiro. Com
o tempo, passou-se a homenagear os considerados “sujeitos ilustres” de cidades ou
comunidades. Foi assim que surgiram as estátuas para o escravagista Edward Colston3,
em Bristol, ou do integralista Luís da Câmara Cascudo, em Natal.

Mas se tais figuras eram tão importantes, por que parece que ninguém olha ou
lembra das estátuas, mesmo elas sendo tão comuns nas ruas e praças das cidades?
Para o ensino de história, portanto, a primeira pergunta a ser colocada é: quem lembra
do passado quando olha um monumento? Muitas das pessoas que hoje defendem as
estátuas das agressões que ocorrem só saíram em sua defesa quando as viram
ameaçadas por outros grupos sociais. Paradoxalmente, as pessoas que lembram de
alguma coisa quando olham as estátuas pertencem aos grupos sociais que não se
sentem representados por elas. Mais do que perguntar o que é um monumento,
podíamos começar perguntando: quando e para quem uma estátua é um monumento?

Vandalismo ou manifestação?

O ato de atacar uma estátua é certamente uma agressão que, em muitos casos,
resulta na destruição de um objeto ao qual alguém atribui um valor. O esforço por
destruir algo indica que o que foi agredido possuía importância suficiente para dele se
fazer um foco de uma ação extrema. Por isso é importante perguntar: para quem um
monumento é visível ou invisível? Um ataque a um monumento indica que ele não é
invisível para todos os grupos sociais e que sua narrativa continua ressoando na
sociedade, mesmo que parecesse “invisível”. Quando o Revolução Periférica ou o Vidas
Negras Importam questionam as homenagens aos bandeirantes ou aos confederados
estadunidenses4, estão evidenciando como as narrativas ali contidas incomodam as

2 A mais antiga das esculturas como monumentos no Brasil, instalado em 1862, no Rio de Janeiro.
3
Colston foi um filantropo em sua cidade natal. Muitas das homenagens a ele usam por base seu trabalho de
filantropia em Bristol como sinal de sua contribuição à cidade. Contudo, as ações de Colston foram uma tentativa
de apagar a origem de sua fortuna e enriquecimento: o tráfico de escravizados africanos. A estátua mais do
homenagear o ancestral desaparecido, também serviu para ocultar o passado do escravagista. Em realidade, há
décadas havia forte questionamento dessas homenagens pela população de Bristol.
4 Os monumentos aos confederados foram construídos por todo o território dos EUA como forma de homenagear

os derrotados da Guerra Civil, que durou entre 1860 e 1865, cuja causa maior era a divergência entre a manutenção
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pessoas no tempo presente e como tais estátuas não são silenciosas/invisíveis. Há


registros de protestos e intervenções em monumentos dos bandeirantes, por exemplo,
desde a sua instalação. Outro grupo artístico, o 3nos3, ensacou as cabeças das
estátuas de bandeirantes numa intervenção artística famosa de abril de 1979, assim
como um grupo de várias etnias indígenas, entre eles a Comissão Guarani Yvyrupa,
estendeu um pano vermelho sobre o Monumentos às Bandeiras, também em São
Paulo, em 2013, simbolizando o massacre indígena do passado e no presente. O
próprio monumento ao Borba Gato já havia sido “julgado” e acusado de ser um
“assassino” numa intervenção artística de 2008 (WALDMAN, 2019).

Na esteira desses mesmos questionamentos, no Caribe, na ilha da Martinica,


estado francês ultramarino, o coletivo Vermelho, Verde e Negro derrubou, em julho de
2020, a estátua de Josephine de Beauharnais, esposa de Napoleão Bonaparte, que
teria sido responsável pela restauração da escravidão no império colonial francês em
1804. A estátua estava instalada na praça principal da capital da Martinica, Fort-de-
France, desde 1859, e no século XX foi constantemente questionada pelos grupos afro-
americanos da ilha. A estátua chegou a ser decapitada em 1991 e assim permaneceu
até 2020, quando na recente onda derrubacionista também foi destruída, como um
protesto contra a celebração da memória escravocrata numa comunidade
majoritariamente negra. Essa é outra estátua que nunca esteve invisível ou silenciada
(SANTIAGO JR., 2022).

Em muitos dos casos, todos esses atos foram qualificados de vandalismo por
grupos conservadores e progressistas. O termo vandalismo foi cunhado no século
XVIII, a partir da retomada da memória dos povos vândalos, que invadiram a península
itálica no século V d.C. Os vândalos são, na memória histórica, um símbolo das invasões
bárbaras que destruíram a civilização romana. Durante a Revolução Francesa, para
suprimir os atos populares de destruição dos prédios, artefatos e monumentos

da escravidão africana no país. Os estados separatistas – a Confederação – foram derrotados, a escravidão foi
abolida, mas os derrotados construíram toda uma memória celebrativa de monumentos e instituições históricas que
passaram a celebrar a honra dos escravagistas derrotados.
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herdados do Antigo Regime, que eram pensados como símbolos da nobreza e clero, o
governo revolucionário iniciou medidas de proteção pública que se tornariam os
primeiros decretos de preservação patrimonial. Ao qualificar os movimentos populares
de vândalos e sua ação de vandalismo, os revolucionários estavam designando a
destruição intencional de patrimônio e propriedade como um ato bárbaro, irracional e
criminoso (MACHADO, 2020).

Desde que foi criada, a acusação de vandalismo é acionada como uma


qualificação moral, que neutraliza o aspecto político que pode haver no ato de agressão
ou intervenção em monumentos. Toda vez que ela é usada, mesmo que se qualifique
a causa dos movimentos populares como “justa”, ela adjetiva a ação violenta como
irracional, bárbara e criminosa, na medida em que é destruição intencional de
propriedade. Na primeira metade do século XX, era muito comum atribuir ao descaso
da gestão pública a destruição do patrimônio monumental, como se essa fosse a
principal causa do vandalismo e destruição dos monumentos. A ‘novidade’ dos últimos
anos é que o termo tem sido usado para caracterizar somente a ação dos grupos
populares. O uso das adjetivações “vândalo” ou “vandalismo” afasta do discurso
consciente o sentido político. Curiosamente, vale ressaltar a título de reflexão, que se
o termo vandalismo, veiculado incansavelmente nas mídias, é usado contra coletivos,
a destruição ou descaso com o patrimônio cultural causada por empresas ou governos
raramente recebe esse nome (KNAUSS, 2022).

Por usa vez, quando os coletivos ou movimentos sociais são qualificados como
manifestantes e expressam os motivos pelos quais derrubam uma estátua, apresenta-
se um questionamento da memória na praça pública. A construção das estátuas
nacionalistas, que começou no século XIX – os artefatos atualmente mais questionados
–, tinha por fim firmar uma história pública na paisagem urbana acessível a todos os
habitantes de uma cidade. Pode ocorrer de as estátuas incomodarem por homenagear
personagens atrelados a valores hoje tidos como intoleráveis: as esculturas de
confederados (EUA), dos bandeirantes (Brasil), de Josephine (Martinica/França), de
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Colombo (EUA, Colômbia) ou Antônio Viera (Portugal), pois celebram a memória de


escravagistas, a invasão, controle e matança de populações indígenas. Por isso hoje
elas podem ser interpretadas como figuras racistas/colonialistas.

Ao se dizer que um coletivo realizou um manifesto ou protesto social, cria-se uma


qualificação política dos sujeitos que realça o motivo do ato de agressão como um
clamor pela renegociação da história pública. Se o vandalismo é uma caracterização
moral que apaga o sentido político, a manifestação é uma qualificação política que
pede um posicionamento ético frente à presença das memórias difíceis ou traumáticas
de nossa sociedade, as quais incluem o massacre de populações indígenas, a
escravização de populações africanas sequestradas para a América ou os abusos da
ditadura militar brasileira. Entre o vandalismo e a manifestação, existe o problema sério
da negociação da memória e da história no tempo presente.

Patrimônio, antirracismo e mais

Intervir ou agredir estátuas é um ato que traz um problema de gestão do


patrimônio cultural na nossa sociedade. Diz respeito ao exercício dos direitos culturais,
um tópico importante dos Direitos Humanos e do próprio exercício da cidadania,
segundo a Constituição Federal de 1988. Se começamos, como professores, em sala
de aula, pela pergunta “para quem elas são invisíveis e para quem são visíveis?”, é
com intuito de produzir várias possibilidades de respostas. Cotidianamente, não
olhamos as estátuas de nossas cidades e as diversas intervenções pelas quais elas
passam: são inscrições, “pichações”, grafites, encenações, celebrações e usos diversos
das estátuas as quais não damos atenção, uma vez que naturalizamos a ideia de que
os monumentos são invisíveis para todos.

Nessa perspectiva, para responder à pergunta, precisamos de uma primeira


atitude: uma nova forma de escuta e visão para os monumentos. Observá-los e
cartografar um pouco do que ocorre com eles, observar quem usa as praças nas quais
estão instalados, como os usam. É preciso atravessar a cortina de fumaça criada pela
imprensa quando esta frequentemente noticia os atos como vandalismo. Ao escutar e
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olhar novamente os monumentos, indagamos a maneira como eles sofrem


intervenções e desnaturalizamos o que ocorre na praça pública.

A queima do Borba Gato ou pintar o Monumento as Bandeiras de vermelho são


chamados de vandalismo ou protesto político conforme o posicionamento político de
quem observa os atos. Mas o que se pode dizer do anonimato contínuo que marca as
agressões aos monumentos afro-brasileiras no Brasil inteiro? A estátua de Iemanjá na
Praia do Meio, em Natal, instalada em 2004, foi agredida de tantas formas que ela teve
que ser substituída por uma nova escultura em 2021. A estátua antiga teve as mãos
quebradas, o braço arrancado e foi alvo de tiros. Quando uma estátua sofre esse tipo
de agressão, é evidente que ela está sendo flagelada. O seu flagelo e de tantas figuras
de orixás pelo Brasil (como as esculturas no Dique do Tororós, em Salvador) é uma
maneira de vilipendiar as vítimas do racismo e descendentes da escravidão africana no
Brasil, cujos símbolos atuais não são considerados dignos de respeito.

De fato, as agressões às estátuas dos orixás no Brasil podem ser qualificadas


como iconoclastia, no sentido primeiro do termo: destruição de imagens de cunho
religioso5. Sendo assim, estaríamos diante de “vandalismo” como um ato gratuito de
destruição ou uma manifestação de guerra religiosa? Os monumentos afro-brasileiros
foram e são repetidamente agredidos no Brasil em meio ao descaso público pela
investigação e punição dos responsáveis por tais atos. Quando estátuas afro-brasileiras
são agredidas a comoção (que é sempre seletiva) é minguada; quando um ancestral
bandeirante branco é atingido, jornalistas, políticos e intelectuais se levantam para
dizer se se deve ou não negociar a praça pública. Em termos de gestão patrimonial,
poucos casos no Brasil ilustram tanto a permanência do racismo como o debate público
seletivo sobre agressão de monumentos afro-brasileiros.

5
O caso das estátuas de orixás revela um diálogo de surdos. As esculturas não têm qualquer valor religioso para
os praticantes do candomblé, por exemplo. Os orixás não possuem forma humana e essas estátuas na praça ou
parques públicos não são artefatos usadas no culto religioso. Trata-se de homenagens e celebração antropomórficas
da cultura negra no Brasil. Para muitas das variações do cristianismo no Brasil, porém, as esculturas são imagens
religiosas, ou seja, tem papel cultual, funcionando como ídolos (falsos deuses ou diabos) que devem ser destruídos.
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Nesse sentido, o patrimônio ocupa um lugar central no ensino de história, no que


se refere às intervenções, agressões e derrubadas de monumentos. O professor de
história poderia conduzir a problematização da atenção e escuta aos atos perpetrados
a partir das seguintes chaves: a) as intervenções indicam demandas de grupo, até
quando elas são violentas, sendo assim, são uma declaração pública sobre o passado;
b) o antirracismo e a promoção da cidadania deve ser o cerne de trabalho do professor,
o qual pode conduzir toda a abordagem pelo princípio da gestão da memória no espaço
público como educação antirracista.

Ensino de história e patrimonialização do racismo

Membros da Rede de Historiadorxs Negrxs têm reivindicado a necessidade de


desmonumentalizar o racismo, o que implicaria em entender que ocorreu uma
patrimonialização do racismo (MAGALHÃES, 2020) na forma de monumentos que não
incluem as populações afro-indígenas ou só o fazem por meio do prisma do massacre.
O mapa patrimonial brasileiro tem mudado nos últimos anos, não apenas com a
incorporação de patrimônios materiais afro-brasileiros, como o Terreiro do Engenho
Velho6 ou o Cais do Valongo7, mas principalmente graças ao registro de patrimônio
imaterial, como a Arte Kusiwa e o Ofício das Baianas do Acarajé8. Ainda assim, o mapa
de estátuas históricas continua desigual, marcadamente representando feitos e
personagens masculinos e brancos.

Quando se refere a personagens do passado histórico mais distante, ele é


majoritariamente colonialista, sendo poucos (e recentes) os representantes das
populações afro-indígenas. Isso mostra como os corpos de pedras que ocupam a praça
pública continuam, infelizmente, valorizando as narrativas de ocupação e

6 Localizado em Salvador, BA, foi o primeiro bem cultural de matriz afro-brasileira tombado, em 1984, o que ocorreu
sob intensa resistência na época.
7 Descoberto em 2011, transformado em sítio histórico pela prefeitura do Rio de Janeiro, em 2012, e finalmente

tombado como Patrimônio da Humanidade, em 2017, trata-se de um patrimônio das memórias traumáticas, uma
vez que foi um porto de desembarque de africanos escravizados.
8 Respectivamente registrados em 2002 e 2005. Entendido como fórum de valorização da diversidade cultural

multiétnica do Brasil, o registro da Arte Kusiwa pertencente ao Povo Wajapi, do Amapá, foi o primeiro bem imaterial
registrado na história.
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terrorialização do Brasil, como uma história branca que massacrou indígenas e


escravizou africanos. Muitas das nossas estátuas históricas, talvez mais do que os
outros tipos de monumentos históricos, infelizmente, se enquadram entre os
representantes do domínio das elites historicamente brancas que louvam ao próprio
passado em detrimento do racismo estrutural que organiza a sociedade brasileira.

O ensino de história participa do debate não propondo derrubar todas as estátuas,


mas pedindo por uma nova gestão da memória no espaço público. Se as agressões às
estátuas, mais do que contra o patrimônio como um todo, são contra o racismo atual,
como sociedade, precisamos discutir o tema e talvez mudar a paisagem pública. Até
essa mudança ocorrer, o professor de história trabalha de diversas formas. Abaixo,
organizamos algumas possibilidades:

• nem toda agressão a uma estátua é um protesto contra o racismo. Precisamos


diferenciar os atos e pensar que cada monumento precisa de uma abordagem
particular. Para tanto, o método histórico começa por perguntas: para quem um
monumento é visível ou invisível?

• as intervenções nos monumentos precisam ser diferenciadas: os usos podem


ser performances como encenações ou inscrições, pichações, desenhos,
grafites, jogar tintas etc. As agressões, propriamente ditas, tais como decapitar,
quebrar, atirar, quebrar braços etc., podem ser exemplos de iconoclastia
(política ou religiosa), que culminam na completa destruição dos monumentos.
Em todos os casos, especialmente, a agressão, tal ato precisa ser indagado,
problematizado sobre seu significado para os diversos grupos sociais;

• as diversas intervenções nos monumentos são parte das suas trajetórias e


constituem uma espécie de biografia das estátuas. Podemos usar a ideia de
biografia dos monumentos como uma estratégia para mapear, em sala de aula,
como seu significado mudou no passado e no presente, conforme as pessoas e
grupos sociais fizeram/façam usos desses artefatos;
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• é importante tratar didaticamente a nomenclatura vandalismo vs.


manifestação/protesto, de maneira a observar quais, na trajetória do
monumento, as reações da comunidade precisam fazer parte do debate em sala
de aula. O professor de história não pode fugir dos termos socialmente usados.
Ao contrário, um ponto de partida seria identificar como os estudantes
chamariam os eventos (vandalismo, depredação, protesto etc.);

• a discussão desenvolvida pode pautar a gestão e a demanda por políticas


públicas de memória que contemplem os diversos grupos sociais. O professor
pode levantar dados junto a seus alunos sobre a cartografia dos monumentos
de sua localidade, definindo a etnicidade, gênero e regionalidade representada
por eles. Mapear essa cartografia pode ser uma maneira de induzir propostas
diversas de narrativas femininas, afro-brasileiras, indígenas, LBGTQIAP+, entre
outros, em sala;

• cada intervenção em monumentos demanda abordagens diferentes. Por


exemplo, a agressão às esculturas afro-brasileiras é um tópico sobre racismo
religioso e antirracismo, que difere da derrubada de escravagistas como Edward
Colston ou a pichação da escultura de líderes ou personagens da ditadura ou
fascistas do passado. Cada um desses casos merece uma reflexão particular e
o professor poderia articular os termos evitando generalizações.

Por tudo dito, espera-se que se compreenda que a pauta anticolonialista e


antirracista é central, mas não é a única coisa que se pode discutir via as intervenções
e agressões aos monumentos. Montando uma boa pergunta pedagógica, isso e muito
mais pode ser debatido em sala de aula, focando na construção da cidadania plena.
Por outro lado, o debate antirracista sobre os monumentos, além de ter uma
inestimável contribuição na formação da cidadania no Brasil por meio da gestão da
memória, permite chamar atenção às inúmeras possibilidades de usos das estátuas no
ensino de história.
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REFERÊNCIAS

KNAUSS, Paulo. Lembrar é preciso: a história do patrimônio cultural no Brasil à luz da


atualidade. In: KAMINSKI, Rosane; NAPOLITANO, Marcos (orgs.). Monumentos,
memórias e violência. Rio de Janeiro: Letra e Voz, 2022. p. 65-80.

MACHADO, Diego. Patrimônio e vandalismo. In: CARVALHO, Aline; MENEGUELLO,


Cristina (orgs.). Dicionário temático de patrimônio: debates contemporâneos.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2020.

MAGALHÃES, Ana Flávia. A desmonumentalização do racismo. Conversas de


historiadoras, jun. 2020. Disponível em:
https://conversadehistoriadoras.com/2020/06/21/pela-desmonumentalizacao-do-
racismo-em- escala-global/. Acesso em: out. 2022.

SANTIAGO JR., Francisco das C. F. A antiga imperatriz acéfala da Martinica: iconoclastia


e antirracismo como problemas para o historiador/professor. In: BENTIVOGLIO, Julio;
MENEGUELLO, Cristina (orgs.). Corpos e pedras: estátuas, monumentalidade e história.
Vitória: Editora Multifontes, 2022. p. 197-224.

WALDMAN, Thaís Chang. Os bandeirantes estão entre nós: reencarnações entre


tempos, espaços e imagens. Portaurbe: revista do núcleo de antropologia urbana da
USP, São Paulo, v. 25, 2019. Disponível em:
https://journals.openedition.org/pontourbe/7346?lang=es. Acesso em: out. 2022

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