You are on page 1of 169

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

Pedro Savelli

O Batismo e a Eucaristia na Perspectiva da Deificação

MESTRADO EM TEOLOGIA

SÃO PAULO

2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

Pedro Savelli

O Batismo e a Eucaristia na perspectiva da Deificação

MESTRADO EM TEOLOGIA

Dissertação Apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de MESTRE em Teologia Sistemática –
concentração em Liturgia - sob a orientação do
Prof. Doutor - Valeriano Dos Santos Costa.

SÃO PAULO

2011
FOLHA DE APROVAÇÃO

Banca Examinadora

---------------------------------------------------------

---------------------------------------------------------

---------------------------------------------------------
DEDICATÓRIA

à Beatriz – minha mãe - in memoriam


AGRADECIMENTO

Ao Deus pelo dom da vida, da fé e do amor que nos deifica!


Aos meus pais e familiares por mostrarem os caminhos do
Evangelho; aos monges de minha comunidade - do Mosteiro
de São João Gualberto - pela paciência e compreensão; aos
paroquianos de Nossa Senhora da Assunção – Pirituba–SP -
que me incentivaram; aos leitores e revisores pelo empenho e
dedicação; aos meus professores e ao meu orientador por
transmitirem suas experiências de fé e razão; ao padre
Cristiano, amigo e irmão no ministério e na faculdade, meu
“anjo da guarda”; e a você leitor destas páginas!
Pedro Savelli

O Batismo e a Eucaristia na perspectiva da Deificação

ABSTRACT

Deificação: no amor extático de Deus somos deificados para


estarmos em comunhão com a Sua vida e natureza. A Perspectiva da
Deificação abre três caminhos para o humano tomar consciência de
participar da natureza divina: a) pelo caminho da Vida. Existimos
somente pela bondade de Deus. Ele do nada, chama tudo à luz: a
obra da Criação expressa a Vontade de Deus, tudo pertence a Ele e
Dele recebe a deificação natural; b) pelo caminho da Revelação: o
Povo de Israel soube interpretar a própria história como uma eleição
particular de Deus, cuja finalidade é ser luz às nações: deificação pela
obediência à escuta da Palavra de Deus. c) Pelo caminho da Graça:
Encarnação e Glorificação de Cristo-Sacramento. Deus Pai, no
mistério de sua doação à humanidade, convida-nos a participar de Sua
natureza divina, transformados pelo Filho na força do Espírito Santo:
revestindo-nos de Cristo pelo Batismo e alimentando-nos Dele pela
Eucaristia: deificação sacramental. Em Cristo, Cabeça, a Igreja é
Sacramento. Ela atualiza pelo Espírito a Graça deificante,
celebrando a liturgia, em particular a Eucaristia: é neste último
caminho que nos encontramos.

PALAVRAS-CHAVE: - Deificação - Amor - Extático – Natureza -


Divina - Revelação - Escuta - Palavra - Encarnação - Glorificação -
Cristo- Sacramento - Batismo - Eucaristia - Igreja - Graça.
Pedro Savelli

O Batismo e a Eucaristia na perspectiva da Deificação

ABSTRACT

Deification: in the ecstatic love of God we are deified to be in


communion with His life and nature. The Perspective of the Deification
opens three paths for the human being to be conscious of taking part of
the divine nature: a) through the way of Life. We only exist by virtue of
the kindness of God. Out of nothing, He calls everything to the light: the
work of the Creation expresses the Will of God, everything belongs to
Him and from Him receives the natural deification; b) through the way
of Revelation. The people from Israel knew how to interpret its own
history as a singular election of God, whose objective is to be the light
to the nations: deification by the obedience to the listening of the
Word of God. c) Through the way of Grace: Reincarnation and
Glorification of the Christ-Sacrament. Father God, in the mystery of
His donation to the humanity, invites us to participate in His divine
nature, transformed by the Son in the strength of the Hole Spirit:
covering us of Christ by the Baptism and feeding us from Him by the
Eucharist: sacramental deification. In Christ, Head, the Church is
Sacrament. It updates the deifying Grace through the Spirit,
celebrating the liturgy, particularly, the Eucharist: it is in the latter that
we find ourselves.

KEY WORDS: Deification - Ecstatic - Love - Nature - Divine - Will -


God - Revelation - Listening - Word - Reincarnation - Glorification -
Christ-Sacrament - Baptism - Eucharist - Sacrament - Church - Grace.
SUMÁRIO

Abreviaturas e Siglas ................................................................................................ 09


Apresentação ........................................................................................................... 10

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11

CAPÍTULO I – A DEIFICAÇÃO: AMOR EXTÁTICO DE DEUS ............................... 18

1. O Ser de Deus ...................................................................................................... 18


2. O ciclo extático do amor de Deus: em Zubiri ........................................................ 23
3. A deificação da natureza humana em Zubiri ........................................................ 25
3.1 Encarnação .................................................................................................... 26
3.1.1 A raiz da Encarnação: o mistério da vontade de Deus ......................... 26
3.1.2 A revelação do mistério: a pessoa de Cristo ......................................... 26
3.1.3 As conseqüências da Encarnação ........................................................ 28
3.2 Santificação ................................................................................................... 29
3.2.1 A estrutura da deificação: a graça ......................................................... 29
3.2.2 A raiz da deificação: o mistério sacramental ......................................... 31
3.2.3 Consequência da deificação ................................................................. 33
4. A Santidade: fonte da revelação deificante .......................................................... 34
4.1 A Santidade de Deus ..................................................................................... 34
4.2 A Santidade de Jesus ................................................................................... 37
4.3 A Santidade do Espírito ................................................................................. 39
4.4 A Santidade da Igreja ................................................................................... 41
4.5 A Santidade da Criação e do homem ........................................................... 44
5. O Pecado: desligamento de Deus ........................................................................ 47
6. Graça e Justificação: religamento com Deus ....................................................... 51
7. A Deificação Sacramental .................................................................................... 55
CAPÍTULO II – BATISMO SACRAMENTO DE DEIFICAÇÃO ................................. 62

1. Sacramento do Batismo ....................................................................................... 63


2. O Batismo nas Escrituras e na Tradição da Igreja ............................................... 68
2.1 A Origem do Batismo ..................................................................................... 68
2.2 Batismo na Igreja Primitiva ............................................................................. 72
2.3 Batismo no apóstolo Paulo e no NT............................................................... 74
2.4 Os nomes e Tipologias do Batismo ................................................................ 82
3. O Rito do Batismo ................................................................................................ 87
3.1 Catequese e Celebração do Batismo ............................................................. 96
4. Batismo: Mistério da Deificação ........................................................................ 98

CAPÍTULO III – EUCARISTIA SACRAMENTO DE DEIFICAÇÃO ........................ 105

1. A Páscoa ............................................................................................................ 106


1.1 O Mistério da Encarnação na Páscoa .......................................................... 110
2. A Aliança ............................................................................................................ 113
2.1 Aliança Memorial .......................................................................................... 114
2.2 Aliança Sacramental .................................................................................... 118
3. O Sacrifício ......................................................................................................... 122
3.1 O Sacrifício Memorial ................................................................................... 124
3.2 A Deificação no Sacrifício de Cristo ............................................................. 125
4. Banquete da Eucaristia ...................................................................................... 127
4.1 Banquente Memorial .................................................................................... 128
4.2 Banquete Sacramental ................................................................................ 136
5. Eucaristia: presença do Espírito ......................................................................... 144
5.1 A presença do Espírito constrói a Igreja ....................................................... 148
6. A Deificação na celebração Vigília da Páscoa ................................................... 151
7. Deificação: uma perspectiva teológica ............................................................... 156

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 159

REFERÊNCIAS: FONTES, DOCUMENTOS E BIBLIOGRAFIA ............................ 162


-9-

Abreviaturas e Siglas

AG: Ad Gentes. Decreto sobre a atividade missionária da Igreja. In: Compêndio do


Vaticano II.
CCrh.SL: Corpus Christianorum - Séries Latina.
CCrh: Corpus Christianorum
CELAM: Conselho Episcopal Latino-Americano.
CG: Summa Contra Gentes de Tomás de Aquino.
CIC: Código de Direito Canônico
CNBB: Conferência dos Bispos do Brasil.
DTA: Domingo Tempo do Advento
DTC: Domingo Tempo Comum
DTN: Domingo Tempo do Natal
DTP: Domingo Tempo Pascal
DTQ: Domingo Tempo da Quaresma
DS: Enchiridion Symbolorum.
DV: Dei Verbum, Constituição dogmática sobre a revelação divina. In: Compêndio do
Vaticano II.
EDB: Edizione Dehoniane Bologna.
EM: Eucharisticum Mysterium
GE: Gravissimum Educationis. Declaração sobre a educação cristã. In: Compêndio do
Vaticano II.
GS: Gaudium es Spes. Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje. In: Compêndio
do Vaticano II.
IGMR: Introdução Geral ao Missal Romano.
LG: Lumen Gentium. Constituição Dogmática sobre a Igreja. In: Compêndio do Vaticano II.
Odc: Oração da missa depois da comunhão.
Odd: Oração da coleta da missa do Dia.
OE: Oração Eucarística.
Oso: Oração da missa sobre as Oferendas.
OVP: Oração da Vigília Pascal.
PG: Patrologia Grega.
PL: Patrologia Latina.
PO: Presbytorum Ordinis
RB: Regra de São Bento.
RICA: Rito de Iniciação Cristã de Adultos.
1QS: Regra (Sérek) da Comunidade (Qumran)
SC: Sacrossantum Concilium. Constituição sobre a liturgia sagrada. In: Compêndio do Vaticano II.
ST: Summa Teológica de Tomás de Aquino.
UR: Unitatis Redintegratio. Decreto sobre o ecumenismo. In: Compêndio do Vaticano II.
VAT II: Compêndio do Concilio Vaticano II.
- 10 -

Apresentação

Esta dissertação teve por motivação o trabalho pastoral destes últimos vinte anos de
ministério. Somente o ofício de pároco nos levou a alguns questionamentos acerca do que
acontece no dia a dia na vida da comunidade de fé.
As perguntas que se põem são as seguintes: Por que muitos dos batizados, para não
dizer a maioria, não celebram, ao menos aos domingos, a Eucaristia? Por que as pessoas
quando celebram não vivenciam os sacramentos como uma unidade sacramental? Por que
muitos não aceitam a celebração dos sacramentos na Eucaristia? Última: será que bastam
essas três?
Tentando buscar “luzes”, que iluminem a nossa pastoral litúrgico-sacramental e
possam abrir horizontes aos questionamentos, é que apresentamos o Batismo e Eucaristia
na “perspectiva da deificação”. Estamos convictos de que os sacramentos da Igreja não
podem ser celebrados como momento litúrgico independente um do outro. Este vínculo é
constitutivo na teologia do Batismo e Eucaristia: ontologicamente. Ou seja, não se trata,
simplesmente, de juntar os sacramentos no mesmo cesto, mas de viver no amor extático de
Deus, realidade fundante, no qual se vincula toda a nossa existência sacramental.
Portanto, não se trata de “receitas” à pastoral litúrgica para “inventar moda”, porque
seus “frutos” são tão passageiros quanto à “moda”. Tratamos, portanto, de buscar o vínculo
ontológico pelo qual Batismo e Eucaristia se encontram de tal forma constituídos, numa
íntima relação inseparável: O Amor deificante de Deus.
Neste vínculo descobrimos que todos os sacramentos, como manifestação e
celebração da Graça de Deus, se encontram numa única realidade sacramental, o ser de
Deus: O Amor Ágape. Este Amor nos arrebata à comunhão com o seu Ser. Esta perspectiva
da deificação, portanto, não é um mero acessório à pastoral sacramental, mas lhe é
constitutiva, uma vez que os sacramentos celebram a graça de Deus e, por ela, a nossa
comunhão com a natureza divina.
Por isso, enfrentar a questão da deificação não é novidade em si mesma, pois a
reflexão teológica, deste o NT tem abordado, de uma forma ou de outra, o tema. Contudo,
recolocá-la enquanto fundamento da reflexão teológica parece ser um desafio, por tocar no
cerne da questão do cristianismo, que se fundamenta no mistério da encarnação de Cristo,
Verbo do Pai, culminando com a entrega sacramental: paixão-cruz-morte e ressurreição. Na
entrega de Cristo e na entrega do seu Espírito à Igreja, recebemos o Espírito Santo do Pai
que nos deifica no amor trinitário.
É uma alegria muito grande poder acompanhar a reflexão teológica da deificação,
nela encontramos as razões de nossa humanidade e de nosso “destino”.
- 11 -

INTRODUÇÃO

O objetivo principal desta introdução é apresentarmos o conceito de


deificação que fundamenta todo o trabalho. Como é um conceito muito complexo,
baseamo-nos em muitas citações, seja no corpo do trabalho ou nas notas de
rodapé.
Fazemos isso porque, na temática da dissertação, apresentamos os
sacramentos do Batismo e da Eucaristia numa perspectiva bem definida: a
Deificação1. Trata-se de uma proposta pertinente, por acreditarmos que os
sacramentos têm força ontológica para transformar a vida na fé. A graça de Deus e
a força do Espírito Santo atuam na celebração litúrgica dos sacramentos, fazendo
acontecer, de fato, uma transformação da realidade humana.
Há, certamente, muitas maneiras e métodos válidos de abordagem da
temática do vínculo teológico-litúrgico dos sacramentos entre o Batismo e a
Eucaristia. Por analogia, contudo, podemos dizer que nada é tão natural e vinculado
quanto o nascer e o se alimentar; nada é tão natural na vivência da fé quanto ser
deificado pelo Batismo (nascimento) e manter-se deificado pela graça da Eucaristia
(alimento). Há aí uma verdadeira relação constitutiva de sacramentalidade.
A escolha de uma perspectiva foi, primeiramente, metodológica, mas com o
passar da pesquisa se tornou, inevitavelmente, uma questão de conteúdo, a tal
ponto que, a realidade da deificação, inspirada em Xavier Zubiri2, surge para nós

1
Deificação: Theósis: “No Espírito Santo essa é participação consciente na humanidade glorificada
do Cristo que vem a nós nos mistérios da Igreja e, sobretudo, na Eucaristia. Deus, estando numa
transcendência inacessível, vem a nós em Cristo para fazer-nos participar da glória, da sua energia,
do seu Espírito ‘doador de vida’. A deificação é pois o conteúdo ontológico de uma comunhão
pessoal”. EVDOKIMOV. P, L’Ortodossia. Bologna: Edizioni Dehoniane Bologna, 2010. p. 518.
2
ZUBIRI, filósofo e teólogo, espanhol do século XX, apresenta uma alternativa de pensamento à
filosofia moderna racionalista e ao idealismo contemporâneo. Neste quadro muito geral e abrangente
se coloca como um pensador que toma por fundamento Deus enquanto realidade real à qual a
criação está ligada, ontologicamente. E o humano, de modo particular, está ligado ao amor extático
de Deus no qual adquirimos realidade de ser. Nisto se dá a nossa ligação (religião). E pelo mistério
da Encarnação somos participantes, ontologicamente, do amor de Deus (ágape) que nos transforma
e nos deifica pela graça sacramental, sobretudo pelo batismo, que nos confere participar da natureza
de Deus, e pela eucaristia, que nos concede a comunhão com Cristo. Este trabalho não tem por
objetivo a defesa do pensamento de Zubiri, porque não é nossa proposta temática. Porém,
assumimos seu pensamento respectivo à deificação, como uma nova luz para fundamentarmos a
reflexão teológica dos sacramentos, pois o Espírito é energia dinâmica, como nos ensinou o Concílio
Vat II. Tomamos por referência: ZUBIRI, X. Sobre La Realidad. Madrid: Alianza Editorial, 2001; El
Hombre: Lo Real y lo Irreal. Madrid: Alianza Editorial, 2005; El Hombre y la Verdad. Madrid: Alianza
Editorial, 2006; Intelligenza Senziente. Milano: Bompiani, 2008; em particular sobre a deificação:
ZUBIRI, X. Naturaleza, Historia, Dios. 13ªed. Madrid: Alianza Editorial, 2007 e MUÑOZ, G. D.
- 12 -

como uma categoria teológica. Pois somente nesta base teológica poderemos
construir o nosso edifício-teórico, sobre pedras escolhidas (e todas são bem-vindas).
Para usar uma analogia bíblica: “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a
pedra angular; isto vem do Senhor” (Sl 118,22-23). A idéia, portanto, foi acolher tudo
o que facilita, aprofunda e contribui à compreensão de nossa proposta: a deificação
como alicerce e finalidade última dos sacramentos, em particular do Batismo e da
Eucaristia. Neste sentido, a colaboração de Zubiri é indispensável para o nosso
trabalho por apresentar a novidade da “apreensão”, dentro da metodologia
fenomenológica, que nos possibilita a pesquisa teológica do mistério da encarnação
como relação interpessoal entre Deus e o homem em vista da deificação3.
Se alguém rejeitar a perspectiva da deificação, enquanto categoria de
iniciativa à reflexão teológica da fé cristã estará rejeitando o próprio Deificador de
tudo, ao qual estamos ligados ontologicamente. E, talvez, já não estará mais
fazendo teologia, reflexão da fé, na qual o teólogo está envolvido, axiomaticamente,
mas estará fazendo, quem sabe, uma boa reflexão antropológica, envernizada com
categorias transcendentais e até espirituais.
Contudo, para falar de deificação precisamos, antes, conseguir pensar em
nossa origem, nosso presente, nosso futuro como realidade ligada ao ser de Deus.
Somente a celebração litúrgica (cristã) tem poder de tornar realidade4 estes três
momentos temporais, numa implicação única de um fato-evento único, que
transcende o tempo e o espaço.
Para pensarmos e falarmos sobre a nossa origem, o caminho bíblico da
santidade de Deus é referencial. Somente no reconhecimento dessa santidade,
tomamos consciência de sermos deificados! E a nossa resposta humana à

Teología Del Misterio em Zubiri. Barcelona: Herder, 2008. NB. Também salientamos que a tradução
dos texto em espanhol é livre.
3
A referência do nosso tema em relação ao pensamento de Xavier Zubiri está na sua contribuição
metodológica, a transferência da pesquisa fenomenológica da “consciência” (Husserl), da “vida”
(Ortega) e da “compreensão” (Heidegger) à da “apreensão”. Zubiri, portanto, coloca a apreensão
humana como objeto basilar da filosofia. Na apreensão podemos fazer a experiência de Deus como
compenetração interpessoal pela encarnação de Jesus na realidade da natureza humana. O mistério
da encarnação então assume a finalidade da nossa deificação. Nesta experiência interpessoal do
amor de Deus podemos descobrir a nossa ultimidade que fundamenta a nossa religião em adoração
e sacrifício, fundamenta a nossa ação litúrgica sacramental. Cf. GRACIA, D. Zubiri Xavier. In
FISICHELLA, R. (Org.). Dicionario di Teologia Fondamentale. Assis: Cittadella Editrice, 1990. p. 1457-
1462.
4
Juan A. NICOLÁS, apresentando o livro, El Hombre y La Verdad, de ZUBIRI, afirma que segundo o
autor: “O homem, por mais nihilista que se declare, vive cheio de realidade”. E, ainda, esta
perspectiva zubiriana da realidade “reconstrói uma concepção da realidade humana na era da crise
do sujeito, concepção não substancial, porém tampouco devastadora da realidade enquanto tal”. In
ZUBIRI, X. El Hombre y La Verdad. Op. cit. p. VII-VIII.
- 13 -

santidade de Deus, à graça e à bondade se abre na fé batismal que nos deifica para
celebrar na eucaristia.
O NT já explicita a deificação humana, vida Nova inaugurada por Jesus
Cristo, como reflexão teológica. Será, então, nesta perspectiva que a Igreja
desenvolve todo o pensamento teológico, tanto no Oriente quanto no Ocidente.

Enquanto o AT conserva com cuidado a intangibilidade da


transcendência divina, para o pensamento filosófico grego o ideal é a
assimilação e por fim a identificação com o modo divino. No seu
discurso ao Areópago São Paulo apreende esta afirmação do poeta
Arato: “e da estirpe (de Deus) nós somos” (Atos 17,28). Não obstante
a sua origem grega, o vocabulário da “deificação” ou “divinização”
(Théosis, Theopoínesis) se é imposto aos Padres como adaptado para
exprimir a novidade da condição à qual o homem é introduzido graças
à encarnação, à “humanização” de Deus. Coube a Clemente de
Alexandria dar a esta doutrina expressão adequada: “O Verbo de
Deus se fez homem a fim de que tu aprendesse de um homem como o
homem pode tornar Deus” (Redenção e Deificação). Aos nossos dias
é mérito dos teólogos do Oriente se esta doutrina retorna a ser familiar
aos Ocidentais5.

A base que fundamenta a teologia cristã da deificação sacramental é esta: “o


Filho de Deus se fez homem para nos fazer Deus”6. Neste mistério, contudo,
podemos dizer que a deificação fundamenta todo o nosso agir cristão, a nossa
atividade no mundo, como seres deificados, por ser uma realidade que independe
da nossa vontade e transcende para a vontade divina. “A razão profunda da
encarnação não depende do homem, mas de Deus: esta tem as suas raízes no seu
desejo pré-eterno e inefável do divino tornar-se homem e de fazer da sua
humanidade uma Teofania, a sua morada”7. A partir do mistério da encarnação, toda
a teologia será reflexão que explicita a nova relação entre Deus e o homem. Por

5
SPIDLÍK, T. Deificazione. In FARRUGIA, E.G. Dizionario Enciclopedico dell’Oriente Cristiano. Roma:
Pontificio Istituto Orientale, 2000. p. 217.
6
“Devemos a Atanásio a perspectiva fundadora de que ‘o Filho de Deus se fez homem para nos fazer
Deus’ (PG 25, 192 B; cf. Irineu, PG 7, 1109 A), mas também encontramos em Tomás que ‘o Filho
único de Deus [...] assumiu nossa natureza, a fim de que ele, feito homem, tornasse os homens Deus’
(Opúsculo. 57, oficio da festa do Corpo de Cristo, cf. ST Ia IIae, q. 3, a. 1, ad 1). [...]Trata-se somente
de aspectos do mistério único do chamado à santidade, que Oriente e Ocidente explicam, cada qual à
sua maneira, com destinos diversos”. MCPARTLAN, P. Santidade. In LACOSTE, J-Y. Dicionário
Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola 2004. p. 1611. Os Padres gregos valorizaram o
mistério da divinização que católicos e ortodoxos afirmam quando descrevem o destino do homem
como “sua deificação pela vitória sobre a morte”. No mistério da encarnação encontramos portanto a
nossa origem.
7
EVDOKIMOV. P. L’Ortodossia. Op. cit. p. 84.
- 14 -

caminhos diferentes, a preocupação tanto do Oriente quanto do Ocidente sempre foi


refletir sobre o mistério do homem deificado.

Se o Ocidente tem como preocupação o pecado e a perda da graça, a


“simplicidade” antropológica do Oriente o faz concentrar-se na
conseqüência brutal, a morte. Para Atanásio, p. ex., “o homem é
mortal por natureza, já que saiu do nada” (PG 25, 104 C). O pecado
nos corta de Deus, ele é uma nova ameaça de morte. A alma não é
imortal em si mesma, já que ela também é criada e corre o risco de
retornar ao nada. Assim é superada a tendência ocidental a distinguir
um corpo mortal e uma alma imortal: o corpo e a alma, “juntos”, é que
foram criados à imagem de Deus (PG 150, 1361 C)8.

Tanto Oriente quanto Ocidente, em perspectivas diferentes, garantem o fato:


“O Criador é santo em si mesmo, e a criatura é somente chamada à santidade”9; por
graça, por participação: somos deificados. Santo Atanásio nos ajuda nesta
compreensão fundadora da fé cristã e de sua teologia. Mas a pergunta que se põe
é: quem é esse Deus do qual participamos numa relação de deificação?10. A
questão da relação entre Jesus de Nazaré com o Deus de Israel foi o primeiro

8
MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1611.
9
MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1611.
10
“Pode-se dizer que na patrística latina, desde a primeira utilização de Ex 3,14 (por Novaciano), ‘o
sentido ontológico do nome revelado a Moisés não apresenta um problema para ninguém’ [...]. Nessa
tradição, Agostinho fornecerá uma interpretação clássica do primado teológico do ser [...]. O Deus de
Agostinho se revela sob dois nomes, seu ‘nome substancial’ (nomen substantiae: sum qui sum) e seu
‘nome de misericórdia (nomen misericordiae: Deus de Abraão, de Isaac...). Se Deus é, então o
homem, habitante da região da dessemelhança [...], aparece antes como aquele que não é.
Contemplando em Deus, o ser é imutabilidade e eternidade. A partir disso, o ser não pode ser
atribuído ao homem senão com reservas. Definido como aquele que muda e que passa, o homem é
aquele sobre o qual se pode dizer também que não ‘é’; e definido por seu pecado como ‘aquele que
vai para longe do ser [e] vai rumo ao não-ser’ (Sl 38,22; CChr.SL 38,422), ele é também aquele que
só é realmente ao final de uma conversão. Contemporâneo de Agostinho, Jerônimo também afirma
que somente Deus é verdadeiramente, e considera além disso que o nome dado em Ex 3,14 revela a
essência divina (Epístola. 15,4,2, CSEL 54,12-18). A teologia grega também afirma o ser de Deus.
[...] Será a teologia bizantina, e sobretudo Gregório Palamas, que precisará os termos de uma teoria
da participação em Deus. Se o futuro absoluto do homem deve ser pensado sob a marca da
‘divinização’, theosis, conforme a 2Pd 1,4, Deus (ou ao menos sua ‘natureza’, phusis) deve pois ser
participável. Para indicar que uma doutrina da divinização não abala a da transcendência divina, o
Pseudo-Dionísio havia proposto uma formulação paradoxal: Deus é participado imparticipavelmente’,
ametekhtos metekhetai. Em Palamas, a distinção já clássica (p. ex., Basílio, PG 32, 869 AB) entre
as energias divinas (participáveis, as dunamesis do Pseudo-Dionísio) fornece uma solução coerente
ao problema. Os direitos da apófase são mantidos, pois a essência (ou sobreessência,
huperousiotés) divina permanece estritamente incompreensível. Mas o direito de uma ontologia do
divino também é mantido: ao forçar a elaboração de uma doutrina escatológica da humanidade do
homem, o conceito de divinização também obriga a falar de um Deus que é, certamente com a
precisão de que ‘se foi preciso fazer a distinção, em Deus, entre a essência e o que não é a essência,
foi precisamente porque Deus não é limitado por sua essencia’ (Vl. Lossky, a l’image et à La
ressemblance de Dieu, Paris, 1967, 50)” . LACOSTE, J-Y. Ser. In Dicionário Crítico de Teologia. Op.
cit. p. 1647-1648.
- 15 -

trabalho da teologia cristã. “Aquele que é dito ‘Senhor’ e que participa, pois, desse
modo, da esfera de existência do Senhor Deus, é também ‘filho’ e ‘servo’”11. Será na
base desta relação intradivina que o cristianismo pôde, em Nicéia I (325), definir a
consubstancialidade do Deus Pai e do Filho, elaborando o dogma trinitário e depois
o cristológico12.

O pensamento patrístico e os pensamentos que suscitou nunca


cessaram de meditar uma condescendência que sabiam ser tão
grande como ela; teologia trinitária, cristologia, teoria da divinização,
todos os discursos patrísticos visam a dizer a necessidade dessa
múltipla meditação, tal como impõe o conhecimento de um Deus
reconhecido como Pai no Filho tornado um dentre os homens13.

Santo Agostinho está na esteira de Irineu que diz: “Glória de Deus é o homem
que vive e a vida do homem consiste na visão de Deus”14. Homem e Deus estão
colocados numa relação de permanente dinâmica de realização mútua. Com um
enfoque diferente que reduz à mesma realidade teológica temos no Oriente com
Gregório Palamas que diz: “o objeto da visão beatífica não é a essência divina,
como no Ocidente, mas as energias divinas incriadas de Deus”15. Contudo, a
realidade da comunhão com Deus é defendida, tanto no Oriente quanto no Ocidente,
e a diferença de enfoque não compromete a realidade ontológica da deificação. Fica

11
LACOSTE, J-Y. Ser. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1656.
12
“Para afirmar a irredutibilidade do ser-Pai, do ser-Filho e do ser-Espírito em Deus, os Padres
capadócios forjaram uma fórmula que devia ser recebida por toda a Grande Igreja: a unidade de
essência (ousia) abriga em Deus uma triplicidade de hipóstases (hypóstaseis) ou pessoas (prosopa).
E quando foi preciso afirmar a unidade radical entre o humano e o divino em Jesus, uma fórmula
também foi forjada (que não teria a mesma recepção): na única hipóstase/pessoa do Filho são unidas
a natureza (physis) divina e a natureza humana”. LACOSTE, J-Y. Ser. In Dicionário Crítico de
Teologia. Op. cit. p. 1656. “A transcendência divina é objeto de uma afirmação incansável no
discurso cristão (até nas formas extremas que pode assumir o anúncio de um Deus ‘totalmente
outro’), mas o futuro absoluto do homem também é anunciado nos termos de uma participação na
natureza divina – divinização, theosis, cf. 2Pd 1,4 -, contra a qual a tradição protestante é a única a
apresentar objeções (em nome de ser Deus no lugar de Deus, e da recusa de que Deus seja Deus,
nos quais Lutero vê o segredo do homem pecador). Entre Deus/Cristo e o homem, além disso, é
apresentada uma relação de imitação, mímesis, desde o corpus paulino como possível e necessária.
E mesmo que seja modesto o lugar ocupado de fato pelo teologúmeno da criação à imagem e à
semelhança de Deus nas Escrituras [...], ele, em compensação, é onipresente na literatura patrística,
e além dela”. LACOSTE, J-Y. Ser. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1657.
13
WOLINSKI, J. Deus. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 532.
14
IRINEU DE LIÃO. Livro IV, 20,7. São Paulo: Paulus, 1995, p. 433.
15
MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1610-1611. Não é nosso
objetivo entrarmos na questão teológica das duas vias: teologia positiva e teologia negativa, mas
apontar, apenas, que surge correntes diversas se não se mantém o equilíbrio destas duas realidades.
Como diz Gregório de Palamas, “é necessário manter o equilíbrio entre os dois membros da
antinomia para não perder o contato com as realidades reveladas, substituindo-as com os conceitos
de uma filosofia humana”. LOSSKY, V. A Immagine e Somiglianza di Dio. Bologna: EDB. 1999. p. 92.
- 16 -

assim defendida a realidade da comunhão com Deus pelo princípio da distinção


entre essências e energias.

Seu princípio fundamental é a distinção entre essência e as energias


de Deus (PG 150, 1169 C), e sua doutrina preserva ao mesmo tempo
a realidade da divinização do homem: se só participamos das energias
de Deus, tais energias são todavia incriadas e verdadeiramente
divinas16.

A divinização, como processo, acontece na pessoa e não apenas na


natureza. “A humanidade de Cristo é divinizada porque é assumida pela pessoa de
Cristo, e os seres humanos são divinizados porque entram numa relação pessoal
com ele”17.

A deificação consiste, portanto, em adquirir, não a natureza divina, o


que é impossível, mas a “maneira de ser” divina de pessoas em
comunhão. Como essa divina maneira de ser entrou na humanidade
por Jesus Cristo, a deificação é atingida pela união sacramental com
ele, [...]. Zizioulas [...] pensa que, por causa da prioridade
tradicionalmente concedida à natureza sobre a pessoa na teologia
trinitária ocidental, o Ocidente nunca aceitou verdadeiramente a
“theosis” e o homem nunca pode ser, ali, partícipe da natureza divina.
Se se dá prioridade à pessoa, então, ao contrário, pode-se aceitá-la
plenamente18.

Buscando a maneira de corresponder na vida concreta à nossa deificação, a


Igreja é um caminho “sacramental” imprescindível para o homem se descobrir como
ser deificado. Nós temos clareza que a via sacramental seja esta realidade de Deus
partilhada conosco. Ou seja, se a Igreja revelar e viver a sua origem: mistério de
16
MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1611.
17
MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1612. “Gregório de Nissa
acreditava que a divinização da natureza humana de Cristo era um processo acabado somente na
ressurreição”. MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1611.
18
MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1612. “A imagem tende
para a semelhança, que é a deificação: ‘A imagem predestina o homem à theosis’ [Evdokimov 1979,
80]. Gregório de Nazianzo faz eco ao que Basílio diz do homem, criatura que ‘recebeu a ordem de se
tornar (um) deus’ (PG 36,560A), embora a distinção da essência e das energias seja mais clara em
Basílio (PG 32, 869A-B) que em Gregório (PG 36, 317 B-C). É a eucaristia sobretudo que realiza a
deificação (PG 35,1200 B). Gregório de Nissa não quer que se tenha a idéia de que o arroubo rumo
a Deus deságüe numa ‘visão’ estática: segundo ele, mesmo no mundo por vir, iremos ‘de começo em
começo por começos que nunca tem fim’ (PG 44, 941 C). Ele acrescenta que ‘ser cristão é imitar a
natureza’ (PG 46, 244C), mostrando claramente assim que se tornar cada vez mais semelhante a
Deus (razão por que é necessária uma livre cooperação, uma sinergia, com a graça) é tornar-se cada
vez mais uma pessoa, atingir a plenitude da natureza humana, tal como em Deus cada pessoa possui
a totalidade da natureza divina”. MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op.
cit. p. 1611-1612.
- 17 -

Cristo, encarnado e glorificado, conseguirá ser missionária de Cristo e da deificação


sacramental. Pois, por Cristo recebemos o Espírito Santo do Pai, que nos torna
filhos deificados.

A novidade que a experiência cristã pretende viver pode então ser


pensada como dom de um modo de ser eclesial (ou “hipóstase
eclesial”), que uma fenomenologia da celebração eucarística recebe
como missão descrever [...] O essencial (o definitivo, o escatológico),
com efeito, é realmente dado na Igreja empírica nos atos litúrgicos em
que ela manifesta toda a sua identidade – mas é segundo o modo da
antecipação, segundo o modo de um sentido que investe o presente a
partir de um futuro absoluto, que o essencial (existência plenamente
pessoal) possui uma presença [...]19.

A pessoa é chamada a celebrar os sacramentos nas dimensões que estes


lhes afetam e lhes constituem. E para quem experimenta a graça da salvação,
bondade de Deus, só lhes resta de fato celebrar. Ainda que a consciência dessa
experiência da graça seja subjetiva, enquanto vivência e expressão, por se tratar de
um dado de fé, o humano pode celebrar, objetivamente, os sacramentos que lhe
confere uma transformação pela força do Espírito e o deifica para a filiação com
Deus.

19
LACOSTE, J-Y. Ser. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1658-1659. A celebração litúrgica
enquanto ato, que expressa a novidade da vida cristã e eclesial, encontra então o seu fundamento: a
comunhão da trindade como manifestação do “ser” no amor que nos deifica: “[...] a comunhão
constitui a vida. A existência é um acontecimento de comunhão. A ‘causa’ da existência e a ‘fonte’ da
vida não são o ser em si [...]. é a divina comunhão trinitária que personaliza o ser como
acontecimento de vida”. LACOSTE, J-Y. Ser. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1659.
- 18 -

CAPÍTULO I – A DEIFICAÇÃO: AMOR EXTÁTICO DE DEUS

Neste capítulo tentaremos apontar a realidade de Deus, que nos deifica no


seu amor extático. Somente neste princípio de profissão de fé encontraremos as
razões do Pai para enviar o seu Filho ao mundo; somente na experiência espiritual e
na vivência dos sacramentos descobriremos as razões do Pai e do Filho enviarem
sobre a Igreja o Espírito Santo, canal de nossa deificação sacramental.

1. O Ser de Deus

O amor de Deus deifica o homem e se manifesta em amor-doação. É inerente


ao Ser de Deus o amor: pois, “o amor é de Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8)20.
Para o apóstolo João, além do primeiro nascimento da carne (Jo 3,6a), da natureza,
há um segundo nascimento do Espírito, que se dá pelo sacramento do Batismo, que
nos deifica e nos faz participar do amor divino: “todo aquele que ama nasce de Deus
e conhece a Deus” (1Jo 4,7); há, portanto, no amor, um conhecimento possível de
Deus, que se dá pela lógica do seu Ser de amor.
Ao conhecimento de Deus não se chega apenas pelas categorias filosóficas e
metafísicas do pensamento lógico racional, embora indispensável à linguagem
demonstrativa21, mas pela intrínseca lógica do amor. Assim, o conhecimento de
Deus se dá pelo seu conteúdo e significado, que não se fundamenta apenas no
sentido de justificação da lógica da linguagem científica22 (premissas, argumentação

20
Oportuno é a colocação de Harder sobre o tema: “Deus é amor” (1Jo 4,8). Assim nos diz: “Essa
fórmula, que reúne de maneira decisiva toda a revelação, não é nem uma divinização do amor (que
teria um alcance puramente antropológico), nem a simples evocação de um Deus amante. Deus não
é um amante, é o acontecimento mesmo do amor, tal como se manifestou na paixão e na
ressurreição: Deus não reteve para si o bem-amado, ele o deu e assim abrangeu o próprio mundo em
seu amor. Ao amar Jesus até a cruz, amou a humanidade como a seu Filho, e a introduziu em seu
mistério, para que, permanecendo em seu amor, ela prossiga sua obra”. HARDER, Y-J. Amor. In
Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 114-115.
21
Quanto a esta fundamentação da linguagem referente à religião, Zubiri explica: “em todo caso,
nenhuma etimologia resolve problemas teológicos. E é suficiente que a coisa seja cientificamente
provável para que, sem precipitação nem frivolidade, possa apelar-se a ela apontando a objetivos,
não lingüísticos, senão teológicos”. ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. In Nota. p. 430.
22
“Tal pesquisa deve ser racional, obra de um tipo de razão, que neste caso não chamaremos razão
científica, mas razão teológica”. GRACIA, D. Zubiri Xavier. In FISICHELLA, R. (Org.). Dicionario di
Teologia Fondamentale. Op. cit. p. 1459.
- 19 -

e conclusão), porém se fundamenta no amor extático de Deus: “todo aquele que


ama nasceu de Deus e conhece a Deus” (1Jo 4,7). A nossa linguagem não é apenas
a da argumentação e fundamentação filosófica, mas teológica.
O que nasceu do Espírito (Jo 3,6b) é deificado. Pode conhecer Deus. A partir
da linguagem, que tem por fundamento o amor, somos conhecedores de Deus e
celebrantes do seu amor. Pois a linguagem da liturgia só encontra correspondência
nesta fundamentação: Deus é amor, é graça. Conhecemos a Deus e o celebramos
pela linguagem do Amor e do Espírito.
Vivemos no amor de Cristo, enviado do Pai, já que não fomos nós que
amamos a Deus, mas foi ele que nos amou no seu Filho23. Este amor, contudo, deve
estar numa tal efusão conosco que nos faça arrebatar à comunhão do amor extático
de Deus24. Ou seja, estamos envolvidos de tal modo nele e o acolhemos na fé como
realidade inerente à nossa existência de comunhão com Deus-Trindade.
O amante sai de si, em busca do amado - é o amor do Pai; se sujeita ao
sacrifício e faz de si um dom total ao outro - é o amor do Filho (cf. Fl 2,1-11); o amor
do Pai e do Filho é o Espírito. Nisto se encontra o Amor extático da Trindade
revelado na pessoa de Jesus Cristo. Ele vem permanecer em nós pela Encarnação
e pelo Espírito Santo de glória - é o amor do Espírito. A Trindade vem habitar em
nós pela graça, nos santifica, nos deifica. A pessoa, ao se abrir pela fé a este amor,
se permite tornar morada de Deus. “Deus é Amor: aquele que permanece no amor
permanece em Deus e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). Isso implica que ele se faz
conhecer pelo amor e na permanência do amor: conhece-se a Deus amando-o e
amando seu próximo.
O homem, contudo, conhece e faz uma experiência de “amor” independente
de Deus: quando ama a si mesmo, buscando sua felicidade, ama o próximo por
inclinação, desejo ou paixões (eros)25. A questão é saber se o amor de Deus e a
experiência do amor humano se tocam ou se distanciam um do outro. Ou seja, o

23
É no amor do Filho que a Igreja tem a sua origem e a sua força sacramental: todos os batizados se
revestem de Cristo, os ministros ordenados agem na pessoa do Cristo.
24
Bento XVI escreve, em sua Carta Encíclica: “O amor é êxtase; êxtase não no sentido de um
instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo
para sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para reencontro de si mesmo, mais
ainda para a descoberta de Deus”. BENTO XVI, Carta Encíclica: Deus é Amor. São Paulo: Paulus,
2006. p. 13.
25
O termo eros no sentido de que não é contraposto a ágape, mas os dois se complementam:
movido pelo Espírito Santo o Eros, tendencialmente voltado para si mesmo, desenvolve-se em
ágape, isto é, em amor ao próximo. Cf. EVDOKIMOV. P. L’Ortodossia. Op. cit. p. 515.
- 20 -

humano pode viver inspirado no amor divino? “Nisto consiste a perfeição do amor
em nós [...] porque tal como ele é também somos nós neste mundo” (1Jo 4,17).
O amor extático estabelece laço de fidelidade na relação “eu-tu”, faz superar
todas as dificuldades para transformar o mundo em amor, seu princípio unificador.
Neste sentido amor-unificador supera e incorpora a força do eros (do egoísmo)26,
numa constante purificação, não rejeição, para se abrir ao amor extático, ágape
(doação), em direção ao outro. Se o impulso do Eros tem a função do impulso e do
instinto na pessoa, não se pode rejeitá-lo, contudo, precisa purificá-lo pela via das
renúncias que permitam a sua integração para o amor27.
Aquele que ama (ágape) contempla no outro a sua beleza e ao unir-se ao
outro não se apropria de sua beleza, mas mantém a alteridade na comunhão. Aqui
só se entende o amor como transcendência de si para se completar no tu (outro), o
meu eu que não vejo. Disto decorre que o amor é ativo. O eu, sai de si em direção
do tu, objeto (pessoa), para se construírem juntos em criatividade, que se renova na
dinâmica intrínseca e exclusiva do próprio amor. Numa palavra, somente superando
o egoísmo e se abrindo ao outro, há possibilidade da construção de algo novo: a
comunhão da alteridade.
Na criatividade do amor se constrói a amizade. E ela é perfeita para quem
ama somente pelo ato de amar, e nada esperar em troca. A única coisa que espera,
sim, é apenas a alegria da amizade que se fundamenta em ágape. Na amizade está
a fonte da comunidade; o viver um “pelo” e para o “outro”. Esta comunidade faz
crescer nos humanos as virtudes. Faz também crescer a satisfação e felicidade de
estarem juntos por ser o amigo, o outro eu. Eu preciso do outro para contemplar nele
o que sou. O outro, então, constitui a inspiração da alma humana que se dá também
em amor caridade, ágape.
No amor extático o sujeito sai em busca do objeto (pessoa) amado e a ele se
alia, estabelecendo uma relação de dependência (religação) tal que a razão de ser e
existir do amante está no outro. O outro não é amado pelo seu valor ou qualidades.
Por isso a causa do amor extático tem sua fonte no ato de amar, não nas razões

26
O eros ,sem passar pela purificação, não é êxtase, mas degradação do humano. Contudo, ele não
deve ser rejeitado, mas purificado. “Sim, o Eros quer nos elevar “em êxtase” para o Divino, conduzir-
nos para além de nós próprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias,
purificações e saneamentos”. BENTO XVI. Carta Encíclica: Deus é Amor. Op. cit. p. 12.
27
Cf. BENTO XVI. Carta Encíclica: Deus é Amor. Op. cit. p. 11.
- 21 -

para amar28. Assim, podemos dizer que o destino do amor extático é amar pelo ato
de amar, simplesmente. Neste ato puro de amor está a caridade divina.
É este sentido do amor amizade, intimidade entre Deus e o homem, que está
presente na Sagrada Escritura: fonte deste amor divino pelos amigos. Desde a
criação, a encarnação, a ressurreição, até a volta do Senhor glorificado, tem-se a
revelação de Deus em amor. Desta revelação surge para nós o mandamento: amar
a Deus (Dt 6,5), pois ele nos amou primeiro, nos elegeu no amor e para o amor. E
Jesus radicaliza em sua pregação este mandamento relacionando-o, imediatamente,
ao amor do próximo, que estende também para com os inimigos (Mt 5,42-48).
Somente a pessoa transformada pelo amor radical de Deus revelado em Cristo,
portanto, deificado, está em condições da amar inimigos.
Na teologia de Paulo, o amor manifesto em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm
8,9), não é tanto um objeto de ensinamento, quanto um mistério que supera todo
conhecimento (Ef 3,19); participar dele não é conformar-se a preceitos, mas deixar-
se ganhar pelo Espírito, do qual o amor é o fruto (Gl 5,22)29.
No Mistério Pascal de Cristo o amor se irradia e se deixa perceber por aquele
a quem o Espírito Santo abre o coração. Já não se trata mais de um sinal do amor
de Deus, mas da vinda absoluta de seu amor, tornados sacramento em Cristo.
Deus enviou o seu Filho e o entregou ao mundo e aos pecadores (Rm 8,32; Cl 1,13).
O Filho, oferecido ao Pai, abandona-se, renuncia a si, até morrer numa cruz (Fl 2,7-
8; Rm 5,8). O amor é, ao mesmo tempo, a condição, o sentido e o fruto desse
sacrifício, para o mundo, para o povo judaico, para o homem (Ef 2,15; 4,22; 2Cor
5,17; Cl 3,9). É do mistério de Cristo-Sacramento que a Igreja nasce para celebrar a
nossa deificação pelos sacramentos, a nossa entrega a Deus.
O Espírito nos introduz no mistério da vida de Cristo e nos faz participar de
sua morte e ressurreição, sacramentalmente. A nossa vida espiritual, em comunhão
com Cristo, repousa sobre as virtudes que permanecem: a fé, a esperança e a
caridade, que nos constituem na relação com Deus. “É como elemento desta
estrutura que o amor se torna caridade”30. A virtude da “caridade”, no entanto, só se
justifica na relação com a fé e a esperança. A fé faz descobrir em Deus o amor, e no

28
Cf. HARDER, Y-J. Amor. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 110.
29
HARDER, Y-J. Amor. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 113.
30
HARDER, Y-J. Amor. In Dicionário Crítico de teologia. Op. cit. p. 114.
- 22 -

coração do crente se dilata na dimensão da esperança, já manifestado em plenitude


(Rm 8,35-39).

Mas, entre as três virtudes, a maior é o amor (1Cor 13,13; Cl 3,14);


não que a fé seja uma certeza imperfeita, mas é pelo amor que se crê
e se espera (1Cor 13,7); Rm 5,5). O amor é a fonte de todo valor; a
generosidade, os próprios dons do espírito, a liberdade, o respeito da
lei, todos só têm valor porque provêm do amor e produzem o amor
(1Cor 13,1ss; Gl 5,14 Rm 13,8ss). O amor não só comunica vida, mas
é a vida31.

É na dimensão do amor-vida que somos deificados. Recebemos vida do


amor. O mandamento do amor dado por Jesus aos discípulos não tem nenhuma
novidade enquanto conteúdo, que é o mesmo já presente nas Escrituras. Mas tem
novidade, contudo, na expressão do próprio Cristo, amar até entregar a vida (Jo
19,30). Somente em comunhão com o Espírito se pode amar com as
potencialidades de Deus.
O gesto de Jesus na última Ceia (Jo 13) nos mostra o quanto a nossa liturgia
deve ser permeada por gestos e atitudes que gerem amor à vida da comunidade. O
amor que deve refletir na vida dos seguidores de Cristo é o mesmo, pois temos a
mesma fonte: o amor do Filho ao Pai. Numa reciprocidade de “compromisso”: amor-
entrega. O amor manifesta, assim, a dimensão Trinitária de Deus: propriamente
falando, ele é o Espírito Santo.
É na base desta corrente do NT que a teologia da Igreja irá desenvolver a
temática do amor, sem nunca esgotar a reflexão, por se tratar do elemento fundante
da fé cristã. Ao amor sempre devemos retornar para iluminar a reflexão teológica32,
iluminada sempre por Cristo, e não poderia ser diferente. Pois, embora não o
vejamos, possuímos o seu amor pelos sacramentos na experiência de fé.

31
HARDER, Y-J. Amor. In Dicionário Crítico de teologia. Op. cit. p.114.
32
Harder, conclui: “para que o amor seja verdadeiramente distinto do egoísmo, é preciso que o outro
exista, e me preceda por seu amor. Não há amor sem revelação do outro. Mas como assegurar-se
disso, sem cair nas aporias do fechamento subjetivo? Aqui o amor exige, seja qual for a forma que
assuma, que se elimine sua ambiguidade e se decida a seu respeito: compete à vontade dizer o que
ele é. Por conseguinte, a definição geral do amor supõe uma forma de generosidade: é preciso fazer-
lhe crédito, e consentir que a ausência seja um modo essencial do ser. Essa confiança é a do
amante, que pelo juramento dá um sentido infinito à finitude de seu sentimento, a do filósofo
socrático, que deseja o pensamento no coração do não-saber, e a do crente, que aceita ser amado
por quem ele não vê”. HARDER, Y-J. Amor. In Dicionário Crítico de teologia. Op. cit. p. 117.
- 23 -

2. O ciclo extático do amor de Deus: em Zubiri

Motivados pela afirmação de Zubiri: “Necessitamos ir da natureza e da


história ao ser”33, conscientes de nossas limitações, mas confiantes em nossas
possibilidades, vamos tentar expor a nossa compreensão do Amor Extático de
Deus, em Zubiri. Por ser este amor a fonte da nossa deificação é, por isso mesmo, a
mudança de nossa natureza na natureza divina.
O ser de Deus como nos apresenta o NT é amor, ágape. Podemos dizer que
esta é a marca da identidade de Deus, que afeta o ser, por si mesmo, segundo o NT
e a Tradição dos Padres gregos. Esta marca é a dimensão ontológica e real: ágape.
Nesta dimensão surge a doação de si mesmo como fonte de graça. Embora se
encontre, na pessoa, a força natural de eros, o humano é também capaz de receber
e realizar a dimensão da ágape: a marca do amor divino, que vem ao nosso
encontro e quer conosco permanecer (Jo 15,9).
Enquanto pessoa, nós nos referimos a Deus, pois dele recebemos sua
natureza em doação: ágape que nos leva até a Ele e às demais pessoas. Por esta
doação de Deus afirmamos: “Ele é o mais extático dos entes, porque de certo modo
é êxtasis subsistente”34 Por isso mesmo, é o mais supremo dos seres.
Será esta perspectiva teológica, essencialmente personalista, presente na
teologia grega que nos aproxima mais facilmente da compreensão deste amor
extático, doação deificante. A reflexão teológica deve ser personalista porque se
fundamenta na relação Deus-homem: “o movimento primário com uma prioridade
metafísica e intelectual, e não apenas de fato, do homem a Deus é um movimento
de pessoa a pessoa”35.
Em Deus temos a raiz pura do ser: ser de bondade extática e de
comunicabilidade infinita; ser de sabedoria. “Visto de fora, se manifesta como êxtasis
infinito, como fecundidade infinita: e por isso concebemos a Deus como Amor. Sua
unidade metafísica é sua êxtasis”36. Afirmamos com Zubiri: Deus é uma ação pura,

33
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 390.
34
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 478.
35
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 479-480. A relação que o homem pode estabelecer com Deus
tem a sua origem na iniciativa divina, pois Deus se oferece ao homem para o encontro e o diálogo.
Todas as Escrituras nos dão provas de que Deus é o Deus dos vivos: de Abraão, de Isaac, de Jacó e
se revela a eles para a comunhão: pessoa-pessoa. Em Jesus este encontro entre o humano e o
divino tornou-se encontro sacramental.
36
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 481.
- 24 -

um amor pessoal, uma doação deificante37, que se personifica no Filho, que é a


“dýnamis” do Pai. E o Espírito Santo nos expressa que essa “dýnamis” é idêntica,
em ato puro, à substância do Pai: enérgeia38.
No amor extático de Deus, assim concebido, a criação finca suas raízes, pois,
“a criação é uma irradiação ad extra do ser extático”39, e recebe desta fonte de amor
a sua unificação como princípio. Por isso, os Padres gregos podiam dizer que a
criação é um vestigium da Trindade: A criação recebe a operação do Espírito Santo
(enérgeia); este leva-a a realizar sua imagem exemplar que está no Filho (dýnamis);
e a faz unir-se à fonte do ser que está no Pai criador, doador de realidade e
deificação. E Nele, pelo Filho no Espírito Santo40, nos faz participar da vida divina.

Deus se constitui a si mesmo em ato puro de uma e idêntica natureza.


Cada pessoa se distingue das demais no modo de possuir sua
natureza divina. No Pai, como princípio; no Filho, como perfeição
principiada; no Espírito Santo, como autodoação em ato. A natureza
de Deus é indivisivelmente idêntica no sentido de uma mesmidade
[sic]41 ativa: a dýnamis é idêntica no ato puro à essência: é a
mesmidade ativa do amor42.

A unidade deificante do amor é já uma realidade: Deus, um ente sumamente


perfeito, “não nos engana”43. Deus, sem dúvida, pode criar muitos cosmos
independentes, porém sua vontade de independência se manifesta na estrutura da
realidade enquanto tal, a saber, na unidade respectiva do mundo.

Deus pode fazer muitas qualidades que não tenha feito. Fazer muitas
unidades que não tenha feito, desagregar muitas unidades [...]. O que
não pode fazer é que um ente não seja uno, porque então não seria
um ente senão que seriam dois44.

37
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 481.
38
Uma das condições transcendentais do ser é aquela que se realiza efetivamente pela energia e se
distingue da operação da natural (dynamis) e do repouso (argia). Cf. VON BALTHASAR, H.U.
Massimo Il Confessore: liturgia cósmica. Milano: Jaca Book, 2001. p. 126.
39
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 501.
40
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 503.
41
Mesmidade = mesmo, igual, igualdade. A natureza de Deus é a mesma por Ele ser eterno. Ser de
eternidade não muda de natureza. Por ser ele realidade, para usarmos a linguagem zubiriana. Só
Deus é plenitude de realidade. Ao passo que o homem só adquire realidade na participação com
Deus.
42
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 486.
43
ZUBIRI, X. Sobre la Realidad. Op. cit. p. 87.
44
ZUBIRI, X. Sobre la Realidad. Op. cit. p. 79.
- 25 -

A deificação se dá a nós no Espírito e pelo Espírito. Num verdadeiro


arrebatamento extático. Continuamos humanos, no corpo humano, na realidade
humana, porém participantes do Espírito45, enérgeia divina. Por isso não há lugar e
momento mais privilegiado para a manifestação da nossa deificação senão o
momento da celebração litúrgica. “Em nosso desejo de Deus nós descobrimos já a
sua presença, porque ‘a vida divina é amor sempre operante’ e ‘encontrar Deus
consiste em buscá-lo sem parar’”46. E, buscar celebrando, sempre.

A celebração litúrgica é o momento essencialmente eclesial: o Espírito


Santo dá a vida aos homens fazendo-lhes o Corpo de Cristo. Na
celebração litúrgica, toda a Igreja vive a fé, a esperança e a caridade,
tornando plenamente Corpo de Cristo. O mistério de Cristo não pode
tomar corpo em nós senão no seu Corpo que é a Igreja47.

3. A deificação da natureza humana em Zubiri48

Deus realiza, além da criação, a deificação. Na deificação Deus se dá


pessoalmente a si mesmo. É uma efusão divina dada à criação, uma unificação dela
com a vida pessoal de Deus, para associá-la à sua vida pessoal. A deificação tem
dois momentos: primeiro, Deus mesmo faz da natureza criada, o homem, a natureza
de sua própria pessoa, unidade metafísica que se dá na realidade de Cristo: chama-
se encarnação; segundo, por meio de Cristo os demais homens obtêm uma
participação de sua vida pessoal na vida de Deus: é a santificação, como
prolongamento da Encarnação. Podemos dizer que Jesus é deificado por natureza
original; nós, por natureza participativa. “Pode falar-se em sentido lato de deificação
como término ou complemento do ciclo inteiro do amor extático em que consiste o
ser de Deus”49. Analisemos estes dois momentos da deificação humana, que esteve
tão presente no pensamento dos padres gregos, e, para dizer com são Basílio, pelo

45
“Penetrar no nome de Jesus, Filho de Deus e Senhor, que é misericórdia para os pecadores que
nós somos, é entregar-Lhe esta natureza ferida que Ele não altera ao assumi-la, mas que Ele diviniza
ao revesti-la. De oferenda em epiclese, e de epiclese em comunhão, o Espírito pode então divinizar-
nos sem cessar, a vida torna-se Eucaristia, até que o Ícone seja totalmente transfigurado n’Aquele
que é o esplendor do Pai”. CORBON, J. A fonte da liturgia. Lisboa: Paulinas, 1999. p. 170.
46
EVDOKIMOV, P. L’Ortodossia. Op. cit. p. 116.
47
NIN, M. Liturgia. In Dizionario Enciclopedico Dell’ Oriente Cristiano. Op. cit. p. 448-449.
48
Apresento apenas uma síntese acerca da deificação. É referencial à perspectiva de nosso tema de
trabalho, seguindo a obra de ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 504-542.
49
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 505.
- 26 -

qual somos iluminados pelo Espírito Santo: “D’Ele nos vem a alegria que não tem
fim, a união constante e a semelhança com Deus; D’Ele procede, enfim, o bem mais
sublime que se pode desejar: tornar-se o homem Deus”50.

3.1. Encarnação

A pessoa encarnada é somente a do Filho. A única pessoa que formalmente


tomou carne humana. Porém Ele está na relação trinitária. Nosso autor, Zubiri, se
apóia na teologia paulina para fundamentar sua tese sobre a encarnação e a expõe
em três momentos. A raiz da encarnação é o mistério da vontade de Deus; Cristo é
a plenitude do ser divino; em Cristo se recapitula toda a criação51.

3.1.1 A raiz da Encarnação: o mistério da vontade de Deus

O propósito da encarnação refere-se ao seio do ser divino-trinitário: por isso


Deus se faz homem, no Filho, para manifestar-se à humanidade e fazê-la viver de
sua vida. E o Espírito Santo outorga a uma natureza humana uma personalidade
divina. É a concepção e personificação sobrenatural de Cristo encarnado: “o fato é a
pessoa divina do homem, o resultado é a reversão da natureza humana ao ser
divino no íntimo amor. Esta decisão do Pai é mistério escondido”52. O Filho
encarnado explicita este mistério por obra do Espírito Santo. Isto constitui uma
novidade para o pensamento que punha no pecado do homem a motivação para a
encarnação do Filho de Deus.

3.1.2. A revelação do mistério: a pessoa de Cristo

O modo de ser de Cristo, segundo os Padres gregos, é interpretado em


função desta concepção de Deus como ação pura, e da Trindade como uma vida

50
BASILIO DE CESARÉIA. O Espírito Santo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. 1510. p. 400. “Os homens
tornam deuses e filhos de Deus, a nossa natureza é ornada com a honra devida a Deus, a pobreza é
enaltecida a tal grau de glória de ser agora igual em honra e deidade à divina natureza: privilégio
inigualável, novidade inaudita!”. CABASILAS, N. La Vita in Cristo. 4ªed. Roma: Città Nuova, 2005. p.
77-78.
51
Cf. ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 506.
52
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 507.
- 27 -

divina pela qual se realiza e se afirma uma só natureza. Os Padres viram sempre a
natureza a partir da pessoa.
São Paulo nos diz que Cristo é pleroma, plenitude de todo o ser divino no
humano. Trata-se de constatar estes três modos de existência plena de Cristo. a)
Sua existência divina: Como Filho de Deus “fez os séculos” (Carta aos Hebreus),
está acima dos tempos, é eterno, é Deus, possui idêntica natureza de Deus; b) Sua
existência histórica: O Filho de Deus tomou o modo de ser do homem (Carta aos
Filipenses). Tomou natureza humana, mesmo quando glorificado e transfigurado. O
que lhe valeu esta existência histórica foi a Encarnação por obra do Espírito Santo;
c) Sua existência gloriosa: “A glória transforma a humanidade inteira de Cristo,
inclusive seu corpo. Esta humanidade recebe o resplendor da glória ao voltar ao Pai,
que é Deus como Ele”53.
Zubiri coloca estas três dimensões do ser de Cristo como três vertentes do
ser de Deus como amor extático: a geração eterna, a encarnação, a morte e
ressurreição, apoiando-se na teologia paulina. O ponto central da afirmação de São
Paulo está em: Cristo é o Filho de Deus, tendo natureza divina. “Todo o problema
cristológico centra na existência histórica de Cristo como homem e como Deus”54:
trata-se de um mistério revelado. Tomar a natureza humana e despojar-se a si
mesmo é a expressão da encarnação; sem a encarnação do Filho seria impensável
a nossa deificação55.
Despojar-se a si mesmo alude à natureza divina. Sem deixar de ser Deus,
comunica sua divindade a uma natureza humana: apreende a natureza humana sem
deixar a divina. O Filho é o que toma as propriedades e os dotes humanos. Tomar e
despojar-se tem aqui sentido estritamente ontológico e não meramente atributivo. O
despojar-se expressa formalmente que a encarnação não é uma mescla ou
competição da natureza divina e humana, nem a produção de uma terceira natureza
em concurso das duas primeiras. Consiste em que o sujeito “Filho de Deus”,
enquanto filho, seja verdadeiramente e identicamente este jovem israelita filho de
Maria; e reciprocamente que este jovem israelita seja real e efetivamente o Filho de
Deus pessoal, sem que as duas naturezas se mesclem.

53
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 509.
54
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 510.
55
Cf. LOSSKY, V. A Immagine e Somiglianza di Dio. Bologna: Edizioni Dehoniane Bologna, 1999. p.
138.
- 28 -

“A Encarnação consiste em que se diga com a mesma verdade que o Filho


tem a natureza de Deus, e que tem esta natureza humana singular”56. E seria um
erro crer que a natureza humana torna-se simplesmente justaposta à divina. A
natureza humana, em conseqüência de sua assunção na pessoa do Filho, torna-se
como submergida por imanência na divina.
Então compreendemos melhor o sentido da encarnação. O Espírito Santo dá
ao Filho uma natureza humana singular, na qual, portanto, o Filho se realiza e revela
o Pai, e ao fazê-lo eleva esta sua natureza humana a uma vida metafisicamente
infusa na do ser natural do Pai, unida a Ele por uma ágape singular. Tal foi a
encarnação como deificação de um homem por doação do ser divino.
A fecundidade histórica desta doutrina está evidente no confronto com a
filosofia das religiões. A encarnação realiza gratuitamente o que nesta propensão
natural tem de realizável. A única maneira que um ente finito tem de ser Deus é sê-
lo tão somente pelo modo de sua subsistência, e não por sua natureza. A distinção
entre natureza e subsistência subjaz em todo naturalismo e em todo
antropomorfismo. Uma pessoa divina pode, ao contrário, divinizar gratuitamente um
ente singular natural. Numa idéia sintética podemos dizer que o que Deus pode por
ele mesmo, o homem não pode senão pela ajuda de Deus.

3.1.3 As Conseqüências da Encarnação.

Em Cristo se fala do ser divino em todos os extratos da criação. Ele


recapitula toda a criação, da qual se constitui como cabeça: a) o “começo” de tudo;
b) o “término” de tudo; c) e o “fundamento” de tudo. Cristo é o primogênito da criação
e, glorificado, é a Cabeça de tudo. No corpo glorioso de Cristo está a raiz de uma
glorificação que será comunicada ao homem e à criação natural inteira. Resumindo:
em Cristo, o Filho de Deus se realiza em uma natureza humana. É a deificação
suprema de uma criatura. Deus faz dom de sua pessoa para assumir nela uma
natureza finita. Porém o faz para obter, por meio desta deificação substancial, a
deificação dos demais homens por comunicação acidental: é o que chamamos
santificação.

56
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 511.
- 29 -

3.2. Santificação

Na efusão divina constitutiva da encarnação, “Deus dá seu próprio ser


pessoal a uma natureza humana”57. Por seu meio quis comunicar sua vida às
pessoas humanas, e esta comunicação deixa nelas estampada a natureza divina; é
a Kháris, a graça. A vida divina imprime no homem seus vestígios, e desta vida
emerge a vida sobrenatural do cristão, ao uníssono com a vida trinitária de Deus.
Para expressar esta realidade, Paulo, afirma que recebemos um espírito de adoção
filial e somos co-herdeiros de Cristo (Rm 8, 15-17). O apóstolo apresenta a nossa
deificação em paralelo essencial com a deificação de Cristo.

3.2.1. A estrutura da deificação: a graça.

Para São Paulo a deificação do homem consiste em uma filiação adotiva. O


termo “adotivo” indica que não somos filhos de Deus como Cristo, dotado de filiação
natural. Enquanto Deus deificou a Cristo dando-lhe seu próprio ser pessoal divino,
deifica aos demais homens, comunicando-lhes sua vida, por meio de Cristo; é o que
a graça realiza no “ser”. A deificação do homem é real, porém acidental: é algo
acrescentado ao ser humano. É uma doação graciosa da vida pessoal de Deus.
Os Padres gregos entenderam esta comunicação da vida, a partir do ponto de
vista da perikhóresis trinitária. A Trindade, pois, habita no homem reproduzindo sua
própria estrutura. A Trindade opera, e, portanto, reside na alma do justo. Esta
inabitação foi chamada pelos latinos de graça incriada. A conseqüência é clara: o
homem se encontra deificado, leva em si a vida divina por doação gratuita”58. Seu
efeito é imediato: o homem vive pela fé e pelo amor pessoal a um Deus tripessoal.
Neste efeito o homem se abre para celebrar o amor de Deus.
Esta habitação da Trindade no homem faz dele um ser grato a Deus:
envolvendo uma transformação interior no seu modo de fazer e de ser 59; imprimindo
nele algo que transforma seu ser. Por isto, é theiosis, theopoiesis, divinização,
deificação: não somente porque vivemos, senão porque somos como Deus. Esta

57
ZUBIRI. Naturaleza... Op. cit. p. 518.
58
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 521.
59
Cf. ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 522.
- 30 -

transformação do nosso ser que “é o que propriamente justifica o nome de


deificação”60, tema muito apreciado pelos Padres orientais.
A idéia da participação envolve toda a intenção do Novo Testamento. A
participação da alma na Trindade deixa na alma um selo; é a conseqüência desta
presença. A participação da alma é uma semelhança da Trindade. Somos imagem
da causa. Então é plenário o ser eikonal (imagem) do homem: é imagem além de
semelhança de Deus. E por receber esta natureza divina, somos realmente filhos de
Deus; é a deificação real. A graça é uma qualidade do ser vivo (e viva), por
conseguinte61. Por ela o homem participa da Trindade. “A possessão da graça é,
portanto, rigorosamente falando, uma vida sobrenatural consecutiva à nossa
deificação”62.
A vida sobrenatural consiste na fé e no amor com o Pai, produzidos em nós
pela imagem da natureza divina que nos imprime o Filho, por obra do Espírito Santo.
A distinção entre graça e virtudes foi tão somente obra da teologia latina (ocidental)
O caráter metafísico de bondade sobrenatural é o que significa a palavra
hágios, santo. Daí o nome de graça santificante. A santidade não designa uma
qualidade moral, pois só Deus é santo, senão um hábito teológico e metafísico: é a
deificação mesma. A deificação é a ontologia sobrenatural. Ela atua transformando o
ser inteiro. Pois bem, assim como na encarnação, a natureza humana não se torna
simplesmente justaposta à divina; analogicamente, a graça absorve o homem inteiro
em uma unidade suprema e transcendente.
Daí o grave erro que consiste em confundir a santidade com a perfeição
moral. A perfeição moral jamais poderia ser ou obter a graça. Ela é algo que vem de
um princípio transcendente. A graça exige somente um “minimum” de perfeição
moral, o substancial, não sua plenitude. Numa palavra podemos dizer: “A graça é
um ser divino que faz do homem filho de Deus e herdeiro do céu” 63. E o homem

60
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 522.
61
“Esta luz incriada, eterna, divina e deificante é a graça, porque o nome ‘graça’ se aplica também às
energias divinas enquanto dadas a nós e opera a nossa deificação [...]. A graça não é apenas uma
função; ela é mais que uma simples relação de Deus com o homem; longe de ser uma ação ou um
efeito produzido por Deus na alma, ela é Deus mesmo que se comunica e entra em união inefável
[...]. A graça, sendo a luz da divindade, não pode permanecer escondida ou inadvertida; agindo no
homem, mudando a sua natureza, entrando em união sempre mais estreita com ele, as energias
divinas tornam sempre mais perceptíveis e revelam ao homem a face de Deus vivo, ‘o Reino de Deus
aparece na sua força’ (Mc 9,1)”. LOSSKY, V. A Immagine e Somiglianza di Dio. Op. cit. p. 99-100.
62
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 526.
63
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 529.
- 31 -

necessita ser um recipiente capaz de receber a graça e a perfeição. Ele não precisa
ser perfeito para receber a graça, pois é ela que lhe aperfeiçoa.

3.2.2. A raiz da deificação: o mistério sacramental.

A encarnação não é senão o lugar-momento para deificar o homem. Pela


presença de Cristo nos homens, nossa santificação é o último fim do grande
mystérion da vontade do Pai: mistério que proclamamos na liturgia sacramental64.
A palavra “sacramento” indica para nós uma ação, mas não é este o sentido
primitivo da palavra mistério. O mistério como tal não é uma ação para o homem. Ao
contrário, é uma espécie de realidade na qual se introduz o que dela participa:
iniciar-se nos mistérios, ser iluminado nos mistérios, etc. O mistério é algo de que
participa o iniciado e que, por participar dele, sofre uma intrínseca transformação.
Tratando-se do cristianismo “o conteúdo do mistério não é outro senão a nossa
deificação: o mistério é a deificação mesma”65, porém no modo real e efetivo com o
qual foi obtida. O conteúdo da palavra mistério significa a participação do homem no
sacrifício redentor de Cristo. Esta presença de Cristo em cada um de nós é
precisamente o mistério em sua última perfeição.
No mistério da deificação humana, está integralmente presente o conteúdo da
ação redentora. Então se compreende o que significa mais concretamente a
iniciação no mistério: significa tomar parte no sacrifício redentor de Cristo. Por este
sacrifício consumou a santificação da humanidade. A santidade reside primaria e
formalmente no ato radical de Cristo que foi seu sacrifício ao Pai. E a Igreja que é
“santa”, pela presença de Cristo, oferece ao Pai na Eucaristia este sacrifício.

64
“Sendo o primeiro Adão faltando à sua vocação – aquela de ajuntar-se livremente em união com
Deus -, é o segundo Adão, o Verbo divino, que cumpre esta união das duas naturezas na sua pessoa
se encarnado. Integrando-se na realidade do mundo decaído, ele exaure a potência do pecado na
nossa natureza e com a sua morte, que sinala o grau extremo desta integração ao nosso estado
decaído, triunfou sobre a morte e sobre a corrupção. No batismo, nós moremos simbolicamente com
Cristo, para ressuscitar realmente na vida nova do seu corpo vitorioso, para tornar membro deste
corpo único, que existe concretamente e historicamente sobre a terra, mas que tem a sua cabeça no
céu, na eternidade, no seio da santa Trindade. Sacrificador e sacrifício ao mesmo tempo, Cristo
oferece sobre o altar celeste este sacrifício único que se cumpre aqui em baixo, sobre tantos altares
terrestres, no mistério eucarístico. Não tem assim nenhuma separação entre o invisível e o visível,
entre o céu e a terra, entre a cabeça sentada à direita do Pai e a Igreja, seu corpo, no qual sem
mostrar escorre o seu preciosismo sangue. ‘Aquilo que era visível no nosso redentor é agora passado
nos sacramentos’”. LOSSKY, V. A Immagine e Somiglianza di Dio. Op. cit. 1999. p. 144.
65
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 530.
- 32 -

No mistério sacramental temos a última manifestação e concretização do


mistério paulino. Diz o Apóstolo: Cristo é a manifestação desse mistério que ele
realizou por sua Encarnação e Paixão. Daí que Cristo está presente na Igreja pela
sua palavra e por sua vida: como depósito da revelação e como fonte efetiva de
deificação sacramental. “Neste sentido, Cristo é o sacramento radical, o sacramento
subsistente. [...]. Nele a Igreja é sacramento e depósito da revelação66. E recebe
Dele esta missão ao ser enviada ao mundo. Por obra do Espírito Santo, se dá a
confirmação do mistério de Cristo em cada um dos batizados. Pelo Espírito, o
homem pode participar, sacramentalmente, de Cristo. A estrutura do sacramento
então se apresenta como ações materiais que representam a paixão e morte de
Cristo, e que, por obra do Espírito Santo, reproduzem realmente no homem aquilo
que representam. Os sacramentos contêm a graça e são ações reais de Cristo.
a) Causalidade dos elementos materiais. Primeiro: Nenhum elemento material
tem eficácia sacramental por si mesmo, senão pelo caráter instrumental nas mãos
do Espírito Santo. Separa-se, assim a causalidade sacramental de toda magia;
segundo: a intenção do Espírito Santo se acha vinculada ao elemento material como
o simbolizado a seu símbolo. Os sacramentos são símbolos que significam algo, são
símbolos eficazes daquilo que significam.
b) Presença de Cristo. O Espírito Santo executa precisamente a perpetuação
de Cristo em nós. “A graça sacramental é a participação sacramental do homem na
redenção”67. O sacramento não é senão uma participação daquele ato do Calvário,
e, portanto, só dele recebe seu valor e sua eficácia. A presença de Cristo então se
dá de dois modos: um radical, a presença histórica; o outro, o místico que se
exprime nos sacramentos. “Daqui deriva uma interessantíssima interpretação do
Batismo e da Eucaristia como ritos sacramentais”68.
c) Vida sobrenatural com o Pai. A essência da vida sobrenatural é o diálogo
cultual, sacrifical, do homem com Deus por sua união com Cristo. Que se dá na vida
da Igreja. “São os sacramentos que formam a Igreja. E a Igreja é, se quiser, o
mistério sacramental de Cristo”69. A Igreja representa a forma visível da deificação
no universo.

66
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 533.
67
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 536.
68
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 537. Sem dúvida alguma é desta relação dos sacramentos com
a presença de Cristo que surgiu a idéia deste nosso trabalho que tomou o caminho da deificação.
69
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 538.
- 33 -

3.2.3. Conseqüência da deificação

Pela graça sacramental obtida, somos filhos de Deus, porque possuímos sua
mesma natureza, por participação. Todo ente finito tem uma unidade consigo
mesmo e com a fonte do ser. E a graça de Cristo envolve constitutivamente a
deificação da dimensão social do homem. Em Cristo torna-se vitalmente unificada a
humanidade inteira. Por isso ele é a cabeça da Igreja, mas também da criação.

Pela deificação, produz-se a última e integral unidade ontológica do


ser humano em comunidade com os demais: “ut consummati sint in
unum”; “sed um como o Pai e Eu somos um”. É a unidade ontológica
da Trindade ad extra70.

O Espírito Santo é a “enérgeia” de Deus. Por Ele a Igreja recebe a presença


de Cristo, é depositária da revelação e dispensadora dos sacramentos; e por ela
Cristo leva os homens ao Pai. A Igreja constitui a deificação da sociedade humana
pela presença real e misteriosa de Cristo. Esta unidade deificante do amor é já uma
realidade. A vida eterna é já uma realidade, o que aguardamos é a sua plenitude.
Concluindo. Em Deus, como amor efusivo, seu êxtase procede à produção de
uma vida pessoal em que subsiste o ato puro de sua natureza: é a Trindade. Seu ser
efusivo tende a exteriorizar-se livremente em duas formas. Primeiro “naturalmente”,
produzindo coisas distintas d’Ele: é a criação. Depois “sobrenaturalmente”,
deificando sua criação inteira mediante a encarnação pessoal em Cristo e a
comunicação santificadora do homem pela graça. Por esta deificação que afeta de
algum modo a criação inteira, esta volta a associar-se à vida íntima de Deus, porém
de modo diverso: em Cristo por uma verdadeira natureza divina na humana71; no
homem por uma possessão extrínseca, porém, real de Deus; nos elementos visíveis
por uma transfiguração gloriosa72. Nós, contudo, somos deificados no ser de Deus
para vivermos do seu amor e no seu amor, numa palavra: santificados.
Vamos agora acompanhar, ainda que brevemente, o que seja esta realidade
santificante oferecida a nós pela Trindade.

70
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 540.
71
Zubiri utiliza o termo “circumincesión” [sic] para designar este mistério pelo qual Deus assume a
natureza humana em Jesus Cristo.
72
Cf. ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 542.
- 34 -

4. A Santidade: fonte da revelação deificante

É o ciclo extático do amor da Trindade Santa que se revela a partir da


encarnação de Jesus na vida do mundo e na vida da Igreja. Ontologicamente
estamos ligados a Deus pela realidade da existência. Então, a religião será a
expressão mais natural da vida humana. Nisto se compreende a necessidade de
Deus se revelar; a necessidade da encarnação de Jesus, o nascimento da Igreja e
dos sacramentos.

4.1 A Santidade de Deus

Na profissão de fé judaica, no Shemá Israel73, encontramos o princípio


monoteísta que nos permite a compreensão teológica da identidade de Deus: “Ouve,
ó Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6,4). O único, é Santo, ama o
seu povo, a humanidade, e lhe pede amor e temor para andar em seus caminhos
(cf. Dt 10,12), na santidade. Somente quem ouve o Senhor e entra em seu caminho
descobre a sua santidade e o seu Ser deificador74.
A santidade de Deus é oferecida e partilhada aos homens, pois Deus quer-
lhes fazer participantes de sua natureza, não obstante seu Ser de mistério, pois
homem algum o viu face a face e continuou a viver. Deus se oferece ao homem para
deificá-lo, tornando, assim, possível a comunhão entre o humano e o Divino 75. A
aliança do Senhor com o seu povo é uma prova evidente de que a iniciativa amorosa
de Deus é oferecida aos humanos em promessa e cumprimento. Relação de
fidelidade. O Senhor não se diminui em santidade ao querer estabelecer uma
relação responsável com o homem76. Nesta relação de desiguais, Criador-criatura,

73
“O Shema‘ Yisra’el é a confissão de fé mais importante do povo judeu, composta de três bênçãos e
de alguns versículos bíblicos. [...] ”. DI SANTE, C. Liturgia Judaica: fontes, estrutura, orações e festas.
São Paulo: Paulus, 2004. p. 29-30.
74
Cf. ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 463.
75
O fundamento da comunhão humana com Deus é a deificação. Somente deificados por Ele
podemos participar de sua santidade. O pensamento que justifica esta realidade é que Deus não faz
comunhão a não ser com “deuses”, portanto, com os humanos deificados. (cf. EVDOKIMOV, P.
L’Ortodossia. Op. cit. p. 70).
76
“O homem é responsável por seus atos, e Deus é responsável pela responsabilidade do homem.
Ele que deu a vida precisa ser o legislador. Ele divide nossa responsabilidade. Ele espera para
registrar nossos atos por nossa lealdade à Sua lei. Deus pode se tornar um parceiro em nossos atos”.
HESCHEL, A.J. Deus em busca do homem. São Paulo: Editora Arx, 2006. p. 133.
- 35 -

Divino-humano, o homem é convidado a se elevar à natureza divina, sendo deificado


pelo amor divino.
A nossa idéia mesma de Deus já contempla a sua graça, para participarmos
dele mesmo. Ou seja, para nós, somente podemos “pensar” Deus numa relação
pessoal de intimidade77. Israel é uma nação santa (cf. Ex 19,6), um povo consagrado
ao Senhor seu Deus. Desta afirmação: o Senhor é santo, ele nos santifica; surge a
Lei da santidade (cf. Lv 17-26). Deus chama o seu povo à santidade: “Sede santos,
pois eu sou santo” (Lv 19,1). Uma santidade que vai além dos ritos religiosos
litúrgicos. A Santidade pertence somente a Deus. Ela designa o brilho de sua
potência, a perfeição de seu Ser78. Só ele tem poder de conceder a sua santidade
àqueles que Ele chama para viver em sua presença79. Esta é a proposta da
“Aliança” que, sendo da vontade de Deus e da sua santidade, convida o homem a
compartilhar com ele o seu ser. Quando o homem estabelece com Deus o encontro
amoroso, nasce comunhão entre o divino e o humano: a deificação. A pessoa de fé
é aquela, portanto, que acolhe esta dádiva de Deus em sua vida humana. A
compreensão primária da realidade deste mistério, o ser de Deus, do qual somos
chamados participar, será sempre mistério, segundo a expressão de Zubiri.

Nem sequer a inteligência humana de Cristo, nem na terra nem no


céu, é capaz de tê-la. Porque para ter uma visão compreensiva do que
é a Trindade, teria que ser o próprio Deus uno e trino. Agora, a
inteligência humana de Cristo não é o próprio Deus uno e trino; estava
hipostaticamente assumida no Verbo [...]. Porém a inteligência
humana de Cristo, por muito mais perfeita que seja que a minha, é tão
criada e tão criatura como a minha. Disto não há dúvida nenhuma80.

77
Por exemplo: a expressão: “Eu sou Santo”, diz o Senhor Deus (Lv 11,44s; 19,2; 20,26; 21,8),
exprime a natureza e a propriedade de Deus, enquanto único Santo. Tal afirmação, contudo, é capaz
de tocar o homem (cf. Lv 21,8), como o carvão ardente toca Isaías (cf. Is 6,7). Essa propriedade
investe todo o domínio ético a partir de suas raízes, a partir de seu fundamento. Garante-lhe sua
condição no respeito do singular, do nome próprio que assinala, na rede dos parentescos, o santuário
de cada ser (cf. Lv 18). A comunicação-revelação daquele que é o Único, o Santo, pode ser chamada
amor: Deus ama Israel (cf. Dt 4,37; 7,8; Os 11,1) e o convida a amá-Lo. O encontro humano com a
santidade do Deus bíblico pode vir a ser prova, tremor, medo. Mas não há por que temer. Pois é
sempre Ele que se oferece à experiência de amor. Embora continue sendo sempre mistério, Deus
anda conosco como andou com Enoco e Noé (cf. Gn 5,24; 6,9), e está em nossa companhia (cf. Gn
6,8).
78
“É no próprio texto de suas Escrituras que o cristianismo encontrou a sugestão de um pensamento
de Deus como ser: ‘Eu sou o ser’ (Ex 3,14). [...] Contemplando em Deus, o ser é imutabilidade e
eternidade”. LACOSTE, J-Y. Ser. In Dicionário Crítico de Teologia.Op. cit. p. 1647. Mas é este Ser
que chama, ontologicamente, à existência o que não existia, do nada tudo cria e permanece conosco
porque se dá gratuitamente: Ele é Ser de Amor. Cf. ZUBIRI, X. Naturaleza ... Op. cit. p. 463-465.
79
Cf. AUNEAU, J. Santidade: (A. Teologia Bíblica). In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1608.
80
ZUBIRI, X. El Hombre y La Verdad. Op. cit. p. 37.
- 36 -

Por isso, a nossa comunhão com Deus não se dá de qualquer jeito ou sob
qualquer condicionamento humano, mas em mistério. É pela doação de si mesmo
que ele nos busca para que haja, de fato, realidade de comunhão, ou seja, somos
divinizados pela sua graça, mesmo antes da comunhão, que transforma o nosso ser.
A prática religiosa que exprime, num ato de diálogo, a comunhão com Deus, nos
revela claramente que somos dependentes de meios e canais “sacramentais” que
favoreçam esta comunhão. Por isso não há religião sem lugar sagrado, sem palavra,
sem rito, sem reunião de pessoas (comunidade), sem símbolos, gestos e tempo
marcado (calendário), no qual se dá o momento da celebração da Aliança, que é
sempre atualização de uma “Aliança” fundante de comunhão. Temos um exemplo da
santidade do “lugar” na teofania da Aliança. Moisés faz a experiência de que o lugar
onde o Senhor está é uma terra santa (Ex 3,5; cf. Js 5.15). Libertador de seu povo, o
Deus do Êxodo revela-se “esplendoroso em santidade” (Ex 15,11). O povo deve se
santificar para ir ao seu encontro na montanha do Sinai (Ex 19,10)81. Será na
afirmação da santidade de Deus que o povo bíblico finca raízes para a proclamação
da fé, expressada, sobretudo, em oração e culto. Isto porque Deus se revela. Se os
textos do Deuteronômio e os de sua influência afirmam mais a santidade de Israel,
os textos sacerdotais tendem mais à separação frente ao profano (Ex 19,12s.20-25).
“Que se trate da construção do santuário ou da instalação dos sacerdotes, eles
enfatizam os graus de participação na santidade de Deus”82.
Também os profetas irão afirmar a Santidade de Deus. Em particular, Isaías
na afirmação: “O Deus três vezes santo” (Is 6,3)83, que irá entrar em nossa liturgia
cristã. O Deus santo é um Deus transcendente que se deixa aproximar. Os profetas
fizeram evoluir a compreensão da santidade num sentido mais moral. Consagrar-se
a Deus exige um engajamento fiel e resoluto, consciente das rupturas necessárias 84.

81
Cf. AUNEAU, J. Santidade... In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1609.
82
AUNEAU, J. Santidade... In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1609. “O sentido da grandeza
e da santidade de Deus, a segurança de que ele quer fazer seu povo participar de sua santidade faz
parte da herança que os cristãos receberam de Israel. Pelo dom de sua vida, Jesus ofereceu a todos,
indistintamente, uma participação na santidade de Deus que ultrapassa as divisões e as separações
da antiga aliança”. AUNEAU, J. Santidade... In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1609.
83
A santidade de Deus é um tema central da pregação de Isaías, que chama muitas vezes o Senhor
de “o Santo de Israel” (1,4; 5,19.24;10,17.20;41,14.16.20). Esta santidade de Deus exige do homem
que ele mesmo seja santificado, quer dizer, separado do profano (Lv 17,1ss), limpo do pecado (Is 6,5-
7), participante da “justiça” de Deus (Is 1,26s; 5,16s). Cf. Nota “j” referente a Isaias 3,6, Bíblia de
Jerusalem.
84
Cf. AUNEAU, J. Santidade... In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1609.
- 37 -

Mas será no Apocalipse 4,8 que encontramos a expressão litúrgica da santidade de


Deus: “Santo, Santo, Santo, Senhor Deus todo-poderoso, ‘Aquele-que-era, Aquele-
que-é e Aquele-que-vem’” (Ap 4,8). Somente participando da natureza de Deus
poderemos, deificados, cantar a liturgia do culto eterno.

4.2. A Santidade de Jesus

Por alguns títulos que Jesus recebe e é nomeado no NT, já podemos


imaginar o quanto é decisivo para a fé cristã a compreensão da santidade de Jesus,
enquanto Filho de Deus. “Ora o Deus cristão é um Deus pessoal, cuja
transcendência não proíbe a proximidade e que aparece na história como ‘Emanuel’,
‘Deus conosco’”85. Se a identidade de Jesus é expressa, na maioria dos textos, pela
comunidade pós-pascal, como o Messias, o Cristo, “em contrapartida, ‘Filho do
Homem’ aparece, com freqüência, em suas falas”86 e não tanto da comunidade. Por
isso Jesus se associa várias vezes a este título: “Filho do Homem” (cf. Mc 2,10; Lc
7,34s; 9,58; 12,8s, 17,26-30; Mt 19,28). Ele se apóia neste título para “perdoar
pecados” (Mc 2,10), estabelecendo uma relação que se completará no Reino (cf. Lc
12,8s) e, não obstante a sua fragilidade existencial, ele é o Filho do Homem (cf. Lc
9,58).
A relação de Jesus com seu Pai, na expressão “Filho de Deus”, não é
tranquila nem de fácil aceitação. A narrativa evangélica nos faz descobrir que Jesus
é “Filho de Deus” no rebaixamento e na acolhida de sua finitude: “é a passagem pela
morte que é o sinal verdadeiro de sua filiação divina sob o signo da onipotência (cf.
Mc 8,27-33; Mt 16,13-23)”87. Contudo, Jesus se refere ao seu Pai (Abba) como
expressão de uma nova compreensão do Ser de Deus: É o divino na relação com o
humano88.

85
BEAUCHAMP, P. Deus. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 528.
86
“Jesus emprega Filho do Homem em terceira pessoa como se ele fizesse falar um outro que ele
mesmo: ‘O Filho do homem veio não para ser servido, mas para servir’. Esse título (que permite evitar
os dois termos ‘Filho de Deus’ e ‘Messias’) não é uma criação das primeiras Igrejas, mas remonta ao
próprio Jesus”. CARREZ, M. Filho do Homem. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 736.
87
CUVILLIER, E. Filiação. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 737-738.
88
Para aprofundar o tema da filiação divina de Jesus, como se apresenta em nosso “Símbolo de fé”,
nos ajudam os escritos de Paulo (cf. Gl 4,4; Rm 1,3.3.9; 1Cor 1,18-25), de João (cf. Jo 1,18; 3,16-
18.35s; 5,19-30; 12,16.23.28; 13,31s) e a carta aos Hebreus (cf. Hb 1,2.8; 5,1-8; 7,3; 7,28). Pois a
Igreja primitiva foi elaborando uma compreensão progressiva deste título de Jesus, bem como a sua
relação com Deus.
- 38 -

A relação de Jesus a Deus faz-se entender na diferença. Jesus tomou


lugar entre os judeus que prestam um culto a Deus. Quando o
chamam “bom”, lembra que só Deus é bom. Ao morrer, gritou: “Meu
Deus, meu Deus” (cf. Jo 20,17b). O Pai, designado como Deus, em
resposta (Hb 5,7) ressuscitou Jesus (Atos 3,14s), exaltou-o (Atos
5,31), o fez Senhor e Cristo (Atos 2,36), Chefe e Salvador (Atos 5,31;
cf. Rm 1,4 “estabelecido Filho de Deus”)89.

A filiação divina de Jesus se dá numa originalidade ímpar e numa relação que


pode fugir às nossas categorias racionais de compreensão. Como vimos acima, no
Shemá Israel, a profissão de fé no Deus Único, também aqui, se pode estabelecer o
mesmo paralelo e afirmar a unicidade da filiação divina de Jesus. “O caráter da
filiação de Jesus é único (monogenès), Deus tem em Jesus ‘seu próprio Filho (Rm
8,32), seu ‘Filho bem-amado’”90. O “Único Filho” na relação mútua que estabelece
com o “Único Pai” revela sua santidade. “Eu e o Pai somos um só” (Jo 10,30). “É
somente a maneira de ser de Jesus que revela, em plenitude, a condição de Filho de
Deus, e assim, a ‘condição divina’ (Fl 2,6)”91.
Em antecipação já nos perguntamos: haverá fundamento mais sólido para a
experiência da graça sacramental que esta relação mútua entre Jesus e o Pai 92, em
vista da nossa deificação? Sem dúvida alguma, Jesus foi revelando-se como Filho
de Deus para os seus seguidores mediante as suas atitudes existenciais. “Sua vida
foi uma existência para seu Pai e seus irmãos, ‘pro-existência’ [...]; o mesmo será
com sua morte à qual ele mesmo dá o sentido, instituindo a ceia eucarística” 93.
Frente à realidade de Jesus, sua santidade filial e relacional com o Pai, o
mistério da Encarnação foi cada vez mais se revelando e adquirindo sentido de fé
para a vida da comunidade cristã94. Inicia-se o tempo histórico da revelação do

89
BEAUCHAMP, P. Deus. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 527. “O Pai de Jesus é
portador em si mesmo de um mistério de doação e de alteridade, em que se enraíza outro tipo de
alteridade, a criação na qual a teologia reconhece muito cedo um novo sinal de transcendência”.
BEAUCHAMP, P. Deus. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 528.
90
BEAUCHAMP, P. Deus. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 528.
91
BEAUCHAMP, P. Deus. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 527. Cf. SESBOÜÉ, B.
Cristo/Cristologia. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 481.
92
A teologia encontra no mistério sacramental, revelado em Cristo, a sua raiz. Ela fala “acerca” de
Deus como Ele se nos dá em Cristo. Ela fala a “partir” de Deus que se nos dá em Jesus Cristo:
realidade sacramental - mistério revelado é deificante. Neste mistério que transforma radicalmente a
nossa existência inteira, nosso ser inteiro que opera a nossa deificação e união sacramental com
Cristo: pelo Batismo e pela Eucaristia. (Cf. ZUBIRI, X. Naturaleza,... Op. cit. p. 461).
93
SESBOÜÉ, B. Cristo/Cristologia. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 481.
94
“Aquele que se dizia ‘o Filho’ em um sentido absoluto, e que se comportou filialmente até à morte, a
comunidade cristã o confessa como “Filho de Deus”. SESBOÜÉ, B. Cristo/Cristologia. In Dicionário
Crítico de Teologia. Op. cit. p. 482.
- 39 -

mistério de Deus no mistério de Cristo. Celebrar este mistério a partir do ponto focal
da Páscoa será a missão da Igreja de todos os tempos e lugares. Aonde chegar o
anúncio da Santidade de Jesus Salvador, o Cristo, Filho do Homem, Filho de Deus,
aí se celebra a Páscoa de Cristo.

A oração de Jesus se dirige ao “Pai santo” (Jo 17,11), e ele pede a


seus discípulos que rezem para que o nome do Pai seja santificado
(Mt 6,9; Lc 11,2). Ele é aquele que o Pai consagrou e enviou ao
mundo (Jo 10,36); ele é o “santo de Deus” (Mc 1,24), o “santo servo”
de Deus (Atos 4,27). O Espírito Santo está em ação desde a
concepção de Jesus (Lc 1,35). Investido pelo Espírito Santo em seu
batismo (Lc 3,22), ele caminha na plenitude do Espírito (Lc 4,1)95.

A Santidade de Jesus se mostra ainda em sua atitude orante. Ele se consagra


à oração e nos deixa a oração como meio de santificação. Entre as fórmulas de
oração, a ação litúrgica sacramental irá ocupar, para nós, sem dúvida, o lugar
central. Ela já está presente no NT e depois na vida da Igreja.

4.3. A Santidade do Espírito

Para falar da santidade do Espírito (designado ‘rouah’ no AT) só é possível na


relação com o Pai e com o Filho, ou na relação com a criação e, em particular, com
o homem. Por isso é comum falarmos do Espírito referindo ao Espírito do Senhor,
Espírito de Deus. O caráter imaterial do Espírito é tomado para significar a
circulação, a comunicação da intimidade. O Espírito é difundido (cf. Is 32,15; 44,3),
Ele enche, faz viver (cf. Ez 37). Ele é Santo, ele santifica. Aproxima-se da Sabedoria
quando se torna uma presença permanente ligada a um eleito, ou um povo (cf. Is
11,1s; Pr 1,23; Sl 51,8.13; Sb 1,6; 7,7.22ss; 9,17)96. Mas, contudo, será o Espírito
Santo que revela aos homens o sentido da criação, das promessas, da aliança, até a
consumação escatológica do mundo. “O Espírito Santo tem como uma de suas

95
AUNEAU, J. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1609. “O NT conhece um único
salvador histórico, Jesus de Nazaré, não tanto por causa da significação literal de seu nome
(Yehoshoua ou Yeshoua, ‘o Senhor salva’), mas porque todo o processo de salvação está ligado a
ele como seu protagonista indiscutível: ‘Não há nenhuma salvação a não ser nele, [...] nenhum outro
nome [...] que seja necessário à nossa salvação (Atos 4,12). O título que pertence tão
fundamentalmente a Deus (cf. Lc 1,47: ‘Deus, meu salvador’) é agora atribuído de maneira
predominante a Jesus (16 x; cf. 1Jo 4,14: ‘O Pai envia seu Filho como o salvador do mundo’)”.
PENNA, R. Salvação: (A. Teologia Bíblica). In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1594.
96
Cf. BEAUCHAMP, P. Espírito Santo. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 650.
- 40 -

funções próprias executar a criação [...]. E uma de suas obras é a deificação do


homem”97. Se Ele deifica é porque é Deus.
O substantivo grego pneuma, usado no NT para designar Espírito Santo,
entre vários significados que se possam atribuir, o sentido teológico é dominante: é o
Espírito transcendente de Deus e de Cristo. O Espírito é Santo ou de Santidade,
sempre em relação a Deus Pai ou ao Filho Jesus. Esta inter-relação se expressa na
vida da comunidade cristã, lugar privilegiado à sua manifestação98. “O Espírito age
enfim de maneira central no cumprimento da existência cristã”99.
Em Lucas, a pregação inaugural em Nazaré (cf. Lc 4) liga o dom do Espírito e
a proclamação do Evangelho à pessoa de Jesus (cf. Lc 8). Mas só quando Jesus for
exaltado o irá transmitir aos crentes seguidores (cf. Lc 24,49; Atos 1,8; 2,33) e à
Igreja (cf. Atos 2) na fundação da primeira comunidade cristã o Espírito Santo.
“Tornando-se parte constituinte do terceiro período da história da salvação, o
Espírito já não é, propriamente falando, uma grandeza escatológica, mas um
elemento do tempo penúltimo”100. Sem a presença ativa do Espírito a Igreja não
pode celebrar liturgicamente os mistérios de Deus revelados em Cristo.
A abertura humana ao dom da fé só acontece por iniciativa de Deus: obra do
Espírito Santo101. É Ele que move o coração humano para acolher o Batismo (cf. Jo
3,6) após a conversão. O Espírito Santo é derramado sobre a Igreja (cf. Rm 5,5). Por
Ele, a Igreja realiza dons extraordinários. O Espírito impulsiona a Igreja ao anúncio
querigmático. “O Espírito determina o caminho da Igreja e a guia. Garante assim a
continuidade da última fase da história da salvação”102. Na linguagem de João é o
Espírito Paráclito, Espírito de verdade, que irá conduzir a realidade histórica à
parusia e à glória definitiva.

Aqueles que o Espírito anima são filhos de Deus (Rm 8,14). A hora de
Jesus introduz os irmãos na filiação que é a sua. A especificidade do
dom do Espírito, proposto aos homens, significa e faz que os “irmãos”
são ao mesmo tempo “filhos” [...] além de herdeiros, e continuadores

97
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. 490.
98
Cf. ZUMSTEIN, J. e DETTWILER, A. Espírito santo. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p.
651.
99
ZUMSTEIN, J. e DETTWILER, A. Espírito santo. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 651.
100
ZUMSTEIN, J. e DETTWILER, A. Espírito santo. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 652.
101
“A obra redentora de Cristo é uma condição indispensável para a obra deificadora do Espírito
Santo [...]. A obra redentora do Filho se refere à nossa natureza; a obra deificadora do Espírito Santo
se endereça às nossas pessoas”. LOSSKY, V. A Immagine e Somiglianza di Dio. Op. cit. 1999. p.
149.
102
ZUMSTEIN, J. e DETTWILER, A. Espírito santo. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 652.
- 41 -

de Jesus ao longo da história, e mais que discípulos (Jo 6,45; 16,12s):


respiram da mesma vida-verdade que ele tinha recebido; é pela
liberdade que participam da condição de filho desse Jesus a quem
chamam “Mestre e Senhor” (Jo 13,13). Essa dimensão, ainda
inacabada da condição filial dá, ou dará, toda a sua dimensão à obra
divina103.

Fora desta comunhão trinitária, obra do Espírito Santo, é impensável,


teologicamente, o mistério da Igreja enquanto comunidade dos deificados em Cristo.

4.4. A Santidade da Igreja

Por viver no cotidiano da Igreja, o cristão pode “falar” sobre Deus e de sua
possível experiência de fé. Só posteriormente tem-se a reflexão teológica como
discurso sobre Deus fundamentado no querigma pascal, litúrgico, doxológico. A
partir disso, então, devemos buscar o ponto constitutivo da Igreja, enquanto
manifestação de Deus, pelo Espírito, na pessoa de Jesus Cristo. O teólogo só pode
ser pessoa de fé. Para usar uma expressão dos Padres São Gregório de Nissa e
Evágrio, citados por Paul Evdokimov: “Teólogo é aquele que sabe rezar”104. Neste
sentido o teólogo deve ser praticante de uma religião e não mero especulador
teórico de religiões.
Embora a Igreja, como se concebe, teologicamente, só possa ser pensada a
partir do NT, isto não a isenta de suas raízes do AT. Sobretudo, a partir das
categorias de “povo de Deus” (Hb 4,9) e da imagem da oliveira ligada às promessas
do AT (cf. Rm 11,18). “É o conceito de ‘povo de Deus’ que fornece a principal das
prefigurações veterotestamentárias do que mais tarde levará o nome de Igreja”105.
A novidade da Igreja, em relação a Israel, é que dela faz parte,
constitutivamente, não um povo de sangue, como os filhos de Israel. Mas ela está
aberta à universalidade das raças e nações, “que já não se compõe somente de
uma nação, mas reúne ‘judeus e pagãos’, marcados por sua pertença a Cristo e pelo
batismo que a sela”106. Ainda que não se encontre uma eclesiologia explicitada por
Jesus, ao anunciar o Reino de Deus, “Jesus não lançou sua mensagem, por assim

103
BEAUCHAMP, P. Deus. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 528.
104
EVDOKIMOV, P. L’Ortodossia. Op. cit. p. 501.
105
KÜHN, U. Igreja. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 852.
106
KÜHN, U. Igreja. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 853.
- 42 -

dizer, no vazio [...] chamou discípulos”107. Sem dúvida, Jesus tinha uma intenção
neste fato de envolver seguidores comprometidos com sua mensagem.
Não obstante as vicissitudes históricas que se sucedem na Igreja, podemos
afirmar que ela brota da intenção do Jesus histórico. Está na esteira do AT. É
constituída como assembléia cultual e ministerial. Ela vive escatologicamente,
aguardando a consumação da salvação iniciada pelo Espírito do Pai e manifestada
em plenitude no Filho Jesus. “Nós somos, portanto, um em Cristo pela nossa
natureza, enquanto ele é cabeça da nossa natureza e nele formamos um só
corpo”108. Por isso a Igreja forma um Corpo com Cristo.

Os cristãos formam uma comunidade por sua existência “em Cristo”. O


batismo faz participar da morte e da ressurreição de Cristo (Rm 6), e
essa pertença a Cristo retira as diferenças entre os homens [...] todo
poder de separação (1Cor 12,12s; Gl 3,26ss). Da mesma maneira, a
ceia do Senhor nos dá parte (Koinônia) no corpo e no sangue de
Cristo, de sorte que os que assim participam de Cristo não formam
mais que um só corpo: o “corpo de Cristo” (Rm 12,5), e mesmo, o
próprio Cristo (1Cor 12,12)109.

Sem dúvida, será dentro da própria Igreja que se desenvolverá a teologia


eclesiológica, desde o NT até aos nossos dias. Irineu de Lião foi o primeiro que
introduziu importantes acentos eclesiais na teologia antiga. “A Igreja é, para ele, o
lugar do Espírito de Deus, a causa da verdade e da salvação: está fundada nas
Sagradas Escrituras, que conserva na fidelidade a pregação dos apóstolos”110. Por
sua vez, Santo Agostinho desenvolveu um projeto eclesiológico de maior
importância na Igreja antiga, na sua obra Cidade de Deus. Ele distingue duas
cidades: “a de Deus, que é a comunhão daqueles que se encaminham para o fim
divino, e a do diabo, que reúne os homens e os anjos que escolheram a via do
mal”111. Tem-se aqui uma visão escatológica. “Na Jerusalém celeste Deus vive com

107
KÜHN, U. Igreja. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 853. “Os discípulos chamados eram
aqueles que aceitavam as três marcas essenciais da ‘realeza de Deus’: a abertura radical a um Deus
de bondade e de misericórdia, fonte única de vida e de futuro; a prática radical da nova justiça e do
mandamento de amor até a reconciliação e amor do inimigo; a vontade radical de sacrifício, até a
morte. Se se pode ver nessas disposições a base concreta donde ia sair a ‘Igreja’, então não foi sem
motivo profundo que a comunidade primitiva emprestou a Jesus ditos eclesiológicos explícitos (o que
quer que se possa dizer do uso que se fará deles na história da Igreja)”. KÜHN, U. Igreja. In
Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 853.
108
LOSSKY, V. A Immagine e Somiglianza di Dio. Op. cit. 1999. p. 148.
109
KÜHN, U. Igreja. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 853-854.
110
KÜHN, U. Igreja. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 855.
111
KÜHN, U. Igreja. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 855.
- 43 -

os homens” (Ap 21,3) e os seres humanos são pessoas, à imagem de Deus em três
pessoas, em comunhão eterna com o Cristo, como o Filho e o Espírito estão em
comunhão eterna com o Pai”112.
A incorporação, sacramental, da pessoa à Igreja, então, não é um adorno,
uma pertença virtual, uma realidade sem discriminação de valores, sem
conseqüências para a existência. Pertencer à Igreja, portanto, trata-se de uma causa
de fé por ser ela “instituição de salvação, fundada por Cristo”113. Uma visão, assim,
da Igreja nos faz descobri-la santa e pecadora: santa por ter Cristo como Fundador;
pecadora porque está fundada sobre o elemento humano, necessitado de salvação,
a caminho da deificação. Viver a espiritualidade cristã e desenvolver uma
eclesiologia que coloque a celebração eucarística no centro da vida será a missão
permanente da Igreja até a sua plenitude. Sem dúvida alguma a eclesiologia do
Concilio Vaticano II, que aponta a Igreja como Povo de Deus, pode nos ajudar a re-
valorizar a Igreja enquanto expressão humana da santidade de Deus em sua relação
intratrinitária. É na relação da Trindade que a Igreja se descobre santa por vontade
de Deus114.
O mistério da Igreja, no sentido bíblico e patrístico, está no centro da obra do
Concílio Vaticano II. “A Igreja, que não tem seu fim em si mesma, vive uma dupla
relação com Cristo e com os homens”115. Aqui marca a santidade da Igreja: ser o
que ela é; ser o que desejou seu fundador: Cristo. Então se pode dizer com toda a
verdade: a Igreja é de Jesus Cristo. É ele que a alimenta com o seu Corpo e
Sangue: porque, “a Igreja só se manifesta em sua plena verdade de corpo de Cristo
na Eucaristia”116. Sendo a Igreja uma comunidade visível dos seguidores de Jesus,

112
MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1610.
113
KÜHN, U. Igreja. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 858.
114
É estritamente em relação à Igreja que o Vaticano II define a santidade como a “união perfeita
com Cristo” (LG. 50). É significativo que o concilio trate do “apelo à santidade” na constituição
dogmática sobre a Igreja (cap. 5), e é para reconhecer antes de tudo que só a Trindade é realmente
santa. A partir dessa fonte, a santidade é comunicada à Igreja por Cristo, que se deu por ela
precisamente para torná-la santa (Ef 5,25s). Todos os cristãos são chamados à santidade pelo fato
mesmo de pertencerem à Igreja. É participando da santidade dela que eles se tornarão santos, e que,
por seu turno, tornarão santos os outros (LG. 39). Daí decorre que, se “as formas e as ocupações da
vida são múltiplas”, a santidade nem por isso deixa de ser “uma” (LG. 41), sempre inspirada pelo
mesmo Espírito (LG. 39).
115
BRESSOLETTE, C. Vaticano II. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1824.
116
TILLARD, J-M. R. Comunhão. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 405. Temos talvez em
Teodoro de Mopsueste (Oriente) uma das expressões mais rica da Igreja enquanto “comunhão” que
relaciona a vida do batizado com a Eucaristia. Portanto o vínculo teológico e litúrgico dos dois
sacramentos: “Como pelo novo nascimento eles foram aperfeiçoados em um só corpo, agora são
também fortalecidos como em um só corpo pela comunhão no corpo do Senhor, e na concórdia, na
paz, na aplicação do bem, constituem um só [...]. Assim nos uniremos na comunhão aos santos e por
- 44 -

ela torna por vontade de seu fundador um “Sacramento”. Adquire valor de


instrumento de salvação, meio sem o qual não se poderia conhecer em
profundidade a Cristo e seu mistério. Assim como Cristo, assumindo a humanidade,
saiu da sua transcendência divina para ser, conosco, uma imanência ativa, a Igreja
se descobre a cada dia encarnada na humanidade, enquanto mistério de santidade
do próprio Deus. “A santidade não é um conceito abstrato”117, pertence à Igreja-
sacramento: “é ser membro da cidade santa, a Nova Jerusalém" (Ap 21,2). Esta é a
vocação inerente ao homem e à Igreja.

4.5. A Santidade da Criação e do homem

Ao descrever a criação, em Gn 1,1-2,4, no ritmo de um tempo inaugural com


a instalação do calendário semanal (Gn 1,14), a intenção do relato já está
estabelecida em vista do Sabbat118: tempo separado para o reconhecimento da
santidade do Criador e da Criação. Sendo o homem responsável por aquilo que lhe
é entregue: a Criação; e sendo, ele mesmo, imagem do Criador, sobrevém-lhe ainda
mais o caráter de responsabilidade.

O deutero-Isaías (Is 40-45) é o primeiro documento que (durante o


exílio) une criação e monoteísmo numa atestação formal e didática.
Seu propósito é manter unidos vários motivos: Criação e Salvação;
cosmo e história. Em Jeremias (10,11-16; cf 23,33s. 27,5; 31,35;
32,17), o alargamento do horizonte de Israel (cf. Dt 4,32ss) evoca o
tema da Criação119.

esta seremos unidos à nossa cabeça, Cristo Senhor nosso, do qual – nós o cremos – somos o corpo,
e por quem obtemos a comunhão à natureza divina” (Hom. Cat. 16,13, ed.Tonneau-Devreesse, 555).
“ Esse texto aparece como a própria definição da Igreja no seu ser de graça. A Igreja é a comunhão
ao Pai, florescendo em comunhão fraterna, comunicada no batismo e sobretudo na eucaristia, pelo
Espírito daquele que, tendo comunicado plenamente com nossa humanidade, ressuscitou para nos
fazer comunicar com sua vida trinitária”. TILLARD, J-M. R. Comunhão.. In Dicionário Crítico de
Teologia. Op. cit. p. 406. (Cf. edição portuguesa, TEODORO DE MOPSUÉSTIA. Homilias
catequéticas. 16, 13. In CORDEIRO, J. L. (Org.). Antologia Litúrgica. Textos Litúrgicos, Patrísticos e
Canónicos do Primeiro Milénio. Fátima-Portugal: Secretariado Nacional de Liturgia: 2003, p. 685.
117
MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1610.
118
“O Sabbat é um dia a ser ‘santificado’ (qdsh) a ser ‘guardado’ (shmr)… No NT, o Sabbat entra em
concorrência com ‘o primeiro dia da semana’ (Atos 20,7) [...] O Sabbat é o dia em que o homem
mostra que renuncia às ilusões do superpoder para garantir um lugar à alteridade e tornar possíveis
relações justas. [...] O homem põe seu poder a serviço da liberdade dos outros, como o Senhor
empregou seu poder a favor da liberdade de Israel. Honrar a Deus é imitar seu agir ao recusar fazer
de sua própria casa uma casa de servidão. [...] Jesus revitaliza a instituição como tal (Mc 2,27s)”.
WÉNIN, P. Sabbat. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1557-1558.
119
BEAUCHAMP, P. Criação. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 470.
- 45 -

Na base da teologia bíblica do relato da criação120 a teologia da Igreja


caminhará numa estreita relação entre criação e salvação: mas será Cristo o
mediador da Salvação. A Igreja apenas deve expressar a vida Dele. Com um pé na
teologia da Criação a Igreja soube refletir a história que tem sua origem na vontade
criativa de Deus. Assume a criação, sobretudo do homem, como lugar teológico para
a encarnação do Verbo. Está na linha da criação em sua relação com a salvação
“afinal, a criação nunca foi pregada para dar um conhecimento, mas para
[re]introduzir em uma relação que é a origem e o fim do ser humano: ‘Tu amarás
aquele que te criou’ (Epístola de Barnabé)”121. A Criação, portanto, só pode ser
entendida e lida na perspectiva da deificação, após a encarnação de Jesus.

A narrativa da Criação Gn 1,1-2,4a, que inicia a Bíblia, é


principalmente dedicada à “creatio prima”, Não se trata de um
“relatório” da Criação, mas do Criador em sua relação com o mundo e
com o homem. Para a forma definitiva de Gn 1-3, como nos é
transmitida, a inserção dessa primeira narrativa antes de Gn 2-3
significa que a “creatio continua” aparece como continuação da
“creatio prima”, e que toda a temática da Criação tem orientação
antropológica, o que esclarece a semelhança com Deus constatada no
ponto final (Gn 3,22), em combinação com a afirmação do homem ser
imagem de Deus, em Gn 1,26ss122.

Em Gn 1,26s, Hâ-’âdâm (em hebraico designa o coletivo - humanidade), “é


criado ‘à imagem de Deus’, o que se refere, mais que à sua essência racional ou
espiritual, ao poder que lhe é conferido sobre as outras criaturas” 123. Deus lhe
manifesta a sua imagem; é o seu reflexo. A natureza é dependente do Criador. Tudo
que é natural nasce da vontade de Deus. “Os processos da natureza são adequados

120
“A Criação, pois, não pode ser separada da Torá, o que no judaísmo se exprime com mais força
ainda na convicção de que a Torá foi criada antes do mundo. Na literatura sapiencial, esta noção de
pré-existência foi aplicada à Sofia; depois, no NT, ao Cristo. Ela significa que a Criação não é um
ajuntamento de partículas anorgânicas e orgânicas, mas possui, como forma interna (cf. Hb 11,3), um
sentido expresso por ela, que sustenta a vida (Lc 12,22ss; Mt 6,25ss) e ilumina o espírito (2Cor 4,6)” .
DOHMEN, CH. Criação (AT). In BAUER, J. B. Dicionário Bíblico-Teológico. São Paulo: Loyola, 2000.
p. 74.
121
FERNANDEZ, I. Criação. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 478.
122
DOHMEN, CH. Criação (AT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 73. Cf. BEAUCHAMP, P.
Criação. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 471.
123
MURRAY, R. Adão. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 56. “Paulo situou Adão e Cristo
como dois arquétipos em contraste. Por um nos vieram a morte, pecado, privação da graça. Pelo
outro, a volta à graça, ‘nova criação’, promessa de vida. Mas a graça outorgada supera infinitamente
o mal causado”. MURRAY. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 58. Que o ser humano é
imagem de Deus é suposto (cf. 1Cor 11,7).
- 46 -

para se falar de Deus em analogias, porque apontam para o Criador” 124. Não é
possível separar criação e salvação. A idéia da “Nova Criação” provém do AT,
especialmente dos Profetas durante e depois do exílio; criação e salvação recebem
a mesma atuação de Deus (cf. Is 44,2s; 45,8); Será nesta visão que os profetas
falam de um Espírito novo na vriação que atua no humano (cf. Ez 36,26s; Jr 31,33s);
retomado pelo apóstolo Paulo (2Cor 3,3 e 5,17). “A criação, portanto, é obra visível
de Deus”125. Tanto a criação quanto a salvação têm sua origem em Deus: em vista
da nossa deificação.
Pode-se dizer de uma “nova” intervenção de Deus na criação, uma nova
criação: “com efeito, vou criar céus novos e uma nova terra” (Is 65,17; 66,22; Jr
31,22). “A criação inicial tem como meta a nova criação, no fim do mundo (Ap
21)”126. O envolvimento de Deus na criação e salvação127 é único para conduzir tudo
à santidade.
A partir da tradição do AT e do judaísmo, o NT amplia a idéia de criação
colocando o Criador como Pai de Jesus Cristo. A fé na criação é fundamental
também na teologia do NT, enquanto relacionada à cristologia128. “A Igreja primitiva
herdou da fé em Deus criador, e não precisou, portanto, definir a doutrina da criação,
presente nos primeiros símbolos batismais que professam a fé no Pai todo-
poderoso”129. A visão apocalíptica judaica do AT referente à criação também se fará
presente no NT, sobretudo nas cartas de Paulo e Apocalipse.
Paulo afirma que tudo vem de (ex) Deus e através de (dia) Jesus
Cristo (1Cor 8,6): Cristo age como mediador da Criação. Também em

124
HEINE, S. Criação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 74. Jesus mostra o surgimento
do Reino de Deus aos seus patrícios por meio de elementos da natureza (Mc 4,1-34; Mt 13,24-30).
125
HEINE, S. Criação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 74.
126
HEINE, S. Criação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 74.
127
Não é de espantar que, segundo a Bíblia, o conceito de criação seja apreendido tanto pela razão
(Rm 1,20) quanto pela fé (Hb 11,3). Pois no AT a eleição de um povo pelo Senhor e a criação do
universo descobrem-se pouco a pouco como distintas e inseparáveis no ato de um só Deus. Ato que
emana de sua singularidade, de sua santidade e, paradoxalmente, do que ele tem de mais
incomunicável. A identidade do Deus criador e do Deus salvador prepara esses textos, entre os mais
tardios do NT, em que a criação, fundamento de uma relação universal a Deus, procede pelo Único:
Cristo (Col 1,16), Filho (Hb 1,2), Verbo (Jo 1,3; cf. Ap 3,14). Nele a criação se dá a conhecer como
primeira e última palavra de um Deus que assume sob seu Nome a narrativa de seus atos.
128
“A esperança de uma nova Criação está, no NT, ligada à cristologia, também pelo fato de que
Cristo aparece agora como ‘as primícias’, como o ‘primogênito da Nova Criação (Hb 9,11: ele não é
‘desta Criação’) e como a imagem de Deus (2Cor 4,4; atrás disso está provavelmente a idéia
apocalíptica de que a humanidade, pela queda de Adão, perdeu sua qualidade de ‘imagem de Deus’;
Cl 1,15; 3,10). Por ele também os fiéis são transformados numa nova Criação (metamorfousthai: 2Cor
3,18; cf Rm 8,29): nesta era, no espírito; na era vindoura, também no corpo (Rm 8,23)”. DOHMEN,
CH. Criação (AT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 75.
129
FERNANDEZ, I. Criação. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 472.
- 47 -

João lemos que o mundo foi feito pelo Logos, que é Deus presente em
Cristo (Jo 1,10). Em Cl 1,15-18, Deus e Cristo são totalmente idênticos
quanto ao poder criador. Em Cristo, por ele, e para ele, tudo foi criado;
ele existe antes de tudo, e tudo subsiste nele; e ele é o primogênito
dentre os mortos. Com isso, o NT insere-se na tradição judaica,
segundo a qual a Torá ou a Sabedoria é preexistente e partícipe da
Criação, pelo que a História, do principio até o fim, é constituída como
História da Salvação; o NT, porém, coloca Cristo no lugar da Torá e
identifica-o com a Sabedoria (1Cor 1,24.30; cf. Ef 1,17; Cl 2,2-3). Com
isso afirma-se que Criação e Redenção se devem à mesma força
divina, e que a Criação continua operando, não se limita ao passado.
Os que crêem na Redenção por Cristo têm o penhor (2Cor 1,22) do
Espírito de Deus, e por isso são chamados uma ‘Nova Criação’ (2Cor
5,17; Gl 6,15; cf. Ef 2,10)”130.

Nos tempos modernos as doutrinas religiosas da criação passaram por uma


verdadeira prova de fogo pelas várias teorias ditas “científicas”: sobretudo com o
evolucionismo. Não obstante as possíveis crises da doutrina da criação131 no
decorrer da história da teologia, ela chega até ao Concilio Vaticano II. Embora o
Concílio não tenha tratado nem desenvolvido o assunto explicitamente, operou,
contudo, num certo sentido uma “virada antropocêntrica” (cf. GS. 12,1) e definiu a
atividade humana como o “prolongamento da obra do Criador” (cf. GS. 34,2),
explicitando a criatividade humana, imagem da criatividade divina.

5 - O Pecado: desligamento de Deus

O pecado é a decadência do homem em sua relação com Deus para não


descobri-lo na natureza132. E como vimos, em Zubiri, é a soberba na qual o homem
se esconde para não reconhecer a sua ligação com Deus. No AT, pecar (hâtâ,

130
HEINE, S. Criação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 74-75.
131
Cf. DOHMEN, CH. Criação (AT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 73.
132
“‘Pecado’ é o termo que Paulo usa para a compulsão ou coação que os humanos geralmente
experimentam dentro de si mesmos ou em seu contexto social, compulsão para atitudes e ações nem
sempre de sua própria vontade, ou com sua aprovação [...] Especialmente, pecado é a força que faz
os seres humanos esquecerem sua criaturidade e dependência de Deus, a força que impede a
humanidade de reconhecer sua verdadeira natureza, que engana o adam, levando-o a pensar que é
igual a Deus e o torna incapaz de compreender que é apenas adamah. É poder que faz a
humanidade girar em torno de si mesma, preocupada em satisfazer e compensar sua própria
fraqueza como carne. É o poder que levou incontáveis indivíduos de boa vontade mas de
determinação inadequada a gritar desesperados: ‘Eu não tenho culpa’, ‘não consigo evitá-lo’”. DUNN,
J. D. G. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. p. 150.
- 48 -

hebraico) consiste fundamentalmente em descumprir os mandamentos de Deus133 e


não honrá-lo pela sua criação e salvação. É sempre a tentativa do homem se
“desligar” de Deus, afastando-se da comunhão deífica. Na objetividade do pecado
está a ruptura da relação entre o humano e o divino. O pecado é marcado pela
iniciativa e ação humana. Ao passo que a criação e a salvação são da iniciativa de
Deus134. Como o pecado se origina está ilustrado em Gn 3,1-13.
Diante da ruptura humana causada pelo pecado, o próprio Deus toma a
iniciativa da salvação, revestindo o homem com dignidade (cf. Gn 3,21), numa
constante liberdade de acolhida (cf. Is 59,20s; 2Cr 7,14.17-22). O humano está
perdido, mas pode ser encontrado. O homem pode restabelecer a sua comunhão
com Deus, que lhe oferece a graça e o justifica. Somente pela força de Deus,
superamos a indução ao pecado. Daqui podemos já antecipar a necessidade
litúrgica do sacramento, enquanto momento celebrativo da graça de Deus, pois
quando Deus encontra o humano, deve constituir-se um sacramento. Quando Deus
se encarna no humano, muda a nossa história.
Se tomarmos o pecado de nossos pais como instituição (original) de um
“estado pecaminoso” poderíamos nos isentar de nossa responsabilidade. Ao passo
que, se tomarmos o pecado como possibilidade “inscrita na natureza” (chamamos de
“risco de Deus”) se descobrirá a responsabilidade individual do pecado. Nisto se
fundamenta a perspectiva da “deificação”. Deus deifica o homem decaído, o
pecador. Esta é a gratuidade oferecida por Deus. Não obstante as escolhas do
homem, Deus o deifica. Este mistério só encontra razão na lógica misteriosa de
Deus. Caso contrário, não nasceríamos com possibilidade de pecar. Curiosamente,
Jesus se encarna plenamente em nossa natureza. Ele pode nos salvar porque não

133
“Em teologia moral, a noção de mandamento de Deus tem por função seja indicar o fundamento
primeiro da obrigação moral, seja determinar seu conteúdo, seja por fim dar-nos o meio de saber o
que é exigido de nós. Ela não dá conta do conceito de obrigação enquanto tal”. BIGGAR, N.
Mandamento. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1081. “Para a teologia moral, é em Deus
que se encontra o fundamento da obrigação. E se ele se acha assim alojado na razão divina, os
seres humanos terão acesso a esse fundamento apreendendo pela ordem pela consciência a ordem
da moralidade ou da lei natural, tal como ela estrutura a realidade criada e reflete a lei eterna do
espírito divino”. BIGGAR, N. Mandamento. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1082. “Alguns
teólogos preferem situar o fundamento da obrigação na vontade de Deus. São então os
mandamentos divinos que criam nossos deveres”. BIGGAR, N. Mandamento. In Dicionário Crítico de
Teologia. Op. cit. p. 1082.
134
Cf. OEMING, M. Pecado Original. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 314-315.
- 49 -

escolheu o pecado. Em Jesus somos deificados pelo Pai pela via da liberdade de
filhos e não de escravos.
O “porquê” do pecado, o apóstolo Paulo encontra nas Escrituras: “segundo a
qual existe um fundamento de todo e qualquer pecado: ser homem é ser pecador,
realidade essa que começou com o primeiro homem, Adão (Rm 3,9-20; 11,32; Gl
3,22)”135. Podemos então interpretar, a partir do Apóstolo, que o pecado está inscrito
em nossa natureza. O pecado será sempre original por ser uma ação do homem,
contra a vontade de Deus. A originalidade está, portanto, no homem, ser sujeito de
uma ação que não lhe convém, pois ele não aprendeu com Deus, nem viu Deus
pecando. Original não quer dizer, necessariamente, hereditário. Somos herdeiros da
natureza de Adão e não, necessariamente, herdeiros do pecado do Adão.

A compreensão da origem do pecado abre a perspectiva tipológica


para a interpretação do ato salvífico de Cristo: “Assim como por um
homem veio a morte, assim também por um homem vem a
ressurreição dos mortos. Assim como em Adão todos morrem, assim
em Cristo todos reviverão” (1Cor 15,21s). Cristo se torna o arquétipo
da humanidade escatológica. Em Rm 5 a relação entre Adão e Cristo é
elaborada no contexto da doutrina da justificação, a fim de esclarecer
a superioridade e abundância da graça divina em comparação com a
iniqüidade humana: “[...] o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a
morte, e assim a morte passou a todos os homens, porque todos
pecaram... De modo que, como pela desobediência de um só homem,
todos se tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só, todos
se tornarão justos (Rm 5,12.19)136.

A doutrina paulina sobre o “pecado original”137 insiste em que o homem


depende radicalmente de uma redenção vinda de Deus, em Jesus Cristo. Fica assim
fundamentada a necessidade da Encarnação e todo o sentido da economia da
salvação, como iniciativa divina oferecida por Deus ao homem. Paulo mantém,
assim, o acento da responsabilidade do homem por suas ações, já presente no AT e
no judaísmo, bem como a dialética entre o homem que nasce no pecado (natureza
pecadora) e sua responsabilidade individual para superar, pela graça, este estado

135
OEMING, M. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 315.
136
OEMING, M. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 315-316.
137
“A expressão ‘pecado original’ foi criada por Agostinho (PL 40, 106) para designar aquele pecado
que ‘entrou no mundo’ (Rm 5,12) pela falta de Adão e que afeta todo homem pelo fato mesmo de
nascer (PL 40, 245): é o que se chamará mais tarde de pecado original ‘originado’, por oposição ao
pecado original ‘originante’ do próprio Adão. A análise teológica dele está sempre ligada a uma
reflexão sobre o livre-arbítrio, a graça e a concupiscência (ou cobiça)”. SENTIS. L. Pecado Original.
In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1370.
- 50 -

decaído e recobrar a natureza divina. Na acolhida da graça de Deus se pode pensar


a expiação, sobretudo na idéia de acolher um mediador, que, pelo sacrifício e o
sangue, possa restabelecer a relação perdida com o pecado.
O NT registra o pecado e a expiação presente na pregação de João Batista.
O rito do batismo proposto por João compreendia a conversão e confissão dos
pecados. Ao ato do batismo, com que João combina sua pregação, segue o sinal do
perdão dos pecados (cf. Mc 1,4). Jesus, contudo, apresenta algo que vai além da
proposta de João Batista: a realidade do Reino de Deus. Frente ao Reino, a medida
adotada é a própria perfeição de Deus em sua grande misericórdia, sua santidade
que nos deifica.

A convivência de Jesus com os pecadores mostra que não é a


obediência à Torá que é a condição para participar do Reino de Deus,
e sim a compreensão de que não se pode dispor de Deus e de que o
homem precisa ser acolhido e reconhecido, mas também criticado por
Deus. Por trás disso está implicitamente o entendimento do pecado
como falta de relação com Deus como parceiro138.

Essa intenção fundamental da pregação de Jesus que liberta o homem do


egocentrismo e do conseqüente isolamento, por exemplo, na acolhida de Zaqueu, Lc
19,1-10. Procurar e trazer à comunhão com Deus o que estava perdido: eis o centro
das palavras e das ações de Jesus139.

Por isso a definição (frequente na história da exegese) do pecado


como desobediência a Deus é no mínimo equívoca, já que a
submissão à onipotência de Deus contradiz o centro cristológico do
NT. Por sua vinda em Cristo, Deus renunciou ao exercício de seu
poder, a fim de se tornar um “próximo” para os homens e de introduzi-
los numa relação consigo, abrindo-lhes com isso os olhos para ver os
outros (Lc 10,25ss; MT 25,40). Com isso o pecado toma a figura de
uma falta de fé, pela qual o homem terá de responder140.

Jesus é o ponto de referência e decisão. Nele o homem está em posse de


uma proposta positiva, única, que permite restabelecer a sua natureza, em seu
estado original, de filho de Deus e ser por Ele “deificado”. “O julgamento não está a
serviço de uma vontade de punir, mas da perfeita justiça de Deus; por isso os

138
OEMING, M. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op.cit. p. 321.
139
Cf. OEMING, M. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op.cit. p. 321.
140
OEMING, M. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op.cit. p. 321.
- 51 -

homens não devem julgar (Mt 7,1s; Lc 6,37s)”141. A adesão a Deus e à comunidade
de fé será então o grande convite de Jesus à humanidade, para que ela se liberte do
pecado e viva na graça de Deus por meio de Jesus Cristo: nesta proposta encontra-
se a fundamentação da Igreja, dos sacramentos e da liturgia.
Aqui o mistério da Encarnação se dá como auto-comunicação de Deus: “de tu
para tu”142. Na liberdade o homem pode acolher ou não esta luz encarnada. Por isso
João, em seu evangelho, não se pergunta sobre a origem do pecado, apenas mostra
a miséria humana diante da luz. Encontrar Deus próximo de nós é só renunciar ao
pecado, se abrir e acolher o outro. Isto é dado de fé: “crer, porém, significa ser
realmente livre (ontos: Jo 8,36), para a vida e a ressurreição (Jo 5,29; 6,35ss;
11,25)”143. Somente superando o egoísmo144, fonte de isolamento, a pessoa poderá
fazer experiência da gratuidade divina revelada, por Jesus, à humanidade. “Só Deus
pode romper esse círculo vicioso, o que aconteceu por Jesus Cristo: ‘Tudo vem de
Deus que estava em Cristo e reconciliou o mundo consigo’ (2Cor 5,18.19); ‘quem
está em Cristo é uma nova criação (2Cor 5,17)”145.

6 - Graça e Justificação: religamento com Deus

Se antes, por causa do pecado, o homem não podia mais produzir boas
obras, agora, deificado, pela graça e justificação, em Cristo Jesus, poderá
novamente ser expressão do Criador e produzir obras de amor e caridade, frutos do
Espírito. A celebração litúrgica será sempre o anúncio deste mistério de graça com o
qual Deus se oferece ao homem como realidade de aliança deificante. O conceito
teológico de “justificação” encontra-se no NT, sobretudo em Paulo.

141
OEMING, M. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op.cit. p. 322. “O Logos, a palavra criadora de Deus,
que chama o mundo à existência (Jo 1,3) é aquele mesmo que, ‘na carne’ (Jo 1,14), se encontra com
os homens e, como Espírito (Paráclito), continua operando neles e no meio deles. Só assim a
pecaminosidade (trevas) do mundo inteiro fica patente (Jo 1,5; 16,8-9). Sem o conhecimento da
revelação divina em Cristo, os homens continuam não enxergando o pecado (Jo 9,41; 15,22-24). ‘O
pecado’ constitui uma categoria universal, uma propriedade do cosmo e dos homens que nele vivem,
o que se exprime também pelo fato de que geralmente o conceito é usado no singular”. OEMING, M.
In Dicionário Bíblico-Teológico. Op.cit. p. 322.
142
“A encarnação, como autocomunicação de Deus, ‘de tu para tu’, é um ato de vontade livre, ao qual
corresponde a liberdade do homem de não receber a luz (Jo 1,5.9.11; 3,19). Por tal decisão,
qualificado em João como não-crer, um mundo cego transforma-se num mundo conscientemente
culpado, que se julga a si mesmo (krisis: Jo 3,19; 8,16; 16,8s; 12,31 etc.) para a morte (Jo 8,24)”.
HEINE, S. Pecado/Expiação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op.cit. p. 323.
143
HEINE, S. Pecado/Expiação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op.cit. p. 323.
144
Cf. HEINE, S. Pecado/Expiação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op.cit. p. 323-324.
145
HEINE, S. Pecado/Expiação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 324.
- 52 -

Mas, a pergunta que se põe é a seguinte: “Como os homens podem agradar a


Deus? Ou, como eles podem entrar em comunhão com Deus?”146. Se tomarmos a
proposta de Zubiri, na qual estamos ligados ao ser de Deus, podemos dizer que
entramos em comunhão com Deus pela sua energia, pelo seu Espírito. Somente o
amor extático de Deus nos justifica e nos faz participar pela graça no mesmo ser de
amor. A resposta à pergunta acima pode ser curta: Graças à justiça divina147 que
não condena, mas liberta, e por ela somos justificados. Esta resposta, contudo, nos
remete a duas outras questões: o que é a justiça divina? E o que é a graça? “Se a
justiça de Deus consiste em retribuir a cada um segundo o que lhe é devido, se
portanto deve-se ‘não ter senão o que se merece’, como esperar então a salvação e
a vida divina?”148.
Agostinho entende a justiça divina no sentido de Paulo: A justiça de Deus não
significa aquilo pelo qual Deus é justo, mas essa justiça que Deus dá ao homem a
fim de que ele seja justo pela sua graça149. Nesta graça divina somos deificados.
Quem declara justo ou justificado é Deus. “Esse ‘conceito doutrinal’ encontra-se
principalmente em Gl e Rm. Aí a ‘justificação pela fé’ tornou-se a expressão mais
significativa da pregação paulina”150. Paulo, contudo, não inventa esta doutrina, ela
se baseia no AT.

Justificar é, pois, o que cabe a Deus no julgamento sobre o homem;


em última instância, no Juízo final. Decisivo para o homem é ser
considerado justo por Deus. A base para isso é a relação vital com
Deus, dentro da aliança que Deus concedeu a seu povo. “Justo”, pois,
é o homem, não a partir de si mesmo (toda forma de auto-justificação
do homem já está excluída no AT, e o está também no NT, cf. Lc
16,15; 18,19), mas por uma vida de acordo com o que Deus

146
WILLIAMS, R. Justificação. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 974. “Para a teologia
cristã, só se pode responder a essa questão levando em conta os dois pontos seguintes: por um lado,
a situação de pecado em que os seres humanos mergulharam os torna incapazes dessa comunhão;
eles não podem libertar-se da visão deformada, nem da fraqueza ou da corrupção da vontade, que
essa situação lhes impõe; por outro, a liberdade de Deus é total; ele não pode ser nem forçado nem
mesmo persuadido a agir de uma maneira ou de outra. Se, pois, os homens devem encontrar graça a
seus olhos, isso só pode acontecer por obra sua”. WILLIAMS, R. Justificação. In Dicionário Crítico de
Teologia. Op. cit. p. 974.
147
“Trata-se de todo modo, de maneira muito evidente, de um atributo relativo a Deus (atributos
divinos). Mas todo o problema consiste em saber de que relação se trata”. FERNANDEZ, I. Justiça
Divina. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 971. Cf. FERNANDEZ, I. Justiça Divina. In
Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 972.
148
FERNANDEZ, I. Justiça Divina. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 972.
149
Cf. FERNANDEZ, I. Justiça Divina. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 972-973.
150
KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 226.
- 53 -

determinou, e pelo reconhecimento disso no Juízo de Deus (cf. Lc


18,14)151.

Devemos, sem dúvida, particularmente, a Paulo152 a explicitação do tema da


justificação no NT. “Justificação (ser tornado justo) é o dom de Deus ao pecador;
esse dom é dado no Batismo, isto é, baseia-se na relação com Jesus Cristo, e é
operado pelo Espírito Santo”153. Esta ligação entre justificação e Batismo aparece
em Rm 6,7: quem está morto (no Batismo) está liberto do pecado. Justificação é a
libertação do domínio do pecado; seu fundamento é o Cristo, isto é, sua morte e
ressurreição e, por conseguinte, o Batismo como “assimilação” sacramental à sua
morte (Rm 6,5). A isso corresponde 1Cor 1,30: Ele (Cristo Jesus) tornou-se para nós
a sabedoria que vem de Deus, para justificação e santificação e libertação 154.O
perdão de Deus é o início de uma história na qual o homem, justificado, entra num
processo de transformação, que tem a sua origem no próprio ser de Deus. Esta
transformação, ontológica, compreende também a glorificação que se realiza na
união com Cristo: participação na sua morte, ressurreição e pela incorporação no
seu corpo, a Igreja.

2Cor 5,21 afirma, em estilo retórico: “A ele (Cristo), que não conhecia
o pecado, Deus o fez pecado, a fim de que nós nos tornássemos
justiça de Deus, nele”. Na morte vicária de Cristo (“por nós”) o próprio
Deus lançou a base que sustenta a aplicação de sua justiça redentora
a nós. E Rm 3,25s: “A ele (Cristo) Deus constituiu como expiação, pela
fé, em seu sangue” – para demonstração de sua justiça por causa do
perdão dos pecados anteriormente cometidos155.

151
KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 226.
152
“Paulo estende-se longamente sobre essa questão, em particular na Epístola aos Romanos; ele se
interessa, sobretudo, pelas razões mediante as quais Deus nos trata como se não fôssemos
culpados, o que não se funda senão em sua livre decisão. Assim, somos ‘justificados’ pela graça de
Deus manifesta em Jesus Cristo (Rm 3,24ss), ou pelo sangue de Jesus derramado na cruz (Rm 5,9).
Quando reconhecemos plenamente a ação divina, recebemos os seus frutos; é assim que se pode
dizer que somos justificados pela fé (Rm 3,28; 5,1; Gl 2,16; 3,24). Portanto, é inocente, aos olhos de
Deus, todo aquele que tem confiança no que se realizou pela morte de Jesus (Rm 3,26). A fórmula
discutível, mais tardia, a ‘justificação só pela fé’, o sola fide de alguns protestantes, não se encontra
nesses termos em Paulo; e a própria expressão ‘justificação pela fé’ deve ser compreendida no
contexto de todo o drama exposto em Rm e Gl, no qual Deus, em Jesus, resgata e perdoa os
pecados – caso contrário, podemos esquecer que foi Deus que tomou essa iniciativa sem igual”.
WILLIAMS, R. Justificação. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 974.
153
KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 226.
154
Cf. KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 226.
155
KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 227; Cf. HEINE, S.
Pecado/Expiação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 325.
- 54 -

Contudo, perdão, salvação, glorificação e justificação não são atos mágicos


de Deus em nosso favor. Se a natureza não dá saltos, Deus também não o faz.
Tudo está revelado na economia da salvação, Deus se oferece aos humanos como
graça divina revelada em Jesus Cristo em vista da nossa deificação. A “justiça” dada
por Deus, que opera como perdão dos pecados, tem sua base na morte de Cristo
[...]. A eficácia redentora da morte expiatória de Jesus opera “pela fé”156.
A Lei mosaica não é inválida, mas recebe uma nova força, um novo “espírito”.
Continua obrigatório cumprir a vontade de Deus, que encontra o seu ápice no
mandamento do amor (Rm 13,8-10; Gl 5,13s). Os textos paulinos sobre a justificação
do pecador pela graça e pela fé em Jesus Cristo irão marcar a Igreja e a teologia do
Ocidente, sobretudo na reforma e contra-reforma.

A teologia dos reformadores insiste, com Lutero, na eficácia exclusiva


da graça de Deus no processo da justificação e, conseqüentemente,
na constante dependência do pecador justificado da eficácia da graça
divina “extra nos” (que o homem nunca poderá alcançar). A teologia
católica, porém, depois de Trento, vê o dom da justiça expressamente
como o poder divino que, no batismo e na fé, atinge o homem por
dentro, o cria de novo, capacitando o justificado a fazer boas obras, as
quais beneficiam o crescimento de sua vida na graça157.

Talvez a doutrina da justificação, quer dos reformados quer da Igreja católica,


possa ser vista não em contradição, mas como complementação: Tudo depende da
iniciativa de Deus. Uma vez acolhida esta iniciativa divina o homem é deificado;
transformado numa realidade nova; porém ele nunca será Deus, mas somente

156
KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 227. “Em Gl 2,16, Paulo
resume seu pensamento sobre a justificação na frase: ‘Nós sabemos que o homem não é justificado
pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo’”. KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário Bíblico-
Teológico. Op. cit. p. 227. O conceito paulino de justificação: “O homem não consegue a justificação
por si mesmo, como que na base de uma reivindicação garantida por uma promessa e baseada no
cumprimento da Lei, e sim pela fé em Jesus Cristo. Esta fé é fé naquele Deus que, paradoxalmente,
não justifica “o justo”, mas “justifica o ímpio” (Rm 4,5). KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário
Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 227. “A base está no AT, a fé de Abraão (Gn 15,6; Gl 3; Rm 4). (2). A
base da justificação, para os judeus e gentios, é Jesus Cristo, pela entrega de si mesmo na cruz (Gl
2,20; 3,1). É no ato de Cristo com seu sacrifício único, escatológico, que Deus se revela como justo e
justificador (Rm 3,25-26). “Há nisso dois aspectos, que determinam, ambos, a importância da
‘justificação’, tanto no presente como até o fim do mundo: o aspecto teocêntrico (especialmente Rm
1,17; 3,21s) da ‘justiça de Deus’, revelada no Evangelho, isto é ‘agora’; e o aspecto cristocêntrico, do
Cristo que intercede por nós, pecadores (Rm 5,6-11)”. KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário
Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 227. “Pela fé em Jesus Cristo o dom da justiça nos é dada por Deus. A
indissolúvel relação da fé com a ação e pessoa de Jesus Cristo, em quem Deus se revelou, exclui
qualquer alegação de Moisés e de sua Lei como base para a justificação, pois essa é dada ‘de graça’
(Rm 3,24; 4,4s)”. KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 227.
157
KERTELGE, K. Justificação. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 228.
- 55 -

“participante” da divindade, uma vez que ele é um ser que só recebe realidade de
fora dele. Somente nesta “lógica” se entende o que seja deificação pela graça e
justiça de Deus. Mas esta parece ser uma “página” da história do cristianismo
ocidental ainda a ser aprofundada e reescrita na própria teologia cristã. Contudo,
qualquer que seja o desenvolvimento da questão a teologia paulina da justificação 158
será sempre referência.

A pergunta como os homens, então, podem chegar a estar “em Cristo”


constitui o cerne da teologia paulina, e a resposta é desenvolvida em
frases ora tradicionais, ora originais. Em primeiro lugar é precioso
reconhecer Deus, bem como considerar a reconciliação na cruz e a
ressurreição acontecidas “para nós”, pois “Cristo morreu por nossos
pecados e foi ressuscitado para a nossa justificação” (Rm 4,25; 5,6-11;
Gl 1,4)159.

No mistério da encarnação Deus se tornou um, “tu”, próximo, humano, para


manifestar o amor e o perdão; tudo é sempre e eternamente iniciativa divina; pois se
Deus retribuísse porque merecêssemos não seria graça; e se nós tivéssemos direito
a algo, Deus não seria livre. E como vimos, Deus é o ente mais puro e perfeito
porque é um Ser livre.

Quem, na fé, tomar a sério a pecaminosidade, tomará consciência de


que seria uma ilusão querer acabar com os pecados por um esforço
moral, em busca de perfeição [...]. No NT, Cristo é o “meio”
gnosiológico (fé) e ontológico (nova criação) contra o pecado, que
liberta o homem de si mesmo, e até de um altruísmo egocêntrico, que
se orienta por seus próprios ideais elevados e irrealizáveis, atrás dos
quais espreitam o desespero e a resignação, quando não sobrar mais
nada para esperar. A situação permanentemente crítica deste mundo
é capaz de alimentar sem cessar a esperança na vinda de Deus160.

7. A Deificação Sacramental
Apresentamos até aqui, neste capítulo, a perspectiva da deificação como
enfoque teológico. Procuramos a partir do Ser de Deus, do seu Amor extático

158
A obra de, Dunn, é, sem dúvida, muito apropriada para a compreensão desta questão da
justificação, bem como de toda a teologia do Apóstolo Paulo. DUNN, J. D. G. A Teologia... Op. cit. A
proposta deste trabalho, ainda que modesta, pode lançar luzes sobre esta questão tão espinhosa.
Pois se recuperamos a teologia na perspectiva da deificação acredito que temos muito a ganhar para
superarmos os fundamentos dos teologismos.
159
HEINE, S. Pecado/Expiação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico.Op. cit. p. 324.
160
HEINE, S. Pecado/Expiação (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 325.
- 56 -

(apoiado no pensamento de Zubiri) e da santidade Deus para entender o que seja a


nossa ligação (religião) com ele. Procuramos compreender, brevemente, o que seja
a economia da salvação: a aliança de Deus com a humanidade para restabelecer a
relação – humano-divina - rompida pela queda do pecado. Agora vamos olhar por
esta perspectiva, de maneira conclusiva, a realidade sacramental instaurado pelo
mistério de Cristo.
Pois, aguardamos justificados por Deus, a vinda de Cristo e a vida eterna:
celebrando, pela graça, a liturgia e seus mistérios que nos deificam. Pois o humano
nunca deixará sua natureza, mas, por participação e comunhão, é deificado em
Cristo pela graça batismal.
Segundo Zubiri161: “na criação se produzem coisas distintas de Deus; na
deificação Deus se dá pessoalmente a si mesmo. É uma efusão doada à criação.
Vista a partir das criaturas, é uma unificação delas com a vida pessoal de Deus” 162.
A deificação tem sua origem no mistério da encarnação163 e se desdobra no mistério
da santificação: este é o mistério, sacramentum. Este mistério faz parte do ser de
Deus. Está em sua vontade revelar-se em Cristo para recapitular todas as coisas164.
Em Cristo a humanidade recebe de Deus uma transformação sacramental. O que
era invisível e transcendente do mistério de Deus, e que nós necessitamos para a
nossa deificação, torna-se carne, em Jesus Cristo.
Ao propormos a categoria da deificação, enquanto perspectiva, teológico-
litúrgica, estamos pensando na possibilidade objetiva da teologia, como reflexão da
fé, a partir dos mistérios de Deus com os quais o homem se encontra envolvido;
bem como a memória e atualização desses mistérios proclamados na liturgia. Por
isso, Deus deve ser “conhecido” e “experienciado” na inter-relação do mistério da
Trindade, indissociável à economia da salvação, no qual Ele manifesta o seu amor
pelos homens (cf. Tt 3,4). Será nesta relação Trinitária de comunhão que se

161
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 504.
162
“O ciclo do amor extático divino se completa deste modo. Na Trindade, Deus vive; na criação,
produz coisas; na deificação, eleva-as para associá-las a sua vida pessoal”. ZUBIRI. Naturaleza...
Op. cit. p. 504
163
Comentando as palavras do Credo de Nicéia Paul Evdokimov diz: “Se a encarnação fosse
determinada pelo pecado, seria Satânica, isto é, o mal a condicioná-la [...] Cristo desce do céu e se
encarna ‘por nós homens e para nossa salvação’ [...]. O ‘pela nossa salvação’ designa a redenção; e
‘o por nós homens’ a deificação, uma e outra justificam a encarnação”. EVDOKIMOV, P. L’Ortodossia.
Op. cit. p. 85.
164
ZUBIRI, X. Naturaleza... Op. cit. p. 504
- 57 -

fundamenta a perspectiva da deificação. Nela o humano é transformado,


sacramentalmente, pelo próprio Deus.
A deificação é um mistério que procede do próprio ato criativo de Deus. De
algum modo o ser criado está na relação com o Criador. Não tem como fugir da
participação da santidade daquele que nos chama à vida. “Deus disse: ‘Façamos o
homem à nossa imagem, como nossa semelhança’ [...] Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou” (Gn 1,26-27).
A idéia da imagem é a da representação. Por isso o homem torna presente “Deus”
na criação e no mundo. E o torna presente pela semelhança165.

Deus planejou e quis essa posição tão valorizada: “Façamos o homem


[...]”. Semelhante a Deus, o homem o representa como senhor da
criação: “[...] como efígie que nos corresponda; reinará sobre os peixes
do mar, sobre os pássaros do céu, sobre o gado, sobre a terra inteira e
tudo o que nela se move” (Gn 1,26). Juntamente com a promessa de
bênção, o homem recebe explicitamente a incumbência de reinar (Gn
1,28)166.

Numa descrição mais antropológica do primeiro relato da Criação temos o


humano como ser vivente: “Então o Senhor Deus modelou o homem com a argila do
solo, insuflou em suas narinas uma hálito de vida167 e o homem se tornou um ser
vivente” (Gn 2, 7). Mas será nesta argila, que se realiza o mistério da encarnação.
Tomamos a relação sacramental do homem com Deus das palavras de João:
“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1,14). Seria inconcebível Deus
habitar em nós (na humanidade) se não houve um “mínimo” de identidade que lhe

165
“A semelhança divina no homem não é, pois, determinada propriedade do homem (como a
inteligência, a linguagem), mas significa sua proximidade a Deus e a incumbência particular com
relação à criação e dentro dela. Mas seu reinar não é autônomo; Deus entrega ao homem sua tarefa
e lhe determina os limites (Gn 1,29s; 9,2ss). Elevado acima da criação, o homem está orientado para
Deus (Sl 8). E assim como os soberanos orientais viviam na presença e sob a proteção de seus
deuses, o conceito de semelhança com Deus, em Gn 1, introduz o tema da intimidade com o Criador
e da relação com ele. Essa intimidade e representação valem para o homem e mulher (‘criou-os
homem e mulher’ Gn 1,27). Mas isso não permite concluir que Deus é semelhante ao ser humano.
Pois é usado o plural (‘ele os criou...’, Gn 1,27); aliás, na época da redação de Gn 1, a proibição das
imagens já estava em pleno vigor”. KREUZER, S. Imagem/Semelhança (AT). In Dicionário Bíblico-
Teológico. Op. cit. p. 189.
166
KREUZER, S. Imagem/Semelhança (AT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 189. “O que é
dito aqui sobre a posição especial do homem corresponde ao Sl 8. Lá o poeta admira como Deus
exaltou o homem: “Fizeste-o um pouco inferior a Deus: de glória e honra o coroaste; deste-lhe o
domínio sobre as obras de tuas mãos”. KREUZER, S. Imagem/Semelhança (AT). In Dicionário
Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 189.
167
Cf. KREUZER, S. Imagem/Semelhança (AT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 189.
- 58 -

correspondesse168 entre nós e Ele. Bem como se não houvesse uma finalidade: “um
para quê”, uma “ultimidade”, na linguagem zubiriana. Aqui entra a realidade
escatológica da Criação e Salvação em vista da deificação.
A partir da cristologia, podemos então perceber um novo enfoque para a
temática da deificação. O homem não é mais, apenas, imagem e semelhança de
Deus; é também aquele que pode “hospedar” Deus, na pessoa do Filho Jesus.
Nesta acolhida se dá sacramentalmente a deificação do homem. Na encarnação a
economia da salvação encontra sua “lógica” mais profunda: amor-doação. Sempre
esteve na mente de Deus deificar o humano, quer pela criação, quer pela
encarnação de seu Filho. A novidade é que em Jesus encarnado temos uma relação
de proximidade sacramental com Deus. Na pessoa de Jesus a humanidade
recupera a possibilidade de ser “Imagem e Semelhança” de Deus pelo seu amor-
doação; possibilidade de religação, de religião. João, em sua primeira Carta,
expressou a realidade da imagem humana, enquanto filhos de Deus. Ele coloca esta
idéia em duas frases169: primeira, “que já somos filhos”, por conseguinte deificados;
segunda, é que “seremos semelhantes a ele” na glorificação. “Vede que prova de
amor nos deu o Pai: sermos chamados filhos de Deus. E nós o somos!” (1Jo 3,1-3).
Também o apóstolo Pedro nos convida a uma reflexão particular para acolher
e compreender a perspectiva da deificação, enquanto momento escatológico,
mostrando a liberdade de Deus em nos compartilhar a sua natureza deificante em
Jesus Cristo. “Pois que o seu divino poder nos deu todas as condições necessárias
para a vida e para a piedade [...] Por elas nos foram dadas as preciosas e
grandíssimas promessas, a fim de que assim vos tornásseis participantes da
natureza divina” (2Pd 1,3-4)170.

168
Cf. KARRER, M. Imagem/Semelhança (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 190.
169
“Só Deus é santo. E para os homens, que são seres criados, a santidade consiste em participar da
vida divina. João diz a este respeito: “seremos semelhantes a ele, já que o veremos, tal como é (1Jo
3,2). Das duas partes desta frase nasceram as duas tradições da divinização no Oriente (theosis e
theopoiesis; cf. Máximo Confessor, PG 90, 1193 D) e da visão de Deus no Ocidente (visão beatífica;
cf. Agostinho, PL 35, 1656 e 1193). “O fato de ambas terem suas fontes no mesmo texto mostra bem
seu acordo e sua complementaridade”. MCPARTLAN, P. Santidade. In Dicionário Crítico de Teologia.
Op. cit. p. 1610.
170
Expressão de origem grega, única na Bíblia e que causa surpresa pelo seu tom impessoal. O
apóstolo a empregou aqui para exprimir a plenitude da vida nova em Cristo, isto é,a comunicação que
Deus faz de uma vida que só a ele pertence. Sobre a idéia geral aqui apresentada, ver, por exemplo,
Jo 1,12; 14,20; 15, 4-5; Rm 6,5; 1Cor 1,9s; 1Jo 1,3s. Está aqui um dos pontos de apoio da doutrina
da ‘deificação’ dos Padres gregos. Cf. BÍBLIA DE JERUSALÉM (Nova edição revisada). São Paulo:
Paulinas, 1986. Nota de roda-pé “f”. p. 2280. As citações precedentes nos dão a idéia da nossa
deificação, p. ex., recebendo Jesus nos tornaremos filhos de Deus (cf. Jo 1,12); É fiel o Deus que vos
chamou à comunhão com o seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor (1Cor 1,9).
- 59 -

A vida sacramental nos conduz à perfeição. A idéia humana de perfeição está


ligada ao temor de Deus, a escolha de um caminho, que se dá em um processo
dinâmico. “‘Perfeito’ é o homem que anda com Deus, em seus caminhos, e não trilha
caminhos que, por serem pecaminosos, afastam de Deus (Sl 1)” 171. Contudo, há a
necessidade da disposição do coração humano para a acolhida de Deus e a
parceria com o Decálogo. Cabe-nos a fé nesta parceria de Aliança (cf. Gn 15,6). A
palavra amar irá corresponder à atitude humana: é preciso entregar sua vontade a
Deus. “Sede santos, pois eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo” (Lv 11,44s; 19,2;
20,26 etc.) está na base do convite para nos entregar ao Senhor em imitação de
santidade172. Ao homem resta estar diante de Deus, querendo ou não (velis nolis),
para usar a expressão de Zubiri. Resta estabelecer um diálogo com Deus numa
constante oração. A oração ocupa por isso um lugar central na vida de quem ama a
Deus, e supera os sacrifícios de animais (Sl 50, 4; 51,17s) para celebrar o culto em
espírito e verdade (Jo 4,23).
Quanto à dedicação da vida a Deus nos sacrifícios e no culto, o AT
compartilha as práticas religiosas dos povos vizinhos com um novo conteúdo:
entregar a vida à vontade de Deus. Esta vontade de Deus é revelada por sua
Palavra. Moisés (cf. Ex 24,7) já estabeleceu a ‘liturgia da palavra’ no centro do culto
da Aliança, bem como os profetas seguem a mesma linha de valorização da
Palavra. “É por isso também que o sábado, que ocupa um lugar central na legislação
cultual, era considerado não apenas como dia de entrega a Deus do valioso bem
que é o templo, mas também como dia de repouso e recreação, para homens e
animais (cf. Dt 5,14; Ex 23,12)”173; dia dedicado à Palavra de Deus.
A perfeição, portanto, se dá na relação com Deus, vertical, e com os
humanos, horizontal. O ideal da perfeição, na comunidade de Qumran, foi muito
elaborado. “A perfeição só vem da mão de Deus. Os perfeitos do caminho, os que
caminham na perfeição, varões perfeitos na santidade. E na doutrina de Qumran, o
nascimento do homem novo, perfeito, já se realizava nesta vida”174. Aqui já se
estabelece a tensão entre o indicativo e o imperativo. A busca da perfeição não deve

171
DEISSLER, A. Perfeição (AT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 325.
172
“Essa fé aparece sempre nesta forma modelar: crer que o Senhor quer constituir uma Aliança. Ela
é, portanto, um ato de pessoa para pessoa, aceitando a palavra da revelação divina, fazendo dela o
fundamento de sua vida... A fé bíblica, portanto, corresponde à expressão: ‘eu acredito em ti’ (não:
‘acredito que...’)”. DEISSLER, A. Perfeição (AT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 326.
173
DEISSLER, A. Perfeição (AT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 326.
174
MUSSNER, F. Perfeição (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 327.
- 60 -

ser concebida como mera indicação divina; ela vai se impondo como um modo
imperativo no qual o humano está lançado até ser plenamente deificado por Deus,
transformado pelo seu Espírito, querendo ou não (velis nolis).
O que fundamenta esta relação coletiva de perfeição entre os homens é que
Deus não quer salvar o indivíduo, mas a humanidade. Na encarnação do Verbo esta
proposta de salvação universal é ainda mais evidente, sobretudo a entrega de Jesus
na morte pela humanidade175.
Jesus expressa acerca da perfeição em dois textos: o primeiro “Sede perfeitos
como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48) que está na base da imitação de Deus
“Sede santos, pois também eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo!” (Lv 19,2).
Perfeição, aqui, se identifica com amor sem medida. O segundo: Mt 19,21, quando o
jovem rico almeja a perfeição. O que falta ao jovem para ser perfeito é a renúncia
total às posses materiais para depois seguir a Jesus, pois ninguém pode servir a
dois senhores: “não podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24)176.
Paulo também compartilha da idéia da perfeição na linha da vontade de Deus
(Rm 12,2). Os cristãos são perfeitos por acolherem a mensagem de Deus (1Cor 2,6),
mas estão num processo contínuo de perfeição (1Cor 14,20; Fl 3,15; Cl 1,28; 4,12).
E o próprio apóstolo é modelo de perfeição (cf. Fl 3,15), embora não esteja
consumada a sua perfeição (Fl 3,12) que é uma meta. A medida da perfeição cristã
é de um lado o amor, e do outro o próprio Cristo celeste. Nele o cristão atinge a
maturidade (Ef 4,14). “Dessa forma, o próprio Cristo celeste é o ideal e a meta de
toda a perfeição cristã!”177. Na carta aos Hebreus, a existência cristã é uma
existência de peregrinação com Jesus e para Jesus, em sua glória. O caminho da
perfeição leva assim a uma “paralelização” de Jesus com seus irmãos (cf. Hb 2,10-
18; 3,14-16; 4,14-5,10; 13,13), mas também a uma desvalorização da ordem
terrestre do AT. A Lei e o culto do AT nunca podiam “levar à perfeição” os que deles
se aproximavam (Hb 7.1.19; 9,9; 10,1), Cristo chegou à consumação pelo sacrifício,

175
“Particularmente visível torna-se isso para Israel na figura do ‘Servo de Deus’ do Dêutero-Isaías.
sua disponibilidade diante de Deus e seu ‘ser irmão’ levam-no a se oferecer ao senhor em
substituição e como ‘sacrificio de expiação’ em favor da humanidade que rompeu a Aliança (Is 53).
Conforme o texto repetidamente sublinha, essa auto-entrega ‘pelos muitos’ é a base para a salvação
e exaltação desse parceiro ideal da Aliança, que realiza Mq 6,8 de maneira insuperável”. DEISSLER,
A. Perfeição (AT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 327.
176
Cf. MUSSNER, F. Perfeição (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 328.
177
MUSSNER, F. Perfeição (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 328.
- 61 -

obediente, e levou à consumação os santificados (Hb 10,14; 5,10; 7, 18) que devem
trilhar o caminho para a meta celeste178.
Este caminho de perfeição é expresso pelo apóstolo Tiago como
perseverança: a constância dos fiéis deve produzir uma obra perfeita, a fim de que
sejam perfeitos e íntegros, livres de todo defeito (Tg 1,4). Na perfeição a pessoa
adquire liberdade por estar sacramentalmente ligada ao amor de Deus. E João
coloca a perfeição na categoria do amor, como vimos no ser de Deus. Em Jo 17,23,
a meta dos discípulos de Jesus, a meta escatológica da comunhão com Deus e com
Cristo, deve ser sua “consumação” na indissolúvel “unidade” do amor, na
observância dos mandamentos (1Jo 2,5) e no amor mútuo (1Jo 4,12). O amor
precede ao conhecimento e prepara o cristão para o dia do Juízo (1Jo 4,17s).
Para concluir podemos dizer que no amor extático de Deus adquirimos a
plenitude da deificação que nos faz semelhantes a Ele em santidade e perfeição.
Isto, sempre respeitando, contudo, os limites da nossa condição humana. Por isso,
para nós, a deificação se dá apenas sacramentalmente, pois não participamos da
vida de Deus, por natureza, como Jesus Cristo, mas por graça sacramental.
Será esta a missão do próximo capítulo: aprofundarmos a teologia do Batismo
na perspectiva da deificação que nos faz participantes do amor extático de Deus.

178
Cf. MUSSNER, F. Perfeição (NT). In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 328.
- 62 -

CAPÍTULO II – BATISMO: SACRAMENTO DE DEIFICAÇÃO

Nosso objetivo, aqui, não é entrarmos na história do sacramento do Batismo,


mas, apenas apontarmos a sua origem e o seu desenvolvimento teológico na
perspectiva da deificação. Pretendemos, portanto, estabelecer um diálogo entre a
teologia bíblica e patrística com o Ritual de Iniciação Cristã de Adultos reformado
pelo Concílio Vaticano II. Acreditamos que a nossa perspectiva fundamenta todos os
sacramentos. Para isto apontamos alguns elementos bíblicos, teológicos e rituais
que, direta ou indiretamente, são pertinentes e se referem à deificação.
Tomando o Ritual de Iniciação Cristã dos Adultos (RICA)179, vamos expor o
rito do sacramento do Batismo a partir desta proposta, por expressar a teologia e a
catequese-sacramental do batismo favorável à nossa perspectiva180. As suas etapas
constituem o fundamento dos ritos litúrgicos para a celebração do sacramento do
Batismo e da Eucaristia na perspectiva da deificação. Não entraremos no
Sacramento da Confirmação, por não ser nosso objetivo imediato, mas isto em nada
diminui a sua importância.
Pela lógica destes ritos litúrgicos181 podemos interpretar qual seja a teologia
litúrgica da Igreja ao acolher os candidatos aos sacramentos de iniciação cristã. A
Igreja os exorta à conversão por meio da Palavra de Deus e dos ritos,
acompanhados de orações que fortalecem os candidatos até a maturidade da fé,
que lhes permitam celebrar os sacramentos, em plena liberdade.
Este processo de iniciação à vida cristã favorece os candidatos a se
descobrirem chamados e eleitos por Deus para celebrarem os sacramentos da
iniciação cristã: celebrar a deificação. Pois, ao mesmo tempo em que favorecem os
catecúmenos a dar respostas positivas à iniciativa de Deus, eles respondem
celebrando, na fé, a estes ritos de iniciação.
A realidade “mistérica” do sacramento do Batismo torna-se, portanto,
experiência pessoal de fé do candidato ao entrar na vida cristã pelo processo

179
PAULO VI. Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA). 3ªed. São Paulo: Paulus, 2004. Seguimos
a estrutura lógica do capítulo I deste ritual que, pela sua clareza, aponta-nos a deificação.
180
Embora o Ritual do Batismo de Crianças pressuponha também a iniciação cristã dos pais e
padrinhos.
181
Os Ritos litúrgicos da iniciação cristã de adultos possuem a seguinte estrutura fundamental: 1.
Acolhida; 2. Saudação e exortação; 3. Diálogo (para alguns ritos específicos); 4. Proclamação da
Palavra de Deus e homilia; 5. Preces; 6. Orações de exorcismos e de bênçãos; 7. Despedida.
- 63 -

iniciático. Por obra do Espírito Santo, a vida do candidato ao Batismo vai


configurando-se à vida e à pessoa de Jesus Cristo. Podemos dizer que as etapas
dos ritos que precedem conduzem os iniciados na fé à celebração do Batismo: à
deificação sacramental, acolhida da graça de Deus. Contudo, o que vemos no tempo
do catecumenato é uma verdadeira expressão da Graça de Deus se manifestando
para com os seus filhos e filhas que, na liberdade, são convidados a aderir a Cristo,
no seio da Igreja, de modo sacramental.

1. Sacramento do Batismo

O termo sacramento tem sua origem no termo grego mysterion (latim


mysterium ou sacramento). Ele pode ser considerado já um termo teológico no
sentido que expressa, tardiamente, a compreensão do mistério e desígnio de Deus
revelado nas Escrituras. Estando, pois, para nós, estritamente ligado ao mistério de
Jesus Cristo (cf. Cl 2,2; Ef 4,3), Sacramento do Pai182. Será, portanto, na conotação
da revelação que o mistério deixa o seu caráter de categoria transcendental para
mergulhar em nossa imanência e nos deificar. Nela, Sacramento, se expressa em
linguagem comunicativa.

Desde logo, se o mistério conota sempre um pouco um segredo de


Deus acerca de seu “desígnio benévolo” sobre o mundo (Ef 1,9), ele
não é mais destinado, como os mistérios pagãos, a ficar oculto: ele é,
ao contrário, objeto de um anúncio público (Rm 16,25s) e é doravante
tornado visível até entre os pagãos (já que o mistério é “Cristo no meio
de vós”: Cl 1,27); e precisamente, o ministério apostólico não tem
outro objeto que não o “anúncio do mistério do Evangelho” (Ef 6,19) “a
intendência dos mistérios de Deus” (1Cor 4,1)183.

Tanto o Mistério de Deus quanto o do Sacramento está estritamente ligado à


pessoa de Jesus Cristo, bem como à missão da Igreja, depositária da fé e do
sacramento, sobretudo na celebração litúrgica do Batismo e da Eucaristia:
Sacramentos que constituem a Igreja184, Corpo de Cristo. A Igreja deduziu do NT os

182
A obra de SCHILLEBEECKX, E. Cristo Sacramento do Encontro com Deus: estudo teológico
sobre a salvação mediante os sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1967, ainda é referência para esta
temática.
183
CHAUVET, L-M. Sacramento. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1574.
184
“A Igreja é a continuação, a permanência atual desta presença real escatológica da vitoriosa
vontade gratificante de Deus, enxertada definitivamente com Cristo no mundo. A Igreja é a presença
- 64 -

ritos litúrgicos dos sacramentos185. Os Padres da Igreja assumem estes


sacramentos como sendo da Tradição Apostólica e que, por isso mesmo, recebidos
do próprio Cristo, na linha direta.

Cristo é o instituidor-autor dos sacramentos da igreja, porque é o


grande sacramento da salvação. Desse modo, os sacramentos estão
ligados a Cristo não por meio de simples mandamento e não se
apresentam como ritos genericamente manifestadores da fé em Cristo,
mas dependem do próprio ser sacramental de Cristo, como de uma
fonte sacramental de onde a salvação passa para os sacramentos; e,
sendo a salvação uma realidade “revelada”, tem sempre uma
realidade de “sinais” para ser captada pelo homem. Os sacramentos
são, pois, a continuação do sacramento da salvação, que se tornou
real uma vez por todas em Cristo. Por isso, os Padres, aludindo ao
simbolismo certamente entendido por Jo 19,34 (“um soldado abriu o
lado de Cristo e logo saiu sangue e água”; cf.1Jo 5,6), dizem muitas
vezes que “do lado de Cristo adormecido”, isto é, morrendo no alto da
cruz – o que vale a dizer: no momento máximo do sacramento de
salvação que se operava em Cristo -, brotaram os sacramentos, por
meio dos quais seria constituída a igreja186.

A reflexão teológico-litúrgica que se desenvolve a partir dos Padres irá afirmar


que os sacramentos são meios eficazes da graça.
Se na primeira Aliança (AT) a circuncisão constituía um rito que exteriorizava
a realidade de pertença ao povo do mesmo sangue, na segunda Aliança (NT), o rito
do Batismo terá a mesma função para aquele que adere a Cristo, constituindo, o
novo Povo de Deus em Jesus Cristo. O batizado é marcado, assim, por identidade
própria, não mais de sangue, mas de pertença sacramental, de ideal de caminho,
marcado pelo selo do Espírito Santo e, ontologicamente, deificado.
Contudo a pessoa que deseja tornar-se cristã, deificada, deve haver acolhido
o chamado de Deus, o primeiro anúncio do Deus vivo; possuir, portanto, a fé inicial
no Cristo Salvador. Ou seja: tenha sido evangelizada, iniciada na conversão
pessoal, estar vinculada a uma comunidade de fé cristã e manifestá-la no sentido

permanente dessa protopalavra sacramental da graça definitiva que é Cristo no mundo, palavra que
atua o dito, ao ser isto dito no sinal. A Igreja, como tal permanência de Cristo no mundo, é realmente
o proto-sacramento, o ponto de origem dos sacramentos no sentido próprio da palavra”. RAHNER, K.
La Iglesia y los Sacramentos. Barcelona: Editorial Herder, 1967. p. 19.
185
Como: a) Batismo: Atos 1,38.41; 8,12.16.38; Rm 6,3; 1Cor 1,13-17; 12,13; Gl 3,27; Ef 4,5; 1Pd
3,21; b) Imposição das mãos para o dom do Espírito Santo: Atos 8,17; 19,6; c) Fração do pão –
Eucaristia: Atos 2,42-46; 20,7.11; 1Cor 11,20; d) Unção dos enfermos: Tg 5,14; e) Imposição das
mãos para inserir alguém na hierarquia ou no ministério: Atos 6,6; 1Tm 4,14; 2Tm 1,6.
186
MARSILI,S. Sacramentos. In: Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 1062.
- 65 -

eclesial. Só, então, após ter acolhido o Evangelho, proceda-se à admissão do


candidato ao catecumenato por meio do Rito de Acolhida187.
Na perspectiva da deificação é importante frisar a estrutura deste Rito por
expressar o início de um verdadeiro “rito de passagem”, um processo que vai do
“antes”, fora da igreja, e, do “depois”, entrada na igreja. O indicativo, contudo, é
caracterizar o “antes” do catecumenato, fora da comunhão eclesial e o “depois” da
adesão à comunhão eclesial na comunidade cristã, que se dá pela acolhida e pelo
mistério da assinalação do Sinal da Cruz (cf. RICA. 83-85. p. 38-39). Nesta
perspectiva o candidato é exortado, sobretudo, à perseverança neste itinerário de fé,
até a celebração dos Sacramentos de Iniciação cristã, caminho que completa a
deificação sacramental da pessoa.
O Rito de Acolhida exorta o candidato ao Batismo a responder ao chamado
de Deus pela experiência da fé, pois a iniciativa é divina: é Deus quem escolhe,
chama e inspira a pessoa a desejar o Batismo e completa a sua obra por ação do
Espírito Santo. O diálogo entre quem preside e o candidato nos evidenciam este
fato. O candidato se apresenta, diz o seu nome e expressa a sua intenção de ser
batizado; expressa o que pede da Igreja e a consciência de que sua adesão
batismal lhe concede a deificação, a vida eterna (cf. RICA. 75-76. p. 36-37).
Embora outras respostas possam ser admitidas, o importante é o seu sentido.
O candidato deve desejar a vida eterna, a deificação, desejar, sobretudo, a
configuração de sua vida com a vida de Cristo para ser incorporado a Ele na
comunidade de fé. Pois a deificação consiste no desejo e na busca da vida eterna.
Consiste em conhecer o verdadeiro Deus e Jesus Cristo, enviado do Pai. Quem
quiser ser seu discípulo, membro da Igreja, deve ser instruído em toda a verdade
revelada por Ele, ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo e procurar viver
segundo os preceitos do Evangelho. Por isso a comunidade de fé que celebra o Rito
de Acolhida expressa sua Ação de Graças a Deus que inspira, atrai e chama novos
filhos e filhas à Graça do Batismo, para serem deificados pelo sacramento
Uma vez acolhido na comunidade de fé, o candidato deve ser acolhido
também pelo Cristo que o chama à amizade. Se de um lado Cristo lhe oferece o
sacramento da salvação, por outro, lhe pede a amizade e a fidelidade no
seguimento. Nisto se manifesta a celebração do encontro pessoal que se celebra no

187
Cf. RICA. 73-90 p. 36-46
- 66 -

sacramento, estabelecendo um vínculo de deificação em Cristo. Assim expressa o


nosso rito: Cristo chamou a você para ser seu amigo; lembre-se sempre dele e seja
fiel em segui-lo! Para isso, vou marcar você com o sinal da cruz de Cristo, que é o
sinal dos cristãos188. Este sinal vai daqui em diante fazer que você se lembre de
Cristo e de seu amor por você. “Receba na fronte o sinal-da-cruz: o próprio Cristo (+)
te protege com o sinal de seu amor (de sua vitória). Aprende a conhecê-lo e segui-
lo, para que você tenha a vida eterna”. (cf. RICA. 84. p. 38). Este rito faz parte dos
ritos da “nova circuncisão” que se completará no banho batismal.

Na oração conclusiva do Rito de Acolhida se pede a Deus pelo candidato ao


Batismo que, marcado com o sinal-da-cruz, possa seguir os passos de Cristo,
conservar em sua vida a graça da vitória da cruz e a manifestar por palavras e
gestos a sua adesão a Cristo. Após este rito, o candidato é convidado a entrar na
igreja (espaço litúrgico), para participar da mesa da Palavra de Deus.

O Batismo, portanto, abre as portas à deificação, à santidade. Só Deus é


santo. Para os homens, a santidade consiste em participar da vida de Deus. João
diz a este respeito: “seremos semelhantes a ele, já que o veremos, tal como é” (1Jo
3,2)189. Esta participação batismal na santidade é alimentada pela Eucaristia.
Segundo Lubac, referindo-se a santo Agostinho, esta é a motivação da conversão
pessoal, numa vivência eclesial de comunhão com Cristo.

Agostinho mostra bem que a santidade é eclesial ao comparar a


fabricação do pão eucarístico com o processo de entrar na Igreja [...].
Receber o Cristo é, na realidade, ser recebido por ele na Igreja. “Ele
mesmo é o corpo do qual aqueles que o comem se tornam o
alimento”190.

188
Se os candidatos forem poucos, segue-se o rito proposto. Se forem muitos quem preside pode
solicitar que os catequistas e introdutores lhes ajude na assinalação. Para isso diz: “... E a
comunidade inteira cercará vocês de afeição e se empenhará em ajudá-los”. Além da fronte se
parecer oportuno a quem preside poderá assinalar também os sentidos: ouvidos, olhos, boca, peito,
ombros. Esta prevista pelo RICA. 86. p. 40 , cantar uma aclamação de louvor a Cristo.
189
“Das duas partes desta frase nasceram as duas tradições da divinização no Oriente (theosis e
theopoiesis; cf. Máximo Confessor, PG 90, 1193 D) e da visão de Deus no Ocidente (visão beatífica;
cf. Agostinho, PL 35, 1656 e 1895). O fato de ambas terem suas fontes no mesmo texto mostra bem
seu acordo e sua complementaridade”. MCPARTLAN, P. Santidade (B. Teologia Histórica e
Sistemática). In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 1610.
190
MCPARTLAN. Santidade (B. Teologia Histórica e Sistemática). In Dicionário Crítico de Teologia.
Op. cit. p. 1610.
- 67 -

A deificação encontra no sacramento do Batismo sua máxima expressão.


Pelo Batismo afirmamos que somos filhos de Deus, unidos, sacramentalmente, a
Jesus Cristo; nele somos justificados por Deus; dele recebemos a graça e a
identidade de filhos deificados, ontologicamente, no amor.

Jesus oferece a todos os crentes a participação na santidade de Deus.


Santificador e santificados têm todos uma mesma origem (Hb 2,11).
Por uma oferenda única, ele leva à perfeição aqueles a quem santifica
(Hb 10,14). A Igreja é doravante a nação santa, o povo que Deus
adquiriu (1Pd 2,9; cf. Ex 19,5s). Santos por vocação (Rm 1,7), os
cristãos podem já receber este título, mesmo que sua vida ainda não
seja perfeita. A vontade de Deus é a santificação deles, o que implica
rupturas (1Ts 4,3-8). O Espírito Santo age na Igreja desde o
Pentecostes (Atos 2,1-13) e a via da santidade consiste em se deixar
guiar pelo Espírito que habita em cada um e que intercede pelos
santos (Rm 8, 1-17)191.

Segundo Lubac, ainda, a justificação faz habitar o Cristo na alma do fiel. E a


vida mística dos fiéis começa com a acolhida que Cristo recebe deles. Tudo
acontece pela graça criada e não pode separar-se de Deus os que a recebem: eis o
Mistério.

Pode-se, portanto, ver na graça criada o vínculo do cristão com o


Cristo que o habita, e já que Cristo senta-se atualmente à direita do
Pai, o efeito da graça criada é, pois, o de nos fazer sair de nós
mesmos para viver na Igreja celeste que partilha sua glória (Cl 3,1-4).
“O fruto da vida sacramental é que o Espírito de adoção deifica os fiéis
ao uni-los vitalmente ao Filho único, o Salvador [...]”192.

O conteúdo explícito da catequese batismal será o envolvimento do batizando


no mistério da cruz de Cristo, na recepção do dom do Espírito para formar um só

191
MCPARTLAN. Santidade (B. Teologia Histórica e Sistemática). In Dicionário Crítico de Teologia.
Op. cit. p. 1609. “O concilio de Trento também ensina que os cristãos crescem na vida da graça (DS
1535). Afirma, com Lutero, que a graça é necessária a todas as etapas da justificação, mas ensina,
contra ele, que a vontade humana deve cooperar para isso, e que a justificação não é somente
perdão, mas também santificação (DS 1521-1529). A graça de caridade é presente nos justos, a
justiça de Cristo não lhes é simplesmente imputada (DS 1530,1561). Esses textos fundam a doutrina
católica da graça santificadora, transformação operada nos justos pelo dom do Espírito Santo (Rm
5,5). Pelo fato desta transformação se produzir numa criatura, chama-se ‘graça criada’, um conceito
que desagrada aos ortodoxos [...] tanto quanto aos reformadores – mas o dom mesmo é ‘graça
incriada’”. MCPARTLAN. Santidade (B. Teologia Histórica e Sistemática). In Dicionário Crítico de
Teologia. Op. cit. p. 1612.
192
MCPARTLAN. Santidade (B. Teologia Histórica e Sistemática).In Dicionário Crítico de Teologia.
Op. cit. p. 1613.
- 68 -

Corpo com o Senhor e os irmãos: em vista de um acontecimento escatológico


ressuscitar com Cristo. Estes elementos bíblico-teológicos constituem os
fundamentos para o rito litúrgico da celebração do Batismo. Nesta base bíblico-
teológica encontramos a nossa perspectiva da deificação que nos permite a nossa
participação no sacramento da Eucaristia.
Após esta introdução podemos olhar mais de perto a teologia do sacramento
do Batismo e a sua relação com a perspectiva da deificação.

2. O Batismo nas Escrituras e na Tradição da Igreja

Seja nas Escrituras ou na Tradição da Igreja, o batismo cristão só pode ser


plenamente compreendido na perspectiva da deificação. A prática do Batismo é
universal e precede as Escrituras. No entanto. No AT, podemos dizer que o Batismo
é visto como prelúdio da deificação; no NT e Tradição da Igreja, como a realização
definitiva da deificação humana enquanto participação na natureza divina.

2.1. A Origem do Batismo

Houve na Palestina e na Síria, entre os séculos II, antes de Cristo, até o


século III, depois de Cristo, um considerável movimento batista que incluiu grupos
heterogêneos e idéias diversas. Neste contexto de movimentação religiosa entrará
em cena, primeiro João Batista, e, depois, a atividade de Jesus 193, que traz a
novidade do Batismo no Espírito pelo qual somos deificados por este sacramento.
João, filho de um sacerdote, será uma figura emblemática para a origem do
Batismo cristão194. Tal alcance atingiu a sua figura que recebeu o cognome de “o

193
Cf. SCHNACKENBURG, R. Batismo. In BAUER, J.B. Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 37.
194
O verbo grego báptô, baptízô significa ‘imergir’, ‘submergir’. No helenismo é raramente usado
com o significado de ‘dar banho’, ‘lavar-se’; sugere mais a idéia de ‘arruinar-se’. O NT usa báptzô
apenas em sentido próprio: ‘molhar’ (Lc 16,24; Jo 13,26), ‘embeber’ (Ap 19,13); e baptízô somente
em sentido cultual (raramente a propósito de abluções judaicas: Mc 7,4; Lc 11,38), isto é, no sentido
técnico de ‘batizar’.O fato de o NT usar o verbo batizo só com este sentido cultual técnico bem
caracterizado demonstra que, para ele, o batismo supõe algo que era inusitado entre os outros ritos e
em meio aos costumes da época. No AT e no judaísmo, os sete banhos de Naamã (2Rs 5,14)
demonstram como era importante, então, o banho no Jordão. Este gesto quase sacramental tornará
um dos ‘tipos’ batismais para a teologia patrística. Mas no judaísmo trata-se de um rito legal mais que
purificatório. Cf. NOCENT, A. Batismo. In SARTORE, D. e TRIACCA, A. M. Dicionário de Liturgia.
São Paulo: Paulinas, 1992. p.109.
- 69 -

Batista”195. Seu batismo, ao qual também Jesus se submeteu, apresenta em


comparação com os batismos de imersão judaicos196 as seguintes particularidades:
é um ato único; todo o povo judeu deve-se lhe submeter; tem a finalidade de
escapar do futuro juízo pela penitência; o batizando não o aplica a si mesmo, mas
deixa-se batizar pelo Batista, profeta escatológico, ou por seus discípulos; esse
batismo tem sentido escatológico: pretende criar para o fim dos tempos um povo
santo de Deus197.
O Messias vem depois de João, mas dentro do clima do movimento batismal
desse período198. E ele mesmo se submete ao batismo de João como documentam
os quatro evangelhos (cf. Mc 1,8-11; Mt 3,13-17; Lc 3,21-22; Jo 1,29-34). A Igreja
primitiva entendeu o batismo de João como prelúdio de seu próprio Batismo, mas
com o acréscimo de que ela mesma era “batizada com o Espírito Santo” (Mc 1,8; At
1,5; 11,16). O caráter especial do batismo de João é indiscutível, embora o Batismo
cristão ultrapasse-o enquanto proposta teológica. O que eles têm em comum é
serem administrados uma só vez, por outra pessoa, tendo caráter de salvação
escatológica. O Batismo cristão, contudo, tem o acréscimo da novidade do
Espírito199 com a vinda do Messias. Pois, Cristo glorificado será o dispensador do
Espírito. Por isso, toda ação da Igreja irá referir-se a esta novidade: a pessoa de

195
Cf. NOCENT, A. Batismo. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 109-110.
196
“O AT conhece o uso da água para purificações rituais (Lv 14-15; cf. Mc 7,1-5). Os adeptos da
comunidade de Qumran favoreciam as abluções cotidianas no desejo intenso de se purificar (1QSIII,
3-11). Por volta do Séc. I se desenvolve, além da circuncisão, o ‘batismo dos prosélitos’, destinado a
purificar os pagãos que se querem tornar judeus. Faltam fontes para datar com precisão seu
aparecimento; hoje a crítica tende a pensar que não houve influência sobre o batismo cristão
(Légasse 1993, cap. 5)”. DE CLERCK, P. Batismo. In LACOSTE, J-Y. Dicionário Crítico da Teologia.
Op. cit. p. 252.
197
Cf. SCHNACKENBURG, R. Batismo. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 37.
198
“De todos os ‘movimentos batistas’, o que mais probabilidades de ter influenciado nas origens do
batismo cristão é o iniciado por João Batista. [...] Uma vez afirmada a originalidade do batismo cristão,
não há nenhum inconveniente em admitir uma influência real do batismo de João”. OÑATIBIA, I.
Batismo e Confirmação: Sacramento de Iniciação. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 60-61.
199
“A comunidade cristã primitiva, no entanto, entendeu o ‘batismo no Espírito’ como um batismo real
com água, que implicitamente comporta a comunicação do dom do Espírito; além disso, identificou-o
com o batismo cristão. [...] Os relatos batismais do livro dos Atos apresentam o batismo tendo
Pentecostes como pano de fundo. Vem depois do texto de Jo 3,5, que fala de nascer da água e do
Espírito, juntamente com as passagens que associam a comunicação do Espírito Santo com o
batismo de água (cf. At 10,44-48; 1Cor 12,13; Tt 3,5) e, sobretudo, com as que mencionam o dom do
Espírito como efeito do batismo de água (cf. 2,38; 19,3-6). [...] Portanto, o binômio ‘água/Espírito,
batismo de água/ batismo de Espírito não deve ser entendido primordialmente como oposição, mas
como semelhança: para uma mente bíblica, a água é símbolo do Espírito. [...] A imersão batismal
(batismo na água) é, portanto, ‘batismo no Espírito’. O binômio água/Espírito se verifica na própria
imersão batismal; esta é, por isso mesmo, ‘pneumatikon baptisma’. [...] A ação principal, obviamente,
é a do Espírito; a da água é só subordinada (instrumental) à ação do Espírito. Conseqüentemente, a
expressão ‘batizar no Espírito’ significa a indissolúvel conexão existente entre batismo cristão e
Espírito Santo”. OÑATIBIA, I. Batismo... Op. cit. p. 55-56.
- 70 -

Cristo. O Batismo no Espírito reflete esta novidade: o Batismo é dado em nome de


Cristo.
Do ponto de vista ritual não se deve buscar muitas diferenças entre o batismo
cristão e os demais ritos batismais do mesmo período. O que se deve buscar de
novidade será o envolvimento do batizado com a pessoa de Cristo juntamente com a
acolhida do Evangelho. E neste sentido está presente a perspectiva da deificação.
Pois ao acolher Palavra de Deus e a Pessoa de Jesus Cristo, seu Verbo, o batizado
estabelece uma nova relação consigo mesmo, com o mundo e com Deus. Quem faz
o encontro com Cristo ouve a Palavra de Deus para cultivar a vida de deificado.
A deificação tem início na “escuta” do chamado de Deus e de sua Palavra,
que nos converter a Ele para acolhê-lo em sacramento. Quando o Rito do
Catecumenato (cf. RICA. 91-108. p. 41-45) nos apresenta as celebrações da Palavra
de Deus elas têm por finalidade três pontos: a) gravar no coração do catecúmeno o
ensinamento recebido quanto aos mistérios de Cristo e a maneira de viver que daí
decorre, por exemplo, o ensinamento proposto pelo NT; b) levá-los a saborear as
formas e as vias da oração; c) introduzi-los pouco a pouco na liturgia de toda a
comunidade. Entre estas celebrações algumas contemplam celebrar alguns ritos
nos quais o catecúmeno esteja envolvido diretamente. O rito, por exemplo, de
receber da Igreja o Livro da Palavra de Deus200, está diretamente relacionado à
pessoa do Cristo e visa levar o candidato ao Batismo a aprofundar a sua adesão a
Cristo e à Igreja.
Isto nos leva a afirmar que o Espírito de Deus nos é comunicado sob duas
formas que se fazem presentes no Rito do Batismo: primeira, pela Escuta da Palavra
de Deus; e, segunda, pela celebração ritual do sacramento. Devemos ter clareza
quanto o valor de ambas, presentes na nossa Tradição. Poderia parecer que o dom
escatológico do Espírito não estava ligado ao rito (batismal) com a água, como se
pode ver no texto que segue: “Pedro estava ainda falando estas coisas, quando o
Espírito Santo caiu sobre todos os que ouviam a Palavra” (Atos 10,44; 11,15s).
Contudo, a Igreja primitiva praticou e exigiu o Batismo desde o início como algo
indiscutível como se vê na fala de Pedro: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja

200
“Recebe o livro da Palavra de Deus. Que ela seja luz para a tua vida” (RICA. 93).
- 71 -

batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados. Então
recebereis o dom do Espírito Santo” (Atos 2,38).
Por isso a nossa deificação está no encontro com o Verbo encarnado, desse
encontro surge à necessidade de ouvir sua Palavra (a exemplo de Maria, Lc 10,39) e
nascer do Espírito (a exemplo de Nicodemos (Jo 3,1-8). Daí a celebração litúrgica do
sacramento contemplar em nossa Tradição a Liturgia da Palavra e a Liturgia
Sacramental. Sem dúvida, isto é herança da Tradição judaica, da qual nasceu a
nossa liturgia cristã.
O Rito do Batismo cristão encontra sua fundamentação na pessoa de Jesus e
na novidade do Espírito Santo como força vital. Somente uma ordem de Jesus daria
motivo e sentido à exigência e à prática do Batismo nas comunidades cristãs,
juntamente com a promessa de que o Senhor enviaria o Espírito (cf. Jo 16, 5-15)
para revelar todas as coisas. A verdade é que só da boca do Ressuscitado é que
ouvimos tal ordem. Ordem, esta, imperativa. Assim interpretou a primeira
comunidade cristã. Ide Batizai [...], Ide ensinai [...]: fundamenta a Liturgia da Palavra
e Liturgia Sacramental de nosso Rito.
Jesus institui o Batismo no Espírito para que seus seguidores fossem
incorporados n’Ele. Trata-se, portanto, de vincular os deificados pela graça do Pai à
pessoa de Cristo. Uma vez convertido, se batiza; uma vez deificado sela,
sacramentalmente, em Cristo, a realidade nova transformada.

Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos,


batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e
ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que eu estarei
convosco todos os dias, até a consumação dos séculos! (Mt 28,19; Cf.
Mc 16,15-16).

Após a glorificação de Jesus é que o Espírito Santo foi derramado sobre a


comunidade dos crentes, órfã de seu mestre, “pois não havia ainda Espírito, porque
Jesus ainda não fora glorificado” (Jo 7,39). O Espírito enche, conduz e constrói a
comunidade.
No diálogo com Nicodemos, Jesus, dá uma profunda interpretação da
necessidade e do sentido do Batismo, como “segundo nascimento”, nestas
afirmações: “quem não nascer do alto não pode ver o Reino de Deus; quem não
nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Cf. Jo 3,3-8). Por
- 72 -

isso o Batismo não se explica como instituição posterior da Igreja primitiva como rito
de admissão, nem como meio de conseguir o perdão antes de receber o Espírito,
nem tampouco pode o batismo recebido por Jesus no Jordão ter sido motivo ou
modelo para o Batismo na Igreja nascente. Tudo isto apenas colabora para uma
explicitação do Batismo que tem sua instituição no próprio Jesus.
Neste diálogo, o evangelista João dá ênfase ao nascimento do Espírito: ele
apresenta água e Espírito ligados (cf. Jo 7,37-39; 4,10,14; 5,7; 9,7; 19,34-35), pois o
Batismo cristão encontra seu fundamento na água que jorra do lado de Jesus: “Ele
disse isto, referindo-se ao Espírito” (Jo 19,34; 7,38-39). Nesta perspectiva o quarto
evangelho coloca o nascimento do “Espírito” como o “nascer de”, “nascer de Deus”.
Por isso o batizado tem uma vida nova (segundo nascimento), nasce do Espírito de
Deus. “Condição para entrar no Reino de Deus: desde a antiguidade se viu, nessa
passagem, uma das provas da necessidade do Batismo”201.

2.2 O Batismo na Igreja Primitiva

O Batismo celebrado pelos apóstolos a partir de Pentecostes tinha o seguinte


conteúdo e intenção que expressam o vínculo da deificação entre o batizado e este
sacramento:
a) O Batismo é expressão de uma conversão já acontecida e transmite,
sacramentalmente, o perdão dos pecados202. Conversão significa professar a fé em
Jesus, o Salvador destinado por Deus; aceitar e acolher o Verbo, Palavra de Deus,
condição prévia ao Batismo. Podemos verificar esta aceitação da Palavra nos Atos
dos Apóstolos (2,41);

201
Cf. OÑATIBIA, I. Batismo... Op. cit. p. 50.
202
Conversão, aqui, significa total afastamento da vida anterior. É abandono, sobretudo, dos
pecados, diante de judeus e pagãos. Mas significa também a renúncia a uma atitude errada diante do
Messias Jesus. Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a
remissão dos vossos pecados. Então recebereis o dom do Espírito Santo (Atos 2,38); Arrependei-vos,
pois, e convertei-vos, a fim de que sejam apagados os vossos pecados (Atos 3,19); Deus, porém, o
exaltou com a sua direita [...] a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados
(Atos 5,31); também aos gentios, Deus concedeu o arrependimento que conduz à vida! (Atos 11,18);
Deus agora notifica aos homens que todos e em toda parte se arrependam (Atos 17,30); Recebe o
batismo e lava-te dos teus pecados, invocando o seu nome! (Atos 22,16); anuncie o arrependimento
e a conversão a Deus, com a prática de obras dignas desse arrependimento (Atos 26,20). O perdão
dos pecados como conseqüência da conversão é o início da salvação. É a primeira ação escatológica
de Deus, levar o batizado à vida eterna. “Também aos gentios, Deus concedeu o arrependimento que
conduz à vida! (Atos 11,18); e todos os que eram destinados à vida eterna abraçaram a fé” (Atos
13,48).
- 73 -

b) O Batismo é dado em nome do Senhor Jesus Cristo: “e cada um de vós


seja batizado em nome de Jesus Cristo (Atos 2,38); batizados em nome do Senhor
Jesus (Atos 8,16); fossem batizados em nome de Jesus Cristo (Atos 10,48);
receberam o batismo em nome do Senhor Jesus” (Atos 19,5)203;
c) O Batismo é o lugar da efusão do Espírito, “o dom do Espírito Santo” (Atos
2,38), penhor escatológico de Deus. O Espírito é dado àquele que se deixava batizar
em nome de Jesus Cristo204;
d) O Batismo significa a incorporação na comunidade salvífica de Jesus
Cristo. Por ele Deus acrescenta novos membros à Igreja e, assim, ela cresce
também exterior e visivelmente205.
O que se pode entrever, sobretudo nos Atos dos Apóstolos, é que o
sacramento do Batismo se dá num processo evolutivo dentro da própria Igreja
nascente: tanto a preparação à sua recepção quanto ao ritual que se vai
desenvolvendo, até chegar à fórmula trinitária elaborada. Deve-se, contudo, notar
desde Pentecostes algumas conexões como exigências teológicas e rituais: a
conversão e o Batismo; Batismo e perdão dos pecados; Batismo e dom do Espírito;
Batismo, incorporação a Cristo e à vida da Igreja206. Quem acolhe o anúncio
querigmático do Evangelho pode receber o Batismo em nome do Senhor Jesus
Cristo.
O próprio Jesus fala de um Batismo e o distingue do batismo de João: “João
batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo dentro de poucos
dias” (Atos 1,5; cf. Lc 24,29). É certamente o Espírito Santo que perdoa os pecados
(cf Jo 20,22). Entretanto, os apóstolos e discípulos receberam o batismo de João
para a remissão dos pecados. Por outro lado, em Pentecostes eles receberam o
Espírito (Atos 2,1-4), como Jesus lhes havia prometido. Coube, portanto, à Igreja
primitiva elaborar esta passagem teológica do Batismo de João ao Batismo de
203
Sob a invocação do nome de Jesus: “Recebe o Batismo e lava-te dos teus pecados, invocando o
seu nome! (Atos 22,16); a todos os que invocam o teu nome [...] os que invocavam esse nome” (Atos
9,14.21). Invocar o nome de Jesus significa ser entregue a Jesus como Senhor e Salvador, como
único mediador da salvação e da vida. “Pois não há, debaixo do céu, outro nome dado aos homens
pelo qual devamos ser salvos (Atos 4,12); o Príncipe da vida” (Atos 3,15).
204
O Espírito Santo normalmente é “derramado” apenas depois do Batismo, durante a imposição das
mãos (Atos 19,6). Mas o Batismo não é somente ocasião e ensejo, e sim causa e meio para a
recepção do Espírito. A distinção entre recebimento do Espírito e Batismo é mais teórica que efetiva.
205
Não há salvação fora desta comunidade de fé, novo Povo de Deus. E essa comunidade terá de
cumprir, no mundo, sua tarefa missionária. Também a visibilidade e exterioridade do Batismo têm
suas razões internas, profundas. Tudo, pois, o que é essencial ao Batismo, já existe reconhecível na
Igreja primitiva, mas precisa ainda de desenvolvimento e penetração teológica.
206
Cf. OÑATIBIA, I. Batismo... Op. cit. p. 33.
- 74 -

Jesus, bem como elaborar uma catequese batismal juntamente com o rito litúrgico-
celebrativo207.
Portanto, houve um trabalho teológico a propósito do Batismo. Paulo já fala
do Batismo como tradição recebida (1Cor 1,11-17). Faltam-nos informações para o
período que separa o Batismo de João e os primeiros escritos do NT. “Ignora-se,
pois, quando os primeiros cristãos abandonaram a circuncisão, que já os meios
paulinos comparam antiteticamente ao Batismo (cf. Cl 2,11ss), e por que retomaram
o gesto batismal como rito de adjunção (Atos 2,41) a Cristo e a seu corpo”208.
Da origem do Batismo e no seu desenvolvimento na Igreja primitiva podemos
inferir que a deificação se realiza no encontro com Jesus Cristo, dele recebemos o
Evangelho, nele somos batizados.

2.3 O Batismo no apóstolo Paulo e no NT

Coube ao apóstolo Paulo o desenvolvimento original da teologia do Batismo.


E aqui aparece bem clara a perspectiva da deificação. Ele aprofunda a relação entre
o batizado e a pessoa de Jesus: “Nós todos, batizados em Jesus Cristo, é na sua
morte que fomos batizados” (Rm 6,3). Bem como a afirmação do sentido
pneumatológico e eclesial do Batismo: “fomos batizados em um só Espírito, para
formarmos um só corpo” (1Cor 12,13). Por fim, a elaboração da catequese batismal,
relacionando o Batismo à ressurreição: “Fostes sepultados com ele no Batismo,
também com ele ressuscitastes, pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos
mortos” (Cl 2,12).
Para Paulo, o batizado é identificação com Cristo (cf. Rm 6,1ss) do qual
nasce o fruto da santificação (cf. Rm 6,22). Esta santidade batismal gera uma nova
criação, dimensão ontológica celebrada no Batismo, que se constitui o fundamento
da identidade pessoal do cristão exteriorizado no rito. Para uma criança, a marca do
nome com o qual é batizado mostra essa nova identidade; para um adulto o
abandono de um caminho para abraçar, pela graça, outro caminho, é a marca da

207
Cf. NOCENT, A. Batismo. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 111.
208
DE CLERCK, P. Batismo. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 253.
- 75 -

nova identidade em Cristo. O batizado é aquele que inaugura uma nova relação com
Deus Trino, com a Igreja, com o mundo209, “deificado é uma Nova Criatura”.
O batizado é uma nova criatura, “pois se alguém está em Cristo é uma nova
criatura” (2Cor 5,17; Gl 6,15). Essa idéia supõe que Cristo, desde sua ressurreição e
exaltação, possui um corpo glorificado, um modo espiritual de ser, que possibilita
uma união extremamente íntima do batizado com ele. Assim, o batizado recebe em
Cristo uma nova existência, “cristificação”, que conduz à deificação. Não há mais
espaço para as discriminações entre sexos, povos e classes sociais. “Não há judeu
nem grego, não há escravo nem livre, não há nem homem nem mulher; pois todos
vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28; Cl 3,11). Essas expressões do Apóstolo
das gentes são profundas e complexas. Provavelmente elas repousam na base
teológica do paralelo entre Adão e Cristo210. Cristo dá início a uma humanidade
nova, remida em suas realizações. “Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que
adormeceram” (1Cor 15,20); “Ele é o Princípio, o Primogênito dos mortos (Cl 1,18);
primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29).
Trata-se de uma existência “escatológica”. Porquanto o batizado já participa
da vida ressuscitada de Cristo, pois “se há um corpo psíquico, há também um corpo
espiritual” (1Cor 15,44) e a vida divina que lhe foi conferida tende à ressurreição
corporal como último fim da salvação. “Porque se tornamos uma coisa só com ele,
por uma morte semelhante à sua, seremos uma coisa só com ele também, por uma
ressurreição semelhante à sua. Temos fé que também viveremos com ele” (Rm 6,
5.8; 8,11). Assim, é pelo Batismo que Cristo continua conquistando novos membros
e associando a si, pela cruz e morte e ressurreição.
Em Cristo todos participam de seu destino, unindo-se inteiramente a ele. Esta
realidade acontece, sacramentalmente, no Batismo, no qual são sepultados com ele
(Cf. Rm 6,4), pelo rito de submersão, no morrer eticamente para o pecado, no viver
para Deus. “Pois os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões

209
Cf. DE CLERCK. Batismo. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 257. “O batismo estabelece
uma relação a Deus pela mediação de uma Igreja, mas não exclui outras vias de salvação por Cristo,
pois ‘tudo foi criado por ele e para ele’ (Cl 1,16), e que ‘quer que todos os homens se salvem’ (1Tm
2,4). Porque se é justo dizer que o batismo na fé salva, é ainda mais exato afirmar que é Deus que
salva pelo batismo, ou por outras vias de sua misericórdia. Segundo a teologia clássica, a
necessidade do batismo é de preceito e não de meio, porque ‘Deus não prendeu sua potência aos
sacramentos’ (Tomás de Aquino, ST IIIa, q. 64. a. 7); ela se impõe a toda pessoa que percebe no
batismo a realização da aliança com Deus”. DE CLERCK. Batismo. In Dicionário Crítico de Teologia.
Op. cit. p. 258.
210
Cf. Rm 5,12-21; 1Cor 15,20-22.45-49.
- 76 -

e seus desejos” (Gl 5,24; Rm 6,4.6; Gl 6,14; Cl 3,5). Esta realidade sacramental
acontece, depois, no sofrer e morrer com Cristo diariamente, na força da esperança
da ressurreição. O batizado vive a mística do sofrimento211.
Três aspectos podem ser considerados para o começo da vida cristã do
batizado e suas conseqüências: Justificação pela fé, participação em Cristo, e o dom
do Espírito212. A palavra tradicional para exprimir esta realidade sacramental sempre
foi Batismo. Este sacramento sintetiza o evento pelo qual uma pessoa se inicia neste
processo de salvação: “a justificação é o efeito do Batismo; o meio de união com
Cristo é o Batismo; e o Espírito é mediado pelo Batismo ou conferido no Batismo”213.
Se tomarmos estas afirmações como o centro da teologia cristã, e, em particular, da
teologia paulina, podemos concordar que por ela descobrimos um verdadeiro edifício
construído sobre hinos, catequeses e liturgias batismais. “Toda a teologia de Paulo
pode, com razão, ser descrita como uma exposição sobre o Batismo”214. Neste
apóstolo o enfoque do Batismo se dá nestas duas frases equivalentes: batizados na
sua morte; sepultados com ele mediante o batismo na morte: batizado em nome de
Cristo, participa-se de Cristo pela fé215, iniciado no Espírito216.
O Apóstolo, contudo, aceita o Batismo como instituição indiscutível e lhe dá
posição sólida no corpo de sua teologia. A fé e o Batismo não se excluem. Pelo
contrário, postulam-se mutuamente. Sem a fé não há Batismo. Mas a fé não é
puramente exterior. Exige-se fé do coração do batizando. O Batismo é um ato
externo que comporta em si a profissão de fé. “Porque, se confessares com tua boca
que Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os
mortos, serás salvo” (Rm 10,9). Paulo interpreta o procedimento batismal, que era

211
E se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, pois
sofremos com ele para também com ele sermos glorificados (Rm 8,17); Incessantemente e por toda a
parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também
manifestada em nosso corpo (2Cor 4,10); a participação nos seus sofrimentos (Fl 3,10); Se com ele
morremos, com ele viveremos. Se com ele sofremos, com ele reinaremos (2Tm 2,11s).
212
Cf. DUNN, J.D.G. A Teologia... Op. cit. p. 504. p. 504.
213
DUNN, J.D.G. A Teologia... Op. cit. p. 504.
214
DUNN, J.D.G. A Teologia... Op. cit. p. 505. Os escritos de Paulo serão também a fundamentação
teológica para toda sacramentologia. “Em quase todas as tradições históricas cristãs por sacramento
entende-se uma sutil inter-relação de espiritual e material. O sacramento não é meramente o ato
ritual. O sacramento propriamente dito é o ato interior e o ato exterior. Denota a realidade espiritual
simbolizada pelo ritual. E não só simbolizada [...] mas em certo sentido realizada no ato. É isso o
que significa o ‘batismo’”. DUNN, J.D.G. A Teologia... Op. cit. p. 506.
215
Cf. DUNN, J.D.G. A Teologia... Op. cit. p. 517.
216
“São três elementos que em Paulo caracterizam o Batismo: o Batismo em Cristo Jesus; o Batismo
no Espírito Santo; o Batismo como o que forma, constrói, o corpo do Cristo em que o batizado é
inserido”. NOCENT, A. Batismo. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 111.
- 77 -

por imersão, de várias maneiras. Bem como as conseqüências para a vida do


batizado. Podemos elencar algumas imagens que nos ajudam a aprofundar a
teologia batismal do Apostolo Paulo:
a) O batismo é em primeiro lugar, sob o aspecto do rito da água, um lavar a
imundície do pecado e ao mesmo tempo, a santificação e justificação de quem até
então era pecador, “vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes
justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus” (1Cor
6,11);
b) O batizado, em nome de Jesus, é submetido e entregue a Jesus como seu
Senhor, “vós sois de Cristo” (1Cor 3,23). Esta submissão não é meramente externa,
mas uma íntima comunhão de vida que se expressa também com o estar com
Cristo;
c) O batismo é comparado com a circuncisão, iniciação no antigo povo de
Deus: é a circuncisão cristã. Não é, aqui, recortada uma pequena parte da carne,
mas é deposto todo o corpo carnal, o velho homem pecaminoso. “Nele fostes
circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de homem, mas pelo
desvestimento da vossa natureza carnal: essa é a circuncisão de Cristo” (Cl 2,11);
“Revestir-se de Cristo é vestir-se da Vida Nova; vós vos desvestistes do homem
velho com suas práticas“ (Cl 3,9);
d) O Batismo é um revestir-se de Cristo. “Todos vós, que fostes batizados em
Cristo, vos vestistes de Cristo” (Gl 3,27). Assim, o batizando é de tal maneira
“vestido” de Cristo, colocado dentro de Cristo que, em Cristo, ele se torna um novo
homem. “Revesti-vos do Homem Novo, criado segundo Deus, na justiça e santidade
da verdade” (Ef 4,24); “Vós vos revestistes do novo, que se renova para o
conhecimento segundo a imagem do seu Criador” (Cl 3,10);
e) O Batismo constitui uma união sacramental com Cristo. Essa é uma
maneira profunda de ver o Batismo enquanto realidade de comunhão. Ser
crucificado com Cristo, ser sepultado com Cristo, ser ressuscitado e vivificado com
Cristo. Assim o batizado passa pelos mesmos mistérios que um dia se realizaram
em Cristo217;

217
Fui crucificado junto com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim (Gl 2,19s);
pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado dentre
os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova [...] se morremos com Cristo,
temos fé que também viveremos com ele (Rm 6,4-8); com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos
céus, em Cristo Jesus (Ef 2,6); fostes sepultados com ele no batismo, também com ele ressuscitastes
- 78 -

f) Dado que todos os cristãos, no batismo, passam sacramentalmente pela


mesma experiência, eles são repletos do mesmo Espírito divino; Posto isto, o
batismo tem também uma dimensão comunitária. Todos, judeus e gregos, escravos
e livres, homens e mulheres, tornam-se um só em Cristo Jesus (Cf. Gl 3,28). Todos
formam um só corpo pelo único Espírito218;
g) Na base desses pensamentos, Paulo desenvolve uma vigorosa exortação
batismal. Do evento sacramental do batismo tira conseqüências sérias para a vida
cristã neste mundo. A reta compreensão do batismo exclui o abuso da abundante
graça de Deus (Cf. Rm 6,1). O apóstolo se opõe também a uma interpretação
mágica do sacramento (Cf. 1Cor 10,1-13).
O pensamento paulino acerca do Batismo nos ajuda a aprofundar a
compreensão do Corpo de Cristo. “Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus
membros (1Cor 12,27); nós somos muitos e formamos um só corpo em Cristo,
sendo membros uns dos outros” (Rm 12,5). Em posse deste pensamento acerca do
corpo, numa dimensão comunitária, pode-se aprofundar também a compreensão do
que é a Igreja. “Cristo é a cabeça da Igreja e o salvador do corpo [...] somos
membros do seu Corpo” (Ef 5,23.30; Ef 1,23; 2,16-22; 4,12-16); “Ele é a Cabeça da
Igreja, que é o seu Corpo” (Cl 1,18; 2,19; 3,11.15).
A vivência batismal, como ligação com Deus, exige de nós uma abertura
constante à graça e ao amor de Deus que nos justifica para mantermos no estado
deificado. “O pecado não impera mais em vosso corpo mortal [...] oferecei-vos a
Deus como a vivos provindos dos mortos; entregai agora vossos membros a serviço
da justiça e para a santificação” (Rm 6,12-14.19; Gl 5,24). Exige ainda a contínua
correspondência da comunidade de fé (Cf. 1Cor 5,6-8) para ser expressão de Cristo.
Como conseqüência da vida sacramental, o batizado deve transparecer ao
mundo a graça que o deifica para ser presença ativa do amor de Deus. “Outrora
éreis treva, mas agora sois luz no Senhor: andai como filhos da luz, pois o fruto da
luz consiste em toda bondade, justiça e verdade” (Ef 5,8s; Fl 2,15s; Cl 3,12-17); “é
esta a vontade de Deus: a vossa santificação” (1Ts 4,3)”.

pela fé no poder de Deus... Ele vos vivificou juntamente com Cristo. Se, pois, ressuscitastes com
Cristo, procurai as coisas do Alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus (Cl 2,12s; 3,1).
218
Pois fomos todos batizados num só Espírito para ser um só corpo [...] e todos bebemos de um só
Espírito (1Cor 12,13); Há um só Corpo e um só Espírito, assim como é uma só a esperança da
vocação a que fostes chamados; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; há um só Deus e Pai
de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos (Ef 4,4-6).
- 79 -

A teologia de Paulo sobre o Batismo dificilmente poderia ser superada, dado a


sua fundamentação nas Escrituras e na cristologia. O mesmo apóstolo, ainda, irá
usar um pensamento de grande influência na compreensão deste sacramento:

Fomos lavados pelo poder regenerador e renovador do Espírito Santo,


que ele ricamente derramou sobre nós, por meio de Jesus Cristo,
nosso Salvador, a fim de que fôssemos justificados pela sua graça, e
nos tornássemos herdeiros da esperança da vida eterna (Tt 3,5-7)219.

Paulo está pensando na efusão do Espírito Santo e na renovação que esse


Espírito divino opera na vida do batizado. Trata-se de uma promessa escatológica
que se cumpre pela graça deste sacramento, no banho batismal, fonte de vida,
criando-nos novamente e tornando-nos capazes de participar da vida eterna: obra e
iniciativa de Deus Pai.
Na primeira Carta de Pedro encontramos textos carregados do pensamento
batismal que nos permitem a compreensão da tipologia batismal e a nova geração
que brota do Batismo. “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, [...]
(1Pd 1,3s); Fostes gerados, não de uma semente corruptível, mas incorruptível,
mediante a Palavra viva de Deus, a qual permanece para sempre” (1Pd 1,23).
Portanto, os cristãos foram novamente gerados ou renascidos, para uma
esperança viva, pela Palavra de Deus. Daqui já se extrai a força da proclamação da
Palavra no rito dos sacramentos, sobretudo no sacramento do Batismo. A Palavra de
Deus impõe-se como necessária à adesão sacramental e ao novo nascimento.
Outras expressões, como selar com o Espírito Santo e iluminação, usadas
primeiramente como metáforas, aos poucos se tornam também carregadas de
sentidos para aprofundar o sacramento do Batismo. Muitos exegetas vêem na
primeira Carta de Pedro uma liturgia batismal (cf. 1Pd 4,12-5,14), dirigida aos
iniciados como estimulo à perseverança na vida cristã (cf. 1Pd 1,3-4,11)220. O
segundo nascimento – sacramental - a que o apóstolo Pedro se refere está ligado
tanto à ressurreição de Jesus Cristo (cf. 1Pd 1,3) quanto à Boa-Nova, Palavra de
Deus viva e permanente (cf. 1Pd 1,23.25). Entre as tipologias batismais, ocupa um

219
Aquele que nos fortalece convosco em Cristo e nos dá a unção é Deus, o qual nos marcou com
um selo e colocou em nossos corações o penhor do Espírito (2Cor 1,22); fostes selados pelo Espírito
da promessa, o Espírito Santo (Ef 1,13); e não entristeçais o Espírito Santo de Deus, pelo qual fostes
selados para o dia da redenção (Ef 4,30). Que ele ilumine os olhos dos vossos corações (Ef 1,18); os
que uma vez foram iluminados – saborearam o dom celeste, receberam o Espírito Santo (Hb 6,4; Cf.
Hb 10,32).
220
Cf. NOCENT, A. Batismo. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 113.
- 80 -

lugar de destaque no pensamento de Pedro, o dilúvio; figura que entrará na tradição


mistagógica221.
A teologia sobre o Batismo exposta até aqui é ainda confirmada e
complementada em outros textos do NT. Por exemplo: o Batismo é o banho de
purificação e santificação pela Palavra que Cristo preparou para a Igreja inteira, a fim
de apresentá-la a si mesmo esplêndida, sem mancha nem ruga, nem defeito
nenhum (Cf. Ef 5, 26s); O Batismo é o grande meio de salvação pelo qual, como
outrora Noé, na arca, nós somos salvos pela água, e que não limpa manchas
externas, mas cria uma consciência boa (Cf. 1Pd 3,20s).
Existe também uma profunda relação entre a água batismal e o sangue de
Cristo, em virtude da qual ela opera. Pelo sangue de Cristo temos acesso ao
santuário celeste. Este caminho abre-se para nós porque nossos corações foram
purificados da má consciência e nosso corpo lavado na água pura (Cf. Hb 10,
19.22). Também o sangue e a água que saíram da ferida do lado de Jesus (cf. Jo
19,34). Do lado aberto de Jesus nascem a Igreja e os sacramentos, sobretudo o
Batismo e a Eucaristia, que na intenção de João parece haver uma relação profunda
e inseparável.
Para o evangelista João, os sacramentos, atos salvíficos de Jesus, são
eficazes, também posteriormente, na vida da pessoa e da comunidade pela
cooperação do Espírito Santo. O NT não dá respostas claras a muitas perguntas,
exteriores e posteriores, sobre o rito, além de o Batismo ter sido um banho de
imersão. A administração do Batismo em nome do Senhor Jesus Cristo, como
encontramos nos Atos dos Apóstolos, parece contradizer a fórmula trinitária
transmitida na ordem de batizar como encontramos em Mt 28,19.
Mas as duas expressões já se encontram juntas na Didaqué. “Quanto ao
Batismo, procedam assim: [...] batizem em água corrente, em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo (Didaqué 7,1-3); Ninguém coma nem beba da Eucaristia,
se não tiver sido batizado em nome do Senhor” (Didaqué 9,5). Isto demonstra que
não se exclui uma da outra. Para muitas questões teológicas, vale lembrar, que o NT
somente é esclarecido pela tradição e praxe da Igreja.
A teologia batismal elaborada no NT222, contudo, forma uma fonte
inesgotável, e pode dar sempre “vida nova” (respiro novo) à teologia e a vivência do

221
Cf. OÑATIBIA, I. Batismo. Op. cit. p. 48-49.
- 81 -

sacramento do Batismo em todas as épocas. Tudo leva a crer que o dinamismo


teológico-litúrgico foi amadurecendo com o passar dos tempos na Igreja primitiva,
tanto para o Batismo quanto para os demais sacramentos. O importante, contudo, é
perceber que nunca se perdeu a centralidade da pessoa de Jesus Cristo,
Sacramento do Pai, como mediador da Salvação, realizada por Deus, em vista da
nossa deificação.
A Igreja primitiva deve ao apóstolo Paulo inspirações decisivas para uma
teologia batismal aprofundada. Frente a um caminho judaico de salvação pela Lei e
pela justiça da Lei, a teologia paulina destaca a fé como único meio de salvação.
Pessoalmente, Paulo, não vê a administração do Batismo e sim a pregação como
sua tarefa; e diz: “não foi para batizar que Cristo me enviou, mas para anunciar o
Evangelho” (1Cor 1,17). Embora Paulo, várias vezes, faça alusão ao seu próprio
Batismo (cf. 1Cor 12,13; Rm 6,3).
Isto nos leva a seguinte conclusão: a celebração da Palavra de Deus nos
sacramentos e de modo específico no sacramento do Batismo é de suma
importância como nos propõe os rituais. A Palavra de Deus é fonte de deificação
também na catequese. Por isso o itinerário do RICA prevê várias celebrações da
Palavra (ou mesmo nas celebrações eucarísticas) para que o candidato ao Batismo,
de fato, identifique a sua vida, primeiro, ao Cristo, Verbo do Pai, e, depois, receba o
sacramento do Batismo como realidade ontológica de deificação. Ou seja, todo o
batizado primeiro deve ser “evangelizado” para iniciar a vida cristã. Por isso a oração
da Celebração da Palavra do Rito de Acolhida reza assim:

Deus eterno e todo-poderoso, sois o Pai de todos e criastes o homem


e a mulher à vossa imagem. Acolhei com amor estes nossos queridos
irmãos e irmãs e concedei que eles, renovados pela força da palavra
de Cristo, que ouviram nesta assembléia, cheguem pela vossa graça à
plena conformidade com vosso Filho Jesus (RICA. 95. p. 42-43).

A deificação, portanto, é o retorno ao nosso estado original do qual nunca se


deveria ter afastado, pela força da Palavra de Cristo. E a Tradição da Igreja

222
O Batismo se impõe como prática em todas as Igrejas como sinal da agregação de novos
membros à Igreja. Parece que a prática do batismo na comunidade de Marcos e Mateus se originava
de uma ordem do Senhor. “Mt 28,19 é um testemunho de que nos anos 80-90, na Síria, encontrava-
se em uso a fórmula trinitária”. OÑATIBIA, I. Batismo. Op. cit. p. 52. Cf. DE CLERCK, P. Batismo. In
Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 253-254.
- 82 -

explicitou a graça do Batismo por muitos nomes e tipologias que nos mostra o
mistério da nossa salvação e deificação, como veremos a seguir.

2.4. Nomes e Tipologias do Batismo

O período seguinte à Igreja primitiva foi muito fértil para o desenvolvimento da


teologia do rito do Batismo na perspectiva da deificação. Neste período dos Padres
da Igreja foi-se construindo o que podemos chamar de patrimônio teológico-ritual do
Batismo que será fonte para a reforma dos ritos litúrgicos do Concílio Vaticano II. Na
Tradição Patrística encontramos a fonte da catequese batismal, bem como a fonte
do rito sacramental.
Nas nomenclaturas pelas quais o Batismo foi sendo designado, na tradição
patrística, podemos perceber a dinâmica, a significação e a compreensão teológico-
litúrgica deste sacramento no decorrer da história, sobretudo, dos primeiros séculos.
Os diversos nomes do Batismo223 apresentados por Clemente de Alexandria:
expressam o que ele quis transmitir como significação sacramental, ou seja, pela
iluminação o batizado pode contemplar a salvação, ver a Deus, conhecer a Deus.
Estas realidades conduzem a filiação perfeita, pois, para Clemente de Alexandria, a
iluminação batismal produz a graça no batizado e, pela celebração batismal, produz
também a instrução do Espírito Santo pelo qual nos vem o conhecimento 224.
Clemente estabelece um vínculo entre catequese-fé e celebração-conhecimento que
vem do Espírito. Ampliando o sentido de Batismo com o nome iluminação, Gregório
de Nazianzo, escreve: “Esta iluminação é esplendor das almas, mudança de vida,
compromisso da consciência para com Deus [...] é o mais belo e magnífico dos dons
de Deus”225. Por esta iluminação batismal se dá a nossa deificação.
O tema da deificação está subjacente aos vários nomes referentes ao
Batismo. Assim, Gregório de Nazianzo acrescenta, por exemplo, a denominação:

223
“No batismo somos iluminados; iluminados, fomos adotados como filhos; adotados, tornamo-nos
perfeitos; tornados perfeitos, recebemos a imortalidade. Está escrito: ‘Eu disse: Vós sois deuses,
todos vós sois filhos do Altíssimo’ (Sl 82,6). Esta operação recebe nomes diversos: graça, iluminação,
perfeição, banho. Banho que nos purifica dos nossos pecados; graça que nos perdoa os castigos
devidos às nossas transgressões; iluminação que nos permite contemplar aquela santa luz de
salvação, quer dizer, que nos permite ver a Deus claramente; perfeição, porque não nos falta nada.
Com efeito, o que é que falta a quem conhece a Deus? Na verdade, seria absurdo chamar dom de
Deus a um dom incompleto”. CLEMENTE DE ALEXANDRIA. O Pedagogo. In Antologia Litúrgica. Op.
cit. p. 180. Estes nomes deveriam ser fonte de nossa catequese batismal.
224
Cf. CLEMENTE DE ALEXANDRIA. O Pedagogo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 181.
225
GREGÓRIO DE NAZIANZO. Sermão 40. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 502.
- 83 -

“selo”226; confirmada também por Eusébio: “O Batismo é chamado selo do


Senhor”.227 Expressão que irá perdurar na teologia batismal até nossos dias, quando
afirmamos que o Sacramento do Batismo imprime caráter no batizado. Tertuliano228
chama de “sacramento da água”, que nos lava dos pecados. E acrescenta que não
se trata da limpeza corporal, mas dos efeitos deste rito, de descer à água enquanto
se pronunciam algumas palavras, pela qual se adquire a eternidade. E a água se
relaciona ao Espírito, pelo qual somos santificados. Para Tertuliano, a água recebe
as potencialidades para a nossa santificação. Aqui já vemos despontar um ritual do
Batismo com sua fundamentação teológica229.
Para que não haja possíveis dúvidas quanto à nomeação designada ao
Batismo, Tertuliano expõe que a Trindade é a garantia do Batismo. Toda nomeação
possível, toda imagem e figura batismal só pode ser concebida a partir da Trindade e
da Igreja.
Isto não significa que recebemos o Espírito Santo na água. Mas,
purificados na água, somos preparados, pelo ministério do Anjo, para
receber o Espírito [...] Uma vez que o testemunho da fé e a garantia da
salvação têm por caução as Três Pessoas, necessariamente aí se
encontra acrescentada a menção da Igreja, pois, onde estão os Três,
o Pai, o Filho e o Espírito Santo, também está a Igreja, que é o corpo
dos Três230.

226
“Chamamos-lhe dom, graça, batismo, unção, iluminação, veste de incorruptibilidade, banho do
novo nascimento, selo e tudo o que há de mais precioso. Dom, porque é conferido àqueles que não
trazem nada; graça, porque é dado mesmo aos culpados; batismo, porque o pecado é sepultado nas
águas; unção, porque é sagrado e régio, como aqueles que são ungidos; iluminação, porque é luz
brilhante; veste, porque cobre a nossa vergonha; banho, porque lava; selo, porque nos guarda e é
sinal de senhorio de Deus”. GREGÓRIO DE NAZIANZO. Sermão 40. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.
502.
227
EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiática. Livro VI. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 341.
228
“Nada impressiona tanto a inteligência humana como o contraste entre a simplicidade aparente
das obras divinas e a grandeza dos efeitos prometidos. É o caso aqui: [...] O homem desce à água, é
imerso nela enquanto se pronunciam algumas palavras, e sai da água pouco ou mesmo nada mais
limpo do que antes. Por isso se considera inacreditável que ele possa, deste modo, adquirir a
eternidade”. TERTULIANO. O Batismo 4. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 195.
229
A água e o Espírito. Vamos recordar rapidamente os acontecimentos da origem que nos fazem
conhecer o fundamento do batismo: o Espírito, que desde então prefigurava o batismo e que desde o
começo pairava sobre as águas, foi chamado a pairar sobre elas para as vivificar. O Espírito de
santidade pairava sobre a água santa, ou antes, a água recebia por empréstimo a santidade do
Espírito que pairava sobre ela [...] É deste modo que, por este Espírito de santidade, a água é
santificada na sua natureza e se torna por si mesma santificante [...] Todas as espécies de água, em
virtude da antiga prerrogativa da sua origem, participam, portanto, do mistério da nossa santificação,
pela invocação de Deus sobre elas. Feita a invocação, o Espírito vem logo do Céu e paira sobre as
águas, santifica-as pela sua presença e, assim santificadas, elas impregnam-se, por sua vez, do
poder de santificar. Em rigor poderia comparar-se o batismo a um ato banal: os pecados mancham-
nos, a água lava-nos [...] O espírito é lavado na água por intermédio do corpo, a carne é purificada
pelo espírito”. TERTULIANO. O Batismo 4. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 195.
230
TERTULIANO. O Batismo 4. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 195.
- 84 -

Cirilo de Jerusalém, além dos nomes que deu ao Batismo231, expõe também o
seu sentido teológico. Para ele o Batismo pode ser tomado como símbolo, imagem,
ou mesmo como expressão de realidades que significam uma concepção teológica,
além dos nomes recebidos na Tradição. Encontramos, em Cirilo de Jerusalém,
expressões já presentes no apóstolo Paulo: “Batismo [...] é o símbolo e a imagem
dos sofrimentos de Cristo”232. E, mais, pode significar uma realidade sacramental
que se dá somente pelo Batismo. Por isso, Cirilo de Jerusalém, valoriza a expressão
de Paulo “Se estamos integrados n’Ele por uma morte idêntica à sua, também o
estaremos pela sua ressurreição” (Rm 6,5). No dizer de Cirilo, “a expressão
integrados n’Ele”233, é muito feliz, provavelmente, porque ele descobriu nesta
expressão a realidade que acontece: a integração humana no ser divino, a nossa
configuração a Cristo. E João Crisóstomo sintetiza assim a questão dos nomes do
Batismo:

De fato, é preciso explicar o que é o batismo [...], essa purificação


mística, que não tem apenas um nome, mas vários e de gêneros
diferentes. Com efeito, este rito de purificação é chamado banho de
regeneração [...]; mas chama-se também iluminação [...], e ainda
batismo, sepultura, circuncisão, cruz, e poderíamos citar muitos outros
nomes234.

Muito podemos aprender da teologia dos Padres, sobretudo a maneira de


conceberem o sacramento do Batismo, na perspectiva da deificação. Partindo do
princípio (filosófico) que a realidade de algo é traduzida a partir do significado do
nome que ele recebe, ou seja, por detrás de um nome há sempre uma significação.
Então, podemos já imaginar, pela riqueza de nomes que este sacramento recebe
como os Padres estavam preocupados em traduzir o sentido e o significado
teológico-litúrgico do Batismo; primeiro: eles tiveram a preocupação de centralizar o
Batismo na pessoa do Cristo; segundo: buscaram uma fundamentação bíblico-
teológico-litúrgico nas Escrituras apropriadas ao que queriam expor; terceiro:

231
“Grande coisa é o batismo que vos propomos: Libertação para os cativos, perdão das ofensas,
morte do pecado, renascimento da alma, veste luminosa, selo santo e indelével, veículo para o Céu,
delícias do Paraíso, gosto antecipado do reino, graça da adoção... prepara o teu coração para
receber a doutrina e participar dos sagrados mistérios”. CIRILO DE JERUSALÉM. Catequese pré-
batismais. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 472.
232
CIRILO DE JERUSALÉM. Catequese pré-batismais. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 486
233
CIRILO DE JERUSALÉM. Catequese pré-batismais. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 487
234
JOÃO CRISÓSTOMO. Três catequeses batismais. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 607.
- 85 -

souberam expressar o sacramento do batismo numa linguagem cultural no tempo


em que estavam encarnados. Eis uma possível explicação para traduzir a mesma
realidade por meio de tantos nomes diferentes, mas todos relacionando o batizado à
pessoa de Jesus Cristo por quem somos deificados.
Portanto, se tomamos os diferentes nomes do sacramento do Batismo na
relação com sua significação pode-se encontrar uma verdadeira fonte riquíssima
para a catequese catecumenal. Pois o candidato ao Batismo poderá fazer um
verdadeiro itinerário espiritual vinculando o significado destes nomes à sua vida de
fé. Por exemplo, nas celebrações da Palavra poderia sempre estar referida a um
destes nomes em sua referencia bíblica.
As tipologias do Batismo nos ajudam na compreensão teológica deste
Sacramento na perspectiva da salvação e deificação. Encontramos, já no NT, os
primeiros vestígios de tipologias bíblicas aplicadas ao Batismo. Segundo 1Cor 10,1-
6, a passagem do mar Vermelho e a água da rocha do Horeb são figuras do Batismo
cristão. A interpretação da circuncisão, como figura do Batismo aparece em muitos
textos do NT (cf. Rm 4,11; Gl 6,14-15). O dilúvio foi também figura do Batismo (cf.
1Pd 3,18-21).
A ampliação, contudo, dessas tipologias batismais, ainda embrionárias, bem
como seu desenvolvimento, dar-se-ão abundantemente pela reflexão teológica dos
Padres da Igreja. Tertuliano e Ambrósio exploraram a figura da água do mar
Vermelho como tipologia batismal235. Ambos souberam buscar o sentido do Batismo
na água, relacionando-a à pessoa de Cristo236. João Crisóstomo, por sua vez, expõe
uma comparação entre Batismo e saída do Egito, afirmando que o Batismo nos traz
uma realidade incomparavelmente superior à primeira libertação do Êxodo 237.
Orígenes interpreta as promessas escatológicas a partir da tipologia batismal.
Como outrora o povo foi guiado por Deus, agora também Ele será guia de todos os
batizados238. Segundo Orígenes, toda água tem o poder de santificar, mas somente
a “água” do Cristo que tem o Espírito Santo, produz a eficácia sacramental. Amplia

235
“No mar Vermelho há uma figura do batismo, como o diz o Apóstolo, nestes termos: Os nossos
pais foram todos batizados na nuvem e no mar”. (1Cor 10,2). AMBRÓSIO DE MILÃO. Os
Sacramentos. Livro I. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 521.
236
Cf. TERTULIANO. O Batismo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 196s.
237
Cf. JOÃO CRISÓSTOMO. Catequese III. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 600.
238
Cf. ORÍGENES. Homilias sobre os números. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 257; cf. ORÍGENES.
Homilias sobre Josué. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p 259.
- 86 -

esta mesma tipologia referente à água também Ambrosio de Milão239. Ele descreve
uma nova criação, e compara à primeira, a partir do batistério, passando por todas
as figuras bíblicas do Batismo. E João Crisóstomo compara a piscina das águas
santas ao Paraíso240. “A piscina é preferível ao Paraíso: aqui não há serpente, mas
Cristo está ali e é Ele que te inicia em vista da regeneração pela água e pelo
Espírito”241. E João Crisóstomo continua com a figura da circuncisão:

A nossa circuncisão – falo da graça do batismo – traz-nos um remédio


sem dor e uma multidão de bens: cumula-nos da graça do Espírito; [...]
esta circuncisão não é a mão do homem que a faz, não tem nada de
penoso, mas nela encontramos a remissão de todos os pecados
cometidos no passado242.

Tomando por verdadeira a afirmação que somente a água do Cristo tem o


Espírito Santo é que Justino convidara os judeus ao Batismo. “Vós que sois
circuncidados na carne precisais da nossa circuncisão”243. Concluímos com um
trecho de Agostinho muito oportuno por estabelecer analogia entre a água e o
sangue, e por relacionar o Batismo à Eucaristia, como figuras já presentes nas
Escrituras.
Quando é que o povo de Israel comeu o maná? Depois de ter passado
o mar Vermelho [...]. Se a figura que é o mar tem tanto valor, qual não
será o valor do batismo? Se o que se realizou em figura conduziu ao
maná o povo que atravessou o mar, que não fará Cristo com a
verdade do seu batismo, depois de destruir todos os pecados [...]
Aonde os conduz, meus irmãos? Aonde os conduz por meio do seu
batismo esse Jesus de quem Moisés era uma figura, quando realizava
a travessia do mar? Condu-los [sic] ao maná. Que maná é esse? Ele
mesmo o disse: Eu sou o pão vivo que desci do Céu. Recebam o
maná os fiéis que já atravessaram o mar Vermelho. Que significa mar
Vermelho? Que importância tem a circunstância de ser vermelho e
mar? O mar Vermelho figurava o batismo de Cristo. É vermelho,
porque foi consagrado pelo sangue de Cristo244.

239
“Naamã era um leproso [...] Naamã desceu ao Jordão, lavou-se e ficou limpo. Que significa isto?
Viste a água. Contudo, nem toda a água cura. Só cura a água que tem a graça de Cristo. Há uma
diferença entre o elemento e a santificação, entre o ato e a eficácia. O ato realiza-se com água, mas a
eficácia vem do Espírito Santo. A água não cura, se o Espírito Santo não descer e não consagrar esta
água”. AMBRÓSIO DE MILÃO. Os Sacramentos. Livro I. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 520s.
240
AMBRÓSIO DE MILÃO. Os Mistérios. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 530-531.
241
JOÃO CRISÓSTOMO. Catequese III. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 621.
242
JOÃO CRISÓSTOMO. Homilias sobre o Gêneses. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 621.
243
JUSTINO. Apologia I. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 143.
244
AGOSTINHO DE HIPONA. Tratados sobre o Evangelho de João. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.
787.
- 87 -

Portanto, a deificação é uma manifestação da graça de Deus na vida humana


que se dá pela celebração sacramental do Batismo em Cristo no rito do banho na
água do Espírito Santo. O nosso ritual do Batismo contempla estas tipologias (do
mar vermelho e do dilúvio) no rito sacramental, tanto na bênção do óleo quanto da
água245. Também aqui poderíamos recorrer a estas imagens bíblicas em nossas
catequeses batismais. Por si só elas revelam a nossa salvação e deificação
sacramental em Cristo.

3. O Rito do Batismo

No livro dos Atos dos Apóstolos 8,26-40, encontramos a passagem na qual


Filipe batiza um eunuco, etíope, após um breve diálogo no qual o Apóstolo anuncia a
Boa Nova de Jesus (Liturgia da Palavra). Neste episódio, para o rito batismal, supõe
apenas a aceitação do Ressuscitado, para ser banhado na água. Contudo, não se
demorou muito para que a Igreja primitiva elaborasse uma catequese batismal
trinitária, acompanhada de preparação sistemática para celebrar o rito do Batismo
com “orações, jejuns, genuflexões, vigílias, confissão dos pecados”246.
Já nos primeiros anos da Igreja, na Didaqué, aparecem as primeiras questões
teológicas e litúrgicas acerca do Batismo. “Pelo contexto compreendemos que o
Batismo é para a remissão dos pecados e que assinala o ingresso numa
comunidade que quer escolher um dos dois caminhos indicados na abertura do
texto: o caminho do bem”247. Da Didaqué, podemos extrair conseqüências para uma
compreensão do surgimento do rito do Batismo248, bem como o início da catequese

245
cf. RICA. 130-131. p. 47-48; 215. p. 96-97. Bênção do Óleo e Unção do catecúmeno. 1)
Bendito sejais vós, Senhor Deus, porque, no vosso imenso amor, criastes o mundo para nossa
habitação; 2) Bendito sejais vós, Senhor Deus, porque criastes a oliveira, cujos ramos anunciaram o
final do dilúvio e o surgimento de uma nova humanidade; 3) Bendito sejais vós, Senhor Deus, porque,
através do óleo, fruto da oliveira, fortaleceis vosso povo para o combate da fé. Ó Deus, proteção de
vosso povo, que fizestes do óleo, vossa criatura, um sinal de fortaleza: (se não bento, diz: abençoai +
este óleo e) concedei a estes catecúmenos a força, a sabedoria e as virtudes divinas, para que sigam
o caminho do evangelho de Jesus, tornem-se generosos no serviço do reino e, dignos da adoção
filial, alegrem-se por terem renascido e viverem em vossa Igreja. Unge cada catecúmeno, dizendo: O
Cristo Salvador lhes dê a sua força simbolizada por este óleo da salvação. Com ele os “ungimos no
mesmo Cristo”, Senhor nosso, que vive e reina para sempre. Amém. (RICA. 130, p. 47-48).
Deificação: por este rito invoca a força do Espírito do Cristo para o candidato ao Batismo ser
resistente contra o pecado.
246
TERTULIANO. O Batismo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 200.
247
NOCENT, A. Batismo. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 113.
248
“Quanto ao batismo batizai assim: depois de ter ensinado tudo o que precede, batizai em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo, em água corrente. Porém, se não tiveres água corrente, batiza
- 88 -

batismal. Também, no Pastor, de Hermas249, encontramos, de certa maneira, um rito


batismal pelo qual se obtém a vida, a deificação. “Para obter a vida foi-lhes preciso
sair da água [...]; o sinal (do filho de Deus) é, portanto, a água; desce-se morto e sai-
se vivo”250. Temos, portanto, a valorização da água enquanto elemento sacramental
sensível da qual se sai dela com vida. Esta vida, que brota do sacramento, se refere
à nossa deificação, pois antes do Batismo temos apenas a natureza humana, com o
Batismo participamos do Espírito de Cristo.
Justino menciona o rito do Batismo como Tradição Apostólica 251.
Encontramos, neste Padre, também o sentido do Batismo como iluminação, e a sua
referência à Eucaristia252, pois quem é iluminado por Cristo ressuscitado, sol de
glória e justiça, em sua inteligência pode celebrar a sua deificação na Eucaristia,
expressando a sua iluminação em Cristo. Assim rezamos no rito da entrega da Luz:
“Deus tornou vocês luz em Cristo. Caminhem sempre como filhos da luz, para que,
perseverando na fé, possam ir ao encontro do Senhor com todos os Santos no reino
celeste” (RICA. 226. p. 101). O rito da entrega da Luz expressa a nossa comunhão
humana (realidade de trevas) com a divina (realidade de luz). O batizado é iluminado
pela ressurreição, somos deificados pela vitória de Cristo sobre as trevas.
Irineu de Lião chama o rito do Batismo como segundo nascimento para
aqueles que são regenerados pelo Batismo em nome dessas três Pessoas, “somos
enriquecidos neste segundo nascimento com os bens que existem em Deus Pai, por
meio do seu Filho e com o Espírito Santo”.253 Encontramos em nosso ritual a Unção
depois do Batismo que diz: “vocês renascerem pela água e pelo Espírito Santo [...]”
(RICA. 224. p. 100), referência clara ao segundo nascimento sacramental destinado
à deificação.
Neste Padre, torna-se explícita também a regra da fé que será de
fundamental importância para a constituição do Símbolo da Fé. Este Símbolo foi
desenvolvendo-se aos poucos na Igreja, chegando à sua configuração final nos

noutra água e, se não tiveres água fria, em água quente. Na falta de quantidade suficiente de uma e
de outra, derrama água três vezes sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Antes do batismo, observem um jejum: aquele que batiza, o que é batizado e outros que puderem.
Deves impor ao batizado um jejum prévio de um ou dois dias”. DIDAQUÉ ou DOUTRINA DOS DOZE
APÓSTOLOS. Instrução do Senhor aos gentios. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 93.
249
Cf. NOCENT, A. Batismo. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 114.
250
HERMAS. O Pastor. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 128.
251
Cf. JUSTINO. Apologia I. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 139.
252
Cf. JUSTINO. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.139-140. Cf. DE CLERCK, P. Batismo. In Dicionário
Crítico de Teologia. Op. cit. p. 254.
253
IRINEU DE LIÃO. Demonstração da pregação apostólica 7. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.174.
- 89 -

Concílios de Nicéia e Constantinopla, tal qual se entrega, hoje, aos catecúmenos


para a profissão de fé como exigência necessária à celebração do Batismo.
O catecúmeno recebe da Igreja o Símbolo da fé e deve guardá-lo no coração.
E assim a Igreja reza ao entregar suas verdades de fé:

“[...] que o Senhor nosso Deus abra os seus corações e as portas da


misericórdia para que, vindo a receber nas águas do Batismo o perdão
de todos os seus pecados, sejam incorporados no Cristo Jesus [...].
Imploramos vosso amor de Pai em favor destes vossos servos,
purificai-os e santificai-os; dai-lhes verdadeira ciência, firme esperança
e santa doutrina para que se tornem dignos da graça do Batismo”
(RICA. 187. p. 57).

A Igreja entrega o seu Símbolo de fé trinitária ao candidato. Por esta profissão


de fé, cremos ser salvos e deificados pelos sacramentos que nos santificam. E a
Igreja acolhe a recitação da profissão de fé do eleito em clima de oração. E reza
assim para que Deus conserve e faça crescer sempre a fé que foi semeada no
coração destes eleitos. “Concedei, Senhor, que estes eleitos, tendo acolhido o vosso
plano de amor e os mistérios da vida de vosso Cristo, possam sempre proclamá-los
com palavras e vivê-los pela fé, cumprindo em ações a vossa vontade” (RICA. 197.
p. 85).
Vejamos como esta oração explicita a nossa deificação nas seguintes
invocações: 1º) Deus conserve e faça crescer a fé semeada no coração do
catecúmeno; 2º) que os eleitos tenham acolhido o plano de amor e os mistérios de
Cristo; 3º proclamem com palavra e com a vida o que professam; 4º) compram com
ações a vontade de Deus que professam.
Uma vez professando o Símbolo o catecúmeno recebe da Igreja a Oração do
Senhor254 pela qual expressa a sua filiação adotiva, a sua deificação. Porque
somente Deus Pai tem poder de nos afiliar a Trindade Santa, por meio de Cristo na
Força do Espírito. O rito da entrega da Oração do Senhor faz o catecúmeno
vivenciar a sua experiência de filiação.
Assim procede a entrega: Caro catecúmeno, você ouvirá agora como o
Senhor ensinou seus discípulos a rezar: Proclama-se o Evangelho de Mt 6,9-13.
Após a proclamação do Evangelho e da homilia, reza-se a seguinte oração sobre o
254
A entrega da Oração do Senhor constitui um rito muito importante no tempo do catecumenato, pois
mostra ao candidato do Batismo a necessidade da vida de oração como também Jesus vivia
intensamente em oração. Ou seja, para manter-se na graça batismal, na deificação, o batizado deve
cultivar constantemente a espiritualidade do Mestre Jesus.
- 90 -

catecúmeno: que o Senhor nosso Deus abra o seu coração e as portas da


misericórdia para que, vindo a receber nas águas do Batismo o perdão de todos os
seus pecados, seja incorporado no Cristo Jesus. E reza: “Deus eterno e todo-
poderoso, que por novos nascimentos tornais fecunda a vossa Igreja, aumentai a fé
e o entendimento do nosso catecúmeno para que, renascido pelo Batismo, seja
contado entre os vossos filhos adotivos” (RICA. 192. p. 61).
Estes pequenos ritos expressam gradativamente o processo pelo qual o
candidato vai celebrando a sua deificação até culminar na celebração do
sacramento do Batismo. Vejamos os passos: Escutar a Palavra de Deus; celebrar os
exorcismos255 para que nada lhe desvie da intenção do Batismo; receber as
bênçãos; ser ungido com o óleo da força do catecúmeno; acolher da Igreja o
Símbolo e acolher do Senhor a Oração. O candidato que percorre esse caminho,
sem dúvida, vai celebrando a sua deificação a cada passo e se descobre
verdadeiramente chamado por Deus, preparado para a comunhão sacramental e
receber o banho batismal em nome da Trindade. Uma vez percorrido este itinerário
catecumenal, o candidato está apto para celebrar o rito do sacramento no banho
batismal.
João Crisóstomo irá radicalizar ainda mais o rito batismal trinitário256. Ele
afirma ser a própria Trindade o sujeito, celebrante-presidente, do Batismo. O
presbítero é ministro da Trindade. Para ele o presbítero assume de fato agir, não em
nome próprio, mas in persona Christi, no rito batismal no sentido em que age em

255
Oração de exorcismo: “Deus todo-poderoso e eterno, que nos prometestes o Espírito Santo por
meio do vosso Filho Unigênito, atendei a oração que vos dirigimos por estes catecúmenos que em
vós confiam. Afastai deles todo o espírito do mal, todo o erro e todo o pecado, para que possam
tornar-se templos do Espírito Santo. Fazei que a palavra que procede da nossa fé não seja dita em
vão, mas confirmai-a com aquele poder e graça com que o vosso Filho Unigênito libertou do mal este
mundo. Deificação: a deificação humana se dá pela abertura da pessoa ao Espírito Santo, prometido
pelo Pai, por meio de Cristo. Uma vez acolhendo o Espírito nos tornamos o templo de sua habitação,
pela graça de Deus. A deificação é, portanto, tornar-se templo da Palavra, do Espírito e da Graça de
Deus. Outras orações de exorcismos podem ser usadas nas celebrações” (RICA. 113. p. 46; para
outras orações de exorcismos, cf. RICA. 373. p.180-183).
256
“E, para te ensinar, por este meio, que o Pai e o Filho e o Espírito Santo são uma substância
única, eis como é dado o batismo. Quando o sacerdote pronuncia sobre os candidatos: N. é batizado
em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, por três vezes lhe mergulha a cabeça na água e lha
levanta, dispondo o batizado, por meio deste rito misterioso, para receber a visita do Espírito Santo.
Pois, não é apenas o sacerdote que lhe toca na cabeça, mas também a direita de Cristo. Isto mesmo
ressalta das próprias palavras do oficiante, pois este não diz: Eu batizo N., mas: N. é batizado,
mostrando ser apenas o ministro da graça e que mais não faz do que emprestar a mão, pois para
esta função foi ordenado pelo Espírito Santo. Quem realiza tudo é o Pai e o Filho e o Espírito Santo, a
indivisível Trindade. É, pois, esta fé na Trindade que nos merece a graça da remissão dos pecados, e
é esta confissão que nos confere a adoção filial”. JOÃO CRISÓSTOMO. Catequese II, 26. In
Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 597.
- 91 -

nome da Trindade, ao dizer: N. (fulano) é batizado ao invés de dizer: eu te batizo N.


(fulano). Embora toda ação ritual seja uma ação humana os seus efeitos comunicam
a graça divina. Aqui temos uma questão teológico-ritual de capital importância, pois
embora o rito seja antropológico, gestos humanos, ele expressa a realidade
sacramental, divina, na qual é a Trindade que realiza a graça.
O nosso ritual não conservou esta fórmula de Crisóstomo, mas isto não
significa que o ministro age em nome próprio, ele sempre age em nome do Senhor,
em nome da Igreja. Assim temos no rito do Banho batismal257: N., EU TE BATIZO EM
NOME DO PAI, (1º mergulho) E DO FILHO, (2º mergulho) E DO ESPÍRITO SANTO (3º mergulho)
(RICA. 220. p. 99).
Porém, o ritual conservou de João Crisóstomo as três imersões na água que,
simbolicamente, significam os três dias de sepultura de Cristo, referindo-se às
palavras do Apóstolo Paulo: “Fomos sepultados com Ele, pelo Batismo, na sua
morte”258. Ambrósio de Milão explicita o mistério do rito do Batismo pela confissão
Trinitária. O batizado é sepultado com Cristo e ungido pelo Espírito para vida
eterna259. Teodoro de Mopsuéstia, comentando em suas Homilias Catequéticas
sobre o Batismo expõe o sentido de sermos mergulhados na Trindade para dela
recebermos os bens que provêm do Batismo. Nele invocamos uma Natureza Nova
sobre a nossa natureza humana. Referência explícita à deificação dos batizados.

257
Oração de bênção sobre a água da fonte. Nos momentos previstos o povo aclama: Fontes do
Senhor, bendizei o Senhor. 1) Ó Deus, pelos sinais visíveis dos sacramentos realizais maravilhas
invisíveis. Ao longo da história da salvação, vós vos servistes da água para fazer-nos conhecer a
graça do Batismo. Já na origem do mundo vosso espírito pairava sobre as águas para que elas
concebessem a força de santificar; 2) Nas próprias águas do dilúvio, prefigurastes o nascimento da
nova humanidade, de modo que a mesma água sepultasse os vícios e fizesse nascer a santidade.
Concedestes aos filhos de Abraão atravessar o mar Vermelho a pé enxuto para que, livres da
escravidão, prefigurassem o povo nascido na água do Batismo; 3) Vosso Filho, ao ser batizado nas
águas do Jordão, foi ungido pelo Espírito Santo. Pendente da cruz, do seu coração aberto pela lança,
fez correr sangue e água. Após sua ressurreição, ordenou aos apóstolos: “Ide, fazei meus discípulos
todos os povos, e batizai-os em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo; 4) Olhai agora, ó Pai, a
vossa Igreja, e fazei brotar para ela a água do Batismo. Que o Espírito Santo dê por esta água a
graça de Cristo, a fim de que homem e mulher, criados à vossa imagem, sejam lavados da antiga
culpa pelo Batismo e renasçam pela água e pelo Espírito Santo para uma vida nova; (mergulha o círio
pascal na água por uma ou três vezes. Este é um momento epiclético por excelência, no qual a água
torna elemento-símbolo sacramental com força de regeneração). 5) Nós vos pedimos, ó Pai, que por
vosso Filho desça sobre esta água a força do Espírito Santo. (E mantendo o círio na água, continua:)
E todos os que, pelo Batismo, forem sepultados na morte com Cristo, ressuscitem com ele para a
vida. Por Cristo, nosso Senhor. Todos: Amém. (RICA. 215. p. 96-98). O povo aclama: Fontes do
Senhor, bendizei o Senhor! Louvai-o e exaltai-o para sempre! Deificação: a bênção da fonte batismal
expressa que acontecerá na vida do candidato um rito de passagem da morte para a vida: a
deificação sacramental, restaurando a criação original. Nesta oração encontramos implicada as
Alianças de Deus do AT e do NT.
258
JOÃO CRISÓSTOMO. Homilias sobre a primeira Carta aos Coríntios. In Antologia Litúrgica. Op.
cit. p. 629s.
259
AMBRÓSIO DE MILÃO. Os Sacramentos. Livro II. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.522.
- 92 -

“Ao dizer: em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo [...] é como se dissesse:
Nós somos batizados invocando o Pai e o Filho e o Espírito Santo; [...] Se então
pudesses falar, dirias: Amém”260.
Pelo banho batismal se dá, sacramentalmente, o novo (segundo) nascimento
do Espírito Santo na vida do batizado: mergulhado com Cristo na morte, para com
Ele ressuscitar para a vida deificada. A bênção da fonte batismal expressa que
acontecerá na vida do candidato um rito de passagem da morte para a vida: a
deificação sacramental, restaurando a criação original.
Junto ao rito do Batismo, o gesto da imersão com a proclamação da fórmula
trinitária, vão surgindo também, em alguns lugares, ritos como a Signação e a
Imposição das Mãos. Eles têm um núcleo diferenciado do Batismo, mas
estreitamente relacionados com ele. Na Tradição Apostólica de Hipólito de Roma261,
já menciona, também, as duas unções: com Óleo do Exorcismo, antes da imersão, e
o Óleo da Ação de Graças, depois da imersão, presentes também em nosso ritual de
iniciação cristã, como veremos.
Nas Constituições Apostólicas encontramos um rito batismal bem ordenado e
descritivo no qual podemos verificar com clareza uma teologia litúrgica bem definida
da celebração. Como se fala de uma preparação imediata para o batismo é de se
supor que toda a preparação se dava num certo ritual celebrativo262. No texto fica
também clara a participação dos vários ministérios e serviços de quem preside o rito
da celebração263. A descrição deste rito mostra a unidade celebrativa do sacramento
do batismo e do crisma264.
Nos escritos, Testemunho do Senhor265, encontramos uma ampliação das
Constituições Apostólicas. O rito batismal vai recebendo uma lógica celebrativa e
teológica: Renúncia; Profissão de Fé; Batismo; Unção; Comunhão, constituindo uma

260
TEODORO DE MOPSUÉSTIA. Homilias catequéticas. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 677.
261
Entre os anos 215-225, quando escreve esta Tradição encontramos estes ritos de grande
influencia na Igreja de Roma. Cf. HIPÓLITO DE ROMA. Os Sacramentos da Iniciação Cristã. In
Tradição Apostólica. 21. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 236.
262
Como se pode verificar nas CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS. Livro VII, Iniciação Cristã, 39-49.
In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 420-424.
263
Cf. CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS. Livro III. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 412s.
264
“Primeiro ungirás com o óleo santo, em seguida batizarás com água e em último lugar porás o selo
com o Miron, para que a unção comunique o Espírito, a água seja símbolo da morte e o Miron selo
das alianças. Se não houver o óleo nem Miron, basta a água para a unção”. CONSTITUIÇÕES
APOSTÓLICAS. Livro Livro VII. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 416.
265
TESTAMENTUM DOMINI. Documento sírio do séc. V, adaptação e amplificação da Tradição
Apostólica de Hipólito, em língua siríaca traduzida do grego, artificiosamente atribuída aos Apóstolos.
Cf. O Livro II, 8. Trata do batismo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 1079, cf. nota de rodapé.
- 93 -

verdadeira celebração de iniciação cristã266, como encontramos em nosso ritual de


iniciação.
Os ritos das três renúncias: [...] ao pecado; [...] à desunião; [...] ao demônio,
seguida das três profissões de Fé: em Deus Pai [...]; em Jesus Cristo [...]; e no
Espírito Santo [...], constituem uma verdadeira expressão da nossa deificação: pois o
candidato, no uso da liberdade renuncia a um estado de vida, a vontade própria,
para abraçar o estado da graça pela força e unção do Espírito Santo. Somente nesta
força de Deus ele pode mergulhar para a morte batismal e ressurgir na vida nova do
Cristo (cf. RICA. 217-219. p. 98-99).
Quanto aos ritos complementares267 como chamamos hoje em nosso rito
atual (cf. RICA. 223-226. p. 100-101), encontramos, em Gregório de Nazianzo,
elementos, que o irão constituir como verdadeiros ritos de deificação, por sua
referência escatológica expressa da nova realidade sacramental na vida do
batizado: Esperar o encontro com o Esposo. Ele mesmo irá nos acolher para a
glória268: seremos deificados no amor extático do Pai.
Como outras dimensões do rito do Batismo compreendem-se também,
teologicamente, os gêneros de Batismo que a Igreja foi celebrando no curso da
história, como está explícito em Ildefonso de Toledo, sobretudo o martírio, Batismo
de sangue, que a Igreja sempre aprovou com total aceitação, por ser,
provavelmente, o modo sacramental mais sublime que se identifique com o martírio
de Jesus. O mártir da fé (Batismo de sangue) é configurado plenamente com o
Cristo.

Há três gêneros de batismo. O primeiro batismo é o da água e do


Espírito [...] O segundo é aquele em que, pelo martírio, alguém é
batizado no seu próprio sangue [...] O terceiro é a abundância de
lágrimas, que acontece no arrependimento dos pecadores. Realiza-se

266
Cf.TESTEMUNHO DO SENHOR. Liturgia da Iniciação. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 1085.
267
Entre os ritos complementares merece atenção o rito da Veste batismal por sua relação clara com
a deificação do batizado. Assim reza o rito: você nasceu de novo e se revestiu de Cristo. Receba,
portanto, a veste batismal, que deve levar sem mancha até a vida eterna, conservando a dignidade
de filho e filha de Deus. Batizado: Amém. (RICA. 225. p. 100).
268
“A atitude que tomarás, de pé, imediatamente após o batismo, diante do grande altar, é uma
prefiguração da glória do Céu; o canto dos salmos com que será acolhido é o prelúdio do canto dos
hinos do Céu; os círios que segurarás na mão evocam o cortejo de luz do Céu, com o qual iremos ao
encontro do Esposo. Com as lâmpadas da fé acesas. Possamos nós também participar nele, nós que
vos damos este ensino e vós que o recebeis, no próprio Cristo nosso Senhor, a quem pertence à
glória pelos séculos. Amém”. GREGÓRIO DE NAZIANZO. Sermão 40. In Antologia Litúrgica. Op. cit.
p. 504.
- 94 -

com esforço, mas, pela abundante piedade do Redentor, é seguro


para o perdão269.

Quanto ao ministério do Batismo, como vem descrito no evangelho de João


4,2, o próprio Jesus não batizava, mas os seus discípulos batizavam, mostrando
assim um critério de ministerialidade, pois o Batismo de Jesus ainda não havia sido
instituído antes da paixão, ressurreição e glorificação do Senhor 270. Ou seja, os
Sacramentos são celebrados no mistério Pascal de Jesus. Por isso Jesus não podia
celebrar. E mais: Ele era o Sacramento vivo e atuante do Pai na vida das pessoas.
Numa palavra: quem estabelecia contato com Jesus estava Deificado pela
descoberta e encontro do Amor filial do Pai. Por isso batizar será um ministério da
Igreja.
Quanto à matéria e à forma, o rito do Batismo se dá pela Água e pela Palavra.
Como se dirá posteriormente na Igreja: o Sacramento é constituído de matéria e
forma. Temos em Agostinho o início desta estruturação sacramental: “Que é o
Batismo de Cristo? É a ablução da água com a palavra. Se não se usa água, não há
Batismo, se não se pronuncia a palavra, não há Batismo”271.
O rito sobre a carne (corpo), que se dá pelo Batismo, no clássico texto de
Tertuliano nos deixa entrever como é indispensável toda a ritualidade litúrgica para
celebrar o Batismo, vinculando-O com o alimento da Eucaristia, Corpo de Cristo.

Assim, a carne é lavada, para que a alma seja purificada; a carne é


ungida, para que a alma seja consagrada; a carne é marcada com o
sinal da cruz, para que a alma seja fortalecida; a carne é coberta com
a sombra da imposição das mãos, para que a alma seja iluminada pelo
Espírito; a carne é alimentada com o Corpo e o Sangue de Cristo, para
que a própria alma seja saciada de Deus. Não podem, pois, ser
separadas na recompensa aquelas que estiveram unidas na ação272.

Por isso somos deificados já num corpo carnal. É nesta condição que
celebramos o mistério do Batismo. Contra toda mentalidade de separação entre
alma e corpo, nos cristãos, somos convidados a expressar o mistério da deificação
que se dá na plena comunhão da pessoa em sua inteireza.

269
ILDEFONSO DE TOLEDO. O conhecimento do batismo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.1350.
270
Cf. TERTULIANO. O batismo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 197.
271
AGOSTINHO DE HIPONA. Tratados sobre o Evangelho de João. In Antologia Litúrgica. Op. cit.
p.788.
272
TERTULIANO. A ressurreição dos mortos. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.220.
- 95 -

O nosso rito atual do batismo é devedor, sem dúvida, do Sacramentário


Gelasiano Antigo, que se apresenta como síntese teológico-litúrgica da celebração
do batismo dos primeiros séculos. Nem poderia ser diferente, pois, nele está a
Tradição e a herança mais genuína. Dela bebemos, com ela celebramos e, nela,
compreendemos o mistério expresso pela ritualidade273, celebrada e vivida pelos
Padres da Igreja274. E quando deparamos com a descrição do Sacramentário
Gregoriano Hadriano: “Fórmula do batismo. Batiza-o e unge-o com crisma no cimo
da cabeça, dizendo: N., eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo”275, podemos dizer o quanto somos devedores também desse Sacramentário:
A ritualidade é de suma importância para a proclamação da fé, pois o rito não
é estéril. Nele se produza os bens que dele se busca. “[...] o pontífice proclama que
se ele quer aproximar-se do Deus, perfeito e sem mancha, deve fazer dom total de si
mesmo”276. Neste caminho de perfeição somos convidados a saborear o próprio
Cristo como filhos livres, batizados, que realizam a plenitude da comunhão com
Deus em Cristo celebrada pelo rito. Participar da Eucaristia será uma decorrência
natural para completar o vínculo humano ao Divino, tornando-se a “pessoa” casa do
Espírito Santo. João Crisóstomo coloca o Batismo em estreita relação com a mesa
eucarística da qual o neófito participa como membro do Corpo de Cristo. “Logo que
saem das piscinas sagradas [...] são conduzidos à mesa temível, fonte de mil
favores, saboreiam o Corpo e o Sangue do Senhor e tornam-se morada do Espírito:
revestiram-se do próprio Cristo [...]277. Evidências da deificação que se celebra,
ritualmente, no Batismo e na Eucaristia.

273
Se hoje somos convidados a aprofundar em conhecimento e vivência do rito e a importância da
ritualidade litúrgica é porque estamos distantes da vivência (da vida) do mistério. Cf. COSTA, V. S.
Viver a ritualidade litúrgica como momento histórico da salvação. São Paulo: Paulinas, 2005. p.11 e
71.
274
Cf. RITO DO BATISMO SACRAMENTÁRIO GELASIANO ANTIGO. In Antologia Litúrgica. Op. cit.
p.1333ss.
275
SACRAMENTÁRIO GREGORIANO HADRIANO. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.1362. (Adriano I,
foi papa entre os anos de 772-795).
276
PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA. A hierarquia eclesiástica. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.
1086.
277
JOÃO CRISÓSTOMO. Catequese II. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 597. A oração de Serapião,
depois do Batismo, é de bom gosto e plena de sentido sacramental. Prima pela beleza, concisão,
simplicidade, nobreza e riqueza teológica: “Deus, Deus da verdade, Criador do universo, Senhor de
toda a criatura, enche este teu servo da tua benção, guarda-o puro no seu novo nascimento e fá-lo
participar nas virtudes angélicas, para que, doravante, nunca mais seja carne, mas espírito, ele que
participou na tua graça divina e benéfica”. SERAPIÃO DE THEMUIS. Iniciação cristã. In Antologia
Litúrgica. Op. cit. p.377.
- 96 -

Se fosse possível celebrar sem rito278 tornaria disperso o seu conteúdo. Eis
uma das razões porque desde os tempos dos Apóstolos e depois dos Padres a
Igreja irá elaborar os ritos que celebram a nossa fé. Eles souberam interpretar a
novidade do Evento salvífico de Cristo (na Tradição das Escrituras) e, aos poucos,
foram “moldando”, por assim dizer, o conteúdo teológico e adequando-o, através da
ritualidade, de maneira a tornar possível, antropologicamente, a celebração litúrgica,
ritual, dos sacramentos. E se hoje temos a liturgia dos sacramentos toda ritualizada
como patrimônio, e riqueza celebrativa, demos graças a Deus pelos nossos
antepassados e façamos bom proveito.

3.1. Catequese e Celebração do Batismo

A Igreja tem o direito e o dever de catequizar aqueles que solicitam o


Batismo. Pois é missão da Igreja anunciar o Evangelho da Boa Nova aos povos.
Somente pelo anúncio e proclamação das Escrituras será possível novos filhos
acolherem e aderirem ao Senhor. Esta catequese, porém, deve contemplar nossa
perspectiva da deificação para que produza os devidos frutos na vida da pessoa.
A catequese batismal, sempre esteve presente na Tradição da Igreja,
segundo a nossa perspectiva. Já no NT, a pregação querigmática dos apóstolos
não tinha outra função senão catequizar os ouvintes quanto à pessoa de Jesus
Cristo. Mas, sobretudo, no período dos Padres se desenvolveu ainda mais a
catequese batismal. Assim encontramos, em Etéria, em sua Peregrinação ou Diário
de Viagem279, uma verdadeira catequese batismal que se desenvolvia na Igreja de
Jerusalém. O texto desta autora, mostrar-nos a importância que se dava à
catequese e recepção do Batismo, bem como o valor a toda a liturgia desta igreja
local. Na mesma linha encontramos Cirilo de Jerusalém que, em breves palavras,
nos deixa a idéia desta catequese batismal. “Tudo isto se passou no edifício exterior.
Se Deus quiser, quando, nas catequeses mistagógicas seguintes, entrarmos no
Santo dos Santos, conheceremos, então, os símbolos das coisas que lá se

278
“Na verdade, quem conduz a celebração é o rito que, como binário de um trem, estabelece a rota,
não permitindo o desvio. O rito pelo rito não tem vida, mas a vida necessita do rito para sobreviver”.
COSTA, V. S. Viver a ritualidade litúrgica como momento histórico da salvação. Op. cit. p. 52.
279
PEREGRINAÇÃO DE ETÉRIA: Liturgia e catequese em Jerusalém no século IV. 2ªed. Petrópolis:
Vozes, 2004.
- 97 -

realizam”.280 Também Ambrósio de Milão menciona a idéia de que pelo batismo se


entra na realidade sagrada: “[...] abriram-se para ti as portas do Santo dos Santos e
entraste no santuário da regeneração”281. E, ainda, Cipriano282 confirma que só
dentro da Igreja é possível receber o Batismo: portanto, ser catequizado.
Todo cuidado é pouco quando se trata de garantir a intenção de quem busca
o Batismo, inspirado por Deus, para que não haja simulação e banalização. A Igreja,
pela catequese, quer assegurar que não se aproxime do Batismo pessoas que não
acolheram ainda a verdade do Evangelho283. “Tem cuidado para não te aproximares
do ministro do batismo simulando, a exemplo de Simão, sem procurares a verdade
com o teu coração. O nosso dever é chamar a atenção e o vosso é terdes
cuidado”284. O cuidado da catequese deve ser em vista da vida deificada pela qual o
batizado corresponde à graça sacramental.
Quanto à celebração do Batismo, a Igreja também nos orienta para que haja
coerência com o tempo litúrgico. Embora encontremos expressões, em Basílio, que
mostra o Batismo sendo celebrado em qualquer tempo e idade é importante notar
que a Páscoa seja o Tempo por excelência para mergulhar o catecúmeno na vida
nova. “[...] para o Batismo, toda a vida humana é tempo próprio; qualquer momento é
indicado para obter a salvação pelo batismo”285. Encontramos também descrições
com fundamentação nas Escrituras e com base teológica que justificam a noite da
Páscoa como noite Batismal286.
O Papa Sirício diz que o privilégio de se batizar multidões inumeráveis “é
especialmente reservado para a Páscoa de Cristo e para seu Pentecostes”. 287 Esta
orientação é para se evitar abusos e não se fazer de qualquer tempo e festa ocasião
de Batismo, embora possa ser concedido para crianças e pessoas em qualquer
280
CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses Mistagógicas. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 485.
281
AMBRÓSIO DE MILÃO. Os Mistérios. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 529.
282
CIPRIANO. Carta 73, 11. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 308.
283
Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral para a Catequese. 4ªed. São Paulo:
Loyola, 2003, p. 87-91.
284
CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 481.
285
BASÍLIO DE CESARÉIA. Sobre o Batismo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 404.
286
“Israel foi mergulhado no mar a meio [sic] da noite, nesta noite de Páscoa, o dia da salvação;
nosso Senhor, na noite de Páscoa, lavou os pés dos seus discípulos, em mistério do batismo. Deves
saber, meu amigo, que foi durante essa noite que o nosso Salvador nos deu o verdadeiro batismo.
Enquanto Ele ia e vinha com os seus discípulos, tinha o batismo da Lei com que os sacerdotes
batizavam, o batismo de que fala João: Convertei-vos dos vossos pecados. Mas, nessa noite,
mostrou-lhes o mistério do batismo, que é a paixão da sua morte, como diz o Apóstolo: Fomos
sepultados com Ele pelo batismo para a morte, e ressuscitamos com Ele para a força de Deus”.
AFRAATES, o sábio persa. Exposição 12. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 362.
287
PAPA SIRÍCIO. Cartas 2. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 565.
- 98 -

necessidade. A Páscoa e o ciclo Pascal serão valorizados como tempo batismal, já


afirmara Tertuliano288. Quando se celebra o Batismo na Páscoa, os regenerados
celebram a Oitava da Páscoa. “Esta é a razão principal de todos os regenerados
pelo Batismo de Cristo celebrarem, com grande devoção, a solenidade desta
Oitava”289. Oitava prefigura o século futuro. Simboliza sempre o “Hoje”. 290 Então pelo
Batismo vive antecipadamente, em nosso hoje, as realidades celestes.
Tudo leva a concluir que a importância de se celebrar o Batismo na Páscoa
está em vista da participação das celebrações solenes291. Sendo a própria
celebração da vigília, por exemplo, fonte de catequese mistagógica 292. Sendo
também o tempo quaresmal um verdadeiro itinerário de catequese batismal para a
renovação batizados e acolhida dos catecúmenos.

4. Batismo: Mistério da deificação

No Evangelho apócrifo de Filipe293 encontramos o Batismo como mistério. “O


Senhor fez tudo num mistério: um Batismo, uma unção, uma Eucaristia, uma
redenção, um quarto nupcial”294. A Epístola de Barnabé se apóia sobre o profeta
Isaías295 e comenta sobre a revelação antecipada do mistério da água e da cruz.
“Notai que ele designa ao mesmo tempo a água e a cruz, pois quer dizer o seguinte:

288
Cf. TERTULIANO. O Batismo 19. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 200.
289
Agostinho. Sermão 260. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 947.
290
Cf. Agostinho. Sermão 260. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 947.
291
“[...] prescrevemos pelo presente mandato que todos, fazendo marcha atrás nos seus erros ou na
sua ignorância, se apresentem à igreja no primeiro dia da Quaresma com os seus filhos, para que
estes, depois de receberem a imposição da mão nos dias fixados e de terem sido ungidos com o óleo
santo, participem na solenidade do dia legítimo e sejam regenerados pelo santo batismo, que lhes
permitirá, se a vida os ajudar, exercer as funções sacerdotais e participar na solenidade de cada uma
das celebrações”. II Concílio de Mâcon (585). In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 1253.
292
No tempo pascal seja dada a devida atenção aos neófitos, juntamente com seus padrinhos.
Colocados em lugar especial e sejam lembrados na homilia e preces. Para encerrar o tempo da
mistagogia, realiza-se uma celebração ao seu termino do tempo pascal. Sejam envolvidos no
aniversário de seu Batismo. E o Bispo cuide de celebrar a Eucaristia, ao menos uma vez por ano,
com os neófitos e todos comunguem das duas espécies. Seja o Tempo da Mistagogia marcado pela
vivência da graça sacramental recebida nos sacramentos de iniciação. A participação da celebração
da Eucaristia será o ponto alto na qual os neófitos possam saborear em antecipação do Banquete
Celeste numa vida deificada. O Tempo da Mistagogia nos mostra a intenção da Igreja em levar os
batizados à celebração dos mistérios, pois não basta ser batizado, apenas, mas celebrante da
Eucaristia, numa vida espiritual de oração e caridade.
293
O Evangelho de Filipe deve ter tido a mesma procedência e conteúdo ao do Evangelho de
Matias. A sua data deve fixar-se nos últimos anos do século II. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.166.
Nota de rodapé.
294
EVANGELHO APÓCRIFO DE FILIPE. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.166.
295
Cf. Is 45,2-3; 33,16-18.
- 99 -

Felizes aqueles que, tendo posto na cruz a sua esperança, desceram à água” 296. O
mistério do Batismo terá por fundamento as Escrituras que serviram para os Padres
explicitar a teologia batismal. O mistério do Batismo, contudo, se fundamenta na
relação entre Adão e Cristo: relação da figura humana de vida, pecado, morte e
figura humano-divina de vida, graça, ressurreição297. Grande mistério também é a
relação entre Cristo e a Igreja da qual nasce o povo cristão, mistério da nossa
deificação.
Ambrósio, expondo sobre o mistério do sacramento do Batismo298, dirá que
somos mergulhados na fonte para dela recebermos, de volta, os benefícios do
Paraíso que perdemos pelo pecado. E, João Crisóstomo, descreve os bens que o
batizado recebe pelo mistério deste sacramento como realidade existencial:
iniciando-se na participação da santidade, termina como instrumento do Espírito. A
deificação consiste, portanto, em recuperar o Paraíso, participar da santidade de
Deus por herança, ser templo do Espírito e seu instrumento no mundo.

Os que outrora permaneciam na vergonha do pecado estão agora na


certeza e na justiça. Eles são não apenas livres, mas ainda santos;
não apenas santos, mas justos; não apenas justos, mas filhos; não
apenas filhos, mas herdeiros; não apenas herdeiros, mas irmãos de
Cristo; não apenas irmãos de Cristo, mas seus co-herdeiros; não
apenas seus co-herdeiros, mas seus membros; não apenas seus
membros, mas templos; não apenas templos, mas instrumentos do
Espírito.299

Orígenes, antes de Crisóstomo, já havia também descrito os dons e os bens


que provém deste Sacramento: “o novo nascimento, a renovação, a imortalidade, a
incorruptibilidade, a impassibilidade, a liberdade da morte, da escravidão e de todos
os males, e também a experiência da liberdade e a participação nos bens futuros e

296
ESPÍSTOLA DE BARNABÉ. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 120.
297
Cf. PACIANO DE BARCELONA. Sermão sobre o Batismo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 512.
298
“O que é o batismo? No princípio, o Senhor nosso Deus fez o homem imortal, com a condição de
ele não cometer o pecado. O homem cometeu o pecado, tornou-se sujeito à morte, foi expulso do
Paraíso. Mas o Senhor, que queria fazer durar os seus benefícios, destruir todas as artimanhas da
serpente e eliminar tudo o que ela estragara, lavrou em primeiro lugar uma serpente contra o homem:
Tu és pó e ao pó voltarás, tornando o homem sujeito à morte. Era uma sentença divina, que não
podia ser anulada pela humanidade [...] Escuta. Para destruir neste mundo o laço do Diabo,
encontrou-se o meio de fazer morrer o homem enquanto vive e de o fazer ressuscitar enquanto vive
[...] Enquanto vive a vida do seu corpo, virá à fonte e será mergulhado na fonte. Donde vem a água
senão da terra? [...] Deste modo a fonte é como se fosse uma sepultura”. AMBRÓSIO DE MILÃO. Os
Sacramentos. Livro II. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 522.
299
JOÃO CRISÓSTOMO. Oito catequeses batismais. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 598.
- 100 -

sublimes”300. Cirilo de Jerusalém, por sua vez, apoiando-se sobre o apóstolo Paulo,
irá expor acerca do mistério do Batismo pelo qual o batizado é inteiramente
integrado a Cristo numa verdadeira fusão de natureza. A natureza humana é
plenamente divinizada pela natureza do Filho de Deus, plenamente deificada pela
incorporação.

Se estamos integrados n’Ele por uma morte idêntica à sua, também o


estaremos pela sua ressurreição. A expressão integrados n’Ele é
muito feliz. [...] Ele não disse: Fomos integrados n’Ele pela morte, mas
por uma morte idêntica à sua. Na verdade, em Cristo houve uma morte
real, pois a alma se separou do corpo, houve uma verdadeira
sepultura, pois o seu corpo sagrado foi envolvido num lençol limpo, e
foi verdadeiro tudo quanto n’Ele ocorreu. Mas em nós há apenas uma
semelhança da morte e dos sofrimentos. A salvação, porém, não é
semelhança, mas realidade301.

Neste sentido da participação humana em Cristo pelo mistério do Batismo,


que o batizado mergulhar na morte e sepultura de Cristo e sai ressuscitado com Ele,
que João Crisóstomo escreve: “Sepultura e ressurreição, eis o que o batismo é: O
homem velho está sepultado com o pecado e ressuscita o homem novo, renovado à
imagem do seu Criador (Cl 3,10)”302. Também, Basílio, escreve: é a nossa
participação sacramental na morte, sepultura e ressurreição de Cristo303. O Mistério
do Batismo conduz o batizado à participação em Cristo por obra do Espírito Santo.
Somente pela força do Espírito podemos, de fato, nascer de novo, numa segunda
natureza: “O batismo é figura destas coisas: tal é a obra do Espírito Santo. [...]
morres e ressuscitas com Cristo, [...] nasces para uma vida nova, [...] segundo
nascimento e, atraído por estes sinais, acabas por participar na sua realidade” 304.

300
ORÍGENES. Homilias sobre Josué. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 264.
301
CIRILO DE JERUSALÉM. Segunda catequese mistagógica. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 487.
302
JOÃO CRISÓSTOMO. Catequese II. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 595.
303
“É dupla, com efeito, a finalidade do batismo: abolir o corpo do pecado, para que nunca mais
produza frutos de morte, e vivificá-lo pelo Espírito, para que dê frutos de santidade. [...] Por ele se nos
dá a confiança de chamar a Deus nosso Pai, de participar na graça de Cristo, de sermos chamados
filhos da luz, de tomar parte na glória eterna, numa palavra, de receber a plenitude de todas as
bênçãos, tanto na vida presente como na vida futura, e de poder contemplar, como num espelho,
como se já estivessem presentes, os bens que em promessa nos estão destinados e que pela fé
esperamos vir a usufruir. Ora, se tais são as arras, qual não será a realidade perfeita? E, se tão
grandes são as primícias, qual não será a plenitude final?”. BASÍLIO DE CESAREIA. O Espírito
Santo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 400s.
304
TEODORO DE MOPSUÉTIA. Homilias catequéticas. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 676.
- 101 -

Conforme Teodoreto de Ciro, o mistério do Batismo305 abrange uma realidade


escatológica maior, que vai além do perdão dos pecados, trata-se da garantia dos
bens futuros dos quais participarão os batizados. Pelo mistério do batismo é que nos
tornamos “cristos”306, no dizer de Cirilo de Jerusalém307. Este último Padre expõe
uma significação espiritual para este mistério, tendo por fundamento as Escrituras,
sobretudo, o NT e a Tradição da Igreja primitiva (cf. Gl 3,27; Rm 8,29; Ef 1,5; Fl 3,21;
Hb 3,14). Por isso, a fonte batismal é dádiva, é graça, nela somos repletos dos bens
inumeráveis e dos dons espirituais308. Eis o mistério da fonte na qual mergulhamos e
recebemos vida abundante, consciência pura e a deificação.
Tomando o conceito de natureza de Agostinho compreendemos que o
mistério do Batismo liberta o humano dos vícios, do pecado e das obras más 309. O
humano não deixa de ser humano por causa do Batismo; mas radicaliza a sua
condição de humanidade, ainda mais, filiada à graça batismal, à deificação.
Quanto ao ministro do Batismo, Cromácio de Aquiléia, nos ajuda a
compreender o mistério que também cerca esta realidade. O serviço é realizado pelo
humano, mas a realidade do rito pertence ao Senhor310.
O Batismo é, portanto, sacramento do Mistério 311. É a celebração litúrgica
sensível, com sinais, símbolos, gestos e palavras de uma realidade mistérica

305
Cf. TEODORETO DE CIRO. Heresias comparadas. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 1052s.
306
Cristos sentido genérico de pessoa ungida.
307
Cf. CIRILO DE JERUSALÉM. Terceira Catequese Mistagógica. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.
487.
308
“Uma vez que nos é dada uma tal fonte, um manancial de vida tão abundante, uma vez que a
nossa mesa está repleta de bens inumeráveis e nos inunda com os seus dons espirituais,
aproximemo-nos de coração sincero e consciência pura, para obtermos a graça e a misericórdia no
tempo oportuno. Pela graça e misericórdia do Filho unigênito, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo,
pelo qual seja dada ao Pai e ao Espírito Santo, fonte de vida, a glória, a honra e o poder, agora e
para sempre e pelos séculos dos séculos. Amém.”. JOÃO CRISÓSTOMO. Catequese III. In Antologia
Litúrgica. Op. cit. p. 600.
309
“[...] os hábitos viciosos dos adultos, sejam eles quais forem, não lhes tiram a condição de
homens, mas neles permanece a obra boa de Deus, por maiores que sejam as obras más dos ímpios
[...] Deus condena o homem pelo vício, pelo qual a natureza foi degradada, não pela natureza, que
não foi destruída pelo vício”. AGOSTINHO DE HIPONA. A graça de Cristo e o pecado original. In
Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 783.
310
“Agora, com efeito, o Senhor lava os pés dos seus servos, daqueles que Ele convida para a graça
do batismo salvador [...] Nós realizamos o ofício, mas é Ele que concede o benefício. O ofício
pertence-nos a nós, a ordem vem d’Ele. A graça vem d’Ele, apesar de sermos nós que realizamos o
serviço. Nós lavamos os pés dos corpos, Ele lava os pés da alma; nós mergulhamos o corpo na
água, Ele perdoa os pecados; nós batizamos, Ele santifica”. CROMÁCIO DE AQUILEIA. Sermão 15.
In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 588.
311
“O Senhor fala de um único batismo que, depois de o homem entrar na fonte eterna e receber o
sacramento da bebida celeste, não deixa que nenhum de nós tenha sede [...]”. CESÁRIO DE ARLES.
Sermão 170. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 1203.
- 102 -

insensível312. Na ritualidade deste sacramento se visualiza uma realidade invisível e


dela se faz a experiência da fé, que tem a potencialidade de transformar o humano.
Pelos gestos, atitudes e sinais com que Cristo realizava milagres podem extrair a
base para os sacramentos.
Um homem é enviado à piscina de Siloé. Então Cristo não podia abrir-
lhe os olhos apenas com saliva? Ele podia até fazê-lo mesmo sem
saliva e sem lama. Podia. Mas essas figuras (materiais) dos milagres
são, de certa maneira, as palavras dos sacramentos313.

A necessidade do sacramento do Batismo se impõe pela sua origem e seu


fundamento: a Paixão e a Ressurreição do Senhor. Este é o evento objetivo da fé,
origem e fundamento da Igreja314. Agostinho mostra o valor deste sacramento
considerando o fato do próprio Senhor haver recebido315. Nesta visão, o sacramento
tem um valor em si mesmo. E por trazer consigo um valor que independe da
apreciação humana e da santidade do ministro é que podemos conceber o Batismo
de criança316. “Conseqüência da celebração e da força de um sacramento tão
grande”317. A força do sacramento é tão grande que independe das qualidades do
ministro para a sua validade e eficácia, ainda que se suponha o mínimo de
correspondência entre a santidade do sacramento e a santidade do ministro, pois
qualquer ação humana implica sempre no envolvimento da pessoa. Ou seja, é
inconcebível uma ação humana na qual o sujeito não esteja, pessoalmente,
envolvido318.
A ação do Espírito age pela graça de Deus na vida da pessoa que a recebe
em sacramento. Podemos dizer que o sacramento constitui uma força própria em

312
“Qualquer sacramento é a indicação, em sinais e símbolos, de coisas invisíveis e inefáveis... Se se
tratasse apenas de realidade materiais, seria supérfluo explicá-las, pois os olhos bastariam para nos
mostrar o que cada uma delas é. Mas, uma vez que no sacramento nós temos os sinais daquilo que
ainda terá lugar ou já o teve antecipadamente, é preciso explicar o sentido dos sinais e dos mistérios”.
TEODORO DE MOPSUÉTIA. Homilias catequéticas. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 671.
313
AGOSTINHO DE HIPONA. Sermão 136. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 877.
314
Cf. TERTULIANO. O Batismo. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.198.
315
“É difícil dizer qual é o valor e qual é o fruto da santificação do sacramento, quando ele é aplicado
corporalmente ao homem [...] Se o sacramento não tivesse um grande valor, o Senhor não o teria
recebido do seu servo. Mas é preciso considerá-lo em si mesmo, independentemente da salvação
que ele tem por finalidade dar ao homem”. AGOSTINHO DE HIPONA. O Batismo. In Antologia
Litúrgica. Op. cit. p. 703.
316
Não entramos aqui na questão de batismo de criança, por não ser nosso objetivo primeiro.
317
AGOSTINHO DE HIPONA. O perdão dos pecadores e o batismo das crianças. In Antologia
Litúrgica. Op. cit. p. 740.
318
“Que sacramento tão santo! Não fica profanado, ainda que o administre um homicida!”
AGOSTINHO DE HIPONA. Tratados sobre o Evangelho de João. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.
785.
- 103 -

virtude da força divina que lhes é comunicada. “Como chegou o tempo do


sacramento e vós ides, com a graça de Deus, participar no santo batismo, é preciso,
e a ordem exige-o, que vos fale da força do sacramento e das coisas que nele se
realizam”319. Realiza, portanto, a nossa transformação em Cristo. O Batismo vem
acompanhado pela graça que lhe antecede. Ele realiza a remissão dos pecados, nos
liberta da morte, nos dá um título de responsabilidade divina de Mestre e Doutor 320,
pois nos faz participar, deificados, da realidade de Deus pelo Espírito.
Uma vez que as obras do Diabo são destruídas pelo Batismo, o homem não
está mais sob o jugo do pecado e da morte, mas liberto para a sua deificação. “O
Filho de Deus destruiu as obras do Diabo libertando o homem pelo Batismo e
revogando o contrato de morte”321. Nesta libertação o ser humano encontra a sua
realidade; encontra, ainda, a centralidade do seu ser, que é divino. O que se
pressupõe para a recepção de qualquer sacramento é a abertura humana ao dom
da graça; na acolhida do dom de Deus é que celebramos liturgicamente os
sacramentos que nos deificam em Cristo.
Numa palavra: podemos afirmar que os Padres construíram e desenvolveram
a teologia do mistério do Batismo, tendo por base e fundamento a revelação das
Escrituras e o Mistério Pascal. É impensável falar sobre o mistério do Batismo sem
passar por esta Tradição teológica dos Padres. Nela descobrimos que tudo é
mistério, é dom celeste, é graça que brota da fonte batismal: tudo é um casamento
espiritual322. É um segundo nascimento que se dá pela obra da Trindade 323; é
admirável, porque nele se dá nossa salvação324 e deificação. E como este mistério é
da iniciativa de Deus, Agostinho interpretou-o como sendo uma realidade
sacramental dada por Deus e realizada pela Igreja. Assim, a filiação não está
desamparada, mas é gerada e alimentada pela Igreja que também surge como
Mistério nascido do lado de Cristo. “E como se tornam filhos de Deus? Nascendo
não do sangue, nem da vontade do homem, nem da vontade da carne, mas de Deus
319
TEODORO DE MOPSUÉTIA. Homilias catequéticas. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 671.
320
“Nós dissemos-Lhe: Senhor, como é possível que estes três títulos (de Pai, de Mestre e de
Doutor) sejam um só em nós? Ele respondeu e disse-nos: Sereis chamados Pais, porque revelareis
aos homens [...] que é pela minha própria mão que eles receberão o batismo da vida e a remissão
dos pecados; sereis chamados Mestres e Doutores, porque direis a minha palavra sem dificuldade”.
CARTA DOS APÓSTOLOS, In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 146.
321
TERTULIANO. A castidade. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 224.
322
“Pois é mesmo casamento espiritual o que aqui se realiza [...]” JOÃO CRISÓSTOMO. Catequese
VI. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 604.
323
Cf. CROMÁCIO DE AQUILEIA. Sermão 18. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 590
324
Cf. GREGÓRIO DE NAZIANZO. Sermão 40. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 502.
- 104 -

[...] o segundo nascimento origina-se de Deus e da Igreja”325. Uma vez nascidos


deste “mistério”, dentro da Igreja, iniciamos o processo da nossa deificação que será
mantido pela graça da Eucaristia. “No santo batismo deixareis os pecados, mas não
deixareis as paixões, com as quais, depois de regenerados, haveis de lutar. A
batalha continuará dentro de vós mesmos”326. Mas pelo Batismo somos
ontologicamente transformados no amor de Deus sem deixar a nossa humanidade.
Tal sacramento imprime no batizado a filiação divina: mistério da deificação.
Concluindo. A Igreja aprendeu de Jesus ser mistagoga. Jesus levou a
Samaritana a reconhecer Nele o Cristo. Levou a Samaritana a mergulhar no seu
mistério e dele saciar-se, deificada. Quando Jesus disse a Samaritana: “quem beber
da água que eu lhe darei [...] tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a
vida eterna. E se alguém tem sede, venha a mim e beba [...] de seu seio jorrarão rios
de água viva” (Jo 4,14; 7,37s) descobrimos a imensidão do Espírito com que Jesus
quer “nos saciar”, naquela mulher; e, nela, a humanidade inteira.
As Escrituras, a Tradição da Igreja e a reflexão teológica nos oferecem um
universo de sabedoria litúrgico-sacramental, ou seja, basta banharmo-nos nesta
fonte e dela bebermos, para nunca mais esquecê-la. E esta fonte é apenas o
“aperitivo” até que se chegue ao Banquete da Eucaristia. Todos os que nascem são
dignos do alimento. Todos os que descem à fonte batismal sobem à mesa da
comunhão, prenúncio do Banquete celeste, para saciar-se de Cristo Glorioso.
Isto, nós veremos no próximo capítulo: Eucaristia Sacramento de Deificação.

325
AGOSTINHO DE HIPONA. Sermão 121. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 866.
326
AGOSTINHO DE HIPONA. Sermão 57. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 866.
- 105 -

CAPÍTULO III – EUCARISTIA SACRAMENTO DE DEIFICAÇÃO

A Eucaristia é o centro e o vértice da história da salvação revelada nas


Escrituras (SC. 10)327: “Eucaristia é o sacramento dos sacramentos”328. Por isso,
somente fundamentados nas Escrituras poderemos pensar a origem do sacramento
da Eucaristia e compreendê-la na perspectiva da deificação como celebramos o
ritual329 deste sacramento em nossa Igreja.
Esta é a nossa proposta, neste capítulo, pensar a Eucaristia na perspectiva
da deificação sob as dimensões: da páscoa, da aliança, do sacrifício, do banquete e
da presença de Cristo330. Olhar a Eucaristia enquanto evento de salvação e
deificação realizada por Deus: sacramento revelado por Jesus na última Ceia à
humanidade; vivido pelos discípulos; compreendido pela comunidade primitiva e
desenvolvido, teologicamente, pelos Padres; guardado pela Tradição da Igreja, até
nossos dias, e valorizado pela reforma do Concílio Vaticano II. Embora muito já se
escreveu sobre a Eucaristia, priorizamos mais referência de fundamentação bíblica e
o próprio ritual da missa para a nossa exposição.
Pela fundamentação bíblica descobrimos a Eucaristia como verdadeiro
sacramento de deificação. Por nos colocar diante do amor extático do Pai que
oferece o Filho Jesus em Sacrifício para a deificação do mundo. Assim devemos
buscar na pessoa de Jesus a origem da Eucaristia. Jesus era judeu, bem como os
primeiros cristãos. É nas Escrituras do AT que devemos encontrar a compreensão, a
linguagem, as categorias e o sentido que Jesus deu a Eucaristia 331, bem como a
fundamentação da perspectiva da deificação.

327
Cf. ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé: ensaio de teologia bíblica sobre os sacramentos
como “maravilhas da salvação” no tempo da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 291.
328
PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA. A hierarquia eclesiástica. In Antologia Litúrgica... Op. cit. p.
1087.
329
PAULO VI. Missal Romano (MR). 4ªed. São Paulo: Paulus, 1992.
330
Cf. ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé... Op. cit. p. 291.
331
“Trata-se de realidades como a ceia sagrada, o memorial, o sacrifício, a páscoa, as bênçãos e
ações de graças, a aliança, o sacrifício de Isaac, a festa, a figura do servo de Javé [...]. Para entender
como Cristo Jesus, com seu sacrifício pascal, sela a nova aliança de Deus com a humanidade, e
como encarrega os seus de celebrar uma memorial dessa aliança, teríamos que estudar, antes de
tudo, essas realidades prévias, que tinham ressonâncias bem concretas para os contemporâneos de
Jesus, ressonâncias que tentaremos conhecer”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes.
2002. p. 34. Numa compreensão que busque o sentido e os fundamentos do conceito de aliança
poderíamos entender que Jesus não inaugura uma “Nova Aliança”, pois Deus sendo fiel não mudaria
a Aliança, mas Jesus inaugura sim uma nova forma e um novo sentido, sacramental, de Celebração
da Aliança Eterna de Deus com a humanidade. Isto é muito profundo e importante porque se trata da
- 106 -

Após a última Ceia, a refeição eucarística tornou-se uma categoria celebrativa


para a comunidade cristã expressar o seu vínculo sacramental com o Mestre,
expressar a comunhão com o ressuscitado. Então podemos nos perguntar que
sentido tinha para os judeus sentar-se à mesa e comer juntos? Que relação tem isto
com a doação que Cristo faz de si mesmo na Eucaristia? “Não é indiferente o gesto
simbólico que Cristo e a Igreja escolheram para um sacramento: a imersão na água,
a unção com óleo, a imposição das mãos”332. A pergunta poderia estender-se ainda
mais: “Não descuidamos em grande parte deste aspecto de refeição, ao longo dos
séculos, ao celebrar este sacramento da Eucaristia?”333.
Somente tomando as categorias bíblicas e antropológicas que estão na base
da Eucaristia poderemos entendê-la no seu contexto original e mostrar a sua
novidade, iluminando a nossa perspectiva da deificação.
Visto que o NT e a interpretação da Tradição da Igreja nos afirmam que
Cristo, na última Ceia, instituiu o Sacramento do seu Corpo e Sangue, como Páscoa
nova, imolado em memória da passagem (Páscoa) de Cristo deste mundo para o
Pai, resta-nos ver em que consiste a Páscoa real, ou seja: ver o evento histórico-
salvífico de Cristo como celebração ritual do sacramento da Eucaristia334.

1. A Páscoa

Os traços de “evolução” da páscoa nos ajudam na compreensão da


Eucaristia, segundo a nossa perspectiva, pois na páscoa sempre se contempla um
fato-evento, a celebração e a ação de graças a Deus pelas suas obras que visam à
deificação humana. Vejamos. Originalmente, a páscoa era a festa da primavera,
ligada às primeiras espigas de cevada e à oferta dos pães ázimos; portanto, origem
agrícola: o fato era a colheita que se oferecia a Deus, celebrando e comendo; sofreu
com o passar do tempo a transferência para o sacrifício de animais; até chegar à

Aliança irrevogável de Deus com a humanidade expressada, em Jesus Cristo, em plenitude. Nova é
a expressão que não haverá mais necessidade de outra expressão. Novo é o simbolismo que Jesus
sintetizou de uma vez por todas com a entrega de seu corpo e sangue dado em refeição eucarística.
Pelo novo rito Jesus celebrou a plenitude da Aliança Eterna que deifica a humanidade.
332
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 35.
333
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 36. Para que haja de fato uma revalorização dos sinais do
pão e do vinho, dever-se-ia revalorizar a categoria “refeição”: o comer juntos na celebração.
334
Cf. MARSILI, S. A Eucaristia: teologia e história da celebração. In Anámneses. III. 2ed. São Paulo:
Paulus, 1987. p. 146.
- 107 -

celebração memorial de um evento: libertação do Egito; atingindo sua plenitude na


páscoa de Cristo e, nela, a nossa páscoa.
Se nós estamos diante de uma categoria que sofre “evolução”, em nome da
honestidade intelectual devemos conhecer a estrutura e, sobretudo, o sentido
teológico-espiritual da ceia da páscoa judaica335 na qual se origina a páscoa cristã.
“A ceia pascal dos judeus é, junto com as refeições com Jesus, antes e depois de
sua páscoa, a chave mais próxima que preparou o sentido da Eucaristia para a
primeira comunidade. Uma chave que abarca todas as outras” 336. Ao depararmos
com a ceia pascal judaica devemos investigar as origens de suas festas.

A páscoa é a festa principal dos judeus e tem raízes bem antigas e


complexas, já desde os tempos de Canaã e os patriarcas. Parece que
estas raízes devem ser buscadas em duas festas relacionadas com a
vida natural: a da imolação dos cordeiros na primavera, rito próprio dos
pastores nômades que oferecem a Deus as primícias de seus
rebanhos, e a festa dos pães ázimos, rito mais próprio dos povos
agrícolas, sedentários, que também oferecem a Deus os primeiros
frutos de suas colheitas (cf. Ex 12,15-20)337.

A Páscoa constitui uma primeira chave de leitura e interpretação para


mergulharmos no mistério da Eucaristia338. “Sendo a Páscoa o elemento religioso
fundamental do AT [...] rito memorial que, [...] constituía a perene atualização
daquela intervenção divina, devemos ter presente a Páscoa hebraica para
compreendermos a Páscoa de Cristo e da Igreja”339. Este rito memorial constitui
também o rito fundante do cristianismo, na pessoa de Jesus de Nazaré 340. Nele se

335
“A palavra “páscoa”, em grego pascha, vem do hebraico pesah que parece significar “coxear,
saltar, passar em cima”; talvez uma alusão a algum salto ritual e festivo dos povos mais primitivos,
mas que bem cedo, com a transformação que a festa sofreu em Israel – do agrícola e cósmico ao
histórico e salvífico -, passou a referir-se ao fato de que o Senhor ‘passou de largo’ pelas portas dos
israelitas no último castigo infligido aos egípcios (a décima praga), e mais tarde passou a referir-se à
passagem do Mar Vermelho e à travessia da escravidão à liberdade”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia.
Op. cit. 46.
336
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 45.
337
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 46.
338
A Páscoa pode ser tomada também como chave de leituras e interpretação de todas as Escrituras.
Para o AT temos a Páscoa judaica e para o NT a Páscoa de Cristo.
339
MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses. III. Op. cit. p.138.
340
“Como se pode dizer de Jesus de Nazaré que ele é a Palavra de Deus feita carne, da sua
humanidade se poderia dizer que é o homem vindo a pronunciar a perfeita ‘bênção’, aquela na qual
todo o humano se oferece a Deus que fala, com uma resposta perfeita. A Palavra divina encontra na
vida humana de Jesus a sua perfeita realização criadora e salvadora. A perfeita benção, que Jesus
pronunciará, se cumpre no ato supremo da sua existência, a cruz”. NICOLAS, J-H. Sintesi Dogmatica:
Dalla Trinità allaTrinità. V. II. La Chiesa e i Sacramenti. Città Del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana,
1992. p.309.
- 108 -

cumpre todas as bênçãos do AT: “cumprimento da salvação operada por Deus (com
a morte e ressurreição de Jesus) e, ao mesmo tempo, resposta perfeita do homem
ao dom de Deus”341.
A Páscoa cristã, entretanto, não seguiu um ritmo anual como a páscoa
judaica, mas semanal: o Domingo, o dia do Kyrios glorioso. Aqui, aparece uma
novidade que se acrescenta à Tradição. Embora os cristãos ainda continuem
freqüentando o templo e a sinagoga eles começam também a se reunir em casas
particulares, ainda que eles estejam no ambiente judaico, no qual se deve buscar o
conceito de sacramento memorial e não em outros ambientes culturais342, os
cristãos descobrem uma nova razão para celebrar a páscoa.

A comunidade cristã via na Eucaristia “algo mais do que uma refeição


fraterna normal”. Mas nestas, celebradas no domingo, trata-se da “ceia
do Senhor”, na qual entram em “comunhão com o corpo e sangue do
Senhor”, e na qual, como aponta o episódio de Emaús, se dá o
encontro e o reconhecimento da presença viva do Ressuscitado343.

A Páscoa indicava inicialmente a passagem de Deus para libertar o povo (Ex


12). Com o tempo integrou o significado de passagem do povo da escravidão à
libertação. Libertação é o termo teológico que interpreta a história da salvação
prometida por Deus aos homens, realizada na saída da escravidão do Egito,
coroada na Aliança do Sinai, pela qual o povo de Israel tornou o Povo de Deus, uma
“nação santa e reino sacerdotal”344. Na base desta ação salvadora de Deus os
profetas irão anunciar uma nova páscoa messiânica que terá seu cumprimento na
pessoa de Jesus: “Cristo, nossa páscoa, foi imolado” (1Cor 5, 7-8; Pref. da Páscoa I.
In MR. p. 421345); Cristo é a nova páscoa que “passa deste mundo ao Pai” (Jo 13,1).
Cristo, porém, antes de ter “dado o seu corpo” e “derramado o seu sangue” pela
redenção da humanidade instituiu, sacramentalmente, o memorial desse banquete

341
NICOLAS, J-H. Sintesi Dogmatica... Op. cit. p. 309.
342
“A liturgia cristã tomou deste universo mais elementos do que se possa imaginar, e que somente
uma ignorância obstinada pode esconder. Quando se pensa no enorme esforço de Odo Casel em
procurar os antecedentes do mistério do culto cristão nos ritos pagãos mais incompatíveis, e o pouco
interesse que ele demonstrou para com os antecedentes judaicos menos contestáveis, a gente se
pergunta como foi possível, que uma pessoa de espírito tão aberto, tenha sido pouco acessível a
certas evidências”. DI SANTE. Liturgia Judaica... Op. cit. p. 248.
343
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 29.
344
Os cristãos serão deificados pelos Sacramentos. Cf. MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses.
III. Op. cit. p.138.
345
PAULO VI. Missal Romano (MR.). 4ªed. São Paulo: Paulus, 1992.
- 109 -

de imolação na Eucaristia: “a Eucaristia constitui o ‘memorial’ desse banquete e


dessa imolação, através do qual se atualiza a grande passagem de Cristo deste
mundo para o Pai e o ‘êxodo’ de salvação se renova em nós e por nós” 346.
Este sentido de “passagem” é que permaneceu aplicado à paixão e morte de
Jesus que “passa” pela ressurreição à glória: “passa da morte à vida”. Jesus
“morrendo, destruiu a morte, e, ressurgindo, deu-nos a vida” (Pref. da Páscoa I. In
MR. p. 421). Para tornar sacramento este acontecimento, Jesus, tomou o pão e
identificou-o com o seu corpo; igualmente identificou o vinho com o seu sangue: “Ele
é o verdadeiro Cordeiro” (Pref. da Páscoa I. In MR. p. 421) a se entregar, dando-nos
o seu Corpo e Sangue e sacramento.
No tempo de Jesus, pode-se pensar que o desenrolar da ceia pascal judaica
se dividisse em quatro partes, assim reconstituída a partir da michiná347: O qiddush
(santificação: benção do primeiro cálice de vinho), a haggadah (relato, homilia sobre
a ação de Deus na história), a birkat há-mazon (ação de graças depois da refeição e
bênção do terceiro cálice de vinho) e o hallel (salmos de louvor e ação de graças)348.

O AT, a cultura judaica e também a de outros povos vizinhos nos dão


chaves para entender melhor o mistério cristão e, em concreto, a
Eucaristia. [...]. Há certa continuidade de linguagem [...] mas também
há uma profunda descontinuidade. O que vemos na Eucaristia é algo
tão novo que é difícil poder afirmar uma influência determinante em
todos estes paralelos349.

Nesta evolução bíblico-teológica350 da Páscoa podemos encontrar, em linhas


gerais, a nossa deificação: Deus sempre procurou, num certo sentido, estabelecer

346
ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé... Op. cit. p. 293.
347
“O problema é que nem todo este desenvolvimento é igualmente antigo. Há dúvida se alguns de
seus elementos pertenciam à ceia pascal no tempo de Cristo ou se foram acrescentados depois. Os
documentos sobre a ceia e sua estrutura atual são todos posteriores a Cristo. A fonte de nosso
conhecimento é o tratado Pesahim da Michiná. Ultimante, Manns mostra como a haggadah [...] não
reflete o que se dizia no tempo de Cristo, mas são textos posteriores. Mais ainda: o autor vê em
muitos destes textos a influência de um espírito claramente anti-cristão. Parece que aquelas
orientações que os cristãos haviam assumido e aplicado a Jesus como Messias, embora fossem bem
tradicionais entre os judeus, são ignoradas voluntariamente, para que não haja confusão”.
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 48-49.
348
A Birkat ha-mazon pode ser uma referência para a estrutura do ritual da Eucaristia. Cf. DI
SANTE, C. Liturgia Judaica: fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004. p. 159-168.
349
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 51-52.
350
Este fato histórico será “celebrado e ritualizado” pelo Povo Judeu. A palavra “Páscoa” vai assumir
duas dimensões de um único evento: o fato histórico libertador e a celebração ritual do mesmo fato,
enquanto memória da ação de Deus. Cf. MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses. III. Op. cit. p.139.
É celebrado com o sacrifício do cordeiro e uso dos ázimos para perpetuar a recordação da libertação
como um “monumento”. (cf. Ex 12-13). Encontramos, portanto, duas categorias fundamentais desta
- 110 -

aliança de comunhão que pudesse deificar os homens: primeiro inspirando-os a lhes


oferecer os frutos da terra; depois pela memória da libertação de Israel da
escravidão; por fim, sacramentalmente, no mistério do Filho Jesus, que celebramos
na Eucaristia. Na páscoa de Cristo, temos a nossa páscoa. Em Cristo, a Igreja pode-
se dizer que é o novo Povo Deus, eleito e constituído para ser uma Nação Santa,
para lhe prestar culto real em sacramento que constrói o Reino de Deus no mundo
em antecipação escatológica.

1.1 O Mistério da Encarnação na Páscoa

No mistério da Páscoa de Cristo encontramos as razões do mistério da


encarnação de Jesus. Podemos viver o mistério da encarnação como passagem de
Deus em meio aos homens pela qual os torna participantes351, por graça, de sua
natureza, que muda a nossa natureza. E assim rezamos: “Ó Deus, o sacramento
que recebemos [...] santifique nossos pensamentos e desejos e nos torne
participantes da natureza divina” (Odc 352. Comum de Santos e Santas. 3. In MR. p.
773). Somente uma natureza aberta à ação do Espírito acolherá o mistério da
Páscoa como mistério de Deus encarnado:

O mistério da Páscoa é um mistério novo e antigo, eterno e transitório,


corruptível e incorruptível, mortal e imortal. É mistério antigo em
relação à Lei, novo em relação à Palavra encarnada; é transitório na
sua figura, eterno pela graça; é corruptível pela imolação do cordeiro,
incorruptível pela vinda do Senhor; é mortal pela sua sepultura na
terra, imortal pela sua ressurreição de entres os mortos353.

celebração ritual: a memorial e o sacrifício. Assim, para a atualização de um evento fundante,


“memorial”, se celebra, em rito, imolando o “cordeiro” em sacrifício. “Pelo fato de ser um rito memorial,
a Páscoa é essencialmente um rito destinado a “reatualizar” em todo o seu valor o acontecimento ao
qual se refere. [...]”. MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses. III. Op. cit. p.145. O rito tem esta força
de trazer ao presente um evento “passado” e pela sua lógica lançar o presente ao “futuro”. O rito, na
celebração, apresenta o passado e o futuro. Por isso ele tem poder simbólico de uma realidade,
tornando-a figurativa.
351
“[...] Fez-se homem do nosso gênero, para nos podermos tornar consortes da natureza divina. A
fonte de vida que tomou no seio da Virgem, pô-la na fonte do batismo; deu à água o que tinha dado a
sua Mãe: porque o poder do Altíssimo e a sombra do Espírito Santo, que fez com que Maria desse ao
mundo o Salvador, essa mesma faz que a água regenere a quem crê”. PAPA LEÃO MAGNO.
Sermões para o Natal. 5. In Antologia Litúrgica... Op. cit. p. 1021.
352
Odc. Oração depois da Comunhão.
353
MELITÃO DE SARDES. Sobre a Páscoa. In Antologia Liturgica. Op. cit. p.152.
- 111 -

A Páscoa de Cristo pode ser celebrada pela Igreja expressando em suas


orações o mistério da Encarnação do qual participamos e somos deificados. A
deificação humana consiste em contemplar e receber com alegria Jesus encarnado,
o Redentor. Para isto, o Pai reacende em nós a jubilosa esperança da salvação, que
no mistério do Natal se torna salvação sacramental pelas oferendas da Eucaristia,
corpo e sangue de Jesus. Estas oferendas nos tornam mais fervorosos para a
acolhida do mistério da Encarnação. Ao recebemos o alimento e a bebida que é o
Filho em sacramento somos renovados na deificação.
A nossa deificação consiste em participar da divindade de Jesus que se uniu
a nossa humanidade354 pela Encarnação (cf. Oso355. Missa da Noite de Natal. In MR.
p. 152). Ele é luz verdadeira que nos ilumina no sacramento do Batismo e nos
antecipa a plenitude do mistério que gozaremos no céu do seu eterno convívio. Na
pessoa de Jesus as oferendas eucarísticas assumem o sentido pleno de intercâmbio
do divino e do humano: o céu e a terra trocam os seus dons, pois só podemos nos
oferecer ao Pai deificados em Cristo. A passagem de Deus em nossa humanidade
neste mistério do Filho que invade o nosso coração é assim rezada pela Igreja: “Ó
Deus onipotente, agora que a nova luz do vosso Verbo Encarnado invade o nosso
coração, fazei que manifestemos em ações o que brilha pela fé em nossas mentes”
(Odd356. Natal do Senhor: Missa da Aurora. In MR. p. 153). O Verbo Encarnado
invade o coração humano para transformá-lo: nisto consiste a iniciativa de Deus, a
graça deificante, iniciada no mistério do Natal e coroada na ressurreição e
glorificação do Verbo. A este mistério acorremos na Eucaristia, com as oferendas
dos frutos da terra, que nos trazem ó que é divino e nos dá a graça de crescer no
amor de Jesus encarnado.

A deificação é a participação na divindade de Jesus que assumiu a nossa


humanidade357. Em Jesus a humanidade tem restabelecido em sacramento a

354
“Depois que a carne foi deificada (pela encarnação de Jesus) e a natureza humana teve por
hipóstase o mesmo Deus, o muro (a separação) torna Miron (que é a comunhão do Espírito) e aquela
dessemelhança não teve mais lugar, porque uma só hipóstase é Deus e ele assume o homem,
eliminando assim a distância entre a divindade e a humanidade com o ser, fim comum de uma e de
outra natureza [...]. Deificada a nossa natureza no corpo salvífico, não se tem mais nenhuma divisão
entre Deus e o gênero humano, porque de agora em diante não se tem mais para nós nenhum
impedimento de participar às suas graças, exceto o pecado”. CABASILAS, N. La Vita in Cristo. 4ªed.
Roma: Città Nuova, 2005. p. 168.
355
Oso. Oração sobre as oferendas.
356
Odd. Oração do dia.
357
“Não se trata da ordem da natureza, mas da excelência da graça. Aliás, mesmo no que diz
respeito à geração, nem sempre se observa a ordem da natureza. Confessamos que Cristo Senhor
- 112 -

dignidade perdida pelo pecado. E assim celebramos o Natal de Jesus


caracterizando a passagem do Filho em nossa natureza: “Ó Deus, que
admiravelmente criastes o ser humano e mais admiravelmente restabelecestes a
sua dignidade, dai-nos participar da divindade do vosso Filho, que se dignou assumir
a nossa humanidade” (Odd. Natal do Senhor: Missa do Dia. In MR. p. 154). Nesta
“páscoa”, nascimento de Jesus, a humanidade é deificada358. Por isso Ele nos
reconcilia com Pai, deixando-nos a Eucaristia como plenitude do culto divino que nos
alimenta da vida divina e da imortalidade: “Ó Deus de misericórdia, que o Salvador
do mundo hoje nascido, como nos fez nascer para a vida divina, nos conceda
também sua imortalidade” (Odc. Natal do Senhor. In MR. p. 154).

Celebramos a nossa imortalidade na ressurreição de Cristo. O Pai


ressuscitando o Filho unigênito, encarnado, abre para nós as portas da eternidade.
Neste mistério somos renovados pelo mesmo Espírito para celebrarmos a
ressurreição de Cristo da qual participamos, por graça, e que nos da vida nova. “Ó
Deus, por vosso Filho unigênito, vencedor da morte, abristes hoje para nós as portas
da eternidade. Concedei que, celebrando a ressurreição do Senhor, renovados pelo
vosso Espírito, ressuscitemos na luz da vida nova” (Odd. Domingo da Páscoa. In
MR. p. 295). No sacrifício de Cristo a Igreja nasce, renasce e se alimenta dos
sacramentos pascais, sobretudo do Batismo e da Eucaristia que nos deificam com a
luz da ressurreição.

A Igreja expressa no prefácio da oração eucarística II este estreito vínculo


entre a encarnação do Verbo e da realidade de sua cruz e ressurreição: “Ele é a
vossa palavra viva [...]. Ele é o nosso Salvador e Redentor, verdadeiro homem,
concebido do Espírito Santo [...]. Ele [...] estendeu os braços na hora da sua paixão,
a fim de vencer a morte e manifestar a ressurreição” (OE 359. II. Pref. In MR. p. 477).

foi gerado pela Virgem e, com isso, negamos a ordem natural, pois Maria não concebeu de um
homem, mas recebeu (o Verbo) em seu seio, por força do Espírito Santo, como diz Mateus:
Encontrou-se grávida por virtude do Espírito Santo (Mt, 1,18). Portanto, se o Espírito Santo, descendo
sobre a Virgem, realizou a concepção e a obra da geração, não se pode duvidar de que, descendo
sobre a fonte, ou seja, sobre os que recebem o batismo, realize na verdade a sua consagração”.
AMBRÓSIO DE MILÃO. Os Mistérios. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 538.
358
“A festa de hoje renova para nós o sagrado início da vida de Jesus, nascido da Virgem Maria. E
enquanto adoramos o nascimento do nosso Salvador, celebramos realmente também o nosso
nascimento. Efetivamente, a geração de Cristo é a origem do povo cristão; o natal da Cabeça é
também o natal do Corpo”. PAPA LEÃO MAGNO. Sermões para o Natal. 5. In Antologia Litúrgica...
Op. cit. p. 1022.
359
OE. Oração Eucarística.
- 113 -

No mistério da Cruz e da Ressurreição Cristo inaugura o Reino do Pai no qual nos


ingressamos pela graça e acolhemos pela nossa adesão.
O último episódio do êxodo é o ingresso na terra prometida que nos
apresenta paradoxalmente ao mesmo tempo a ação de Deus intervindo em favor do
povo e a longa batalha do povo de Israel para conquistar a terra prometida. Isto nos
mostra um duplo aspecto da páscoa cristã como dom de Deus no qual o Cristo
triunfou definitivamente sobre o mal e a morte (Lc 22,52), mas também a adesão da
pessoa e sua luta para vencer pessoalmente com a ajuda e a presença de Deus o
pecado e a morte.
Nisto consiste a necessidade da recepção e vivência dos sacramentos:
sobretudo do Batismo e da Eucaristia, memória de nossa união e participação
sacramental no Cristo, nossa vitória. “A eucaristia é o ‘sinal’ da vitória e do combate
do cristão [...] o ‘dom’ que o Pai oferece à Igreja, para que cada batizado esteja em
condições de triunfar sobre o pecado e a morte, tomando posse assim da graça e do
reino da salvação”360.

2. A Aliança

O segundo tema bíblico fundamental para o pleno entendimento da Eucaristia


é o tema da Aliança. A Aliança é uma das obras de Deus revelada nas Escrituras.
Deus faz aliança com Noé, Abraão, Moisés, Josué; renova para libertar o povo do
exílio da Babilônia, anuncia pelos profetas (especialmente Jeremias e Ezequiel) e
consuma em plenitude no sangue de Jesus Cristo.
Na morte e ressurreição de Cristo culmina o acontecimento pascal do NT.
Este evento – Cristo - deu sentido de realidade plena e definitiva à libertação do
Egito e às alianças que o precederam. A entrega de Jesus, portanto, é o momento
no qual a vontade salvadora do Pai atingiu o “cumprimento” e atualização do
acontecimento-Cristo identificado com a pessoa de Jesus. O Emanuel (Deus
conosco Is 6,6), enviado do Pai, viveu para o cumprimento do acontecimento Pascal.
Por isso, a Encarnação e a Vida de Jesus culminaram na sua passagem (Páscoa)

360
ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé... Op. cit. p. 295.
- 114 -

para o Pai, e na sua Ascensão, nos levando consigo, inaugurando a nossa


Páscoa361.

A morte de Cristo, “cumprindo” todo o significado do AT, nascido da


libertação pascal e nela enraizado, é a Páscoa do NT, “cordeiro pascal
imolado” (1Cor 5,7), como “vítima imaculada no Espírito Santo” (Hb
9,14), “dada em sacrifício” pelos pecados do mundo (Mt 20, 28; Mc
10,45; Jo 1,29.36; Rm 3,24s; Ef 5,25; Gl 2,20 etc)362.

Na celebração eucarística as palavras sobre o pão e o vinho adquirem


profundo sentido de auto-doação sacramental de Cristo: a sua entrega em pão
(corpo) e vinho (sangue) torna fonte de bênção escatológica e alimento de
comunhão com Ele. Agora, a nova Aliança é selada com o sangue de Cristo,
cumprindo todas as promessas na cruz, na qual se dá a nossa participação
sacramental363.

2.1 Aliança Memorial

Possuímos três tipos de textos364 referentes à Aliança que Deus faz conosco
em seu Filho Jesus e que proclamamos na celebração da Eucaristia: a) As
narrativas365 da instituição366 da Eucaristia: Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,15-20;

361
Pois nossa Páscoa, Cristo, foi imolada (1Cor 5,7). Cristo, enquanto cordeiro imolado, cumpriu
todas as Escrituras (cf. 24, 44-46). No Ap 15,3 temos a visão pascal de Cristo-cordeiro, situando-a
diretamente no fundo dos acontecimentos da libertação do Êxodo (Ex 15,1-21), no qual se canta o
cântico de Moisés e o cântico do Cordeiro. Cf. MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses. III. Op. cit.
p. 150.
362
MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses. III. Op. cit. p. 150.
363
“Todo o cenário entende-se no marco de uma relação interpessoal entre Cristo e os discípulos, e
em seu gesto de doação e participação: Jesus antecipa e oferece-lhes a comunhão em sua nova
aliança da cruz através da Eucaristia, pensando também no futuro. A morte não vai romper os laços
de comunhão: ao contrário, tornará possível uma comunhão mais profunda e universal pela nova
presença de Cristo e a atualidade perene do acontecimento da cruz para a comunidade escatológica,
à qual Cristo promete a doação de si mesmo por meio dos gestos eucarísticos. Cada Eucaristia nos
tornará partícipes dos bens escatológicos do Reino”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 83.
364
Não é nossa preocupação, embora seja importante, entrar em análise exegética comparativa dos
relatos da instituição da Eucaristia. Basta constatarmos, aqui, a sua importância, no contexto litúrgico.
365
“É dado universalmente conhecido e aceito que a nossa Eucaristia tenha o seu início e que
encontre as suas linhas essenciais no gesto que Jesus fez na última ceia com os seus discípulos e a
respeito do qual nos chegaram quatro narrações diferentes, que se situam em duas linhas paralelas:
Marcos-Mateus e Paulo-Lucas”. VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p.395.
Importante para a compreensão teológica da Eucaristia é o capítulo sétimo: A eucaristia, memorial da
morte de Cristo, de MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses. III. Op. cit. p. 159-202.
366
“Tendo declarado que desejara ardentemente comer a páscoa, como sua, pois é indigno que Deus
desejasse algo alheio, tendo tomado o pão e distribuindo-o aos seus discípulos, fê-lo seu Corpo
- 115 -

1Cor 11,23-25; b) A promessa da Eucaristia presente no Evangelho de João,


sobretudo em Jo 6; c) As refeições celebrativas (fração do pão) no cristianismo
primitivo: Mt 14,9; 15,36; Mc 6,41, 8,6; Lc 9,16; 24,30-35; Atos 2,42-46; 20,7-11;
27,35; 1Cor 10,17).
Assumindo como plausível que estes relatos não tiveram como preocupação
primeira o ponto de vista histórico, mas a “celebração litúrgica” da Morte e
Ressurreição de Jesus pela comunidade, como nova Aliança, então, a intenção
litúrgica se aflora, à primeira vista, nestes relatos367. Por isso podemos pensar que
estes relatos foram escritos sob a influência da deificação: Aliança de Deus com a
humanidade; pois, primeiro, os discípulos celebraram e depois escreveram; ou seja,
a experiência e vivência da fé, a comunhão com o Senhor, são anteriores aos
registros dos fatos.

Os relatos sobre a instituição foram transmitidos como norma para a


celebração da Eucaristia nas comunidades cristãs (roteiro litúrgico).
Sua formulação não é independente do culto da comunidade. Do
ponto de vista histórico apresenta lacunas. A principal preocupação da
liturgia não é o relato histórico sobre o que aconteceu na última ceia
de Jesus, mas a celebração da Eucaristia na base do que Jesus fez.
[...]368.

Se estes relatos têm como finalidade primeira a celebração litúrgica, sem


diminuir em nada as informações históricas, estamos diante de uma chave de leitura
das Escrituras e do NT de fundamental importância para a originalidade da liturgia
eucarística, que chega até nossos dias, fazendo memória do Senhor Jesus. E
poderíamos pensar ainda se não seria esta exigência litúrgica a dar origem a toda
Escritura do NT? Não seria talvez essa a razão pela qual no Evangelho de João, não
se relata a instituição (Jo, 6), mas retoma uma nova chave de interpretação a partir
da catequese eucarística, expondo o sentido da entrega de Jesus pelo gesto do
lava-pés (Jo, 13) até culminar com a oração sacerdotal (Jo, 17)? Nesta seqüência
João expõe todos os elementos necessários à compreensão de que tudo será
coroado com a Eucaristia.

dizendo: Este é o meu Corpo, quer dizer, ‘figura do meu Corpo’. Mas não seria figura, se não fosse
Corpo verdadeiro [...]”. TERTULIANO. Contra Marcião. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p.217.
367
Não sejamos ingênuos de não considerar outras preocupações do NT, como cristológica,
eclesiológica, missionária, o que tentamos afirmar é que foi o evento marcante da Morte e
Ressurreição de Jesus, celebrado sempre a partir de sua origem e instituição que está na base das
Escrituras do NT.
368
STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 140.
- 116 -

Dos relatos documentados por Lucas nos Atos dos Apóstolos sobre as
refeições das comunidades primitivas se depreende que a liturgia cristã nasce do
gesto de “partir o pão”, uma das expressões da Aliança, ritualizando a refeição
judaica (cf. Atos 2,42.46; 20,7.11). Destes escritos se depreende também o caráter
duplamente sagrado do rito litúrgico, tomar o pão e reparti-lo (rito da refeição), sendo
atribuído a esse gesto simbólico o valor agregado de sacramento, símbolo da
entrega de Jesus acompanhado de suas razões e mistérios.
Numa linguagem sacramental de matéria e forma, temos como matéria o
gesto e a entrega de Jesus; e a forma, o rito litúrgico que se desencadeou deste
gesto, acompanhado do imperativo: Fazei isto em minha memória, mantido pela
Tradição da Igreja. Pois este imperativo adquire força no ato da celebração e não
independente dela. É na celebração eucarística que renovamos a Aliança de Deus
conosco, em Cristo. Por isso o que Jesus nos deixou é mais um convite a celebrar, e
não tanto o fato de discorrer sobre ele de maneira independente. Ou seja, a frase
imperativa é fundamento de celebração não de especulação. Por isso, as narrações
referentes à instituição da Eucaristia não deveriam ser tomadas como “relatos
históricos dos fatos”, mas como influência do uso litúrgico, diferenciadas conforme
as exigências das comunidades cristãs primitivas369.
Há, portanto, sempre a primazia do evento celebrado, ao registrado do fato.
Somente a celebração litúrgica garante uma “verdade memorial”, posteriormente
escrita. Ou seja, quando se escreve já está sedimentada a prática litúrgica. O
mesmo se pode dizer em relação à formulação trinitária 370; quando ela surge escrita,
há muito já está em uso nas celebrações. Assim, podemos afirmar que a
comunidade cristã primitiva entendeu bem o convite e a ordem de Jesus, deixando
este legado litúrgico-celebrativo que dispomos das “tradições litúrgicas que
conservaram da última Ceia de Jesus apenas aquilo que se passava na Eucaristia
celebrada pela comunidade primitiva”371.

369
Cf. VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p.395. “A formulação litúrgica
assumida pela narração em todas as fontes – tragam ou não a ordem celebrativo-memorial de Cristo
– mostra que a última Ceia de Cristo encontrou logo na ‘Ceia do Senhor’, celebrada desde o princípio
pela comunidade, uma ‘imitação’, e que esta só podia ser feita ‘em memória’ de Cristo”. MARSILI, S.
A Eucaristia. In Anámneses. III. Op. cit. p. 161.
370
Houve uma evolução desta fórmula até chegar a sua definição nos Concílios do século IV (Nicéia
325 e Constantinopla 381). Antes porem os Padres já fazia uso na celebração litúrgica, ela já estava
consolidada na mentalidade e na compreensão.
371
NICOLAS, J-H. Sintesi Dogmatica... V. II. Op. cit. p. 309.
- 117 -

A última Ceia, portanto, é o marco da nova e eterna Aliança do Pai no Filho e


do Filho no Pai para a deificação sacramental da humanidade: origem do Novo Povo
de Deus no Sangue de Cristo. O cordeiro pascal imolado, “vitima imaculada no
Espírito Santo” (Hb 9,14), se dá uma vez por todas (Hb 9, 26.28; 10,10.14). Por isso,
o sacrifício pascal de Cristo na cruz funda a nova Aliança (Hb 8,6-13; 9,4-10), selada
no seu sangue. E Cristo, mesmo, torna o “novo” mediador (Hb 8,6;9,15;12,24)372,
desta “Aliança” que é melhor (Hb 7,22), porque tem promessas melhores (Hb 8,6) e
foi selada com o sangue de um cordeiro verdadeiramente imaculado (Hb 8,7; 1Pd
1,19).
O ritual que se cumpre na celebração da Aliança é geralmente o rito com
sangue. Assim encontramos Abraão imolando animais e dividindo-os em duas
partes para que o Senhor possa consumi-las por meio do símbolo do fogo (Gn 15,9-
18); Moisés, depois de ter oferecidos holocaustos, aspergindo com sangue o altar e
o povo, proclamando: “Este é o sangue da aliança que o Senhor fez conosco,
mediante todas essas cláusulas” (Ex 24,5-8). O rito assume uma força vital pela
simbologia que carrega, pois o sangue é a vida, a aliança de sangue assume a
aliança de vida entre as partes. Por isso a deificação se dará pela aliança que Deus
se oferece a nós no sangue de seu Filho Jesus.
Na última ceia, Jesus se refere explicitamente à aliança do Sinai: “este é o
sangue da aliança que o Senhor faz convosco” (Ex 24,8), para proclamar que a nova
aliança prometida pelos profetas se realiza no seu sangue, no sangue de sua morte
na cruz: “Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado por muitos”
(Mc 14,24; cf. Mt 26,27); “Este cálice é a nova aliança em meu sangue, que é
derramado por vós” (Lc 22,20; cf. 1Cor 11,15). O sangue da cruz é a nova e eterna
aliança realizada pelo Pai em Cristo Jesus (cf. 1Pd 1,18s; Hb 8,6-13). Eis por que
Jesus é mediador da nova aliança, uma nova promessa, a herança eterna (cf. Hb
9,15-28; 10,11-18; 12, 18-24)373.
O Servo do Senhor é mediador da Aliança (Is 42,6). Encontramos em Mt e Mc
a palavra Aliança sobre o cálice. E em Lc e Paulo a designação de Nova Aliança que
372
Cf. MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses. III. Op. cit. p. 156.
373
As possíveis referências à Eucaristia que encontramos na Carta aos Hebreus, pela terminologia
ou conteúdo nos ajudam a compreender a relação entre Cristo e o seu sacrifício como nova Aliança:
Em Hb 2,14, a carne e o sangue; Hb 6,4-5, os que foram iluminados (batismo) e saborearam o dom
celeste (Eucaristia); Hb 9,2, alusão aos pães da preposição do AT; Hb 9,9-11, oposição entre as
comidas e sacrifícios do AT e os do NT; Hb 10,29, o sangue da aliança; e em Hb 13,9-16, opõe-se
aos costumes judaicos a nova maneira cristã: somos fortificados pela “graça” e não pelos “alimentos”
dos judeus que não trazem proveito nenhum.
- 118 -

tem como base Jr 31,31-34; Is 54,10; 55,3; 61,8; Ez 16,60-63; 34,25; 37,21-28. Já
Mt e Mc formulam a palavra sobre o cálice na base de Ex 24,8 Aliança no Sinai; a
plenitude e cumprimento da Aliança do Sinai se dão na pessoa de Jesus Cristo: a
sua entrega é o ponto de coroamento. Ao celebrarmos a Eucaristia celebramos a
entrega de Jesus, a realização do Reino, a esperança da humanidade em
banquetear com o próprio Deus: na Eucaristia se realiza em antecipação a nossa
deificação, razão pela qual Deus selou a Aliança conosco em Jesus374.

2.2 Aliança Sacramental

Na última ceia, Jesus antecipa sacramentalmente o seu sacrifício redentor,


dando o seu “corpo” e derramando o seu “sangue” como sinais da nova aliança
escatológica realizada nele e com ele para toda a humanidade. O sangue de Cristo
é que dá a vida ao mundo (Jo 6, 54-56), nele está a vida dos que comungam: “Quem
come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele [...] aquele
que comer de mim viverá por mim” (Jo 6, 56-57).
O modo como João entende a Eucaristia é marcado pelo caráter peculiar da
sua teologia. Na base desta peculiaridade devemos buscar a compreensão deste
sacramento: a) O realismo da presença de Cristo; b) o usa dos termos “carne” e
“sangue”375 com referencia ao Verbo que se fez carne (cf. Jo1,14);c) A Eucaristia é
comida e bebida, para manutenção da “vida” e cumprimento do mandamento do
amor aos irmãos (cf. 1Jo 2,9-11; 3,10.14s; 4,8.20; 5,2)376. Por aquilo que realiza esta

374
“Cristo não apenas anuncia a salvação escatológica; ele a realiza; o Reino de Deus não é apenas
proclamado por ele como prestes a chegar; é inaugurado por sua presença e seus atos... A refeição
eucarística, cujo centro é Cristo, contém em si a realização de todas as expectativas do AT e o
começo da esperança escatológica”. STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit.
p. 143.
375
João não usa o termo “corpo” como os relatos da instituição. O termo “carne” define também a
encarnação (Jo 1,14). Contra as idéias gnósticas era preciso afirmar ao mesmo tempo a realidade da
“carne” e a divindade nela escondida. Assim, o “teólogo da Encarnação por excelência”, traça as
.
linhas que ligam a Encarnação à Eucaristia (Fl 2,7; 1Tm 3,16) . “O significado da Eucaristia como
sacrifício de expiação é formulado em estilo joanino (6,51b), recordando Is 53,12. “Os muitos” são
substituídos por “o mundo”; o perdão dos pecados, que salva o homem, é substituído pelo conceito
joanino de vida. A dádiva que é entregue é a carne e sangue do “Filho do Homem” (Jo 6,27,53). Em
Jo, o “Filho do Homem” é usado nos contextos sobre a morte e a subseqüente glorificação (Jo
3,14;12,34;12,23;13,31), sobre a providencia celeste e a volta para o céu (Jo 1,51;3,13;6,62), e sobre
sua função de Juiz (Jo 5,27). A morte expiatória fica em segundo plano; a glorificação ofusca a morte.
O efeito expiatório da Eucaristia, e com isso toda a noção de sacrifício, perde seu brilho diante da
efusão da vida e diante da ressurreição”. STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico.
Op. cit. p. 144.
376
Cf. STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 144.
- 119 -

participação sacramental num único sangue, numa única carne, formamos um só


corpo com Cristo (1Cor 10,16-17). Desta comunhão no corpo e sangue de Cristo
nasce a Igreja377, novo povo de Deus, selado na aliança do sangue de seu Filho. A
Eucaristia é a atualização desta Aliança de amor.
Os cristãos constituem o Novo Povo de Deus que nasce da Aliança de amor
em Jesus Cristo. A Igreja irá interpretação a Aliança nova e eterna de Jesus numa
dimensão cósmica, universal, para a deificação de toda a humanidade. De muitas
maneiras pedimos a Deus de entrar no seu Reino como se apresenta nas orações
da coleta dos formulários das Missas. Somos um povo deificado pela sua graça de
Deus. Dele recebemos o Espírito para construir o seu Reino e nele permanecermos.
Assim rezamos para celebrar o dia de Pentecostes: “Ó Deus, [...] santificais a vossa
Igreja inteira, em todos os povos e nações, derramai por toda a extensão do mundo
os dons do Espírito Santo [...]” (Odd. Domingo de Pentecostes. In MR. p. 318).
Esta Aliança se realiza de duas maneiras: tanto com a pessoa batizada
quanto com o Povo: a Igreja. As orações do rito da missa, então, expressam esta
realidade, às vezes, referindo à pessoa individual ou ao Povo enquanto Igreja, mas
sempre em referência ao Reino de Deus como realidade presente no mundo e
realidade escatológica que aguardamos: “Ó Deus todo-poderoso, concedei a vossos
fiéis o ardente desejo de possuir o reino celeste [...]” (Odd. 1º DTA. In MR. p. 129); O
povo espera a salvação: “Ó Deus de bondade, que vedes o vosso povo [...], dai
chegarmos às alegrias da Salvação e celebrá-las sempre com intenso júbilo na
solene liturgia” (Odd. 3º DTA. In MR. p. 131); Aguardamos todos os povos
estabelecerem a aliança com Cristo: “Deus eterno e todo-poderoso, esplendor dos
vossos fiéis, irradiai por todo o mundo a vossa glória, e manifestai-vos a todos os
povos no fulgor da vossa luz” (Odd. 2º DTN. In MR. p. 161); Os deificados na aliança
com Cristo o conhecem pela fé e aguardam o encontro face a face, assim rezamos
na solenidade da Epifania: “Ó Deus, que hoje revelastes o vosso Filho às nações,
guiando-as pela estrela, concedei aos vossos servos e servas que já vos conhecem
pela fé, contemplar-vos um dia face a face no céu” (Odd. Epifania do Senhor. In MR.
377
Referindo-se a celebração do Natal o papa Leão Magno escreve: “A festa de hoje renova para nós
o sagrado início da vida de Jesus, nascido da Virgem Maria. E enquanto adoramos o nascimento do
nosso Salvador, celebramos realmente também o nosso nascimento. Efetivamente, a geração de
Cristo é a origem do povo cristão; o natal da Cabeça é também o natal do Corpo”. PAPA LEÃO
MAGNO. Sermões para o Natal. 6. In Antologia Litúrgica. Op. cit. 4285. p. 1022.
- 120 -

p. 164); A aliança nos constitui filhos adotivos no Filho e isto rezamos ao Pai: “Cristo
batizado no Jordão, e pairando sobre ele o Espírito Santo, o declarastes
solenemente vosso Filho, concedei aos vossos filhos adotivos, renascidos da água e
do Espírito Santo perseverar constantemente em vosso amor” (Odd. Festa do
Batismo do Senhor. In MR. p. 165).
A nossa filiação adotiva é renovada a cada ano pela celebração da Páscoa e
do Tempo Pascal. Assim descobrimos a necessidade da celebração litúrgica para
nos mantermos deificados enquanto Povo: “Ó Deus [...] que reacendeis a fé do
vosso povo na renovação da festa da pascal, aumentai a graça que nos destes [...] o
batismo que nos lavou [...] e o sangue que nos redimiu” (Odd. 2º DTP. In MR. p.
303); o povo expressa a alegria desta renovação: “Ó Deus, que o vosso povo
sempre exulte pela sua renovação espiritual, para que, tendo recuperado agora com
alegria a condição de filhos de Deus, espere com plena confiança o dia da
ressurreição” (Odd. 3º DTP. In MR. p. 305); os filhos deificados aguardam a herança
eterna, o Reino de Deus: “Ó Deus, Pai de bondade, que nos redimistes e adotastes
como filhos e filhas concedei aos que crêem no Cristo a liberdade verdadeira e a
herança eterna” (Odd. 5º DTP. In MR. p. 308); como Igreja, somos membros de
Cristo e assim rezamos na Ascensão do Senhor: “Ó Deus todo-poderoso [...]. Fazei-
nos exultar de alegria e fervorosa ação de graças, pois, membros de seu corpo,
somos chamados na esperança a participar da sua glória.
A realidade do Reino de Deus é também uma construção dos batizados e
deificados em Cristo. Por isso durante os domingos do Tempo Comum a Igreja
celebra esta Aliança de Deus conosco “O Deus, atendei como pai às preces do
vosso povo; dai-nos a compreensão dos nossos deveres e a força de cumpri-los”
(Odd. 1º DTC. In MR. p. 345); suplica a paz para a Igreja: “Deus eterno e todo-
poderoso [...] escutai com bondade as preces do vosso povo e dai ao nosso tempo a
vossa paz” (Odd. 2º DTC. In MR. p. 346); suplica a paz e para o mundo: “Fazei, ó
Deus, que os acontecimentos deste mundo decorram na paz que desejais, e vossa
Igreja vos possa servir, alegre e tranqüila” (Odd. 8º DTC. In MR. p. 352); suplica a
proteção para a Igreja enquanto uma família de batizados: “Velai, ó Deus, sobre a
vossa família, com incansável amor; e, como só confiamos na vossa graça, guardai-
nos sob a vossa proteção” (Odd. 5º DTC. In MR. p. 349); pois é Deus quem nos
conduz com a sua graça e o seu amor: “Senhor, nosso Deus, dai-nos por toda a vida
- 121 -

a graça de vos amar e temer, pois nunca cessais de conduzir os que firmais no
vosso amor” (Odd. 12º DTC. In MR. p. 356);
O povo aguarda a sua herança após a libertação do pecado no mistério do
Filho: “Ó Deus, que pela humilhação do vosso Filho reerguestes o mundo decaído,
enchei os vossos filhos e filhas de santa alegria, e dai aos que libertastes da
escravidão do pecado o gozo das alegrias eternas” (Odd. 14º DTC. In MR. p. 358);
chegaremos a nossa herança pela restauração da criação em Cristo e conservado
por nós deificados: “Manifestai, ó Deus, vossa inesgotável bondade para com os
filhos e filhas que vos imploram e se gloriam de vos ter como criador e guia,
restaurando para eles a vossa criação, e conservando-a renovada” (Odd. 18º DTC.
In MR. p. 362).
A nossa esperança do Reino é certa, pois Deus é Pai e nele confiamos: “Deus
eterno e todo-poderoso, a quem ousamos chamar de Pai, dai-nos cada vez mais um
coração de filhos, para alcançarmos um dia à herança que prometestes” (Odd. 19º
DTC. In MR. p. 363); confiamos e cremos também no Cristo seu Filho: “Ó Deus, Pai
de bondade, que nos redimistes e adotastes como filhos e filhas, concedei aos que
crêem no Cristo a verdadeira liberdade e a herança eterna” (Odd. 23º DTC. In MR. p.
367); assim rezamos na festa da Transfiguração do Senhor como antecipação da
nossa esperança: “Ó Deus, que na gloriosa Transfiguração de vosso Filho [...]
manifestastes de modo admirável a nossa glória de filhos adotivos, [...] concedei-nos
compartilhar da sua herança” (Odd. Transfiguração do Senhor. In MR. p. 628).
A Aliança que o Pai realiza com a humanidade se expressa na celebração da
Eucaristia como realidade deificante oferecida no Filho, assim rezamos no prefácio
da missa do Crisma, na manhã de quinta feira santa: “Pela unção do Espírito Santo,
constituístes vosso Filho unigênito Pontífice da nova e eterna Aliança” (Pref. da
Missa do Crisma. In MR. p. 245); Em Jesus o Pai instituiu o sacrifício da Aliança:
“Ele, verdadeiro e eterno sacerdote, oferecendo-se a vós pela nossa salvação,
instituiu o Sacrifício da nova Aliança” (Pref. da Santíssima Eucaristia I. In MR. p.
439); esta Aliança pode ser rompida por nós, jamais é rompida pelo Pai: “Jamais nos
rejeitastes quando quebramos a vossa aliança” (OE. VII. In MR. p. 866); mas no
mistério da cruz torna um sinal permanente: “antes, porém, de seus braços abertos
traçarem entre o céu e a terra o sinal permanente da vossa Aliança, Jesus quis
celebrar a páscoa com seus discípulos” (OE. VII. In MR. p. 868). Temos assim o
- 122 -

dado que fundamenta a Aliança no Sangue do Cordeiro378: “o Sangue da Nova e


Eterna Aliança, que será derramado por vós e por todos” como se apresenta em
todas as Orações Eucarísticas. Nesta realidade celebrada: “manifestando a Aliança
do vosso amor” (OE. VI-A. In MR. p. 842), que a Igreja se alegra e celebra a sua
razão de ser Povo da Aliança, deificados no Amor do Pai.

3. O Sacrifício

A imolação do cordeiro é figura-símbolo da Páscoa: “figura de Cristo”379. O


sangue do cordeiro imolado preserva o povo e inaugura o seu êxodo. “Comendo
todos os anos o cordeiro pascal, os hebreus participavam de certo modo dos frutos
da primeira libertação”380. Junto à imolação, toma-se também o pão ázimo símbolo
de que chegara o tempo de Deus “passar” e as pressas se deve sair e colocar-se a
caminho para chegar à plena liberdade.
Jesus é o novo Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (Jo 1,29);
Jesus é o pão vivo que desceu do céu (Jo 6,51) para alimentar e conduzir a
humanidade ao Pai; Ele é o vinho novo que inaugura a alegria do Reino de Deus (Lc
22,18). Desse modo, quando, no momento de comer o cordeiro pascal, Jesus toma
o pão e o vinho, os abençoa e proclama “isto é o meu corpo, que é dado por vós” e
“este cálice é a nova aliança em meu sangue, que é derramado em vosso favor”, ele
mostra com evidência precisa que a sua morte na cruz constitui a imolação do
verdadeiro cordeiro, que salva a humanidade da condição de pecado e a introduz na
condição da liberdade dos filhos de Deus381.

Tendo-se o Unigênito oferecido a Si mesmo uma vez por todas em


sacrifício, e sendo isso suficiente para a salvação, já não é necessário
o sacrifício do cordeiro; mas o Salvador, ao chegar à sua Paixão, deu
o pão e o cálice como imitação do mais glorioso sacrifício, e com uma
378
“O sangue se apresenta, pois, como sinal de purificação e de comunhão, antecipando assim a
compreensão do ‘sinal’ do novo sacrifício através do qual o Pai cumprirá plenamente a realidade da
aliança no sinal do sangue do seu próprio Filho (cf. 1Cor 11,25-26). E será mediante a participação
neste sinal que continuará a constituir-se e a construir-se, também no tempo da Igreja [...] o ‘povo
novo estabelecido em comunhão total com o Pai na aliança nova no sangue do Filho e no Espírito’”.
SODI, M. Celebração. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 188.
379
JUSTINO. Diálogo com Trifão. In Antologia Litúrgica... Op. cit. p. 143. Assim escreve Orígenes
referindo-se ao sacrifício de Isaac: “O Senhor havia de providenciar o cordeiro na pessoa de Cristo”.
ORÍGENES. Homilias sobre o Gênesis. In Antologia Litúrgica... Op. cit. p. 251.
380
ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé... Op. cit. p. 293.
381
Cf. ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé... Op. cit. p. 293.
- 123 -

oração inefável fez do pão o seu Corpo e do vinho o seu Sangue, e


mandou que a Páscoa fosse feita com esses símbolos382.

Assim a Igreja inicia a celebra da Paixão do Senhor, a imolação do Cordeiro,


o Filho de Deus, como instituição do mistério da Páscoa que nos deifica no amor
com estas orações: “Ó Deus, foi por nós que o Cristo, vosso Filho, derramando o
seu sangue, instituiu o mistério da Páscoa. Lembrai-vos sempre de vossas
misericórdias, e santificai-nos pela vossa constante proteção” (Celebração da Paixão
do Senhor. In MR. p. 254). Na morte de Cristo restituímos a nossa dignidade perdida
pelo pecado: “Ó Deus, pela paixão de nosso Senhor Jesus [...] concedei que nos
tornemos semelhantes ao vosso Filho e, assim como trouxemos pela natureza a
imagem do homem terreno, possamos trazer pela graça a imagem do homem novo”
(Celebração da Paixão do Senhor. In MR. p. 254). O mistério de amor concretizado
pelo Pai na morte e ressurreição do Filho nos deifica e nos consagra ao
comungarmos a Eucaristia neste dia da paixão do Senhor: “Ó Deus, que nos
renovastes pela santa morte e ressurreição do vosso Cristo, conservai em nós a
obra de vossa misericórdia, para que, pela participação deste mistério, vos
consagremos sempre a nossa vida” (Odc. Celebração da Paixão do Senhor. In MR.
p. 268).

Importante é notar o sentido litúrgico que adquire a celebração da paixão do


Senhor. Nesta celebração não se leva o pão é o vinho, pois a proclamação do
evangelho da Paixão de Jesus e as orações deste dia já constituem a
sacramentalidade do Sacrifício. Ou seja, não se leva os símbolos para as oferendas,
pois a própria morte de Jesus é oferenda desta celebração; embora haja a
comunhão do pão consagrada na celebração da última Ceia da noite anterior.
A entrega de Cristo, na morte de cruz, então nos deifica no amor e na graça,
restituindo-nos a imagem do homem novo, o Cordeiro imolado, ao qual participamos
na Eucaristia. Por ser este o evento-deificador da humanidade Jesus nos convida a
fazê-lo em sua memória: “fazei isto em memória de mim”. A Igreja encontra neste
convite e mandato de Cristo a sua razão de ser e de existir em comunhão com ele.
O sacramento da Eucaristia, portanto, em virtude deste memorial celebrado, atualiza
a Páscoa de Cristo na espera da sua plenitude. E enquanto se espera, alimenta-se
do pão eucarístico que nos mantém deificados em Cristo.
382
PSEUDO-CRISÓSTOMO. Homilias Pascais. In Antologia Litúrgica. Op. cit. 1906. p.497.
- 124 -

O tema do sacrifício, estritamente ligado com a Páscoa e a Aliança, refere-se


ao drama da morte sacrifical de Jesus na cruz. A Igreja sempre interpretou o
sacramento da Eucaristia em sua referência com evento da cruz. E assim rezamos
em todas as orações eucarísticas após a narrativa da instituição da Eucaristia: “Eis o
mistério da fé”: “Todas as vezes que comeis desse pão e bebeis desse cálice,
anunciais a morte do Senhor até que ele venha” (1Cor 11,26). “A eucaristia é a
presença do sacrifício único de Cristo em cada época e em cada lugar, mediante a
‘memória’ sacramental que dele é feita na Igreja e pela Igreja” 383. A Ceia aponta para
a morte de Cristo como morte salvadora: sacrifical, expiatória, vicária; Jesus é o
Servo do Senhor (cf. Is 53)384. A Eucaristia se define como o memorial dessa morte
salvadora de Cristo. A categoria memorial385 não só recorda, mas atualiza, em forma
de refeição sacramental, o acontecimento morte386, que na Ceia de Jesus apresenta
uma linguagem simbólica sacrifical: corpo entregue, sangue derramado, por vós.

3.1 O Sacrifício Memorial

Todo sacrifício é um memorial. Ele tem a função de chamar a “atenção” de


Deus àquilo e a quem se oferece: é um modo de “lembrar” a Deus de sua aliança 387.
Neste sentido a Eucaristia é o memorial de um sacrifício único, atualizado pela
Igreja: o sacrifício da cruz oferecido por Cristo. É a Páscoa definitiva, que se dá na
morte de Cristo, oferecida em sacrifício uma vez por todas (Hb 9,26.28; 10,10.14;
1Pd 3,18), que trouxe aos homens a “redenção eterna”, a nossa “deificação”.
À base da Páscoa de Cristo podemos compreender a Eucaristia enquanto
perpetua na Igreja o sacrifício pascal de Cristo. Ele, cumprindo plenamente a
Palavra de Deus e o acontecimento histórico da salvação, inaugurou o novo rito
pascal. “É esta a razão pela qual Cristo ‘desejou tanto comer aquela Páscoa com
383
ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé... Op. cit. p. 297-298.
384
Cf. STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 142.
385
“A Eucaristia aparece como a ceia memorial na qual, de um modo misterioso, se atualiza e torna
presente esse acontecimento da cruz, a entrega total de Cristo, fazendo os seus partícipes de todas
as bênçãos messiânicas que se realizaram historicamente na cruz”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op.
cit. p. 82.
386
“O acontecimento central – a nova páscoa, êxodo – é a morte de Cristo na cruz. É aí que o NT
concentra toda a reconciliação, o sacrifício, a nova aliança. Deus assume, ele mesmo, com a entrega
solidária de seu Filho, o pecado da humanidade, e salva a defasagem entre seu amor e o
afastamento da humanidade. A pró-existência, a atitude de total entrega de Jesus pelos outros, que
havia caracterizado toda a sua vida, tem na cruz sua expressão mais séria e trágica”. ALDAZÁBAL, J.
A Eucaristia. Op. cit. p.81-82.
387
Cf. NICOLAS, J-H. Sintesi Dogmatica... V. II. Op. cit. p.318.
- 125 -

seus discípulos’ (Lc 22,15). Ele não ‘comeria mais a páscoa antiga’ porque estava
‘para cumprir-se o Reino de Deus’ (Lc 22,16)”388. E na Páscoa de Cristo, a
humanidade torna-se um povo sacerdotal e reino de Deus. A páscoa antiga,
portanto, era símbolo da Páscoa do Reino de Deus. Um fato novo, celebrado com
um rito novo. Novo, contudo, não quer dizer sem conexão com o antigo e, sim, o
máximo desenvolvimento teológico-litúrgico, cumprimento das promessas.

3.2 A deificação no Sacrifício de Cristo

A Igreja celebra o Sacrifício de Jesus enquanto Povo de Deus que se oferece


no mesmo Sacrifício no qual nos deifica. Vemos a realidade desta proclamação na
maioria das orações sobre as oferendas. Na solenidade da Epifania rezamos assim:
“Ó Deus, olhai com bondade as oferendas da vossa Igreja, que não mais vos
apresenta ouro, incenso e mirra, mas o próprio Jesus Cristo, imolado e recebido em
comunhão nos dons que o simbolizam” (Oso. Epifania do Senhor. In MR. p. 164);
mas oferecemos o Sacrifício do Cordeiro: “Recebei, ó Pai, as oferendas que vos
apresentamos no dia em que revelastes vosso Filho, para que se tornem o sacrifício
do Cordeiro que lavou em sua misericórdia os pecados do mundo” (Oso. Batismo do
Senhor. In MR. p. 165); O Sacrifício de Jesus está na linha da tradição da Escrituras,
porém levado à plenitude: “Ó Deus, que no sacrifício da cruz, único e perfeito,
levastes à plenitude os sacrifícios da Antiga Aliança, santificai, como o de Abel, o
nosso sacrifício [...]” (Oso. 16º DTC. In MR. p. 360).
Três dimensões se expressam no Sacrifício Cristo oferecido na Eucaristia: a
nossa salvação, a nossa santidade e a nossa deificação.
Primeira dimensão: a Igreja tem consciência de ser salva e conquistada no
Sacrifício de Cristo: “Ó Deus, que pelo sacrifício da cruz, oferecido uma só vez,
conquistastes para vós um povo [...]” (Oso. 21º DTC. In MR. p. 365); somos refeitos
pela Eucaristia: “Nós vos pedimos, ó Deus, que a força deste sacrifício destrua em
nós o homem velho, renove nossa vida e nos traga a salvação” (Oso. Missa do
Crisma. In MR. p. 244); a nossa redenção se renova a cada Eucaristia: “Concedei-
nos, ó Deus, a graça de participar constantemente da Eucaristia, pois todas as

388
MARSILI, S. A Eucaristia...In Anámmesis III. Op. cit. p. 151. “A páscoa que Jesus desejou
ardentemente comer era a que anunciava a sua paixão: a páscoa hebraica estava encerrada, porque
cedia lugar à páscoa nova do Reino de Deus, e esta nova páscoa é o cumprimento da antiga”.
MARSILI, S. A Eucaristia. In Anámmesis III. Op. cit. p. 151.
- 126 -

vezes que celebramos este sacrifício, torna-se presente a nossa redenção” (Oso. 2º
DTC. In MR. p. 346); A salvação pode expressar também a nossa purificação:
“Subam até vós, ó Deus [...] o sacrifício, a fim de que, purificados por vossa
bondade, correspondamos cada vez melhor aos sacramentos do vosso amor” (Oso.
6º DTP. In MR. p. 309); a salvação se expressa também na celebração litúrgica: “Ó
Deus, o sacrifício que vamos oferecer nos traga sempre a graça da salvação, e
vosso poder leve à plenitude o que realizamos nesta liturgia” (Oso. 22º DTC. In MR.
p. 366).
Segunda dimensão: O Sacrifício de Cristo realiza a nossa santidade: “Possa
agradar-vos, ó Deus, a oferenda do vosso povo; que ela nos obtenha a santificação
[...]” (Oso. 1º DTC. In MR. p. 345); uma vez salvos pelo Batismo o Sacrifício de
Cristo completa a nossa santificação: “Acolhei, ó Deus, nós vos pedimos, o sacrifício
que instituístes e, pelos mistérios que celebramos em vossa honra, completai a
santificação dos que salvastes” (Oso. 27º DTC. In MR. p. 371); a nossa santidade
cresce com a celebração do Sacrifício de Cristo: “Acolhei, ó Deus, as oferendas da
vossa Igreja em oração e fazei crescer em santidade os fiéis que participam deste
sacrifício” (Oso. 15º DTC. In MR. p. 359);
Terceira dimensão: O sacrifício de Cristo é a realização do mistério da nossa
deificação no Amor do Pai. Assim rezamos na solenidade da Ascensão do Senhor:
“Ó Deus, [...]. Concedei, por esta comunhão de dons entre o céu e a terra, que nos
elevemos com ele até a pátria celeste. (Oso. Ascensão do Senhor. In MR. p. 313); a
deificação humana se dá pelo diálogo entre o divino e o humano realizado no
Sacrifício de Cristo: “Ó Deus, que, pelo sublime diálogo deste sacrifício, nos fazeis
participar de vossa única e suprema divindade, que [...] lhe sejamos fiéis por toda a
vida” (Oso. 5º DTP. In MR. p. 308); a idéia da nossa deificação está presente em
inúmeras orações que expressam o nosso desejo de nos oferecer com Cristo ao Pai
para que cresçamos em caridade e amor: “Senhor nosso Deus, vede nossa
disposição em vos servir e acolhei nossa oferenda, para que este sacrifício vos seja
agradável e nos faça crescer na caridade” (Oso. 10º DTC. In MR. p. 354); para que
seja efetivo este crescimento nós nos oferecemos nele co Cristo: “Dignai-vos, ó
Deus, santificar estas oferendas e, aceitando este sacrifício espiritual, fazei de nós
uma oferenda eterna para vós” (Oso. 18º DTC. In MR. p. 362); somo deificados pela
comunhão que Cristo estabeleceu conosco no seu Sacrifício: “Acolhei, ó Deus, estas
nossas oferendas, pelas quais entramos em comunhão convosco, oferecendo-vos o
- 127 -

que nos destes, e recebendo-vos em nós” (Oso. 20º DTC. In MR. p. 364); a oferenda
do Sacrifício e o nosso alimento eterno: “Senhor nosso Deus, que criastes o pão e o
vinho para alimento da nossa fraqueza, concedei que se tornem para nós
sacramento da vida eterna” (Oso. 5º DTC. In MR. p. 349); e na celebração da
Santíssima Trindade assim rezamos sobre as oferendas com as quais vai a nossa
entrega: “Senhor nosso Deus, pela invocação do vosso nome, santificais as
oferendas de vossos servos e servas, fazendo de nós uma oferenda eterna” (Oso.
Santíssima Trindade. In MR. p. 379).
A Igreja oferece o Sacrifício de Cristo, nele também se oferece como
realidade deificada sacramentalmente. Encontramos nas orações eucarísticas as
razões de celebrarmos a nossa entrega a Deus por meio de um Sacrifício que lhe
seja agradável: pois é o Sacrifício perfeito do Filho, mas ao mesmo tempo também o
nosso, que pela deificação o Pai espera que seja também agradável 389. Neste
sentido a nossa disposição ou não em nada altera o sacrifício de Cristo, mas afeta a
nossa oferta e entrega que somente será perfeita na plena comunhão com Cristo (cf.
OE. I. In MR. p. 470). Por Cristo e pelo Espírito Santo somos reunidos para oferecer
em todo tempo e lugar um Sacrifício perfeito (cf. OE. III. In MR. p. 482). A oferta da
Igreja é “o sacrifício pascal de Cristo” (OE. VI-A. In MR. p. 845). A este Sacrifício o
Pai nos atrai pelo seu amor: “fazendo-os participar no único sacrifício do Cristo” (OE.
VI-A. In MR. p. 845). Este sacrifício, contudo, se completa na comunhão sacramental
“do mesmo pão e do mesmo cálice” (OE. IV. In MR. p. 492). Neste sentido a nossa
participação na Eucaristia só será plena comungando do Sacrifício de Cristo.
Somente aí podemos esperar frutos da deificação sacramental.

4. Banquete da Eucaristia

O Tema do banquete assume sinteticamente três realidades ligadas e


interdependentes: a páscoa judaica; a última ceia de Jesus com seus discípulos, o
prenúncio do banquete escatológico da Igreja como celebramos em cada Eucaristia.

389
Quando a Igreja, na OE. I, faz referência aos sacrifícios da primeira Aliança esta colocando a
Eucaristia na Tradição judaica como realidade quem também tem o seu valor sacramental, embora
não tenha a dimensão comparável ao Sacramento do Sacrifício do Filho na Cruz, pois somente Cristo
nos dá o Sacrifício que nos torna repletos da graça deificante: a Eucaristia. (cf. MR. p. 474).
- 128 -

4.1 Banquete memorial

Jesus instituiu a Eucaristia por ocasião de uma refeição solene de despedida.


Esse caráter solene se mostra nos preparativos: lugar espaçoso, em Jerusalém (Mc
14,13.15; Jo 18,1); na posição dos convivas à mesa (Mc 14,18; Jo 13,23.25.28); e
no uso de vinho (Mc 14,23; Lc 22,17). A referência à despedida, ao testemunho, o
presente dado como lembrança e deixado como instituição estão nas palavras de Lc
22,16.18.19.28ss; 1Cor 11,24s.
Tudo leva a crer que tenha ocorrido no contexto pascal, judaico, a celebração
da última Ceia com a sua Instituição390. Mesmo se Jesus não celebrou uma refeição
pascal, ele deve ter agido sob a influência das idéias em torno da páscoa 391. A parte
principal desta começava com a bênção392: partir e distribuir o pão ázimo. Em
seguida comia-se o cordeiro pascal e encerrava-se com o cálice de vinho da
bênção, o terceiro. Jesus utilizou para a dádiva eucarística o pão do início e o cálice
de vinho do final da ceia.
Lucas coloca a Eucaristia no contexto da nova ceia pascal (Lc 22,15). Cristo é
o cordeiro pascal imolado (1Cor 5,7). João, contudo, coloca Jesus “abatido” no
momento em que, no templo, os cordeiros eram sacrificados. A comparação de
Jesus com a páscoa (cordeiro pascal) corrente na comunidade primitiva (1Pd 1,19;
Ap 5,6) remonta, sem dúvida, ao próprio Jesus393.

390
“Isto não quer dizer que as composições cristãs tenham seguido ao pé da letra os formulários
judaicos: o próprio Jesus neles introduziu novidades e mudanças, imitado depois pelas comunidades
cristãs primitivas, embora certas linhas características da liturgia judaica originária ainda sejam
reconhecíveis e ofereçam chaves úteis de leitura mesmo para os nossos textos atuais”. VISENTIN, P.
Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. 397.
391
Cf. VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op.cit. p. 396. Se esta celebração tenha
ocorrido na páscoa judaica ou em seu contexto está implícito a imolação e a manducação do
cordeiro, identificado por Paulo com o próprio Cristo (1Cor 5,7) e provavelmente por João Batista (Eis
o cordeiro de Deus” Jo 1,36).
392
“[...] fórmulas de oração da mesa que, com toda probabilidade, estavam em uso nos tempos de
Jesus e que, no conjunto, comportam o seguinte desdobramento ritual: I. benção inicial (breve), com
fração e distribuição do pão; II. refeição dos convidados; III. tudo terminava com uma formula mais
ampla chamada ‘Birkat-há-Mazon’, que estaria verdadeiramente na base das nossas preces
eucarísticas”. VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op.cit. p. 397.
393
“Já que “corpo”, “sangue” e “derramar” são termos específicos da linguagem sacrifical, o próprio
Jesus, com certeza, quis, nas palavras da instituição, designar-se como cordeiro pascal. A refeição
pascal era uma refeição sacrifical (Dt 16,1-8; Mc 14,12; Lc 22,7; o velho rito com o sangue [Ex
12,7.22-27] foi substituído por uma aspersão do sangue no altar dos holocaustos [...], tinha caráter
expiatório); era uma comemoração que tornava presente tanto o passado (Ex 12,42) como o futuro
escatológico [...]; e era refeição comunitária do povo de Deus, em caráter exclusivo (Ex 12, 43-49) e
obrigatório (Ex 12,6; 12,43ss; Nm 9,10-13). O povo inteiro (no tempo de Jesus em grupos de pelo
menos dez pessoas) tinha de celebrar a Páscoa na mesma hora, na praça do templo. Desde o séc. I
- 129 -

A exegese moderna fundamenta sua conclusão que o Jesus pré-pascal se viu


e leu o seu destino de Profeta-Messias na misteriosa figura do Servo do Senhor (Is
53) que sofre e dá a sua vida pela salvação dos irmãos394, por aquilo que
encontramos nos evangelhos e escritos do NT395. Assim, a última Ceia de Jesus
fica, de fato, instituída como realidade de um evento em que se cumpre a profecia
do Servo do Senhor (Is 53), ao mesmo tempo em que se sacramentaliza uma ação
profética e abre horizontes na vida dos seus seguidores. É o “Cordeiro de Deus”,
(Rito da Comunhão. In MR. p. 502) imolado pela humanidade, que está sendo
entregue na última Ceia, que culmina na Cruz. “Então, o significado global da
primeira Eucaristia, celebrada por Jesus e continuada depois por sua ordem ‘Fazei
isto em memória de mim’. (Lc 22,18) nas primeiras comunidades cristãs, é porque
não deveria deixar sombra de dúvida”396. Esta realidade de entrega é coroada pela
ressurreição, que a comunidade proclama e celebra, perpetuando os gestos e
palavras de Jesus, ritualizados, na última Ceia. Nela a comunidade primitiva
encontrou elementos para ritualizar, liturgicamente, a celebração da “Páscoa Nova”.

No entanto, é essencial na eucaristia, e isto desde a primeira intenção


de Jesus, não só a presença física (por assim dizer) do verdadeiro

a.C. isso podia se fazer também em qualquer lugar dentro dos muros de Jerusalém”. STÖGER, A.
Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 141.
394
Cf. VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 397.
395
“Em Mc 10,45 O filho do homem [...] veio para servir e dar a sua vida em resgate por muitos pode
fundamentar as palavras ditas por Jesus sobre o pão [...] corpo que é para vós, em 1Cor 11,24 ou por
Lc 22,19 corpo entregue por vós ou, ainda, Isto é meu corpo Mc 14,22; Mt 26,26. Quanto às palavras
relativas ao cálice do ‘sangue derramado por vós’ (Lc 22,20; 1Cor 11,25; ou ‘por muitos’ Mc 14,24 e
Mt 26,28 acrescenta ‘pela remissão dos pecados’, o sentido se torna ainda mais claro na linha do
Servo sofredor”. VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 397. “Jesus, poucas
horas antes do sacrifício cruento no Calvário, para o qual se achava ele voltado e para cuja
consumação tudo agora estava contribuindo, realiza uma ‘ação profética’, isto é antecipa e se
compromete, por meio de gestos-palavras, com a realidade que está para apreendê-lo, ou se entrega
voluntariamente na ceia onde começa o drama da paixão: ‘faze depressa o que estás fazendo’ (Jo
13,27), diz ao discípulo traidor, que sai ‘no meio da noite’ para combinar a sua entrega aos inimigos”.
VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 396.
396
VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 396. Referindo a propósito, Marsili,
assim conclui a sua reflexão sobre o memorial da última Ceia: “se, na última Ceia, Cristo nos deu com
a palavra e o gesto o “sacramento do seu sacrifício pascal”, a razão primeira e determinante deste
fato deve ser vista não numa ‘vontade institucional’, que é apenas conseqüência, mas na própria
‘natureza sacramental’ do “memorial”. Tendo este, já na celebração pascal hebraica, o escopo de
louvor-agradecer a Deus pelo acontecimento da antiga salvação profética, que, pelo sinal
sacramental da “Ceia Pascal”, tinha atualização no presente, era necessário que também ao
“memorial”, no qual Cristo louvava e agradecia ao Pai pelo acontecimento da salvação agora
realizada nele – embora esta, no seu momento expressivo externo (a morte), ainda devesse realizar-
se – correspondesse um sinal que desse presença sacramental a esta salvação. É esta a razão pela
qual nos textos gregos originais dos Sinóticos e em algumas antiqüíssimas variantes de 1Cor 11, 24,
Cristo fala de seu sacrifício como já realizado”. MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses. III. Op. cit.
p. 170.
- 130 -

corpo, mas a dinâmica de um corpo que se dá, que se sacrifica a


ponto de derramar o seu sangue por nós. A Eucaristia “enquanto é
sacramento” (“presença real”) só se verifica no ato que celebra ou re-
atualiza o sacrifício de Cristo, isto é, torna presente o gesto do “servo
do Senhor” que se oferece livremente como vitima pelos próprios
irmãos397.

Mas a Eucaristia não é apenas repetição da ceia de despedida de Jesus, é


também explicitação de outra experiência convivial inesquecível toda impregnada de
alegria: os discípulos se alegraram ao ver o Senhor (Jo 20,20). Alegria do encontro
com o Ressuscitado398 que deve continuar entre eles.
O Partir do pão, em Atos 2,42, provavelmente refere-se a um primitivo culto
cristão vinculado ao templo, pois ainda participavam do culto no templo e celebrava
também “o partir o pão” nas casas. Eles, aos poucos, foram se desligando do templo
para celebrar a Eucaristia fora do contexto da páscoa judaica. “A celebração
eucarística estava desligada do contexto pascal e ligada a uma refeição cheia da
alegre esperança da volta do Senhor”399. Contudo, os fiéis escutavam os
ensinamentos dos apóstolos antes de partir o pão. Certamente, esta prática de
escutar as Escrituras na sinagoga judaica deu origem à “Liturgia da Palavra”
presente na celebração eucarística, formando uma unidade com a “Liturgia
Sacramental”, origem que conservamos ainda em nossos dias.
Em Corinto (1Cor 11,17-34) a refeição sacramental se realizava em
combinação com uma refeição “de matar a fome”, o que levou o apóstolo Paulo a
formular uma censura normativa pela falta de espírito fraterno que ocorria nessa
refeição que precedia a celebração sacramental. “A história do contexto da
celebração eucarística mostra que o ato da Eucaristia era considerado o essencial,
em virtude de ser instituído. O contexto muda; o essencial fica” 400.
A última ceia nos mostra Jesus instituindo o sacramento do seu Corpo e
Sangue. Neste banquete, nesta refeição, se institui a Eucaristia para celebrar o
mistério da páscoa, renovar a Aliança e atualiza o Sacrifício da salvação. Enquanto

397
VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p.396.
398
“Como conseqüência, a presença de Jesus que se encontra de novo no meio dos seus na
celebração eucarística não é apenas a de alguém que se oferece em sacrifício por amor, mas
também a de alguém que foi exaltado e que recebeu ‘o nome que está acima de todo nome’ (Fl 2,9).
Em outras palavras: o Cristo da eucaristia é o ‘servo sofredor’ que se tornou o Kyrios depois da morte
e ressurreição”. VISENTIN, P. Eucaristia. In Dicionário de Liturgia. Op. cit. p. 397.
399
STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 142.
400
STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p.142.
- 131 -

ritual apenas, Jesus não rompe com a sua Tradição. A categoria de refeição está
muito presente na tradição judaica. Abraão já convidara os três viajantes à refeição
(Gn 18,6-8); Moisés com outros anciãos celebraram uma refeição cúltica após
selarem a aliança com o Senhor (Ex 24,9-11); e, sobretudo, a ceia pascal judaica é
uma refeição anual que comemora a salvação do êxodo (Ex 12,1-20).
Também Jesus compartilha a mesa em refeições que precedem a última
Ceia: na casa de amigos, como Lázaro, Mateus, de fariseus, como Simão e de
publicanos, como Zaqueu. “O gesto da refeição é, para Jesus, uma ação profética
com a qual quer dar a entender que o Reino vem, que já está aqui, e vem para
todos”401. A festa já acontece, o banquete do Reino é um fato, todos podem dele
participar (o casamento em Caná, o banquete do filho pródigo). A abundância já
chegou pela multiplicação dos pães que pode ser lida em chave eucarística: tomar,
abençoar, partir e comer. Antes, os discípulos comiam com o Mestre, depois da
morte e ressurreição irá comer em memória do Mestre, celebrando a Eucaristia de
comunhão e deificação no Espírito do Ressuscitado.

Ser admitidos a comer com o Messias é um símbolo profundo de


reconciliação, comunhão e participação nos bens messiânicos. Que
orgulho sente Pedro ao lembrar que os discípulos tiveram o privilégio
de comer com o Ressuscitado (comemos e bebemos com ele: Atos
10,40-42)402.

A comida é fonte de vida, alimento e força403. Comer juntos é fonte de


unidade, é símbolo de amizade, solidariedade, comunhão, comunicação
interpessoal; é festa. “Por isso, para os cristãos, imitando as refeições pré e pós-
pascais, a refeição eucarística teve desde o princípio, além da consciência de união
com Cristo, este outro sentido de ‘comensalidade’ fraterna”404. Um sentido muito
próprio é o que tem a refeição em sua relação com Deus.

Em todas as religiões, mas em especial entre os judeus, a refeição se


eleva à esfera religiosa e supõe um clima de alegria e ação de graças
a Deus por seus dons. Muitas refeições são descritas no AT como
feitas “diante de Deus” (Ex 24,11). Não se trata de participar “da”
divindade, mas de comer dando graças e bendizendo, convertendo-se

401
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 39.
402
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 40.
403
Cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 41.
404
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 41.
- 132 -

muitas vezes o comer em sinal de comunhão e aliança com Deus e


num ato de culto405.

Para os cristãos, as refeições com Jesus, traziam a consciência de refeições


messiânicas, pois o Reino chegou, principalmente depois da páscoa. É a
antecipação dos banquetes escatológicos aos quais, Cristo, tantas vezes aludia. Sob
a chave desta categoria: “refeição sagrada” a primeira comunidade celebrou a
Eucaristia, ritualizando-a. Aplicando, contudo, um sentido e conteúdo além do gesto
antropológico ou religioso do AT. “O próprio fato de celebrá-la arraigada numa ação
humana como o comer e a comensalidade, e tão apta para expressar o que Jesus
queria dizer e comunicar, ajuda-nos, em boa parte, a ver riqueza de significado da
Eucaristia cristã”406. Se no AT a refeição sagrada é restrita ao povo judeu, no NT, a
Eucaristia, é aberta aos que aceitam a pessoa de Jesus Cristo. Cumpre-se nela a
prática de que Jesus veio para todos. Com esta categoria “comer com”407 podemos
encontrar a “essência do cristianismo”. Nesta categoria de refeição os cristãos
encontraram o rito para se fazer memória da entrega e da Páscoa de Jesus Cristo,
demonstrando o seu vínculo e sua entrega ao Pai pela celebração da Eucaristia:
expressão dos deificados.
Os primeiros cristãos começaram a celebrar a Eucaristia cumprindo o
mandato de Jesus: “Fazei isto em minha memória”. Aplicando a este imperativo o
sentido descente e ascendente, já presente na mentalidade judaica. Deus se lembra
dos humanos, de sua aliança com eles e de suas próprias promessas408. O ser
humano, por sua vez, também lembra o que Deus fez e o proclama diante dos
demais, bendizendo-O, celebrando-O. Deificados por Deus em Cristo, se oferece em
Eucaristia.

O memorial, para os israelitas, é uma das mais características atitudes


de sua cultura religiosa. Não é um mero lembrete subjetivo, mas
objetivo [...]. Não que Deus salvasse “‘nossos pais” na saída do Egito
ou na passagem do Mar Vermelho: ele nos salva a nós hoje e aqui (Dt
5,2-3), como lembra uma das exortações de sua ceia pascal409.

405
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 41-42.
406
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 42.
407
“O ‘comer com’ parece a alguns a ‘essência do cristianismo’”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op.
cit. p. 42.
408
Cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 44.
409
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 44.
- 133 -

Celebra “hoje” um fato “passado”, lançando-o ao “futuro”. É a memória de que


ainda hoje acontece o mesmo significado do evento ocorrido e deverá perdurar no
amanhã. “O objeto desta ‘memória’ foi bem especificado pela palavra do Senhor:
‘Fazei isto em memória de mim’. Seria uma celebração ‘em memória de Cristo’: uma
‘memória’ em nível pessoal”410. Nesta visão que a categoria de memória411 adquire
um sentido próprio por atualizar o evento celebrado. O que se celebra no tempo é a
nova Páscoa; é o seu Autor; é a realidade memorial, a Salvação.
A páscoa celebrada por ocasião da saída do Egito já era sacrifício e
banquete. Mas ela só se manifesta e se cumpre plenamente, no mistério eucarístico,
na última ceia, no banquete do reino escatológico, já inaugurado, durante qual Cristo
se dá como “alimento de vida” e “bebida de salvação” para todos, pois ele “amou-os
até o fim” (Jo 13,12). E os evangelistas sinóticos e Paulo enfatizam o dom que Cristo
fez de si mesmo sob os sinais sacramentais do pão e do vinho (Mc 14, 22-24; Mt
26,26-29; Lc 22,15-20; 1Cor 11,23-25). Este banquete está voltado para o banquete
definitivo que Cristo prepara para o seu reino, no qual está para entrar com sua
morte, ressurreição e ascensão ao céu: “Em verdade vos digo, já não beberei do
fruto da videira até o dia em que beberei o vinho novo no reino de Deus” (Mc 14,25;
Mt. 26,29; Lc 22,18).
Algumas incertezas podem existir quanto às palavras que Jesus teria usado
para expressar o sentido da Eucaristia. “O certo é que as palavras da instituição
foram uma mensagem, não uma reflexão teológica”412. Poderíamos dizer que se
trata de uma linguagem simbólica sacramental com poder de nos deificar pelo
Espírito e que traz algumas conseqüências:
a) A refeição de Jesus é de despedida (cf. Lc 22,15; 1Cor 11,23; Jo 13,1),
uma nova refeição pascal (Lc 22,15), antecipação da refeição escatológica, referindo
ao comer novamente no Reino de Deus (Lc 22,16.30; Mc 14,25; 1Cor 11,25); a Ceia
de Jesus, sendo de despedida, assume a iminência do Reino escatológico.
“Sabemos agora que o Reino já chegou. Cristo é o Reino. A ‘comensalidade’
escatológica já foi inaugurada, e vai ter lugar na Eucaristia que, além de ser anúncio
futuro, é ‘memória’ e alimento para o caminho”413;

410
MARSILI, S. A Eucaristia: teologia e história da celebração. In Anámneses. III. São Paulo:
Paulinas. 1987. p. 172.
411
Cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 45.
412
STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 142.
413
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 79.
- 134 -

b) A última ceia é entendida como refeição: “A refeição aponta para o


alimento, união fraterna, a relação de comunhão com Deus, a antecipação da
comensalidade escatológica com o Messias. Tudo isso é basicamente assumido na
Eucaristia”414. Portanto, a última “Ceia” assume a densidade “messiânica e a
dimensão pascal”;
c) Na linha da Tradição da páscoa judaica, Lucas acrescenta a palavra sobre
o pão “Fazei isso em memória de mim”; e Paulo acrescenta a palavra sobre o cálice:
“Todas as vezes que beberdes, o fareis em memória de mim”. Para a Igreja
primitiva, Jesus não era um falecido; era o “Kyrios”, Senhor da vida eterna. Na
história da Igreja essa ordem sempre foi cumprida. A incumbência da instituição da
Eucaristia garante, portanto, o cumprimento das expectativas do AT415.
d) A presença de Jesus se dá pela sua nova interpretação 416 acerca dos
elementos “pão e vinho”. Jesus entrega seu corpo: carne e sangue, pessoa viva, em
sua existência. O sangue portador de vida já estava presente na mentalidade judaica
(cf. Lv 17,11.14; Dt 12,23), pode designar também a pessoa viva. Nesta
interpretação Jesus “sacramentaliza” o pão e o vinho como elementos constitutivos
desta refeição. “A refeição em comum que une Jesus com seus discípulos, união
intensificada pela festa pascal, recebe maior profundidade ainda pelo fato de ele
entregar a si mesmo como dádiva salvífica”417;
Alguns questionamentos poderiam ser colocados para a busca de
compreensão e interpretação acerca da Eucaristia no NT. O que nos perguntamos
junto com Aldazábal é isto:

414
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 78.
415
“As palavras eucarísticas de Jesus abarcam todas as grandes idéias do AT (Aliança, Reino de
Deus, expiação e martírio, culto e anúncio escatológico); tudo se concentra em Cristo. Por ele se
realiza a ação salvadora de Deus em consumada plenitude”. STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário
Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 143. “Se foi a Igreja que acrescentou às palavras de Cristo a ordem de
reiteração “memorial” de sua ceia, com a finalidade de consolidar o sentido “pascal” de sua própria
celebração, não fez ela mais do que explicitar o que já estava presente na última ceia do Senhor, isto
é, o seu valor e sentido de “anamnese” da maior das maravilhas operadas por Deus para a salvação
dos homens”. MARSILI, S. A Eucaristia... In Anámneses. III. Op. cit. p.161.
416
“Jesus interpreta aquilo que entrega – não o ato ou o gesto do entregar – assim como na hagadá
pascal o pai de família interpretava os alimentos oferecidos. Nas palavras de Jesus, porém, pão e
vinho não são interpretados como símbolos; há uma diferença essencial entre a maneira como Jesus
interpreta e a maneira como a hagadá pascal se expressa. Jesus diz sobre o pão: Isto é o meu corpo;
a hagadá: Eis o pão da miséria que os nossos pais comeram quando saíram do Egito. Quanto à
palavra sobre o cálice, a formulação é extremamente discreta e peculiar, sem dúvida em
consideração ao horror que os judeus tinham da ingestão de sangue (cf. Gn 9,3s; Lv 17,10-14; Atos
15,29). A maneira singular de entregar o pão e o vinho, descrita com insistência, visa sublinhar o
caráter inédito da dádiva de Jesus (cf. Lc 22,17; Mt 26,26; Mc 14,22; Mt 26,27)”. STÖGER, A.
Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p.142.
417
Cf. STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 142.
- 135 -

O que quis Cristo Jesus significar quando reuniu seus discípulos na


ceia de despedida e deu-lhes a comer pão e a beber vinho, dizendo-
lhes que eram seu corpo e seu sangue, e recomendando-lhes que
celebrassem aquilo em sua memória? O que entenderam eles? Quais
eram as categorias mentais da primeira comunidade cristã – todos
eles judeus – para avaliar este gesto sacramental e o encargo de
transmitir-lo às comunidades seguintes?418

Sem dúvida alguma, as questões propostas acima podem iluminar a busca da


compreensão acerca do Sacramento da Eucaristia nas Escrituras. E a
fundamentação teológico-litúrgica deste Sacramento encontra a sua base na
celebração litúrgica. “Todos os dados que temos sobre este sacramento nos vêm da
comunidade, não diretamente do próprio Cristo, cuja voz não ouvimos. Qual é a
práxis da comunidade e qual sua compreensão da Eucaristia”?419 A celebração da
“Ceia do Senhor” é o que fundamenta a vida eclesial. Em referência a ela, tudo
acontece. Por exemplo, em 1Cor 11, Paulo, ao descrever a celebração eucarística e
como prevenir dos abusos, tem, por detrás, a celebração do “pão que partimos” e do
“cálice de benção que abençoamos” que são “comunhão com o Corpo e Sangue de
Cristo”. Em Atos 2,42-46, encontramos uma vida comunitária que se extrai da prática
celebrativa. Os quatro elementos comunitário-celebrativos apresentados por Lucas
são dados fundamentais; partem da celebração e transbordam na práxis da
comunidade420. Três refeições celebrativas podem ainda ilustrar a compreensão
sobre a Eucaristia que se dá na comunidade como memória do Senhor. Em Lc
24,30, Jesus caminha com os discípulos e, chegando ao destino, tomou a refeição
com eles; Em Atos 20,7, Paulo, reunido com a comunidade em Trôade, antes de sua
despedida, celebra a fração do pão; Em Atos 27,35, numa viagem conturbada, Paulo
tomou a refeição, dentro da embarcação.

418
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 21.
419
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 22.
420
“Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do
pão e às orações” (At 2,42). Aldazábal chama de duas direções: Horizontal: a “didaché” ou ensino
dos apóstolos e a “koinonia” ou comunhão de vida; e a vertical: a “klasis tou artou” ou fração do pão e
as “proseuchai” ou orações (cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 23). Sem entrarmos em
maiores detalhes desta estrutura litúrgico-celebrativa (normativa) podemos afirmar que vida e fé,
celebração e prática estão estritamente vinculados. E se chegam a nós assim registrados,
seguramente, é devido ao fato concreto da experiência da comunidade ou mesmo um programa
idealizado concretamente pela comunidade enquanto compreensão do fenômeno celebrado que não
se separa da vida do celebrante. Neste sentido nos interessa que o sujeito celebrante, a
comunidade, entre na dinâmica da deificação.
- 136 -

4.2 Banquete Sacramental

A ceia pascal dos hebreus traz consigo sinais de um autêntico “sacramento”,


enquanto celebra a salvação operada por Deus em favor deles, e converteu-se no
ponto máximo de referência à sua teologia e espiritualidade: um resumo de sua fé e
de seu culto. Os grandes temas pascais, para eles, no tempo de Jesus, podem ser
enumerados desta forma421: é uma celebração “comunitária” (povo eleito por Deus)
que recria a consciência de povo; é uma celebração que renova a cada ano a
“aliança” do povo com Deus (Ex 13,3-4); o que celebram é a “salvação pascal”, com
o que significa de “passagem” da morte à vida; elemento característico é o “cordeiro
pascal”: um símbolo antigo de oferenda, sacrifício e expiação; o “pão ázimo” como
recordação simbólica da aflição e saída, às pressas, do Egito; o “vinho” é outro dos
elementos característicos desta festa: símbolo de alegria e espera messiânica; a
ceia pascal é vivida como convergência “do passado, do presente e do futuro”: o fato
histórico é lembrado e proclamado em memória. “O memorial não é algo meramente
pedagógico, mas, sacramentalmente, eficaz: a salvação de Deus chega ‘a nós’”422.
Encontramos na ceia judaica dois momentos distintos, que constituem o seu
significado na páscoa: “o cordeiro-pães ázimos” e o “sangue da aliança”. “Também a
páscoa ritual de Cristo seria constituída e caracterizada por esses dois momentos,
que se integrariam no sentido total da Páscoa cristã”423. Nela “o corpo de Cristo é o
cordeiro pascal”; sacramentalizado no “pão”; e o “sangue de Cristo é o sangue da
aliança”; sacramentalizado no “vinho”.
Jesus tomando as figuras do maná, pão da caminhada do deserto, e a água
da rocha do Horeb, bebida do deserto, transforma-as em realidade sacramental:
“Pois a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue, verdadeira bebida” (cf. Jo
6,48-55). Por isso em Cristo temos a verdade do sacramento não mais em figuras,
mas em realidade. O efeito do comer e beber eucarístico “é uma comunhão de vida
com Cristo” (Jo 6,56), “permanecer em mim e eu nele” (Jo 15,4-7; Jo 17,22ss; 1Jo
2,24; 3,24; 4,16).

421
Cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 49-50.
422
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 50.
423
MARSILI, S. A Eucaristia. In Anámmesis III. Op. cit. p. 152. Na Ceia pascal de Cristo, enquanto
todos os outros ritos são omitidos, tanto os Sinóticos como 1Cor 11,23-27 põem em grande evidência
os dois gestos de Cristo, dando seu corpo “enquanto comiam” (Mt 26,26; Mc 14,22) e seu sangue
“depois” (Mt 26,27; Mc 14,23) ou “depois de comer” (Lc 22,20; 1Cor 11,25).
- 137 -

É uma comunhão real, não apenas de sentimentos; um bem


permanente que, no entanto, ainda pode ser perdido: o “permanecer”
implica uma “exortação”. A Eucaristia situa o homem dentro da
corrente vital que passa do Pai para o Filho (Jo 6,57). O modelo da
união entre Cristo e quem recebe a Eucaristia é a união do ser e do
agir existente entre Pai e o Filho (Jo 17,20ss). A Eucaristia dá a vida e,
no último dia, a ressurreição. Por ela o bem escatológico já se torna
uma posse presente. Ela supera muito o maná: ela dá a vida eterna.
Ela exprime a superioridade do tempo messiânico acima do AT. Em
terminologia gnóstica, a Eucaristia é “verdadeiro” alimento e
“verdadeira” bebida ( Jo 6,55); ela dá plenamente tudo o que pertence
à idéia de comida e bebida; ela dá vida “eterna” (divina)424.

Uma chave de leitura poderia certamente tomar por base a grande revelação
de Jesus “eu sou”, acrescida ainda da revelação “eu sou o pão da vida” que se
manifesta na comunidade celebrativa como vemos na catequese de João, 6: que
será inspiradora para as orações depois da comunhão de nossa celebrações
eucarísticas nas quais encontramos referência a nossa deificação, pois
estabelecemos comunhão com aquele que comungamos.
1) Jo, 6,1-25 descreve o contexto prévio ao seu discurso do pão da vida: a
multiplicação dos pães (Jo 6,1-13). Da maneira como ele relata, é Jesus que toma a
iniciativa, é Ele que reparte o pão. Os gestos são claramente “eucarísticos”. O fato
de também ter multiplicado peixes pode explicar-se pela relação que, para os
judeus, tinha o comer peixe com a espera messiânica. Cristo foge para o monte (Jo
6,14-15) porque não quer ser o Messias-Rei assim como o povo o entende. Há um
episódio sobre o lago (Jo 6,16-21) que é, na verdade, misterioso indicando que
ninguém pode segurar a presença de Cristo e sua divindade: “eu sou” (Jo 6,20).
João indica que o discurso teve lugar no dia seguinte, em Cafarnaum, depois da
dialética sobre a busca e o encontro com o verdadeiro Jesus (Jo 6,22-25);
2) O discurso do pão da vida (Jo 6,26-59) é introduzido em (Jo 6,26-34): O
evangelista prepara, pedagogicamente, o discurso sobre Cristo pão da vida. Jesus
apela ao tema do maná no deserto para anunciar o verdadeiro pão do céu. Cristo é
o pão da vida, o enviado por Deus para saciar a fome da humanidade. Por isso a
afirmação: “eu sou”. Jesus frente às objeções se apresenta como a resposta
salvadora de Deus à humanidade, como aquele que foi enviado pelo Pai (Jo 6,41). A
conseqüência para os que aceitam Cristo como o pão de Deus será a “vida” (Jo

424
STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 144.
- 138 -

6,40.47) e a “ressurreição final” (Jo 6,39.40.44). Cristo dará o pão da vida, desta vez
o doador não é o Pai, mas o próprio Cristo. Ele dará a sua carne para a vida do
mundo, sacramentalmente. Ele dará carne-sangue para ser comida e bebida. “É
evidente o paralelismo destes versículos (Jo 6,51 e 6,53) com as palavras que os
Sinóticos e Paulo põem nos lábios de Jesus sobre o pão e o vinho: “Isto é o meu
corpo, entregue por vós [...] o pão que eu darei é minha carne pela vida do
mundo”425. O efeito da Eucaristia é exposto de maneira muito profunda quem come
a carne e bebe o sangue de Cristo permanece em mim e eu nele (Jo 6,56) e viverá
por mim, assim como Cristo vive pelo Pai (Jo 6,57). A íntima união que Cristo tem
com o Pai (o Pai está em mim e eu no Pai, Jo 10,31) aparece como o modelo do que
acontecerá com os que crêem e comem a Jesus. A deificação se apresenta na
recepção da vida de Deus dada em sacramento no Filho Jesus: pão eucarístico. Isto
celebramos já agora, mas, sobretudo, “no último dia”, com a perspectiva
escatológica própria de João, seremos plenamente deificados: quem crê em Jesus,
como enviado do Pai, celebra o sacramento da comida e bebida, sua fé se faz
celebração sacramental”426.
Quando João narra a última Ceia de Jesus não inclui a instituição da
Eucaristia, como nos sinóticos. Prefere ressaltar outros aspectos do mistério cristão:
a união com Cristo e a caridade fraterna. Mas em Jo 6, dentro do livro dos sinais,
oferece-nos uma profunda reflexão teológica sobre a Eucaristia, dentro do quadro da
revelação de Cristo e a resposta de fé por parte da comunidade deificada no
sacramento da Eucaristia.
a) Podemos afirmar que existe uma clara progressão da fé em Cristo,
Messias e Filho de Deus, à Eucaristia como sacramento visível desta mesma fé em
Cristo427. Descobrirmos aqui a dimensão da sacramentalidade, enquanto expressão
da fé celebrada, ritualmente, nos sacramentos428;

425
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 108.
426
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 108.
427
“À identidade de Cristo como verdadeiro pão, o maná que Deus dá, corresponde a atitude de fé.
Quem crê nele não terá fome nem sede e terá a vida eterna. A primeira seção do discurso (v.35-47)
trata de Cristo como pão num sentido mais sapiencial e metafórico: Cristo como o alimento e a
resposta absoluta de Deus à fome da humanidade. É o enviado escatológico que vai dar vida a todos
que crêem nele, atraídos pelo Pai”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 114-115.
428
“Cristo, crido e comido. A fé termina no sacramento, dando-lhe sentido. O sacramento tem sua raiz
na fé. Não se aceita Cristo de todo, sem ‘comê-lo’. Mas não se pode comê-lo com proveito, se não se
partir da fé. ‘Comer’ e ‘permanecer em’ têm um significado bem vivo de comunhão íntima, só
comparável à comunhão de Cristo com o Pai”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 115.
- 139 -

b) Esta carne que Cristo dará aos seus é a carne entregue pela vida do
mundo na cruz. A referência à morte parece evidente: onde Cristo dá sua carne pela
vida de todos é na cruz, ainda que sacramentalmente depois se diga que se come
na Eucaristia. O caráter sacrifical de Jo 6,51 é claro: de novo aparece a figura do
Servo que se entrega “por muitos”, “pela vida do mundo” 429. O pão que os cristãos
receberão é Cristo, mas Cristo feito carne (encarnação) e carne entregue pela vida
do mundo na quênose da cruz. É pela entrega de Cristo na cruz que sua carne e seu
sangue estão disponíveis como alimento para os seus;
c) A doação da Carne de Cristo possui efeitos na vida de quem a comunga.
“A doação da carne de Cristo tem uma finalidade dinâmica: a vida [...] É a imersão
na vida do Ressuscitado, que quer comunicar-nos sua própria vida escatológica, a
vida eterna”430. A experiência de comunhão com Cristo será interpessoal. A mesma
relação que Jesus tem com o Pai, “eu vivo do Pai”, será estabelecida entre os
cristãos e Cristo pela Eucaristia, “quem me come, viverá de mim”;
d) Esta doação da vida supõe uma presença real de Cristo aos seus na
Eucaristia431;
e) Quando Jesus diz que se deve crer nele para ter a vida, comer sua carne e
beber o seu sangue para permanecer nele, escandalizou a seus discípulos.
Encontramos aqui dois temas fundamentais, primeiro referente à fé, segundo
referente à Eucaristia. Mas ambos são pistas para entendermos a presença de
Cristo na vida dos seus, após a sua Páscoa432. A idéia de fundo é que, sem o
Espírito, não se é possível nem a fé, nem a Eucaristia, nem a vida, nem a deificação
e sua expressão;

429
Cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 116.
430
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 116.
431
“João fala de uma doação (‘eu darei’) que leva à vida, à interpermanência pessoal. Acaba nos
crentes, para dar-lhes a vida do Ressuscitado. Assim, o que havia prometido e figurado no sinal da
multiplicação dos pães cumprem-se plenamente nele mesmo, na doação de Cristo na cruz e na
Eucaristia, como pão para a humanidade”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 117.
432
“A ‘carne’ não serve para nada. Aqui, em Jo 6,63, ‘carne’ não pode referir-se à carne eucarística
de Cristo que acaba de ser nomeada, e à qual atribui a vida; mas em linha com o prólogo do
evangelho (Jo 1,13), refere-se mais ‘às forças humanas em si’, ou seja, ao modo humano de
compreender as coisas, que não pode realizar o mistério da doação do Senhor. É o Espírito que vai
tornar possível esta doação de vida”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 118.
- 140 -

f) Para João a Eucaristia não é algo mágico: só tem sentido no contexto de fé


no Filho do homem e da atuação do Espírito, que torna possível este encontro
salvador433;
g) Embora João não escreva o aspecto eclesial da Eucaristia por falar mais
como algo pessoal: crer, viver, comer, beber, permanecer em Cristo, contudo, disse
que a carne de Cristo se dá “pela vida do mundo”. E certamente tem muito a ver
com a Eucaristia, tal como a entende João, o episódio que ele narra, na última ceia,
do lava-pés, como gesto simbólico da entrega de Cristo pelos seus e a lição que
lhes dá de serviço fraterno434.
Aqui Cristo instituiu nele mesmo, os elementos materiais, visíveis, para o novo
sacrifício pascal. Institui, portanto, o Sacramento propriamente dito no sentido em
que a Igreja entende, pois todos os povos são chamados em Cristo a tomarem parte
da vida de Deus na sua entrega de Amor que deifica.

O fato de o gesto ritual de Cristo encontrar-se em perfeito paralelo


com os dois momentos característicos da páscoa hebraica nos diz
bastante claramente que com os seus dois gestos, o do pão-corpo
sacrificado e o do vinho-sangue derramado pela aliança, o Senhor
quis “cumprir” no plano ritual o conteúdo essencial da páscoa,
conteúdo que, em coerência e em relação com os dois momentos
históricos do acontecimento, se exprime como libertação e como
aliança435.

A Igreja toma consciência a cada ano de receber de Cristo o sacramento da


Eucaristia ao celebrar, na quinta-feira da semana santa, a missa da Ceia do Senhor
com estas orações e assim reza: “Ó Pai, estamos reunidos para a santa ceia, na
qual o vosso Filho único, ao entregar-se à morte, deu à sua Igreja um novo e eterno
sacrifício, como banquete do seu amor. Concedei-nos, por mistério tão excelso,
chegar à plenitude da caridade e da vida” (Odd. Missa vespertina da Ceia do

433
“Ao unir os sacramentos com a ação do Espírito e a resposta da fé, João evita, ao mesmo tempo,
a tentação do sacramentalismo mágico (ao lembrar que é o Espírito que atua e não o rito) e a do
espiritualismo gnóstico ou docetista (ao afirmar que o Espírito atua também por meio de alguns
sacramentos concretos e não só com a fé)”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 119.
434
Cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 120. “Outras passagens de João poderiam ser
melhores esplanadas em relação à Eucaristia: como o episódio de Caná (Jo 2,1-12); a verdadeira
videira (Jo 15); a água e o sangue que brotam do lado aberto de Cristo na Cruz (Jo 19,34); Cristo
fonte de vida para todos (Jo 7,38s). Para nós é suficiente apontarmos a relação de interdependência
do trinômio joanino: “água-sangue-espírito” como elementos de uma linguagem simbólica que aponta
a relação Batismo e Eucaristia – dois sacramentos pascais – e ao Espírito, que é o que dá eficácia a
ambos”. Cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 120
435
MARSILI, S. A Eucaristia. In Anámmesis III. Op. cit. p. 157.
- 141 -

Senhor. In MR. p. 247); o memorial da última ceia torna presente a nossa redenção,
a nossa deificação no sacramento da Eucaristia: “Concedei-nos, ó Deus, a graça de
participar dignamente da Eucaristia, pois todas as vezes que celebramos este
sacrifício em memória do vosso Filho, torna-se presente a nossa redenção” (Oso.
Missa da Ceia do Senhor. In MR. p. 250); a nossa renovação a cada celebração terá
a plenitude do Reino de Deus: “Ó Deus todo-poderoso, que hoje nos renovastes
pela ceia do vosso Filho, dai-nos ser eternamente saciados na ceia do seu reino”
(Odc. Missa da Ceia do Senhor. In MR. p. 252).
Renovamos a nossa deificação celebrando a ceia do Senhor em memória do
novo e eterno sacrifício do Filho ao qual participamos. Este é o banquete
sacramental da caridade e do amor ao qual participamos e que alimenta a nossa
vida como podemos constatar em inúmeras orações depois da comunhão dos
formulários das missas.
A Eucaristia pão e alimento de deificação: “Ó Deus, que nos alimentastes com
este pão que nutre a fé, [...], dai-nos desejar o Cristo, o pão vivo436 e verdadeiro, e
viver de toda palavra que sai de vossa boca” (Odc. 1º DTQ. In MR. p.182); Eucaristia
é penhor do mistério que se manifesta na vida: “Ó Deus, [...] já saciados na terra
com o pão do céu, nós vos pedimos a graça de manifestar em nossa vida o que o
sacramento realizou em nós” (Odc. 3º DTQ. In MR. p.198); A Eucaristia é o pão da
comunhão: “Concedei, ó Deus todo-poderoso, que sejamos sempre contados entre
os membros de Cristo cujo Corpo e Sangue comungamos” (Odc. 5º DTQ. In MR. p.
214); Eucaristia é o pão que conservamos na vida deificados: “Concedei, ó Deus,
onipotente, que conservemos em nossa vida o sacramento pascal que recebemos”
(Odc. 2º DTP. In MR. p. 304); Eucaristia é pão sacramental que nos alimenta até a
deificação plena na ressurreição do nosso corpo: “Ó Deus, [...] que renovastes pelos
vossos sacramentos a graça de chegar um dia à glória da ressurreição da carne.
(Odc. 3º DTP. In MR. p. 306); Eucaristia é o pão da passagem para a nossa
deificação: “Ó Deus de bondade, [...] fazei passar da antiga à nova vida aqueles a
quem concedestes a comunhão nos vossos mistérios” (Odc. 5º DTP. In MR. p. 308);

436
Aos batizados são concedidos este pão: “[...] é-lhes concedida a bênção (Eucaristia) por Cristo.
Ele é o pão vivo e também o pão que desceu do céu e dá a vida ao mundo [...]”. CIRILO DE
ALEXANDRIA. A adoração em espírito e verdade. Livro XII. In Antológica litúrgica. Op. cit. p. 999.
Somos convidados a termos o mesmo desejo deste pão como Santo Inácio: “Quero o pão de Deus
que é a Carne de Jesus Cristo, que nasceu da descendência de Davi; e por bebida quero o seu
Sangue que é a caridade incorruptível”. INÁCIO DE ANTIOQUIA. Inácio aos Romanos. 7. In
Antológica litúrgica... Op. cit. p. 109.
- 142 -

Eucaristia é o sacramento de força para os deificados: “Deus eterno e todo-


poderoso, [...] nos renovais para a vida eterna, fazei frutificar em nós o sacramento
pascal, e infundi em nossos corações a força desse alimento salutar” (Odc. 6º DTP.
In MR. p. 309).
Eucaristia é a antecipação do céu, comunhão entre o humano e o divino:
“Deus eterno e todo-poderoso, que nos concedeis conviver na terra com as
realidades do céu, fazei que nossos corações se voltem para o alto, onde está junto
de vós a nossa humanidade” (Odc. Ascensão do Senhor. In MR. p. 313); “Dai-nos,
Senhor Jesus, possuir o gozo eterno da vossa divindade, que já começamos a
saborear na terra, pela comunhão do vosso Corpo e do vosso Sangue” (Odc.
Santíssimo Corpo de Cristo. In MR. p. 381);
O sacramento da Eucaristia nos faz unir no mesmo amor do Pai pelo qual ele
nos deifica: “Deus todo-poderoso, que refazeis as nossas forças pelos vossos
sacramentos, nós suplicamos a graça de vos servir por uma vida que vos agrade”
(Odc. 1º DTC. In MR. p. 345); E nos faz viver no mesmo amor: “Penetrai-nos, ó
Deus, com o vosso Espírito de caridade, para que vivam unidos no vosso amor os
que alimentais com o mesmo pão” (Odc. 2º DTC. In MR. p. 346); Na Eucaristia se
recebe a vida nova: “Concedei-nos, Deus todo-poderoso, que, tendo recebido a
graça de uma nova vida, sempre nos gloriemos dos vossos dons” (Odc. 3º DTC. In
MR. p. 347); Unidos Cristo na Eucaristia, rezamos: “Ó Deus, vós quisestes que
participássemos do mesmo pão e do mesmo cálice; fazei-nos viver de tal modo
unidos em Cristo, [...] e produzir muitos frutos para a salvação do mundo” (Odc. 5º
DTC. In MR. p. 349); Unidos a Cristo provamos as alegrias do céu em antecipação:
“Ó Deus, que nos fizestes provar as alegrias do céu, dai-nos desejar sempre o
alimento que nos traz a verdadeira vida” (Odc. 6º DTC. In MR. p. 350); Em
antecipação participamos da vida eterna: “Tendo recebido o pão que nos salva, nós
vos pedimos, ó Deus, que este sacramento, alimentando-nos na terra, nos faça
participar da vida eterna” (Odc. 8º DTC. In MR. p. 352).
Celebramos o banquete da Eucaristia como transmissão da vida: “Ó Deus, o
Corpo e o Sangue de Jesus Cristo, [...] nos transmitam uma vida nova [...]” (Odc. 13º
DTC. In MR. p. 357); “Ó Deus, [...] despojando-nos do velho homem, passemos a
uma vida nova” (Odc. 16º DTC. In MR. p. 360); A Eucaristia como a nossa
participação na vida de Deus: “Ó Deus todo-poderoso, nós vos pedimos
humildemente que, alimentando-nos com o Corpo e o Sangue de Cristo, possamos
- 143 -

participar da vossa vida (Odc. 28º DTC. In MR. p. 372); “Fazei, Ó Deus todo-
poderoso, que nunca nos separemos de vós, pois nos concedeis a alegria de
participar da vossa vida” (Odc. 34º DTC. In MR. p. 378). Pela Eucaristia vivemos
unidos a Cristo, com Cristo: “Unidos a Cristo por este sacramento, nós vos
imploramos, ó Deus, que, assemelhando-nos a ele aqui na terra, participemos no
céu da sua glória” (Odc. 20º DTC. In MR. p. 364); Ó Deus, que nutris e fortificais
vossos fiéis com o alimento da vossa palavra e do vosso pão, concedei-nos, por
estes dons do vosso Filho, viver com ele para sempre” (Odc. 23º DTC. In MR. p.
367); “Alimentados pelo pão da imortalidade, nós vos pedimos, ó Deus, que,
gloriando-nos de obedecer na terra aos mandamentos de Cristo, Rei do universo,
possamos viver com ele eternamente no reino dos céus” (Odc. Missa de Cristo Rei.
In MR. p. 385).
A nossa comunhão no Corpo e Sangue do Filho nos renova para mantermos
deificados no sacramento: “Renovados pelo Corpo e Sangue do vosso Filho, [...]”
(Odc. 12º DTC. In MR. p. 356); transforma-nos pelo amor: “Ó Deus, fazei agir
plenamente em nós o sacramento do vosso amor, e transformai-nos de tal modo
pela vossa graça, que em tudo possamos agradar-vos” (Odc. 21º DTC. In MR. p.
365); “Possamos, ó Deus onipotente, saciar-nos do pão celeste e inebriar-nos do
vinho sagrado, para que sejamos transformados naquele que agora recebemos”
(Odc. 27º DTC. In MR. p. 371); “Ó Deus, que o alimento celeste por nós recebido
nos transforme na imagem de Cristo, [...]” (Odc. Transfiguração do Senhor. In MR. p.
629).
Somos restaurados por Deus neste sacramento para que deificados pelo
amor sejamos servidores da caridade. Por isto a Eucaristia não deve ser entendida
como sacramento de devoção pessoal apenas, mas como realidade da Igreja a
serviço do Reino: “Restaurados à vossa mesa pelo pão da vida, nós vos pedimos, ó
Deus, que este alimento da caridade fortifique os nossos corações e nos leve a vos
servir em nossos irmãos e irmãs” (Odc. 22º DTC. In MR. p. 366); “Tendo recebido
em comunhão o Corpo e o Sangue do vosso Filho, concedei, ó Deus, possa esta
Eucaristia que ele mandou celebrar em sua memória fazer-nos crescer em caridade”
(Odc. 33º DTC. In MR. p. 377);
- 144 -

A eucaristia nos concede o Espírito de Cristo e nos faz um só com Ele 437: “Ó
Deus, governai pelo vosso Espírito aos que nutris com o Corpo e o Sangue do vosso
Filho. [...]” (Odc. 9º DTC. In MR. p. 353); Comungando do mesmo pão recebemos o
mesmo Espírito: “Ó Deus, esta comunhão na Eucaristia prefigura a união dos fiéis
em vosso amor; fazei que realize também a comunhão na vossa Igreja” (Odc. 11º
DTC. In MR. p. 355).
Esta comunhão no Corpo do Senhor (cf. 1Cor 10,16-17) que constitui a Igreja
no mesmo Espírito está presente também nas epíclise (invocação do Espírito) sobre
a comunidade celebrante nas Orações Eucarísticas 438: “E nós vos suplicamos que,
participando do Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito Santo
num só corpo. (OE. II. In MR. p. 480); “Alimentando-nos com o Corpo e o Sangue
do vosso Filho, sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só
corpo e um só espírito” (OE. III. In MR. p. 384); “[...] concedei aos que vamos
participar do mesmo pão e do mesmo cálice que, reunidos pelo Espírito Santo num
só corpo, nos tornemos em Cristo um sacrifício vivo” (OE. IV. In MR. p. 492); “E
quando recebermos Pão e Vinho, o Corpo e Sangue dele oferecidos, o Espírito nos
uma num só corpo, pra sermos um só povo em seu amor” (OE. V. In MR. p. 498)439.

5. Eucaristia: presença do Espírito

Como vimos, acima, a Eucaristia vai se configurando nas dimensões da


Páscoa, enquanto passagem de Deus, que culmina no mistério da encarnação e
ressurreição de Cristo no qual constitui um novo Povo na Aliança do seu Sangue:

437
“[...] o celestial Emanuel [...] Deus por natureza, que se fez semelhante a nós [...]. Pela mística
bênção (Eucaristia) fomos tornados um só corpo com Ele”. CIRILO DE ALEXANDRIA. Comentário ao
Gênsis. Livro I. In Antológica litúrgica. Op. cit. p. 999.
438
Com exceção da OE. I todas as demais fazem referência ao Espírito de comunhão que gera na
Igreja. Para as quatro orações (OE. VI: -A,-B,-C,-D) para diversas circunstâncias se repete a mesma
epíclese: “E concedei que, pela força do Espírito do vosso amor, sejamos contados, agora e por toda
a eternidade, entre os membros do vosso Filho cujo Corpo e Sangue comungamos” (OE.VI-A. In MR.
p. 845).
439
O sentido da comunhão ainda pode ser reforçado segundo o tema de cada OE. Por exemplo, nas
OE sobre a reconciliação aparecem claramente a comunhão do comunidade no mesmo Espírito no
sentido de superar as divisões para se construir a paz: “Pela força do Espírito Santo, todos se tornem
um só corpo bem unido, no qual todas as divisões sejam superadas” (OE. VII. In MR. p. 869); “Nós
vos pedimos, ó Pai, aceitai-nos também com vosso Filho e, nesta ceia, dai-nos o mesmo Espírito, de
reconciliação e de paz” (OE. VIII. In MR. p. 874); Ou o sentido da alegria da comunhão: “Pedimos que
o Espírito Santo nos ajude a viver unidos na alegria” (OE. IX. In MR. p. 1029); “[...] concedei-nos o
Espírito de amor. Nós que participamos desta refeição, fiquemos sempre mais unidos, na vossa
Igreja” (MR. OE. X. p. 1034); “Vós nos chamastes, ó Pai do céu, para que nesta mesa recebamos o
Corpo de Jesus, na alegria do Espírito Santo” (OE. XI. In MR. p. 1029).
- 145 -

Sacrifício dado em seu Carne como banquete memorial e sacramental. Agora vamos
olhar para a presença de Cristo na vida da pessoa e da comunidade como realidade
que nos deifica e produz frutos pelos seus efeitos.
Paulo fala sobre a Eucaristia, em 1Cor 10-11, de modo indireto, como base
para outros argumentos440. “Todos comeram e beberam [...] uma comida e bebida
que, de alguma maneira, eram ‘espirituais’; que recebiam seu sentido da parte de
Deus. Mas nem por isso agradaram a Deus, [...] e receberam um duro castigo”. 441
Somente o Cristo glorificado, presente à sua Igreja, dá uma nova comida e uma
nova bebida salutares. “[...] Paulo vê a Eucaristia como alimentação – ‘viático’ - do
povo de Deus do NT”442. Alimento que se faz presente na vida humana para deificá-
la e tornarmos agradáveis a Deus pela sua graça e recebermos, não castigo, mas a
vida eterna.
O comer e beber no rito da Eucaristia opera “comunhão”, “participação” –
“koinonia” - com o corpo e o sangue de Cristo (1Cor 10,16) da mesma maneira como
as refeições judaicas dão comunhão “com o altar” (1Cor 10,18) e as dos pagãos,
“com os demônios” (1Cor 10,20). Mas, “a natureza da comunhão é muito diferente
nos três casos; no reconhecimento da Eucaristia ela é concebida, não apenas como
experiência moral [...], mas como ontologicamente real”443. O fato dos discípulos de
Jesus, após a ressurreição, se reunirem para “celebrar” em memória do Mestre
expressa a origem do novo Povo444, a Igreja, que brota do lado aberto de Cristo (Jo
19,34); e expressa também a sua presença na comunidade.
Quem recebe a Eucaristia opera a salvação e “agrada a Deus” (1Cor 10,5);
preserva sua vida da condenação e perdição (1Cor 11,32; 10.10s). Porém, nem todo
recebimento é salutar; o comer e beber “indigno” traz “julgamento” (11,29s).

440
“A temática de 1Cor não é uma temática que poderíamos chamar ‘judaica’ (a relação entre a fé e a
lei), nem tampouco tipicamente ‘cristã’ (seguimento de Cristo), mas antes ‘helênica’: a relação entre
gnosis e ágape, entre ciência e amor. A finalidade de todas as recomendações é a edificação da
comunidade”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 86.
441
“O gênero do midraxe supõe uma leitura sapiencial da passagem do AT, aplicando-a a vida da
comunidade. Aqui Paulo quer que os coríntios aprendam a lição e não caiam na mesma tentação de
idolatria que os israelitas. Mais ainda: para Paulo já estavam atuando no AT os mesmos
protagonistas do NT: Cristo e seu Espírito. A rocha era Cristo. E o alimento e bebida então já eram
‘pneumáticos’”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 89.
442
STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 143.
443
STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 143.
444
“A ‘comunhão’ une os participantes da refeição eucarística não apenas com Cristo, mas também
entre si (1Cor 10,17). ‘Os muitos tornam-se um só corpo, o próprio Cristo’ (Gl 3,27). ‘Os muitos um só
corpo’ é fórmula paulina para ‘a Igreja’ (Rm 12,5). ‘Que a eucaristia ‘constitui a Igreja’ está implícito na
idéia da Nova Aliança, na do Servo de Deus (Is 53,10-12) e na refeição pascal”. STÖGER, A.
Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p.143.
- 146 -

Indignidade, aqui, não parece expressar uma categoria moral, individual, mas, antes,
a ruptura de comunhão entre os participantes da refeição eucarística.

Paulo vê na celebração eucarística tanto um sacrifício como uma


refeição sacrifical; esse último aspecto é mais realçado [...] Os
cristãos, um novo tipo de gente, tem o verdadeiro sacrifício e a
verdadeira refeição sacrifical; a Eucaristia é o único culto da nova era.
É anuncio e proclamação solene da morte do Senhor que se realiza no
presente445.

Quem pertence a Cristo não O divide com a idolatria, pois está em comunhão
com Cristo: o “cálice de bênção que abençoamos”, “o pão que partimos”, estabelece
“comunhão com o sangue e com o corpo de Cristo” é a “participação conjunta” numa
realidade salvífica. Não se trata de uma comunhão eclesial, apenas, mas no Corpo
de Cristo, o Senhor Glorioso, Ressuscitado, que deifica cada batizado e todo o Povo
de Deus.

Não se diz como acontece esta comunhão com o Senhor glorificado,


que é o que se nos dá na Eucaristia: ele é a fonte de vida para a
comunidade cristã. Seria pobre interpretar esta doação somente como
comunicação da força salvadora da cruz: o paralelo entre o binômio
“vinho-pão” e “sangue-corpo” é muito direto. Tudo indica aqui a
presença dinâmica do Senhor vivo e sua doação à comunidade neste
duplo gesto do vinho e do pão. [...] O Kyrios quer que entremos em
comunhão com ele participando desse pão e desse vinho que é seu
corpo e seu sangue446.

A comunidade celebrante, a Igreja, é o “espaço” eclesial da Ceia do Senhor.


Porque mesmo sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, pois todos
participamos de um só pão 1Cor 10,17; e ela vai se construindo como único corpo:
“porque todos participamos [...] de um só pão, que é o corpo de Cristo, como acaba
de afirmar (em 1Cor 10,16) [...] a comunidade vai-se construindo, precisamente,
porque todos os seus membros participam do mesmo Cristo”447. Este argumento de
Paulo nos ajuda a entendermos a Eucaristia como sacramento da Igreja do qual
445
STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 143.
446
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 90-91. “No AT, embora existisse o conceito de comunhão
com Deus (aliança, refeições sagradas, sacrifícios), nunca se emprega o termo ‘koinonia’ aplicado ao
Senhor. No NT é são Paulo que o utiliza mais vezes: os cristãos participam conjuntamente de Cristo
(1Cor 1,9), do evangelho (1Cor 9,23), da fé (Filêmon 6), do Espírito (2Cor 13,13). No nosso caso é a
koinonia no corpo e sangue do Ressuscitado, ao celebrar a Eucaristia”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia.
Op. cit. p. 90-91.
447
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 91.
- 147 -

participamos em comunidade, pelo qual somos deificados enquanto Povo numa


objetividade eclesial não meramente individual. Isto nos ajuda a superar uma visão
intimista da presença de Cristo na vida da pessoa como se fosse mérito de um
esforço próprio conquistado pela devoção e piedade individual, que, embora valiosa
e necessária, não é suficiente para alcançar a graça da deificação que é dom do Pai,
revelado no Filho Jesus, na força do Espírito Santo que habita em nós como
rezamos na Eucaristia do rito da Confirmação: “O Deus de poder e misericórdia fazei
que o Espírito Santo vindo habitar em nossos corações, nos torne um templo da sua
glória” (Odd. Missas rituais: na Confirmação. In. MR. p. 794-795).
Paulo apresenta uma diferença essencial entre o alimento comum e o
alimento eucarístico (cf. 1Cor 11,27-29). O alimento eucarístico não produz um efeito
de maneira mágico-material, e sim de maneira ético-pessoal (cf. 1Cor 10,1-11)448.
Esta interpretação nos leva a admitir de modo geral que Paulo concebeu a
Eucaristia como “sacramento” e estava convencido da real presença de Cristo 449.
Pois se estamos em comunhão com a mesa, estamos em comunhão com o Senhor,
e como conseqüência lógica, comunhão entre nós que comungamos o mesmo
Corpo (o mesmo Espírito, o mesmo Senhor Glorioso). Ou seja, a comunhão se dá
com uma pessoa, nosso Senhor Jesus Cristo não com alimento material.
Tomando por base a Eucaristia, Paulo apresentou a novidade-continuidade
que ela traz em relação à primeira Aliança e a contraposição às manifestações dos
rituais pagãos. Os Cristãos não podem associar-se aos pagãos porque têm um Deus
com o qual entram em comunhão, que na base originária está o princípio da
deificação.

Pelo pão e vinho da Eucaristia, Cristo os torna partícipes de seu corpo


e de seu sangue, e essa comunhão é excludente, impedindo-os de
participar ao mesmo tempo de outras celebrações em honra dos
deuses falsos. É o argumento de incompatibilidade “vertical”. A
Eucaristia aparece como comunhão com Cristo450.

448
“O relato da Ceia, que Paulo insere na discussão sobre os abusos por ocasião de celebrações em
Corinto, é ao mesmo tempo ordenação do culto, da vida da comunidade (ágape) e da vida pessoal
dos fiéis. Mais clara ainda aparece essa tendência no relato da Ceia em Lucas (Lc 22,7-38); a
celebração da Eucaristia é descrita como um acontecimento firmemente inserido na vida da
comunidade, e totalmente compenetrada da vida prática dos fiéis, de sorte que celebração cultual,
vida comunitária e vida moral formam uma unidade”. STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-
Teológico. Op. cit. p. 143.
449
Cf. STÖGER, A. Eucaristia. In Dicionário Bíblico-Teológico. Op. cit. p. 143.
450
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 92.
- 148 -

Os cristãos já têm uma comunidade Eclesial para se reunir e celebrar a Ceia


sagrada. A Eucaristia – participação no próprio Cristo – vai fazendo de todos nós um
só pão e um só corpo. Ou seja, vai construindo a comunidade. É a incompatibilidade
“horizontal” que se estabelece a partir da Eucaristia para os comungantes: celebrar a
Eucaristia é, portanto, distanciar-se do espaço sinagogal e dos cultos pagãos.

A raiz está naquilo que acontece na Eucaristia: nela Cristo se dá a


nós, entra em comunhão conosco, nos faz partícipes de sua vida e de
sua salvação. Há certamente em Paulo outros fatores que constroem
nossa união com Cristo e a comunhão da Igreja: a fé, o batismo, a
ação do Espírito. Mas aqui ele prefere argumentar a partir desse
momento privilegiado da Eucaristia [...]451.

5.1 A presença do Espírito constrói a Igreja

Por isso a Eucaristia é a ceia do Senhor, comunhão com o Corpo do


Senhor452, comunhão e construção da Comunidade. Porque o Senhor esta presente
na vida dos batizados a comunidade deve viver em comunhão. E é isto que estava
faltando em Corinto: a comunhão com o Senhor que se mostra na falta de
fraternidade entre os irmãos. A falta de fraternidade parece ser o problema mais
grave em relação a outros excessos que se apresentam em Corinto. Os cristãos
devem fazer a clara distinção entre comer a Ceia do Senhor e a própria ceia. Por
isso, Paulo irá descrever a boa ordem das assembléias litúrgicas nos capítulos 11-
14 desta Carta. Em 1Cor 11,17-34 refere-se especificamente à celebração
eucarística quanto às divisões e aos abusos453. A argumentação de Paulo é forte:
assim como fazem os coríntios, não é ser fiel à intenção fundamental da Eucaristia
tal como Cristo a pensou. “A argumentação de Paulo soaria assim: Cristo foi
entregue, deu-nos seu próprio corpo [...], e encarregou a comunidade de celebrar
isto como memória de sua entrega pelos demais”454. Em Corinto, não está havendo

451
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 93.
452
Este ensinamento do bem-aventurado Paulo é suficiente para vos dar a plena certeza sobre os
divinos mistérios, dos quais fostes julgados dignos, e que vos tornaram um só corpo e um só sangue
com Cristo [...] a participação jubilosa no seu Corpo e no seu Sangue. Cf. CIRILO DE JERUSALÉM.
Quarta Catequese Mistagógica. In Antologia Litúrgica. Op. cit. p. 489.
453
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 93-94.
454
“Paulo vai demonstrar que uma reunião com estas características é exatamente o contrário do que
Cristo pensou quando nos encarregou de celebrar a Eucaristia. É um pecado social: não contra Cristo
- 149 -

Eucaristia. “Cada vez que a comunidade celebra a Eucaristia, proclama a morte


salvadora do Senhor. [...] o próprio fato da reunião e da participação no corpo e
sangue de Cristo já é proclamação sacramental [...] operante no meio da
comunidade”455. Na Eucaristia se proclama o Senhor glorioso até que ele venha. Por
isso, a Igreja é o tempo intermediário, tempo do Espírito até a manifestação total do
Reino inaugurado por Cristo em sua morte456, por isso a comunidade o aguarda em
fraternidade, vivendo na sua presença, deificada.
Sinteticamente mencionamos alguns elementos teológicos referentes à
Eucaristia, em Paulo. Eles nos ajudam na compreensão deste sacramento em nossa
perspectiva: a) A celebração da Eucaristia tem uma clara “tensão escatológica”, “até
que venha” ou “para que venha”: “vem, Senhor Jesus”; b) Na Eucaristia há a
atualização num “hoje”, do acontecimento salvador: a morte e ressurreição de Cristo;
c) A “presença real” de Cristo no pão e no vinho é “realidade sacramental”, mas é
“realidade”. A Eucaristia é o modo privilegiado de sua comunicação457; d) O efeito da
Eucaristia é “vertical”, em relação a Cristo glorioso, mas também “horizontal”: relação
divina e humana; e) A Eucaristia “não opera de modo mágico” a salvação, o
sacramento não salva por si mesmo, automaticamente. Paulo previne os cristãos
para não cair na tentação de um sacramentalismo como o de Israel (1Cor 10,3s). A
Eucaristia é, ao mesmo tempo, salvação e juízo (1Cor 11,27-32): como diz
Käsemann, “o encontro com o Kyrios glorificado significa graça no juízo e juízo na

diretamente, ou contra a Eucaristia mal celebrada em si mesma. O pecado está na ceia antecipada, e
é um pecado contra os irmãos: desprezais a comunidade de Deus [...] envergonhais os que nada
têm, 1Cor 11,22”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 95-96.
455
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 96.
456
“A presença do Kyrios nos coloca a todos diante do juízo escatológico, e a Eucaristia é assim uma
celebração comprometedora que nos faz entrar em ‘crise’. Ao possível entusiasmo sacramentalista
(mágico?), Paulo opõe [sic] a necessidade de um discernimento e uma atitude de fraternidade”.
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 97.
457
“O próprio Senhor que se entregou na cruz se dá agora à sua comunidade, a partir de sua vida
gloriosa, por meio da Eucaristia. É uma presença ‘dinâmica’, que é e se dá como comunhão e para
comunhão. Sua presença não termina no pão e no vinho, mas na comunidade que o come e recebe.
Não se trata, evidentemente, de uma concepção materialista e física. Estamos diante do Senhor
glorioso: mas sua doação e comunhão é real, mesmo sendo sacramental. Faz-nos entrar em sua
realidade escatológica”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 99. Como diz Käsemann, “a
expressão ‘presença real’, por mais que se possa objetar contra ela, responde exatamente à
realidade significada por Paulo [...], o Senhor glorioso nos faz entrar em seu espaço, em comunhão
com ele [...], a autocomunicação corporal de Cristo no sacramento nos confisca para uma obediência
concreta e corporal com o corpo de Cristo [...]. Cristo confisca sacramentalmente nossos corpos para
seu serviço em seu corpo. Assim se mostra como Cosmocrator que submete ao seu senhorio o
mundo em nossos corpos e que constitui com seu corpo o novo mundo”. ALDAZÁBAL, J. A
Eucaristia. Op. cit. 99.
- 150 -

graça”458. Estes elementos nos fazem compreender a dinâmica da presença de


Cristo no sacramento da Eucaristia.
Da parte da comunidade, além da celebração ritual, há exigência teológica: a
caridade; uma atitude interior de fraternidade. Receber dignamente o corpo do
Senhor corresponde a uma atitude de caridade e de identificação com o Corpo do
Senhor, é estar em consonância ao espírito da Eucaristia de Cristo e sua presença
na vida da comunidade. As razões teológicas de Paulo acerca da Eucaristia devem
ser buscadas no conjunto de sua obra, na relação com o NT, os demais
sacramentos e na vida da Igreja459. Estar “em comunhão com Cristo”, comer e beber
na Eucaristia é participar do Messias Glorioso e Ressuscitado: pois se realizou nele
de uma vez por todas (Hb 9,26.28;10,10.14) a salvação e deificação da humanidade.
Deus está no meio do seu povo, “está presente em Israel, habita em nosso
meio em Cristo e na Igreja, habita no batizado como em templo, está presente nos
sacramento, [...] e plenificará de si o mundo escatológico esperado”460. Mas de modo
particular na Eucaristia que se constitui a presença sacramental de Cristo na vida da
comunidade. E assim rezamos de São João, apóstolo e evangelista: “Ó Deus todo-
poderoso, nós vos pedimos que o Verbo feito Carne [...] habite sempre em nós por
este mistério que celebramos” (Odc. Missa na festa de São João Evangelista. In MR.
p. 724). Quanto à presença real, dizemos que “na ceia de Jesus, seriam sinais
proféticos e eficazes do cumprimento messiânico, uma auto-revelação de Jesus e de
sua doação na cruz”461. Parece que a intenção de Jesus e a compreensão da
comunidade foram sempre de entender a presença como realidade, embora
sacramental.

458
Cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 100-101.
459
“No conjunto da obra de Paulo, a Eucaristia deve ser entendida ‘em conexão com o resto de sua
teologia’. É um sacramento intimamente relacionado com a cristologia, com a pneumatologia (o
Espírito que anima a comunidade de Cristo), com a eclesiologia (para Paulo dizer “corpo de Cristo” é
ao mesmo tempo dizer Eucaristia e dizer Igreja), com o batismo (pelo qual somos incorporados pelo
Espírito a Cristo e à comunidade), com a evangelização e a fé ( a Eucaristia é celebrada pelos fiéis),
com a vida moral (segundo o modo de viver de Jesus), com o compromisso no meio da sociedade
(para transformar este mundo, a comunidade deve ser imagem autêntica do Reino escatológico de
Cristo), com a liturgia da vida (em Rm 12, Paulo convida a oferecer a própria vida como culto perfeito
a Deus)”. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 101.
460
Cf. ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé... Op. cit. p. 301. “A eucaristia é parte dessa
seqüência de presenças de Deus na história [...]. É a presença por antonomásia de Cristo na Igreja
(SC, 7). A profecia do Emanuel, o Deus-conosco, que se realizou na vinda do Verbo eterno ao mundo
(Is 7,14; Mt 1,22-23) perpetua-se de modo eminente na eucaristia da Igreja”. Cf. ROCCHETTA, C. Os
Sacramentos da Fé... Op. cit. p. 301.
461
ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 84.
- 151 -

A Eucaristia, portanto, situa-se no tempo intermediário que vai da última ceia


ao banquete escatológico. Eucaristia é o banquete de Cristo com os seus (cf. Mt
28,20), no qual está presente, de modo eminente, em meio àqueles que estão
reunidos em seu nome (cf. Mt 18,20). A realidade dessa presença é afirmada nas
próprias palavras de Cristo, em seu significado verdadeiramente teológico: “Isto é o
meu corpo”, “Isto é o meu sangue”; como constantemente interpretou a fé da Igreja.
É a fé nesta presença real de Cristo, na “fração do pão”, que explica a alegria
incontida da comunidade primitiva (At 2,42-47), levando a reler em termos
eucarísticos tanto os milagres como o episódio da manifestação de Cristo aos
discípulos de Emaús, no ato de partir o pão (Lc 24,30-31)462. E assim rezamos:
“Senhor, vós que sempre quisestes ficar muito perto de nós, vivendo conosco no
Cristo, falando conosco por ele, mandai vosso Espírito Santo [...]” (OE. V. In MR. p.
496).
A fé se une a esperança, pois a presença de Cristo nos faz aguardar a sua
volta para a consumação do seu Reino. Por isso a Igreja proclama no banquete
eucarístico a morte e ressurreição de Cristo (Atos 1,11) e espera a sua vinda (1Cor
11,26). A celebração eucarística é a máxima manifestação da presença de Cristo e
expressão daquilo que esperamos, por isso é sempre o banquete da antecipação
escatológica, no qual suplicamos: “Vem, Senhor!” para completar definitivamente a
nossa deificação.

6. A Deificação na celebração da Vigília da Páscoa

O homem existe na relação cósmica com a natureza e o mundo. Nesta


relação podemos descobrir a perspectiva da deificação nas orações da Vigília da
Páscoa: pois mergulhamos no mistério da vida e na força do Espírito de Cristo
Ressuscitado que tudo renova pela sua energia.
Tomando os quatro elementos da natureza, a água, o ar, o fogo e a terra, esta
celebração assume uma verdadeira relação da vida humana com a criação inteira.
Acompanhando as orações desta vigília, descobrimos que os sacramentos só se
expressam por sinais sensíveis dados à nossa apreensão. A ordem que estes

462
Cf. ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé... Op. cit. p. 300.
- 152 -

elementos recebem nesta celebração litúrgica já traz um significado simbólico


sagrado.
Na primeira parte, celebra-se a liturgia do fogo e da luz, calor e iluminação: o
coração humano é aquecido pelo afeto divino e recebe luz para crer. Cristo
Ressuscitado é a Luz do mundo (Jo 12, 46) que ilumina e deifica o batizado.
Com estas palavras se inicia esta celebração: “nesta noite em que Jesus
Cristo passou da morte à vida, a Igreja convida seus filhos à escuta da Palavra” e
celebração dos seus Mistérios: nossa deificação. E somos convidados a nos
envolver na Luz do Cristo ressuscitado com esta oração: “Ó Deus, que pelo vosso
Filho, trouxestes àqueles que crêem o clarão da luz, santificai + este novo fogo.
Concedei que a festa da Páscoa acenda em nós tal desejo do céu, que possamos
chegar purificados à festa da luz eterna” (Bênção do fogo. In MR. p. 271). Deste
fogo novo, abençoado, se acende o Círio Pascal e segue o ritual do Círio com as
incisões que recordam o mistério da cruz de Cristo no tempo e na história humana.
Após estes ritos segue-se a procissão até entrar na Igreja para a proclamação da
Páscoa. A nossa deificação se manifestar em cada momento deste ritual; por
exemplo, a passagem do “antes” e do “depois”, de “fora” para “dentro”, visto que o a
liturgia do fogo deve ocorrer fora da Igreja. Esta atitude de proclamar os mistérios de
Cristo nos recorda a sua encarnação, a paixão na natureza humana, e glorificação
pelo Espírito do Pai.
Nos mistérios de Cristo somos Iluminados pela graça batismal. Por isso os
catecúmenos celebram estes ritos que precedem a sua consagração sacramental,
expressando a sua fé no Ressuscitado. Porque o Batismo é, antes de tudo, o sinal
daquela fé com a qual os seres humanos respondem ao Evangelho de Cristo
iluminados pela graça do Espírito Santo (cf. RICA. 3. p. 10). O Batismo recorda e
realiza o Mistério Pascal, uma vez que por ele as pessoas passam da morte do
pecado para a vida (cf. RICA. 6. p. 11). O Batismo é denominado “Iluminação” e
através dele os neófitos são inundados pela luz da fé. (cf. Introdução ao RICA. 24. p.
23). Esta iluminação encontra referência no Evangelho de João 9, o cego de
nascença, quando Jesus: luz do mundo, o faz enxergar (cf. RICA. 171. p. 76).
Na segunda parte, celebra-se a Palavra de Deus, o ar e o espírito: Por ela se
dá a comunicação de Deus e do seu Espírito. Pelo sopro de Deus fomos criados.
Pela comunicação da Palavra no Espírito somos salvos e deificados. A Palavra de
Deus nos converte e nos chama à deificação sacramental pelo Batismo.
- 153 -

Antes, contudo, do rito do Batismo, somos convidados a ouvir a Palavra da


Salvação que salvou o Povo na primeira Aliança. Ouvir o Filho (Palavra de
Salvação) que salva hoje em sua Páscoa e convida os “eleitos” a receberem a
“Iluminação” pelo Batismo e os já batizados renovar a vida da graça que brota da
água batismal. Acompanhemos as Orações após as leituras no vínculo teológico
com a o rito do Batismo na perspectiva da nossa deificação que se dá pela Palavra
de Deus e dos Sacramentos:
a) 1ª Leitura – Gn 1,1-2,2 - A criação: “Deus eterno e todo-poderoso, [...],
dai aos que foram resgatados pelo vosso Filho a graça de compreender que o
sacrifício do Cristo, nossa Páscoa, na plenitude dos tempos, ultrapassa em
grandeza a criação do mundo realizada no princípio” (OVP. In MR. p. 279). O
sacrifício de Cristo pelo qual a humanidade é deificada ultrapassa em grandeza a
obra da criação. Neste sentido a nossa deificação teria mais valor que a criação.
b) 2ª Leitura – Gn 22,1-18 – O sacrifício de Abraão: “Ó Deus, Pai de todos os
fiéis, vós multiplicais por toda a terra os filhos da vossa promessa, derramando sobre
eles a graça da filiação e, pelo mistério pascal, tornais vosso servo Abraão pai de
todos os povos, como lhe tínheis prometido. Concedei, portanto, a todos os povos a
graça de corresponder ao vosso chamado” (OVP. In MR. p. 279). Em Cristo todos os
povos são chamados à deificação pela graça de Deus, por isso Cristo irá recapitular
tudo em seu mistério.
c) 3ª Leitura – Ex 14,15-15,1 – A passagem do mar Vermelho: “Ó Deus, à luz
do Novo Testamento nos fizestes compreender os prodígios de outrora prefigurando
no mar Vermelho a fonte batismal e, naqueles que libertastes da escravidão, o povo
que renasce do batismo. Concedei a todos os povos que, participando pela fé do
privilégio do povo eleito, renasçam pelo Espírito Santo” (OVP. In MR. p. 281). A
Aliança em Cristo será batismal, por este sacramento somos constituídos como o
Novo Povo da Nova Aliança no seu sangue, deificados pela fé, renascidos pelo
Espírito Santo, para a comunhão plena no amor de Deus.
d) 4ª Leitura – Is 54,5-14 – A nova Jerusalém: “Deus eterno e todo-poderoso,
para a glória do vosso nome, multiplicai a posteridade que prometestes aos nossos
pais, aumentando o número dos vossos filhos adotivos. Possa a Igreja reconhecer
que já se realizou em grande parte a promessa feita a nossos pais, da qual jamais
duvidaram” (OVP. In MR. p. 281). Pela deificação nos tornamos filhos adotivos em
- 154 -

Cristo. Jesus traz a filiação do Pai por natureza, nos recebemos por graça participar
da natureza do Pai.
e) 5ª Leitura – Is 55, 1-11 – A salvação oferecida a todos gratuitamente: “Deus
eterno e todo-poderoso, única esperança do mundo, anunciastes pela voz dos
profetas os mistérios que hoje se realizam. Aumentai o fervor do vosso povo, pois
nenhum dos vossos filhos conseguirá progredir na virtude sem o auxílio da vossa
graça” (OVP. In MR. p. 281). Deus é a única esperança do mundo, auxílio e graça
para todos os batizados e catecúmenos. A nossa deificação iniciada neste mundo
aguarda a sua plenitude na eternidade pela participação na ressurreição de Cristo.
f) 6ª Leitura – Br 3,9-15.31-4,4 – A fonte da sabedoria: “Ó Deus, que fazeis
vossa Igreja crescer sempre mais chamando todos os povos ao Evangelho, guardai
sob a vossa contínua proteção os que purificais na água do batismo” (OVP. In MR.
p. 282). Pela nova “circuncisão” Deus faz a Igreja crescer em números na graça
batismal. A deificação, contudo, não será um rito mágico, mas se dá pelo vínculo da
pessoa ao Evangelho de Cristo, uma vez acolhendo o dom da fé, então celebra o
sacramento do Batismo que lhe dá a condição de filho.
g) 7ª Leitura – Ez 36, 16-28 – Um coração novo e um espírito novo: “Ó Deus,
força imutável e luz inextinguível, olhai com bondade o mistério de toda a vossa
Igreja e conduzi pelos caminhos da paz a obra da salvação que concebestes desde
toda a eternidade. Que o mundo todo veja e reconheça que se levanta o que estava
caído, que o velho se torna novo e tudo volta à integridade primitiva por aquele que
é princípio de todas as coisas” (OVP. In MR. p. 282). Por esta oração podemos
pensar que o plano da encarnação do Verbo e da nossa deificação estava na mente
de Deus desde toda a eternidade. Nisto reconhecemos o amor extático do Pai que
quer a nossa comunhão com Ele. Então a missão do Cristo é conduzir toda a
humanidade ao Pai, por este amor que se manifesta nos sacramentos. A Igreja ao
celebrar a Páscoa de Cristo se renova a missão de ser sacramento do Filho
ressuscitado. A nossa deificação plena se dá pela nossa volta à integridade original
da qual nunca deveríamos ter nos afastado.
h) Oração do dia – “Ó Deus, que iluminais esta noite santa com a glória da
ressurreição do Senhor, despertai na vossa Igreja o espírito filial para que,
inteiramente renovados, vos sirvamos de todo o coração” (Odd. Vigília da Páscoa. In
MR. p. 283). Pela iluminação da ressurreição de Cristo somos incorporados à sua
glória e ressurreição, recebemos a renovação do coração pela mantermos na graça
- 155 -

deificante. A renovação pascal é um convite constante à perseverança na deificação


que recebemos no sacramento.
Após celebrar a liturgia da Palavra, na terceira parte, celebra-se o Batismo. A
água e a vida caminham juntas, como a morte e a vida: Pelo Batismo morremos com
Cristo para com Ele ressuscitarmos. No rito do Batismo somos deificados
sacramentalmente pelo Espírito ao mergulhar na Água. Como vimos e
aprofundamos no capítulo anterior deste nosso trabalho.
Na quarta parte, celebra-se o sacramento da Eucaristia, trazendo para o altar
os frutos da terra, nosso alimento. Da Terra somos criados e a ela retornaremos. A
terra produz os frutos para a manutenção da vida. Produz também os animais e os
frutos para o sacrifício. Dela o homem tira o pão de seu sustento e o pão do
sacramento. Pelo rito sacramental da Eucaristia invocamos o Espírito Santo para
que transforme o pão e o vinho em alimento espiritual dos deificados pelo Batismo:
Corpo e Sangue de Cristo.
Na Oração sobre as oferendas, assim rezamos agradecendo a Deus pela vida
nova: “Acolhei, ó Deus, com estas oferendas as preces do vosso povo, para que a
nova vida, que brota do mistério pascal, seja por vossa graça penhor de eternidade”
(Oso. Vigília da Páscoa. In MR. p. 290). Tudo brota do mistério pascal: a Eucaristia,
o Batismo e a nova Vida da graça que nos deifica, por isso podemos nos oferecer
em Eucaristia junto com Cristo sobre o altar.
A ação de graças pela vida nova segue: “[...] Ele é o verdadeiro Cordeiro, que
tira o pecado do mundo. Morrendo, destruiu a morte, e, ressurgindo, deu-nos a vida
[...]” (Pref. da Páscoa I. In MR. p. 421). O Cordeiro, Cristo, é o alimento dos
batizados. Por isso o batizado se oferece no altar das oferendas, no pão e no vinho,
junto com Cristo Cordeiro-Alimento: Eucaristia. Na morte e ressurreição de Cristo
somos batizados (mergulhados e emergidos); revestidos de Cristo e de sua
dignidade iluminados (cf. RICA. 225. p. 100) para nos tornarmos nele uma única
oferenda agradável ao Pai.
Segue também na Oração Eucarística I a prece pelos batizados: “[...] Nós a
oferecemos também por aqueles que fizestes renascer pela água e pelo Espírito
Santo, dando-lhes o perdão de todos os pecados [...]” (OE. I. In MR. p. 472). Cristo
Pascal é oferenda agradável ao Pai por natureza; os batizados se tornam uma só
oferta agradável com Cristo, na Eucaristia (cf. RICA. 224. p. 100) por graça
- 156 -

deificante; eles se oferecem ao Pai na força do Espírito Santo que receberam no


Batismo.
A Luz de Cristo ressuscitado se revela e se mantém na Eucaristia, por isso
rezamos: “Ó Deus, derramai em nós o vosso espírito de caridade, para que,
saciados pelos sacramentos pascais, permaneçamos unidos no vosso amor” (Odc.
Vigília da Páscoa. In MR. p. 291). Caminhar na luz é caminhar como Cristo,
alimentar de Cristo, celebrar os sacramentos pascais: Batismo, Eucaristia e Crisma;
e receber o amor-caridade força deificadora do Pai revelada a nós no seu Filho.
A Vigília da Páscoa nos mostra o vínculo de todos os elementos da natureza
dos quais servimos para a celebração da nossa transformação pascal: nossa
deificação no amor do Pai, nossa passagem da morte à Vida, da humanidade à
deificação.

7. Deificação: uma perspectiva teológica

Um aspecto que já se insinua no NT, especialmente em João, e que depois


se desenvolverá tanto na teologia dos Padres como nos textos do rito da celebração
da Eucaristia é o protagonismo do Espírito Santo. Foi iluminado pelo protagonismo
do mesmo Espírito que o Concilio Vaticano II retornou às fontes litúrgicas nas quais
se encontram o cerne da questão da deificação. Na visão conciliar tem espaço a
teologia litúrgica na perspectiva da deificação pela recuperação da mentalidade
bíblica e patrística.
Vamos apontar apenas algumas considerações da reforma, elas são
referências oportunas para a compreensão da deificação no sacramento da
Eucaristia463: a) Correlação entre as duas mesas, da Palavra e da Eucaristia (cf. SC.
48, 51 etc.); b) Relacionar a Eucaristia não só com o sacrifício da cruz (cf. SC. 47),
mas com o mistério pascal em sua totalidade; c) Lugar da Eucaristia entre os
sacramentos da iniciação cristã (cf. SC. 71 etc); d) Interação entre Igreja
(sacramento) e a Eucaristia (cf LG. 26); e) importância da participação ativa dos fiéis
na celebração eucarística; f) A Eucaristia ao mesmo tempo fonte e ápice da vida
cristã (cf. LG. 11). A visão conciliar irá permitir, além da reforma dos conceitos, a

463
GY, P-M. Eucaristia. In Dicionário Crítico de Teologia. Op. cit. p. 685.
- 157 -

reforma da celebração litúrgica, na qual podemos perceber toda ela expressão da


realidade da deificação como graça que brota da força batismal.
O documento sobre a liturgia (SC. 47-58) assinalou as idéias-mestras da
reforma: participação ativa dos fiéis, maior riqueza de leituras bíblicas, importância
da homilia, restauração da oração dos fiéis e da concelebração, critérios para a
admissão das línguas vivas e comunhão sob as duas espécies. Melhorou a
celebração e aprofundamento na compreensão da Eucaristia a partir dos novos
livros litúrgicos, nos anos seguintes ao concilio464.
A sensibilidade conciliar e pós-conciliar (sobretudo a Eucharisticum
mysterium, 1967) fizeram com que pouco a pouco recuperássemos o conjunto
harmônico do mistério: o equilíbrio entre palavra e sacramento, a devida proporção
entre celebração e culto, o papel celebrante da comunidade em relação com o dos
ministros, etc. “Importa que o mistério eucarístico, [...] resplandeça como convém
aos olhos dos fiéis” (EM. 2).
Houve uma evolução teológica da Eucaristia expressa nos documentos
oficiais, na catequese e na reflexão sistemática. Se Trento havia dedicado três
sessões à doutrina da Eucaristia, o Concilio Vat. II dedicou apenas um capítulo na
SC. e, não a partir da doutrina, mas, no espírito da reforma. Entretanto é
interessante notar que todo o Concílio está cheio de alusões à Eucaristia como
centro do mistério eclesial. A recuperação da visão de conjunto dos diversos
aspectos do sacramento, presente nos primeiros séculos da Igreja, perspectiva
unitária do mistério: que é, ao mesmo tempo, celebração e culto, sacrifício e
memorial, palavra e Eucaristia, pão e vinho, comunidade e ministros, presença real e
compromisso dinâmico.
A Eucaristia aparece mais claramente, de novo, como o memorial da morte
pascal de Cristo. Seguindo a linha de Trento, já esquecida, o Vat II enfoca,
decisivamente, a Eucaristia em sua relação memorial com a cruz, e a relação íntima
entre sacrifício e sacramento. Assim vem expresso na Eucharisticum Mysterium: A
Eucaristia é sacrifício enquanto é sacramento do único sacrifício de Cristo [...]”. (EM.
3-4).
Os protagonistas do mistério eucarístico aparecem também com maior
precisão e clareza. Trento havia insistido no papel de Cristo e do sacerdote

464
Cf. ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Op. cit. p. 213.
- 158 -

ministerial. Embora esta doutrina seja resguardada pelo novo Concílio, mas ressalta
o protagonismo do Espírito Santo e da comunidade cristã (cf. PO. 5).
Tanto nos documentos pós-conciliar quanto nos estudos teológicos vai
ressaltar claramente, a presença ativa do Senhor glorioso, como ator principal da
Eucaristia. O Ressuscitado, em sua nova forma de vida, possuído pelo Espírito,
torna-se presente, em sua Igreja, em todo momento: na própria assembléia, na
palavra, e de modo especial na doação de seu corpo e sangue (cf. IGMR 7.28.33).
Além do papel dos ministros ordenados, função específica, ressalta de maneira
decidida, a participação ativa de toda a comunidade na celebração e na oferenda da
Eucaristia:

Aprendam a oferecer-se a si próprios oferecendo a hóstia imaculada,


não só pelas mãos do sacerdote, mas também juntamente com ele
(SC. 48); Os fiéis, em virtude de seu sacerdócio régio, concorrem na
oblação da Eucaristia (LG. 10), participando do sacrifício eucarístico,
fonte e ápice de toda a vida cristã, oferecem a Deus a vítima divina e
com ela a si mesmos (LG. 11).

Pode-se dizer que a partir do Concílio Vaticano II a chave dominante é a


Eucaristia como celebração comunitária do memorial do Senhor. Celebrar a
Eucaristia é a missão de todo o batizado: esta missão se impõe como obrigação de
gratidão Àquele que nos chamou das trevas à luz, da humanidade à deificação.
Portanto, somente pela deificação batismal podemos e devemos extrair os
benefícios do sacramento da Eucaristia. O batizado que não celebra Eucaristia é
como a pessoa que vive sem se alimentar. Assim como toda vida necessita de
alimento que a sustente também o batizado deve alimentar-se da fonte da graça
eucarística.
- 159 -

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao olharmos as catequeses batismais dos Padres dos primeiros séculos de


nossa Igreja, ficamos tomados de entusiasmo e curiosidade pela clareza, concisão,
simplicidade com que eles souberam interpretar e transmitir a liturgia e teologia da
Igreja, na perspectiva da deificação sacramental.
Eles souberam expressar a realidade do mistério que acreditavam: O amor
deificante de Deus que no seu Filho nos faz participar de sua Vida pela energia do
Espírito Santo. E a perspectiva era uma só: entregar-se ao amor de Deus que nos
transforma e deifica. Pois neste período ainda não havia tantas correntes que
distanciavam o homem do mistério.
Encontramos a liturgia teológica vinculada à teologia litúrgica que parecem
dar-se numa única realidade. E a explicação é muito simples: parece que neste
período a Igreja não conheceu a separação dos sacramentos. Por isso, na mesma
celebração em que se batiza participa-se da mesa da eucaristia. Então o vínculo é
sacramental, simbólico, teológico e litúrgico. A catequese para o Batismo é a mesma
homilia para a Eucaristia. Então o nascimento batismal se dá dentro da celebração
da Eucaristia, sobretudo na vigília da Páscoa. Quem nasce neste Espírito pascal, do
Espírito recebe sua energia deificante.
São Bento, abade, interpretou com clareza as Escrituras, escrevendo em
sua Regra: “Já é hora de nos levantarmos do sono. E, com os olhos abertos à luz
deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos
os dias: ‘Hoje, se ouvirdes a sua voz [...]’”465.
Já é hora de nos levantarmos do sono [...] Acredito que o Concílio Vat II foi
uma voz do Espírito Santo de Deus para a Igreja e para o mundo. Resta saber se já
estamos acordados para olharmos a luz deífica e deificante que brota das Escrituras
e da Tradição da Igreja, para olharmos os mistérios com os olhos deificados.
Aqui fica um convite, ouvir a voz divina que sempre nos chama à liturgia e a
nos despertar para a realidade da Graça deificante: no amor extático de Deus. Não
fujamos deste convite pela soberba, pois já estamos a Ele ligados de tal modo que

465
SÃO BENTO. A Regra. Rio de Janeiro: Lumen Christi. 1980. Prólogo, 8-9, p. 13.
- 160 -

só resta uma decisão: vivê-Lo. Isto faz parte do mistério: caminho que não tem volta.
Não se trata de determinismo, mas sabedoria da natureza: pois se a terra mudasse
o seu ritmo de rotação repentinamente ou congelaria ou ferveria. Assim se os
humanos pela vontade própria fogem ao natural desequilibra a existência aos
extremos.
Desde o momento em que a teologia foi se distanciando do conceito de Deus
tal como se revela nas Escrituras e na Tradição dos Padres temos uma
conceituação de Deus mais filosófica que teológica; quase impossível de contagiar a
pessoa humana devido à racionalidade de conceitos abstratos.
Foi dentro desse universo de especulação que se deu a reforma e contra-
reforma na tentativa de buscar a clareza da fé, libertando-a do emaranhado em que
se havia metido na Idade Media, e, posteriormente, Moderna e Contemporânea.
Quando temos que ouvir da filosofia o discurso da “morte de Deus”, devemos
mesmo nos perguntar se se trata do Deus que se envolve conosco ou dos conceitos
metafísicos vazios de significação, dos quais só nos restam de fato o desprezo e o
seu sepultamento.
Resta para o homem de fé sempre a existência, a criação, a deificação,
enquanto fato e realidade; não palavras vazias e conceitos abstratos, pensamentos
que ajudam mais a expressar a habilidade do raciocínio que a própria
correspondência da idéia à realidade e a natureza dos fatos.
Este nosso trabalho quer colaborar para uma valorização constante das
Escrituras e da Tradição da Igreja. Pois quando colocamos um sujeito dentro da
subjetividade apenas estamos buscando a legitimação de uma realidade objetiva da
qual não damos conta de legitimar devido a nossa contingência espaço-temporal.
Estamos, aqui, contudo, querendo tirar do homem à pretensão e a necessidade de
se colocar no lugar de Deus por outra via que não seja a deificação sacramental,
inerente a sua natureza de Criatura-Objeto, não de Sujeito-Criador, independente.
Estamos pretendendo apontar uma via de fé (religação) por crer no Deus
transcendente. Mas uma fé que dispensa a ignorância por se descobrir participante
da natureza divina que tudo sabe e tudo pode, porque Ele nos deífica, independente
da nossa vontade. A deificação sacramental tem muito a dizer para as nossas
pastorais sacramentais. Uma fé assim descrita poderá enfrentar sempre o
pensamento humano, filosófico-racional, sugerindo-o, a atingir a sua fonte de
- 161 -

realidade que é o amor extático de Deus acerca do nosso destino: a comunhão e a


deificação, numa palavra: a santidade dos sacramentos.
Assim, Diego Gracia mostrou, resumidamente, o que seja a fé cristã, própria
da nossa religião de deificação, no pensamento de Zubiri:

O momento da verificação do esquema (abbozzo), no caminho do


homem para Deus, chama-se fé. A fé não é para Zubiri o
consentimento a um juízo fundado sobre o testemunho de outros, mas
a “entrega a uma realidade pessoal enquanto verdadeira”. A fé pode
ser forte, mas isto não tira o fato que se deve alimentar
continuamente; como verificar é continuar a verificar, crer é continuar a
crer. A fé não pode ser considerada como algo adquirido uma vez por
todas, mas um processo contínuo. A vontade da verdade, o “esquema”
(abbozzo) e a experiência de Deus devem confrontar-se
continuamente, e com elas a fé. Isto permite compreender porque a fé
é um processo dinâmico, no qual podem verificar-se níveis ou estágios
distintos. Zubiri distingue três deles: aquele da “fé teologal”, já descrita;
aquele da “fé teológica”, própria das religiões positivas ou históricas; e
aquele da “fé cristã”, próprio da religião de deificação466.

Esta é a fé cristã, religião do mistério do amor de Deus revelado em Cristo no


qual os humanos são envolvidos: “O mistério de Deus que torna homem, a
divinização do homem elevado pelo Verbo, representam a soma dos bens que Cristo
nos doou, a revelação do plano divino e a derrota de toda presunçosa auto-
suficiência humana”467.
Assim concluímos: Deificados pelos Sacramentos, podemos celebrar e orar:
Pai-nosso [...] porque somos seus filhos no Filho pelo amor do Espírito Santo.
Amém! Assim nós cremos na Vida Eterna!

466
GRACIA, D. Zubiri. In: FISICHELLA, R. (Org.) Dicionario di Teologia Fondamentale. Assis:
Cittadella Editrice, 1990. p.1462-1462. (Trad. Dom Lourenço Russo. Ex-abade da Congregação
Beneditina Vallombrosana).
467
ANDRÉ DE CRETA. Sermões. 1. In.: Unione Monastica Italiana Per La Liturgia. Liturgia delle Ore:
L’ora dell’Ascolto. Casale Monferrato: Edizioni Piemme, 1989. p. 2581.
- 162 -

REFERÊNCIAS: FONTES, DOCUMENTOS E BIBLIOGRAFIA

(1) Fontes:

BÍBLIA DE JERUSALÉM. (Nova edição revisada). São Paulo: Paulinas, 1986.

ANTOLOGIA LITURGICA. In CORDEIRO, J. L. (Org.). Antologia Litúrgica. Textos Litúrgicos,


Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Fátima-Portugal: Secretariado Nacional De
Liturgia: 2003.

IRINEU DE LIÃO, Livro IV, 20,7. In: IRINEU DE LIÃO, I,II,III,IV,V Livros, São Paulo: Paulus,
1995.

SÃO BENTO. A Regra. Rio de Janeiro: Lumen Christi. 1980.

PEREGRINAÇÃO DE ETÉRIA: Liturgia e catequese em Jerusalém no século IV. 2ªed.


Petrópolis: Vozes, 2004.

(2) Documentos e Estudos do Magistério:

COMPÊNDIO DO VATICANO II: Constituições. Decretos. Declarações. 21ªed. Petropólis:


Vozes, 1991.

DENZIGER – HÜNERMANN. Compêndio dos símbolos definições e declarações de fé e


moral. 40ªed. São Paulo: Loyola/Paulinas, 2007.

COMISSÃO EPISCOPAL DE LITURGIA. Enquirídio dos Documentos da Reforma Litúrgica


(EDREL). Portugal/Fatima: Secretariado Nacional de Liturgia, 1998.

CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral para a Catequese. 4ªed. São Paulo:
Loyola, 2003.

BENTO XVI, Carta encíclica: Deus é Amor. São Paulo: Paulus, 2006.

JOÃO PAULO II, Código de Direito Canônico. 9ªed. São Paulo: Loyola. 1995.

_______. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000.

_______. Carta Enciclica Ecclesia de Eucharistia. São Paulo: Loyola, 2008.

PAULO VI. MR Romano. 4ªed. São Paulo: Paulus, 1992.

_______. Ritual da Inciação Cristã de Adultos. 3ªed. São Paulo: Paulus, 2004.

_______. Ritual do Batismo de Crianças. São Paulo: Loyola, 1999.

PIO XII, Carta Encíclica Mediator Dei: sobre a sagrada Liturgia. In Documentos de Pio XII.
São Paulo: Paulus, 1999.

COLLANTES, J., (Org.). A Fé Católica. Documentos do Magistério da Igreja: das origens


aos nossos dias. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2003.

CELAM. Manual de Liturgia I. A Celebração do Mistério Pascal: introdução à celebração


litúrgica. São Paulo: Paulus, 2004.
- 163 -

CELAM. Manual de Liturgia II. A celebração do Mistério Pascal: fundamentos teológicos e


elementos constitutivos. São Paulo: Paulus, 2005.

CELAM. Manual de Liturgia III. A celebração do Mistério Pascal: Os sacramentos: Sinais do


mistério pascal. São Paulo: Paulus, 2005.

CELAM. Manual de Liturgia IV. A celebração do Mistério Pascal: outras expressões


celebrativas do mistério pascal e a liturgia na vida da Igreja. São Paulo: Paulus, 2007.

CNBB. As Introduções Gerais dos Livros Litúrgicos. 2ed. São Paulo: Paulus, 2003.

(3) Bibliografia:

ABAD, J. A., e GARRIDO, M. Iniciación a La Litugia de La Iglesia. Madrid: Ediciones


Palabra, 2007.

ALDAZÁBAL, J. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002.

_______ . Gestos e Símbolos. São Paulo: Loyola, 2005.

ARNAU-GARCIA, R. Tratado General de los Sacramentos. Madrid: BAC, 2007.

_______. Orden y Ministerios. Madrid: BAC, 2007.

AUGÉ, M. et al. O Ano Litúrgico: história teologia e celebração. Anámnesis V. São Paulo:
Paulinas, 1991.

AUGÉ, M. Liturgia: História – Celebração – Teologia – Espiritualidade. São Paulo: Ave-


Maria, 2004.

AUNEAU, J. Santidade: (A. Teologia Bíblica). In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de
Teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

BARSUKO, X. Historia de la Liturgia. Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica. 2006.

BEAUCHAMP, P. Deus. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.

_______. Criação. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.

BECKHÄUSER, A. Historia da Liturgia: através das épocas culturais. São Paulo: Loyola,
2007.

BERGAMINI, A. Cristo, Festa da Igreja: história, teologia, espiritualidade e pastoral do ano


litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994.

BIGGAR, N. Mandamento. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São
Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

BOROBIO, D. (Org.). A Celebração na Igreja I: Liturgia e sacramentologia fundamental. 2ed.


São Paulo: Loyola, 2002.

________. A Celebração na Igreja II: Sacramentos. 2ªed. São Paulo: Loyola, 2008.
- 164 -

________. A Celebração na Igreja III. Ritmos e tempos da celebração. São Paulo: Loyola,
2000.

________. Celebrar para Viver: liturgia e sacramentos da Igreja. São Paulo: Loyola, 2009.

BORTOLINI, J. Os Sacramentos em sua Vida: uma visão completa em linguagem popular.


São Paulo: Paulus, 2002.

BRESSOLETTE, C. Vaticano II. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia.
São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

BROUARD, M. Eucharistia: enciclopédia da Eucaristia. São Paulo: Paulus, 2006.

BUYST, I. A Missa: memória de Jesus no coração da vida. São Paulo: Paulinas, 2004.

BUYST, I. Liturgia, de Coração: espiritualidade da celebração. São Paulo: Paulus, 2003.

CABASILAS, N. La Vita in Cristo. 4ªed. Roma: Città Nuova Editrice, 2005.

CALDAS, E. J. F. e GARCIA, C. J. M. Liturgia da Igreja. Lisboa: Universidade Católica


Editora, 2008.

CARREZ, M. Filho do Homem. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São
Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

CASEL, O. O Mistério do Culto: no cristianismo. São Paulo: Loyola, 2009.

CASETTA, G. La Chiesa fa L’Eucaristia L’Eucaristia fa La Chiesa. Genova: Marconi, 2004.

CASTELLANO, J. Liturgia e Vida Espiritual: teologia, celebração, experiência. São Paulo:


Paulinas, 2008.

CHAUVET, L-M. Sacramento. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São
Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

CHUPUNGCO, A. J. Inculturação Litúrgica: sacramentais, religiosidade e catequese. São


Paulo: Paulinas, 2008.

CORBON, J. A fonte da liturgia. Lisboa: Paulinas, 1999.

COSTA, V. S. Viver a ritualidade litúrgica como momento histórico da salvação. São Paulo:
Paulinas, 2005.

________. A Liturgia na Iniciação Cristã. São Paulo: LTr, 2008.

________. Liturgia: peregrinação ao coração do Mistério. São Paulo: Paulinas, 2009.

________. Viver a Ritualidade Litúrgica como Momento História da Salvação: participação


litúrgica segundo a Sacrossanctum Concilium. São Paulo: Paulinas, 2005.

CUVILLIER, E. Filiação. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.
- 165 -

DE CLERCK. Batismo. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.

DEISSLER, A. Perfeição (AT). In: BAUER, J. B. (Dir.). Dicionário Bíblico-Teológico. São


Paulo: Loyola, 2000.

DEL VALLE, C. G. Jerusalén, la Liturgia de la Iglesia Madre. Barcelona: Biblioteca Litúrgica,


2001.

DI SANTE, C. Liturgia Judaica: fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004.

DOHMEN, CH. Criação (AT). In: BAUER, J. B. Dicionário Bíblico-Teológico. São Paulo:
Loyola, 2000.

DUNN, J. D. G. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003.

ELBERTI, A. Il Sacerdozio Regale dei Fedeli Nei Prodromi Del Concilio Ecumenico Vaticano
II (1903-1962). Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana, 1989.

EVDOKIMOV, P. L’Ortodossia. Bologna: EDB, 2010.

FABER, E-M. Doutrina Católica dos Sacramentos. São Paulo: Loyola, 2008.

FERNANDEZ, I. Justiça Divina. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São
Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

____________. Criação. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São
Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

FERRÁNDIZ, G. A. La teologia sacramental desde uma perspectiva simbólica. Barcelona:


Centre de Pastoral Litúrgica, 2004.

FLORES, J. J. Introdução à Teologia Liturgica. São Paulo: Paulinas. 2006.

FONTBONA, J. Ministerio de Comunión. Barcelona: Biblioteca Litúrgica, 1999.

GIRAUDO, C. Num só Corpo: tratado mistagógico sobre a Eucaristia. São Paulo:


Loyola, 2003.

_________. Admiração Eucarística: para uma mistagogia da missa à luz da encíclica


Ecclesia de Eucharistia. São Paulo: Loyola, 2008.

GOPEGUI, J. A. R. Eukharistia: verdade e caminho da Igreja. São Paulo: Loyola, 2008.

GRACIA, D. Zubiri. In: FISICHELLA, R. (Org.) Dicionario di Teologia Fondamentale. Assis:


Cittadella Editrice, 1990.

GY, P-M. Eucaristia. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.

HARDER, Y-J. Amor. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.
- 166 -

HEINE, S. Criação (NT). In: BAUER, J. B. (Dir.). Dicionário Bíblico-Teológico. São Paulo:
Loyola, 2000.

________. Pecado/Expiação (NT). In: BAUER, J. B. (Dir.). Dicionário Bíblico-Teológico. São


Paulo: Loyola, 2000.

HESCHEL, A.J. Deus em busca do homem. São Paulo: Editora Arx, 2006.

KERTELGE, K. Justificação. In: BAUER, J. B. (Dir.). Dicionário Bíblico-Teológico. São


Paulo: Loyola, 2000.

KREUZER, S. Imagem/Semelhança (AT). In: BAUER, J. B. (Dir.). Dicionário Bíblico-


Teológico. São Paulo: Loyola, 2000.

KÜHN, U. Igreja. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.

LACOSTE, J-Y. Ser. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.

LÓPEZ MARTIN, J. A Liturgia da Igreja: teologia, história, espiritualidade e pastoral. São


Paulo: Paulinas, 2006.

LOSSKY, V. A Immagine e Somiglianza di Dio. Bologna: EDB, 1999.

LUTZ, G. O que é Liturgia? São Paulo: Paulus, 2003.

MARDONES, J. M. A Vida do Símbolo: a dimensão simbólica da religião. São Paulo:


Paulinas, 2006.

MARSILI, S. et al. Panorama histórico geral da liturgia. Anámnesis II. São Paulo: Paulinas,
1987.

_________. et al. A Eucaristia: teologia e história da celebração. Anámnesis III. São Paulo:
Paulus, 1987.

_________. Sacramentos. In: SARTORE, D. e TRIACCA, A.M. (Orgs.). Dicionário de


Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1992.

MARTIMORT, A. G. A Igreja em Oração I. Princípios da Lirurgia. Petrópolis: Vozes, 1988.

_________. A Igreja em Oração II. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 1989.

MCPARTLAN, P. Santidade. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São
Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

MONGE, CONTEMPLATIVO. Deificação: participação na natureza divina. Petrópolis: Vozes,


1995.

MORAES, F. F. O espaço do culto à imagem da Igreja. São Paulo: Loyola, 2009.

MURRAY, R. Adão. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.
- 167 -

MUSSNER, F. Perfeição (NT). In: BAUER, J. B. (Dir.). Dicionário Bíblico-Teológico. São


Paulo: Loyola, 2000.

NADEAU, M-T. Eucaristia: memória e presença do Senhor. São Paulo: Paulinas, 2005.

NEUNHEUSER, B. et al. A liturgia momento histórico da salvação. Anámnesis I. São Paulo:


Paulinas, 1987.

__________. História da Liturgia: através das épocas culturais. São Paulo: Loyola, 2007.

NICOLAS, J-H. Sintesi Dogmatica: dalla trinità alla trinità. Volume I: Dio uno e Trino
L’incarnazione Del verbo. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1991.

____________. Sintesi Dogmatica: dalla trinità alla trinità. Volume. II: La Chiesa e i
Sacramento. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1992.

NIN, M. Liturgia. In: FARRUGIA, E.G. Dizionario Enciclopedico dell’Oriente Cristiano. Roma:
Pontificio Istituto Orientale, 2000.

NOCENT, A. Batismo. In: SARTORE, D. e TRIACCA, A. M. Dicionário de Liturgia. São


Paulo: Paulinas, 1992.

NOCENT, A. et al. Os Sacramentos: teologia e história da celebração. Anámnesis IV. São


Paulo: Paulinas, 1989.

OEMING, M. Pecado Original. In: BAUER, J. B. (Dir.). Dicionário Bíblico-Teológico. São


Paulo: Loyola, 2000.

OÑATIBIA, I. Batismo e Confirmação: sacramento de iniciação. São Paulo: Paulinas, 2007.

PENNA, R. Salvação: (A. Teologia Bíblica). In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de
Teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

RAHNER, K. La Iglesia y los Sacramentos. Barcelona: Editorial Herder, 1967.

RATZINGER, J. Introdução ao espírito da Liturgia. Prior Velho: Paulinas, 2006.

________. Natureza e Missão da Teologia. Petrópolis: Vozes, 2008.

ROVIRA BELLOSO, J. M. Os Sacramentos: símbolos do espírito. São Paulo: Loyola, 2008.

SCHILLEBEECKX, E. Cristo Sacramento do Encontro com Deus: estudo teológico sobre a


salvação mediante os sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1967.

SCHNACKENBURG, R. Batismo. In: BAUER, J. B. (Dir.). Dicionário Bíblico-Teológico. São


Paulo: Loyola, 2000.

SCOUARNEC, M. Símbolos Cristãos: os sacramentos como gestos humanos. São Paulo:


Paulinas, 2001.

SEMMELROTH, O. La Iglesia como Sacramento Original. 2ed. San Sebastian: Ediciones


Dinor, S. L., 1966.
- 168 -

SENTIS. L. Pecado Original. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São
Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

SESBOÜÉ, B. Cristo/Cristologia. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia.


São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

SILVA, J. A. e SIVINSKI, M. (Orgs.). Liturgia: um direito do povo. Petrópolis: Vozes, 2001.

SPIDLÍK, T. Deificazione. In: FARRUGIA, E.G. Dizionario Enciclopedico dell’Oriente


Cristiano. Roma: Pontificio Istituto Orientale, 2000.

STÖGER, A. e BAUER, J.B. Eucaristia. In: BAUER, J. B. (Dir.). Dicionário Bíblico-Teológico.


São Paulo: Loyola, 2000.

TABORDA, F. O Memorial da Páscoa do Senhor: ensaios litúrgico-teológicos sobre a


Eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009.

ROCCHETTA, C. Os Sacramentos da Fé: ensaio de teologia bíblica sobre os sacramentos


como “maravilhas da salvação” no tempo da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1991.

TILLARD, J-M. R. Comunhão. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São
Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

VAGAGGINI, C. Il Senso Teologico della Liturgia: saggio de liturgia teológica generale.


Milano: San Paolo, 1999.

VISENTIN, P. Eucaristia. In: SARTORE, D. e TRIACCA, A.M. (Orgs.). Dicionário de Liturgia.


São Paulo: Paulinas, 1992.

WÉNIN, P. Sabbat. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.

WILLIAMS, R. Justificação. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São
Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

WOLINSKI, J. Deus. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo:
Paulinas/Loyola, 2004.

ZUBIRI, X. El Hombre y la Verdad. Madrid: Alianza Editorial, 2006.

ZUBIRI, X. El Hombre: Lo Real y lo Irreal. Madrid: Alianza Editorial, 2005.

ZUBIRI, X. Intelligenza Senziente. Milano: Bompiani, 2008.

ZUBIRI, X. Naturaleza, Historia, Dios. 13ed. Madrid: Alianza Editorial, 2007.

ZUBIRI, X. Sobre La Realidad. Madrid: Alianza Editorial, 2001.

ZUBIRI. X. El Ser Sobrenatural: Dios y la Deificación em la Teologia Paulina. Barcelona:


Herder, 2008.

ZUMSTEIN, J. e DETTWILER, A. Espírito santo. In: LACOSTE, J-Y. (Dir.). Dicionário Crítico
de Teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004.

You might also like