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•a

Rubem Alves, um dos grandes teólogos bra­


sileiros, se afasta daquilo que se cristalizou
como forma clássica de fazer teologia.
Nestas meditações faz teologia sobre o cor­
po. O corpo dos sacrificados. Os corpos que
pronunciam o nome sagrado: DEUS.
Para ele, a teologia é um poema do corpo,
o corpo orando, o corpo manifestando suas
esperanças, falando sobre o seu modo de
morrer, sua ânsia de imortalidade, apontan­
do para o futuro...
Pode-se ver neste ensaio uma nova ótica da
Encarnação, que nos faz entender melhor o
que é a Teologia da Libertação.

LT LIBERTAÇÃO
TEOLÓGICA
EDIÇÕES PAULINAS
Rubem Alves
variações sobre a
VIDA e a MORTE
Coleção " Libertação e Teologia"

1. Teologia da libertação, S. Galilea


2. A Igreja das bem-aventuranças, S. Galilea
3. Pobres e libertação em Puebla, G. Gutiérrez
4. Os teólogos da libertação, B. Mondin
5. A Bíblia dos oprimidos, E. Tamez
6. Evangelho e libertação na América Latina, R. Munõz
7. A fé em história e sociedade, J. B. Metz
8. Evangelho beligerante, A. Fiero
9. A luta dos deuses, Vários
10. Os desafios de Puebla, C. Eroles
11. A igreja que surge da base, Vários
12. Êxodo: Uma hermenêutica da liberdade, S. Croatto
13. O futuro de Puebla, H. Alessandri
14. Variações sobre a vida e a morte, Rubem Alves
15. O evangelho emergente, S. Torres - V. Fabella
16. A hora de Maria, a hora da mulher, M.T.P. Santiso
17. Estamos salvos, V. Tepe
RUBEM ALVES

Variações
sobre a vida e a morte
A teologia e a sua fala

e d i ç õ e s p a u l in a s
© Edições Paulinas, São Paulo, 1982
Às vítimas que
se ofereceram em sacrifício,
por amor e esperança,
de cujas vozes nos lembramos...
Ao Paulo,
ao Maurício,
ao Ivan,
a muitos outros...
Introdução

Escreví este livro por não ter alternativas.


Sou teólogo, lá no fundo, nos meus sonhos... Brinco
com os símbolos da minha tradição cristã. Não foi
escolha minha. Aconteceu. E, querendo ou não,
quando estou falando com os outros ou comigo
mesmo, de vez em quando um intrometido se insi­
nua, não ifnportando que já esteja morto, faz muito
tempo, e reconheço, pelo que me é segredado, que
é Agostinho, ou Lutero, ou Bonhoeffer. E, para
meu embaraço, uns outros, sem os cheiros teológi­
cos, se metem na conversa, e me descubro falando
com Nietzsche, Marx, Cecília de Meireles, Gabriel
Garcia Marques, Valery, Hermann Hesse, Feuer-
bach. É assim que entendo teologia. Falar sobre a
vida, suas coisas mais simples e mais graves, com
amor, usando símbolosImemórias que uma tradi­
ção enfiou na minha carne. É por isto que não tenho
alternativas...
Você vai notar que o estilo da coisa se desvia
daquilo que se cristalizou como forma clássica para
um escrito teológico. E vou lhe explicar porquê.
O mundo acadêmico é algo aterrorizador. Nietz­
sche dizia que, entre suas paredes, todos se com­
portam como aranhas, esperando aquele que anda
com pernas trôpegas. Daí que escrever é uma coisa
que produz medo. E todos tratam de se proteger,

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pelo estilo rebuscado e excessivamente técnico, na
esperança de que os leitores tomem águas barren­
tas por águas profundas. E vem as infindáveis notas
de rodapé e as inúmeras defesas... Nenhum flanco
pode ficar aberto... Não se deve dar ao leitor/ adver­
sário a mínima chance de falar. De fato, o ideal de
um texto científico é de algo tão perfeitamente teci­
do, tão provado e comprovado, que o leitor fique
mudo, só lhe restando o silêncio... Eu tomei a deci­
são de pular fora deste jogo, que me parece muito
vazio de risos. Por uma razão muito simples. Se eu
sou capaz de conversar com alunos e amigos, em ab­
soluta descontração, sem notas de rodapé e sem
respostas, dando asas à minha imaginação, sem que,
por isto, eu seja considerado ou louco, ou irres­
ponsável, ou superficial, por que não fazer com
que o livro seja a continuação desta conversa, com
mais gente? E foi então que me propus a escrever
da forma como eu falo. Estou seguindo um con­
selho de Nietzsche: * escrever com sangue” . Em
outras palavras: é necessário que o texto, como
continuação do meu corpo, participe das minhas
sombras e das minhas luzes. O texto tem de abri­
gar o desejo. É isto que faz com que ele se ligue
existencialmente com o leitor. E, assim, a expe­
riência de escrever e de ler se torna uma experiência
de fraternidade...
Escrevi estas coisas sobre teologia porque sem­
pre me afligi em face das interrogações silenciosas
na face dos meus amigos, quando eu lhes dizia que
era teólogo. Porque todo mundo pensa que teo­
logia é algo que tem cheiro da Idade Média (e, de
fato, tem), que está ligada ao irracional ou que é

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ciência que pretende descrever o mobiliário dos
céus e a temperatura do inferno...
Teologia é um jeito de falar sobre o corpo.
O corpo dos sacrificados.
São os corpos que pronunciam o nome sagrado:
Deus...
A teologia é um poema do corpo,
o corpo orando,
o corpo dizendo as suas esperanças,
falando sobre o seu medo de morrer,
sua ânsia de imortalidade,
apontando para utopias,
espadas transformadas em arados,
lanças fundidas em podadeiras...
Por meio desta fala
os corpos se dão as mãos,
se fundem num abraço de amor,
e se sustentam para resistir e para caminhar.

E aí vão estas meditações, prá sugerir a teólo­


gos por profissãoIsem vocação, a teólogos por vo­
cação/sem profissão, a quem quer que tenha um
corpo, goste de carícias, ame a vida e o mundo,
tenha medo de morrer, é, sugerir os fascínios desta
fala que pode virar pele, casa, bandeira, horizonte,
altar...

Rubem Alves
15.09.81

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"Verdadeiro eu chamo àquele que entra nos
desertos vazios de deuses... Nas areias ama­
relas, queimadas de sol, sedento, ele vê as
ilhas cheias de fontes, onde coisas vivas des­
cansam debaixo de árvores. Não obstante, a
sua sede não o convence a tornar-se como um
destes, habitantes do conforto; pois onde há
oásis aí também se encontram os ídolos*.

(Nietzsche)
Teologia como
“Variações sobre um tema dado”

“ — A minha profissão? Bem... sou teólogo.


Não, o senhor não me ouviu bem. Não sou geólogo.
Teólogo. Isto mesmo... Não é necessário dissimu­
lar o espanto porque eu mesmo me espanto, fre-
qüentemente. E nem esconder o sorriso. Eu com­
preendo. Também não é necessário pedir descul­
pas. Sei que sua intenção foi boa. Perguntou sobre
minha profissão apenas para começar uma con­
versa. A viagem é longa. É fácil falar sobre profis­
sões. Tudo teria dado certo se a minha fosse uma
destas profissões que todo mundo conhece. Se eu
tivesse dito dentista, médico, mecânico, agente fu­
nerário já estaríamos em meio a um animado bate-
-papo. Da profissão passaríamos à crise econômica,
da crise econômica saltaríamos para a política e o
mundo seria nosso...”
Em outros tempos a situação teria sido outra.
Vocês já notaram que há certas profissões que não
podem esperar a pergunta? Elas tomam a iniciativa
e andam por aí se anunciando. É o que acontece,
por exemplo, com os médicos, que convidam a
admiração de todos através das roupas brancas que
usam. Ou os militares, que abrem espaço com a
cor e o brilho de suas túnicas, botões, condecora­

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ções... É sempre assim: profissões respeitadas se
trombeteiam por meio de vestes apropriadas. No
caso de lhes faltarem as vestes, basta-lhes falar a
linguagem que testemunham das universidades que
freqüentaram e das instituições que os acolhem.
Ouçam o discurso inconfundível dos técnicos, espe­
cialistas, administradores... E pensar que, em tem­
pos idos, era a batina!
Houve tempo em que os teólogos se anuncia­
vam. Sua presença não pedia explicações, apenas
respeito e admiração. E os colarinhos clericais, as
vestes sacerdotais, a rigorosa linguagem dos que
têm familiaridade com a erudição, declaravam, com
segurança e tranqüilidade, que um teólogo estava
presente. Bons tempos aqueles em que os especia­
listas nos segredos divinos eram reverenciados e
honrados... Era então que todos sabiam que as
coisas que realmente importam são aquelas que
não se vêem: a alma, o inferno, o céu, o purgató­
rio, a Santíssima Trindade, a presença de Cristo
na eucaristia. Como comparar coisas eternas e coi­
sas efêmeras, coisas invisíveis e coisas visíveis?
Que abismo de dignidade e honra as separa... Claro
que existe um lugar para a ciência das coisas físi­
cas. Mas ela estará, provavelmente, mais próxima
das habilidades dos cozinheiros e da arte de ferrei­
ros e celeiros: coisas a serem usadas para nosso
conforto, sem que nos esqueçamos nunca de seu
caráter transitório.
E era sobre as coisas invisíveis e eternas que
falavam os teólogos, coisas que a imaginação artís­
tica tornava visíveis na pintura, na escultura, na
arquitetura... E os corações tremiam e choravam,

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sorriam e explodiam em esperança nas redes lin­
guísticas que os teólogos teciam.
Acontece que as coisas mudaram.
Progressivamente a imaginação se enfraqueceu.
As pessoas deixaram de ter visões. E, se as tinham,
tratavam de mantê-las em segredo. Porque se, no
passado, visionários eram candidatos à santidade,
agora eles se arriscavam à companhia dos loucos.
Deus foi progressivamente expulso do mundo. Com
a expansão da ciência os céus se esvaziaram de
mistérios. Ficaram, repentinamente, desabitados.
Sem amor, sem ódio, sem finalidade alguma... Ape­
nas a beleza glacial, imóvel, das fórmulas matemá­
ticas. Deus passou a ser uma hipótese desnecessá­
ria. Praticamente ele não fazia diferença alguma.
E aqui está o embaraço dos teólogos.
Antes eles falavam sobre Alguém que fazia
toda a diferença e em quem se dependurava o des­
tino dos homens. Agora eles falam sobre algo que
não faz diferença alguma... Não admira que, aos
olhos da ciência, o teólogo tenha ficado meio pare­
cido com o alquimista, com o astrólogo...
À primeira vista pode parecer que o proble­
ma esteja no fato de que o teólogo nada mais faz
que falar. Que diferença, quando o comparamos
com médicos, dentistas, mecânicos, agentes funerá­
rios, soldados, cozinheiros. Quando qualquer uma
destas profissões entra em ação, as coisas ficam
diferentes: operações, obturações, soldas, funerais
e sepulturas, paradas e batalhas, tortas e assados:
as mãos trabalham, eventos e objetos são produ­
zidos. Mas o teólogo fala, só fala... Acontece que
também advogados, generais, políticos, psicanalis­

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tas e sociólogos são profissionais de fala — para
não mencionar poetas e literatos.
E o fato é que ninguém duvida de que estas
falas façam diferença. Se assim não fosse os clien­
tes de advogados e psicanalistas não pagariam seus
serviços a peso de ouro. E os generais? Haverá
alguém que questione o poder de suas ordens?
Elas abrem portas, fecham portas, fazem homens
marchar e homens se esconder. E mesmo os soció­
logos, sem clientes e sem tropas, são temidos pelo
poder de sua fala, que tem a estranha capacidade
de virar as coisas de cabeça para baixo, descostu-
rando roupas de reis e sacerdotes, substituindo a
pompa dos uniformes pela vergonha dos ventres
proeminentes e peles flácidas, o que não raro lhes
custa o ostracismo e o desemprego... Estas falas
fazem uma diferença.
Não, os teólogos deixaram de se anunciar por
meio de uniformes e não podem esconder o em­
baraço quando alguém lhes pergunta sobre a sua
profissão.
Teologia, esta fala sobre as coisas invisíveis.
Que diferença faz?
Quais são os seus clientes?
Quem lhe pagaria honorários?
Quem entende seu estranho discurso?

Será que nossa clientela se reduziu a uns pou­


cos sobreviventes do mundo romântico e mágico
dos cavaleiros andantes, ou àqueles que, de medo,
não ousam dar ouvidos à ciência? Pergunta que
nos fez Bonhoeffer. Ou não passaremos de fantas-

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mas, assustando os desavisados? Lembro-me de
um personagem de Camus que se divertia visitando
os cafés freqüentados pela elite intelectual de Pa­
ris, só para causar escândalo. É, brincava de teó­
logo... Quando a conversa já ia animada deixava
escapar um palavrão obsceno: “ Graças a Deus!*1
ou simplesmente: “ Meu D eus...” E era o pan­
demônio:
“ Bem sabe como os nossos ateus de roda de
bar são comungantes tímidos. Um momento
de espanto seguia-se ao enunciado desta enor­
midade, entreolhavam-se, estupefatos, depois
estourava o tumulto, uns fugiam do bar, outros
cacarejavam com indignação sem nada ouvir,
todos se retorciam em convulsões, como o
diabo na água benta” . (A. Camus, A queda,
p. 73).
Teria sido muito mais fácil se eu tivesse dito:
“ — Minha profissão? Escrevo estórias de fa­
das para crianças” .
Qualquer teria entendido. Provavelmente al­
guns me teriam amado... Haverá coisa mais fasci­
nante que falar sobre gigantes, bruxas más, prin­
cesas adormecidas, madrastas perversas, anões tra­
vessos, palavras encantadas, príncipes valentes e
puros, felicidade até o fim dos seus dias? Tudo
isto é permitido no reino da fantasia.
Mas, e o teólogo? Sua fala também não se
constrói com materiais tirados da fantasia? Sua
boca não está ligada aos olhos da fé? Ao sonho?
À visão?

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2. VarlaçOes...
“ E vi um novo céu e uma nova terra...
E Deus enxugará dos seus olhos todas as
lágrimas...
O leão comerá palha como o boi,
o lobo habitará com o cordeiro,
as espadas serão transformadas em arados,
as lanças em tesouras de podar,
e os mansos e pobres herdarão a terra
e verão a Deus...”

Por favor, que me digam a diferença entre o


conto de fadas que produz ternura, e a fala do
teólogo, recebida com desdém...
Talvez que a diferença tenha a ver com o fato
de que contos de fadas são contados para fazer
dormir as crianças, enquanto a fala teológica deseja
fazer os homens acordar, viver... O teólogo fala
como quem acredita. Mas é isto que ficou proi­
bido: acreditar. Daí a vergonha e o estigma. Como
é possível que o levem a sério? Mais triste: como
pode o teólogo levar-se a sério?
Compreende-se que ele se sinta perdido pe­
rante seus sólidos interlocutores cujas profissões
todos entendem: pés firmemente colados ao chão,
imaginação subordinada à observação, o desejo do
corpo controlado pelas exigências da realidade. De
fato os teólogos, pássaros de asas quebradas, não
podem com eles competir.
Daí o seu silêncio, a solidão, as línguas inin­
teligíveis do seu discurso, os guetos em que se refu­
giam: comportamento de pessoas amedrontadas,
que se recusam a falar por saber que, uma vez dita

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a primeira palavra, eles por ela serão traídos. E
a palavra dita ficará mal/dita...
Mas é possível procurar saídas por um outro
lado. E é assim que os vemos freqüentemente con­
cordando em dizer adeus ao seu jogo, tal como era
jogado no passado, conformando-se em vê-lo redu­
zido à condição inferior de um simples dialeto de
uma outra linguagem mais nobre — tal como acon­
tece com o caipira que tem de esquecer sua fala e
sucumbir à música e à gramática do discurso urba­
no. E o teólogo — por derrota ou amor, não im­
porta — se entrega a outros jogos, seja a sociolo­
gia, seja a psicanálise, seja a política. E então, e
não sem um certo constrangimento, ele muda suas
coisas e palavras dos espaços da metafísica e as
entulha nas cavernas da ideologia ou da neurose.
O que se ganha com isto?
É muito simples.
Ninguém faz perguntas acerca da verdade de
tranqüilizantes e estimulantes. A questão da ver­
dade sucumbe perante as evidências de sua utili­
dade. Lembram-se do Admirável mundo novo, de
Huxley? Até lá, sob o domínio de cientistas, tec-
nocratas e administradores, a felicidade era tera-
peuticamente distribuída em pílulas. Compreende-
-se assim que mesmo uma sociedade totalmente
secularizada e atéia possa reconhecer o valor do
ópio, seja sob a forma de compostos químicos, seja
sob a forma de ilusões religiosas. E se os sacerdotes
de uma ordem estabelecida preferem o sono, os
iconoclastas preferirão os corpos retesados em dan­
ças guerreiras. Há soluções químicas para ambas
as demandas. Há poções teológicas para ambos os

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casos. E assim seria possível ao teólogo ressuscitar
das cinzas, agora não mais sob o patrocínio da ver­
dade, mas sob a égide da utilidade. Apenas um
pequeno ajustamento seria necessário: o teólogo se
descobriria vizinho e colega dos boticários...
Foi então que uma curiosa idéia me veio à
mente. E se o nosso interlocutor, ao invés de se
retrair com um sorriso enigmático ao ouvir nossa
resposta, prosseguisse com tranqüilidade e candura:
“ — Então o senhor é um teólogo! Sabe, sem­
pre me fascinei pela aura de mistério que envolve
a teologia. Mas nunca pude entendê-la. Ponha-se
na minha situação. Se o senhor tivesse como com­
panheiro de viagem um matemático e lhe pergun­
tasse: “ Explique-me o que é a matemática” — qual
seria a sua reação se ele se pusesse a discorrer sobre
os Principia mathematica de Russell e Whitehead?
Pois é assim que eu me sinto quando os teólogos
começam a falar... Por favor, faça um esforço...”
Espantei-me então em descobrir em meu inter­
locutor um amigo fraterno que articulava, com voz
clara, perguntas que eram muito minhas. Mais do
que ele, eu queria entender aquilo que fazia, ao
brincar com os símbolos que constituem a teologia.
Você se espanta de que alguém faça algo sem
saber por quê?
Não deveria.
Na verdade são poucas, pouquíssimas, aque­
las atividades que realizamos sob a luz do saber.
A começar pelo uso da linguagem, que falamos
sem conhecer as regras da gramática, e que nos foi
ensinada pelos nossos pais sem que eles saibam
como o fizeram. E andamos de bicicleta, nada­

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mos, cantamos, fazemos amor — e se nos pedirem
explicações teremos de confessar que pensamos
pouco sobre o assunto e nossas conclusões são
ainda insatisfatórias.
É no momento em que as coisas se tornam
penosas e difíceis que o conhecimento é invocado.
Pessoas que não sofrem do fígado nem mesmo
sabem que o possuem. É necessário que ele doa —
e com a dor surge a consciência. E é isto que acon­
tece com os sapatos confortáveis, que usamos o
dia todo sem deles nos lembrar, até que uma pe-
drinha transforma o pé no centro do mundo. Pa­
rodiando o poeta português Fernando Pessoa eu
diria que “ pensamento é doença do corpo” .
Digo isto para sugerir que, para aqueles que
a amam, a teologia é uma função natural como
sonhar, ouvir música, beber um bom vinho, cho­
rar, sofrer, protestar, esperar... Talvez que a teo­
logia nada mais seja que um jeito de falar sobre
tais coisas, dando-lhes um nome e apenas distin-
guindo-se da poesia porque a teologia é sempre
feita com uma prece... Não, ela não decorre do
“ cogito” , da mesma forma como poemas e preces.
Ela simplesmente brota e se desdobra, como ma­
nifestação de uma maneira de ser: “ suspiro da
criatura oprimida” — seria possível uma definição
melhor?
Mas, no momento em que surge a dor da
incompreensão e as palavras são recebidas com um
sorriso de escárnio, a teologia se transforma em
atividade problemática. E acontece então aquilo
que ocorre com as pessoas portadoras de uma de­
formação facial, conscientes a cada minuto de sua

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diferença e dos olhares de espanto ou dó, e se
sentem obrigadas ou a se esconderem ou a assumir
a diferença, com um desafio.
E é isto que eu proponho: sem desculpas e
sem capitulações, levantar o rosto e simplesmente
explicar para os outros e para nós mesmos, espe­
cialmente para nós mesmos...
O que é a teologia?
E nos voltamos para nosso interlocutor que
propôs a pergunta e espera... Compreendemos, de
saída, que será necessário nos valermos das pará­
bolas e analogias. É assim que se caminha: do
conhecido para o desconhecido.
“ — O senhor já ouviu falar de Castália? Isto
mesmo. Está lá no livro de Hermann Hesse, O jogo
das contas de vidro. Castália, ordem monástica de
um mundo no futuro. Ordens monásticas conhece­
mos muitas. Mas o que distingue Castália é a curio­
sa maneira que ela encontrou para organizar
a sua vida espiritual em torno de um jogo,
um brinquedo” .
Por favor, não se deixe levar pelo mal-estar
causado por estas duas palavras: jogo, brinquedo.
Claro que somos pessoas sérias e preferimos fazer
nossos investimentos no trabalho e nas ações gra­
ves e heróicas que podem transformar a história.
Quanto aos jogos e brinquedos, estão mais próxi­
mos do ócio e do fútil, coisa de crianças, e será
sempre possível questioná-los com a terrível per­
gunta: “ Quais as suas implicações políticas?”
Que se trata de coisa infantil não há dúvidas.
Mas, lembrando-nos de que “ se não nos con­
vertermos e não nos fizermos como crianças não

22
poderemos ver o reino dos céus” , teremos de dar
um crédito de confiança a Castália, para que ela
nos explique o seu jogo.
O senhor se espanta? Eu compreendo. Mas
o fato é que para se fazer teologia e para se jogar
o jogo das contas de vidro (era assim que se cha­
mava o exercício espiritual de Castália) é necessá­
rio ter um pouco do espírito das crianças...
Jogos e brinquedos são coisas muito sérias.
Veja esta maravilhosa sugestão que nos vem de
Schiller:
“ Um animal trabalha quando uma falta
é a força que o impulsiona à atividade,
mas ele brinca quando é a
abundância, um excesso de vida
aquilo que o empurra e compele à ação...”
(Citado por Walter Kaufmann, Hegel: a
reinterpretation, p. 28).

Nos jogos e brinquedos a liberdade e a neces­


sidade se encontram, e a alegria que deles se deriva
brota justamente da liberdade triunfante que do­
mina a necessidade, produzindo um mundo passí­
vel de ser amado.
A vida, não é ela mesma um jogo? De forma
alguma estou dizendo que o jogo não é sério. Mi­
lhões são a ele sacrificados, diariamente. Milita­
res que tomam decisões sobre construção e aloca­
ção de bombas atômicas e alocação de tropas não
se comportam exatamente como jogadores de xa­
drez? E a economia? Os investimentos na bolsa?
Tudo não se processa num estranho paralelismo

23
com as regras de jogos? E nós não podemos evitar
as máscaras e desempenhamos nossos pápeis no
palco, como teólogos, professores, amantes, poli­
ciais, revolucionários, crentes, cientistas... Claro que
em muitos dos jogos as pessoas se esquecem de
que estão jogando. Seus jogos se transformam em
coisa séria, os reis e os palhaços não mais riem
de si mesmos e nem lavam o rosto e nem vestem
pijamas quando vão dormir. Perderam a memória
de quem são.
Mas voltemos ao jogo das contas de vidro
dos monges de Castália.
Em que consistia ele?
Em música existe uma coisa muito comum
chamada “ variações sobre um tema dado” . A idéia
é muito simples.
O compositor toma uma série de sons e com
eles constrói um tema austero, nu, desprovido de
qualquer tipo de ornamentação.
Inicia-se então o brinquedo. E o compositor
pergunta a este tema:
“ — Quais são os limites da sua plasticidade?
Até que ponto será possível alterá-lo sem
destruir sua identidade? ”
E, aceitando o tema como motivo, o compo­
sitor estabelece-o como núcleo central de uma teia
a ser tecida. E ele se põe a construir uma tapeçaria
de sons, variando, alterando, invertendo, adornan­
do, complicando, fazendo assim surgir, por meio de
sucessivas e progressivas revelações, as possibilida­
des que se escondiam, adormecidas, no tema ideal.
Bach constrói as monumentais “ Variações
Goldenberg” .

24
Mozart faz a mesma coisa, demonstrando gran­
de prazer neste brinquedo musical.
Beethoven não resiste ao fascínio do jogo,
e por vezes sem conta suas composições portam
o título “ variações...”
Não podendo nos esquecer da belíssima peça
orquestral de Britten, “ Variações sobre um tema
de Purcel” , para ajudar crianças e grandes a enten­
der a orquestra...
Mas, e se os sons não bastarem para a cons­
trução? O mundo está cheio de outras coisas. Ao
lado dos sons musicais estão as cores, materiais
sólidos como pedra e madeira, as palavras. E há
jardins, poemas, danças, teorias científicas, mitos,
ritos, monumentos, jóias, túmulos... Claro que não
poderemos manipular tais coisas, como se fossem
peças de xadrez. Mas podemos submetê-los à má­
gica transubstanciação da linguagem, que nos per­
mite remover uma montanha inteira apenas pro­
nunciando uma palavra. As coisas se transubstan-
ciam em contas de vidro, tornando-se assim peças
do nosso jogo.
Imaginemos agora um jogo semelhante a “ Va­
riações sobre um tema dado” , e que pode e deve
ser construído com todos os materiais simbólicos
possíveis, extraídos da experiência humana e de
tudo aquilo que a cultura já produziu. A tarefa:
construir uma arquitetura simbólica que evoque e
represente a presença escondida do tema proposto,
fazendo com que todos os cantos e recantos do
nosso mundo entrem em reverberações harmônicas,
cantando partes de uma polifonia, revelando assim
um mágico encanto, onipresente... Em torno da

25
grande conta de vidro, temática fundadora, central,
as outras vão sendo agregadas, até que, ao final,
tudo canta, em cânon, o que foi proposto no início
Esta é a idéia básica do exercício lúdico em torno
do qual girava Castália: o jogo das contas de vidro.
E se eu fizesse a insólita sugestão de que a
teologia é um jogo de contas de vidro? E que
Hermann Hesse, talvez, tenha se inspirado naquilo
que os teólogos têm feito, através dos séculos, como
modelo para os exercícios espirituais dos monges
de Castália?
O que faz um teólogo?
Ele fala.
Pode ser que faça muitas outras coisas, mais
gratificantes, mais belas, mais relevantes: o que
não se pode negar é que como teólogo, ele lida
com símbolos. Brinca com eles.
Em que se distingue de outros jogadores de
símbolos?
É simples. Ele usa contas de vidro que os
outros não usam e não usa muitas das que os outros
empregam.
Como caracterizar as contas teológicas? Não
é difícil. Seu brilho, suas cores, seu calor... Não é
possível confundir. Mas voltaremos a isto em outra
ocasião. Porque agora o teólogo, nosso amigo, se
dirige para a arca onde se encontram guardadas as
suas contas. E ele começa a retirá-las. Mitos, ritos,
símbolos, visões utópicas, poemas, salmos, preces,
maldições, estórias, gestos, desertos, cidades, mor­
tes, assassínios, ressurreições, eperanças, homens e
mulheres de mãos dadas, corpos colados, em amor,
prisões, lágrimas, muitas lágrimas, dores, muitas

26
dores, sorrisos, muitos sorrisos, rostos, muitos
rostos...
E o teólogo toma as contas inertes, aquece-as
em suas mãos, elas fulguram, ganham vida, e ele
começa a organizá-las, como se fossem tapetes,
amarrando os símbolos uns nos outros, até que a
rede se alongue o bastante para ser pendurada nos
dois lados do abismo. Lembram-se de Zarathustra?
“ O homem é uma corda sobre um abismo...”
E o teólogo estende sobre o abismo a rede
simbólica que ele teceu no seu jogo de contas de
vidro, para aqueles que quiserem tomar o risco
de nela descansar seus corpos.
Ah! Como deve parecer insólita esta proposta.
Que teólogo, no passado, teve a desfaçatez
de comparar seu trabalho ao jogo e ao artesanato?
Seus rostos graves revelavam a gravidade da sua
tarefa: abrir as portas das coisas divinas e eternas.
Sabiam que, em oposição às sombras em que os
outros homens viviam, eles habitavam os lugares
sagrados onde a voz de Deus se fazia ouvir e con­
templavam a luz clara e direta da Revelação. Tra­
balhavam sob o imperativo da verdade. E, da mes­
ma forma como os cientistas da natureza, que tam­
bém por amor à verdade subordinavam a imagi­
nação à observação e se tornavam totalmente sub­
missos ao objeto, os teólogos, cientistas das coisas
divinas, desejavam que a sua fala fosse conheci­
mento rigoroso e objetivo das coisas que têm a
ver com a divindade.
Mas agora eu sugiro que a teologia é jogo,
construção, artesanato: coisa humana, por demais
humana. Dizer que teólogos são jogadores/tapecei-

27
ros não será o mesmo que dizer que eles são joga­
dores/ trapaceiros?
Compreendo o espanto de todos e, para ame­
nizar a situação, eu invocaria dos mortos um con­
tador de parábolas: Kierkegaard, que nos dirá de
um dançarino curioso...

“ Se um dançarino desse saltos muito altos,


poderiamos admirá-lo. Mas se ele tentasse dar
a impressão de poder voar, o riso seria seu
merecido castigo, mesmo se ele fosse capaz, na
verdade, de saltar mais alto que qualquer
outro dançarino. Saltos são atos de seres es­
sencialmente terrestres que respeitam a força
gravitacional da terra, pois que o salto é algo
momentâneo. Mas o vôo nos faz lembrar os
seres emancipados das condições telúricas, um
privilégio reservado para as criaturas aladas...”

A razão para a parábola? É muito simples.


Teólogos são dançarinos. E se o nosso com­
panheiro de viagem recuou, embaraçado, quando
lhe confessamos nossa profissão, talvez isto se de­
vesse ao fato de ja ter ele visto o espetáculo ridí­
culo de bailarinos que se faziam passar por seres
alados: teologos que confundiam a voz dos homens
com a voz de Deus, e atribuíam solidez àquilo que
é fugaz e verdade ao que não passa de um palpite
efêmero...
E pensar-se que a beleza do bailado pode ser
recuperada... Claro que isto nao se conseguirá
atribuindo-se seja ao teólogo, seja à Igreja, o poder
de voar como os pássaros. O fascínio renascerá

28
justamente quando os homens puderem ver o lugar
onde os pés tocam o chão...
Dizer que teólogos são pessoas que jogana o
jogo das contas de vidro é confessar que eles têm
os pés no chão: porque um jogo é algo que se
constrói de baixo para cima com argúcia, enge-
nhosidade e sobretudo amor. E é bem possível que
algo estranho aconteça, ao fim do nosso relato. Se
tivéssemos dito ao nosso companheiro que somos
seres alados, ele não teria podido evitar seu riso
e seu desprezo. Mas nos lhe confessamos que fa­
zemos nada mais que brincar com símbolos, fazen­
do improvisações em torno de temas dados. Pare­
cemos voar? Apenas saltos, pois nossos pes so
deixam o chão por curtos e fugazes momentos. E
a teologia se desnudaria como coisa humana que
qualquer poderia fazer, se sentisse o fascínio dos sím­
bolos, o amor pelo tema, e tivesse a imaginação sem
a qual os pés não se despregam da terra. E aí o
possível estranho fim de uma conversa: porque o
desconhecido poderia se tornar um discípulo... Quem
poderia negar a beleza do jogo das contas de vidro?
E o teólogo se redescobriria, não mais vestido com
as cores fulgurantes dos que estão em cima, mas
na tranqüila nudez daqueles que, como os demais,
andam pelos caminhos comuns da existência.

29
O tema: a ressurreição dos corpos

As contas de vidro já se encontram sobre a


mesa, muitas delas com milhares de anos de ida­
de, e com os sinais de já terem sido usadas vezes
sem conta; outras reluzentes, jovens, acabadas de
sair das mãos de artesãos.
Os jogadores tomam os seus lugares e aguar­
dam o anúncio do tema.
Aproxima-se o magister ludi e coloca, bem no
centro, a conta de vidro em torno da qual os teó­
logos tecerão suas variações. Será ela o ponto em
que se apoiarão seus pés, para seus saltos coreo-
gráficos.
E brota, espontâneo, o espanto sorridente.
Porque a conta de vidro temática é o corpo hu­
mano, meu corpo, corpo de todos os homens,
corpo de jovens e de velhos, corpos torturados e
corpos felizes, corpos mortos e corpos ressuscita­
dos, corpos que matam e corpos abraçados em
amor. E a congregação de teólogos e assistentes
repete, em uníssono:
“ Creio na ressurreição do corpo” .
O tema do jogo brota das exigências do cora­
ção, das esperanças do amor, do desejo de viver,
de fazer com que o universo inteiro seja um corpo
vivente, amante, pulsante, corpo de Cristo...

31
Haveria algum outro ponto de partida pos­
sível?
Existirá algum lugar onde nos encontramos
fora de nós mesmos, estando assim livres do radi­
cal corpocentrismo a que nossa carne nos obriga?
Era esta a pergunta com que Kierkegaard marte­
lava Hegel, pedindo-lhe reconhecer o ponto de
onde brota todo pensamento e toda palavra: o eu,
este pequeno e insignificante eu, que deseja ser
feliz, com paixão infinita...

Partir do corpo.
Não é o corpo o centro absoluto de tudo, o
sol em torno do qual gira o nosso mundo?
Responderá o leitor cético (e saudável) que
não é assim. Há coisas mais importantes. Confesso
que tenho paciência com aqueles que são céticos
acerca do corpo. Posso esperar. E, desgraçada-
mente, triunfarei. Esperarei a cólica renal, as muti­
lações progressivas e próteses crescentes, as mãos
trêmulas, a vista curta, os órgãos flácidos que não
mais se movem ao perfume do amor.

“ No campo de batalha, na câmara de tortu­


ras, num navio que afunda, as questões pelas
quais você luta são sempre esquecidas, porque
o corpo incha até que enche o universo todo;
e mesmo quando você não está paralisado
pelo pavor ou gritando de dor, a vida é uma
luta que se desenrola, momento a momento,
contra a fome, o frio, a insônia, contra uma
azia ou uma dor de dentes” (Orwell, 1984).

32
Claro que os homens têm uma estranha capa­
cidade para se entregar a questões distantes e abs­
tratas, aparentemente alheias a tudo aquilo que se
refira ao corpo. Mas permanece sempre a pergun­
ta: não será por imposição do corpo que ele faz
isto? Os lógicos acham gostoso brincar de lógica,
e sorriem... E se há pessoas que aparentemente se
desesperaram do corpo, da vida, do prazer, refu-
giando-se num céu futuro onde apenas habitam
almas desencarnadas, é porque o seu corpo, aqui e
agora, encontra nestes pensamentos um conforto
para suas dores (Gerth & Mills, From Max Weber,
p. 278). Quem acredita nos céus pode dormir me­
lhor e quem confia na providência divina tem me­
nos ataques de coração.
E não me venham com o chavão de que a
preocupação com o corpo é doença de pequena-
-burguesia. Como se os trabalhadores não tivessem
corpos, e sentissem dor de dentes com os dentes
de sua classe social, e fizessem amor com os geni-
tais de sua classe social, e cometessem suicídio com
a decisão de sua classe social. O corpo, na verdade,
é a única coisa que eles possuem — e têm de alu­
gar. Para quem está sofrendo só existe o corpo e
a dor: dor imensa, dor que é prelúdio da morte,
morte que tem a ver com o meu corpo, único, irre-
petível, centro do universo, grávido de deuses. De
um ponto de vista estritamente humano a classe
social é apenas uma forma de se manipular o cor­
po. E é isto o que o trabalhador sente. Os pobres
cheiram mal, não tratam de dentes, têm fome com
mais freqüência e não conseguem afinar suas sen­
sibilidades de sorte a gostarem de música erudita;

33
3. Variações...
além de apanhar com mais freqüência e morrer
mais cedo. Para uma pessoa de carne e osso este
é o sentido de classe social: os possíveis e os im­
possíveis para o corpo.
Economia? Mas o que é a economia senão a
luta do homem com o mundo, homem que é corpo,
e quer transformar o mundo inteiro numa exten­
são de si mesmo? Pelo menos, foi assim que apren-
di de Marx:
“ A universalidade do homem aparece na ati­
vidade prática universal pela qual ele trans­
forma a totalidade da natureza no seu corpo
inorgânico... A natureza é o corpo inorgânico
do homem... Dizer que o homem vive da
natureza é dizer que a natureza é o seu corpo,
com o qual ele deve estar em trocas constan­
tes para não morrer...” (Marx, Manuscritos
econômicos e filosóficos, § X X IV ).

Depois, ao analisar a propriedade privada ele


irá mostrar que sua perversidade está em que ela
destrói todos os sentidos eróticos do corpo e os
substitui pela relação de posse. Ver, ouvir, chei­
rar, sentir na pele — tudo isto é de importância
secundária, porque o que importa é que a coisa caia
debaixo do nosso controle. E eu me atrevo a per­
guntar: para que serviria uma sociedade livre e justa
se ela não fosse o espaço para a expansão do corpo
em prazer, felicidade e brinquedo?
Tudo pelo corpo.
Tudo a partir do corpo.

34
Na verdade é dele que brota esta coisa que
nos fascina e sem a qual a teologia seria impossí­
vel: a imaginação. Repetir com Nietzsche:
“ Corpo sou, inteiramente, nada mais.
Alma? Apenas uma palavra para algo que
pertence ao corpo.
O corpo é uma Grande Razão.
E um instrumento do vosso corpo é também
a vossa pequena razão...
... a que chamais ‘espírito’;
um pequeno instrumento e um brinquedo de
vossa Grande Razão” . (Friedrich Nietzsche,
Thus spoke Zarathustra, p. 146).
Viver! Lealdade última a que tudo o mais se
subordina. Mesmo os que estão prontos a arriscar
a sua vida o fazem por amor ao corpo. O revolu­
cionário, por crer no poder criador do seu corpo
e na necessidade da redenção de corpos escraviza­
dos. O suicida, em protesto contra um mundo des­
tituído de sentido e que não acolhe o seu corpo
e seus desejos como deveria, como ventre materno...
Reverberações de Spinoza:
Ética, parte III, proposição 6?:
“ Cada coisa, enquanto existe em si, esforça-
-se por perseverar em seu ser” .

Não tenho condições para dizer se isto é um


princípio metafísico de validez universal. Confesso
que ando com dificuldade nos caminhos desta ciên­
cia. Mas não seria difícil entender a afirmação do
filosofo como a confissão do corpo cansado de Be­

35
nedito Spinoza, abençoado pelo nome de batismo,
amaldiçoado na vida e condenado a forçar seu
corpo a polir lentes, por todos os seus dias...
“ Nenhum ser pode negar-se a si mesmo, a
sua própria natureza. Todo ser, ao contrário,
é em si e por si mesmo, infinito, tem o seu
Deus, o seu mais alto ser, em si mesmo” .
(Feuerbach, The essence of Christianity, p. 7).
Claro que não se trata de uma afirmação da
vida, como coisa abstrata. Porque, em abstrato, a
vida não existe em lugar algum. O que vemos é uma
exuberância de formas, estruturas, corpos, organis­
mos, numa luxúria que se compraz na abundância
e no desperdício. O que cada corpo proclama não
é o triunfo da vida, em abstrato, mas o valor su­
premo dele mesmo, não importa que forma tenha.
“ Se as plantas tivessem olhos, gosto e capaci­
dade para julgar, cada uma delas diria que a
sua flor é a mais bela” (Feuerbach, op.
cit., p. 8).

Talvez que fosse isto que dizia D. Miguel de


Unamuno. Tenho suspeitas de que ele lia Feuer­
bach em segredo, mas não se atrevia a confessá-lo.
Como poderia fazê-lo um místico católico?
“ Pergunta: Para quem é que Deus fez o
mundo?
Responde o catecismo:
Para o homem.
Seja. Assim deve responder o homem que é
homem. A formiga, se tivesse inteligência para

36
perceber isto, e fosse personalidade consciente
de si mesma, respondería que para a formiga.
E respondería bem” (Miguel de Unamuno,
Do sentimento trágico da vida, pp. 24-25).

Cada corpo é o centro do mundo. Quaisquer


que sejam as realidades que me atingem, nada sei
sobre elas, em si mesmas. Só as conheço como
reverberações do meu corpo. Os limites do meu
corpo denotam os limites do meu mundo. Porque
vejo as estrelas poderei dizer, com Bergson, que o
meu corpo vai até elas...
Não poderia ser de outra forma. A hipótese
nos vem do biólogo Uexküll: no mundo da mosca
todas as coisas são construídas à imagem e
semelhança da mosca. No mundo do ouriço
do mar, todas as coisas têm estrutura do
ouriço do mar.
O mundo da borboleta: poderia ser compa­
rado ao mundo dos tatus, dos escorpiões, das les­
mas? A sugestão de Goldstein é bonita: cada orga­
nismo é uma melodia que se canta a si mesma. Mas
poderiamos acrescentar: ela se canta e faz com que
o seu ambiente a cante também. Organismo/orga-
nista; ambiente/órgão, teclado de infinitas possi­
bilidades. Muitas teclas ficarão mudas. Porque o
organismo só fará soar aqueles sons que forem
expansões e desdobramentos de sua própria me­
lodia. Também eles brincam de improvisar sobre
o tema que lhes é permanentemente dado: seus
próprios corpos.
O mundo se estrutura em torno do corpo.
Cada corpo é o centro do universo. Engano pensar

37
que o cosmos antropocêntrico morreu com Galileo.
Homem notável. Não quis morrer na fogueira.
“ Mais vale um cão vivo que um leão morto” . Um
corpo vale mais que todas as verdades que anun­
ciam a sua pequenez. Pode ser que, na teoria, ele
deixe de ser o centro. Praticamente, ele permanece
como o sol em torno do qual tudo o mais gira,
até mesmo Deus. Se não houvesse um corpo que
sofre e espera, os deuses seriam supérfluos e des­
necessários. Eles vivem por causa do corpo, por­
que prometem felicidade ao corpo... Quem per­
dería tempo com um Deus que não promete a
vida eterna?
“ Se Deus fosse um objeto para um pássaro,
ele seria um ser alado; o pássaro não conhece
coisa alguma mais alta e sublime que a con­
dição de ter asas” (Feuerbach, op. cit., p. 17).

Será que agora poderemos compreender as


razões por que a neutralidade do corpo, frente ao
seu mundo, é impossível? Neutralidade no conhe­
cimento?
“ O conhecimento está a serviço da necessi­
dade de viver e, primariamente, ao serviço
do instinto de conservação pessoal. E essa
necessidade e esse instinto criaram, no ho­
mem, órgãos de conhecimento, dando-lhes o
alcance que possuem.
O homem vê, apalpa, saboreia e cheira,
aquilo que precisa ver, ouvir, apalpar, sabo­
rear, cheirar, para conservar a sua vida” (Mi­
guel de Unamuno, op. cit., p. 38).

38
Neutralidade, onde é que tal entidade jamais
foi observada?
E agora, como teólogos, podemos nos vingar.
Porque fomos humilhados quando nossa trapaça
foi descoberta: fizemos de conta que estávamos
voando, quando na realidade só estávamos saltan­
do. Mas agora descobrimos que nossos acusadores,
metidos num outro jogo de contas de vidro cha­
mado ciência, também fizeram trapaça. Porque ten­
taram nos enganar, apresentando-se como conhece­
dores puros, sem crenças nem superstições, espe­
lhos de cem olhos, reflexos fiéis dos seus objetos,
sem desejo e sem paixão (Nietzsche) — e agora
descobrimos que tais seres celestiais ou infernais
não existem neste mundo dos homens...
Não. Não existe um mundo neutro. O mundo
é uma extensão do corpo. É vida: ar, alimento,
amor, sexo, brinquedo, prazer, amizade, praia, céu
azul, auroras, crepúsculos, dor, mutilação, impo­
tência, velhice, solidão, morte, lágrimas, silêncios.
Não somos seres do conhecimento neutro, como
queria Descartes. Somos seres do amor e do dese­
jo. E é por isto que a minha experiência da vida é
essencialmente emoção. Na verdade o que é a emo­
ção senão o mundo percebido como reverberação
no corpo? Um leve tremor que indica que a vida
estâ em jogo... Neutralidade? Nem mesmo nos
cemitérios. As flores, os silêncios, os anjos imóveis,
as palavras escritas nos falam de tristezas que con­
tinuam a reverberar pelo universo afora...
É a partir deste centro em que pulsa a vida
e a emoção que se estrutura o mundo. Piaget resu­

39
miu numa afirmação curta aquilo que se repete
desde Kant: “ O conhecimento não é uma cópia,
mas uma organização do real” .
Mas qual é o modelo para tal organização?
Kant pensava que a trama para a construção
de nossas redes era formada por fios tomados em­
prestados da matemática, a mais abstrata e incor-
pórea das ciências, e por pensamentos vazios, sem
dor e sem amor, como se o corpo não existisse.
Mas o corpo não aceita mortalhas como redes
para seu descanso. E o fato é que ele amarra e
constrói o seu mundo com emoções, medo, sorrisos.
As coisas, tais como o corpo as vivência,
são “ emocionantes, trágicas, belas, cômicas,
resolvidas, perturbadoras, tranquilizantes, in­
cômodas, áridas, ásperas, consoladoras, esplên­
didas. assustadoras...” (John Dewey, Experien-
ce and nature, p. 96).

Como observou Ferenczi, “ a inteligência pura


é um produto da morte, de insensibilidade mental
e, por isto mesmo, em princípio, loucura...” (Nor-
man O. Brown, Life against death, p. 317). A inte­
ligência sem amor só pode dizer a sua coisa de­
pois crue o corpo foi reduzido ao silêncio, sendo
então incapaz de distinguir gritos de sorrisos.
E é por isto que o corpo, ao tecer suas redes,
lança sempre os fios do amor.
Dor?
Prazer?
Amigo?
Inimigo?

40
Aproximação?
Afastamento?
Abandono-me?
Resisto?
Para um urubu a carniça tem um cheiro ma­
ravilhoso. Foi-me dito que pessoas não brancas
sentem um odor muito desagradável quando os
brancos molham seus cabelos na chuva. Certos gru­
pos indígenas acham os pescoços alongados por
argolas e os lábios inferiores dilatados por rodas
de madeira muito bonitos. Há, inclusive, certos
grupos de homens e mulheres que consideram ele­
gante alongar a altura por meio de hastes coloca­
das sob o calcanhar.
O feio e o belo não são absolutos.
Variam em relação à espécie.
Também a dor e o prazer.

Não são realidades absolutas e universais, mas


antes reações interpretativas que variam em função
do corpo e servem para distinguir o ambiente/ex-
tensão do corpo do ambiente/dissolução do corpo.
E assim o universo se enche de melodias: cada
coisa viva fazendo reverberar um universo, exten­
são do seu corpo, como variações sobre o tema que
é ele mesmo, sua sobrevivência, sua beleza, seu
-w - ■ » W
prazer...
Os animais são prisioneiros de seus corpos.
Não podem fazer coisa alguma que não tenha sido
nor eles programada, exigida, permitida. Esta é a
razão nor nue não são neuróticos. Não experimen­
tam conflitos, nem insônia, nem angústia quanto

41
ao dia de amanhã. Sem o saber seguem o preceito
evangélico: “ basta a cada dia o seu m al...” E sobre­
tudo não sabem que vão morrer. Claro que têm de
lutar: mas as receitas já estão prontas. Por isto
gozam a paz dos bem-aventurados... Se o corpo está
satisfeito, por que se afligir? Ao invés disto,
dormir...

O animal ê o seu corpo (Berger & Luckmann,


The social construction of reality, p. 50). Ele
é prisioneiro de uma programação biológica
inata que pré-define o mundo em que ele terá
de viver. É bem verdade que os animais po­
dem aprender muitas coisas não programadas
biologicamente. Ensinei os peixes de meu
aquário a brincarem com meus dedos. Foi
muito fácil. Bastou que, ao invés de jogar a
comida, eu a colocasse na ponta dos dedos. O
comportamento novo foi mediado por algo
dado biologicamente. Se, ao invés de comida
de peixes, eu lhes tivesse oferecido picles, é
certo que nada teriam aprendido. Também o
cachorro de Pavlov teria ficado impassível se,
ao invés de carne, o cientista lhe tivesse apre­
sentado um nabo. Para aprender a reagir a
um símbolo foi necessário que a aprendiza­
gem se desse através de algo marcado biolo­
gicamente no carnívoro: a carne. De fato, o
animal é o seu corpo. Seu corpo se impõe como
limite de todos os mundos possíveis.
Mas veja, em contraste, o que ocorre conosco:
temos o poder extraordinário de fazer de con­
tas, de brincar de ser diferentes do que somos.

42
Isto se deve ao fato de que, por oposição aos
animais, os homens têm o seu corpo. Não são
prisioneiros dele. Esta liberdade em relação
ao corpo abre um imenso horizonte de possi­
bilidades: somos capazes de imaginar mil
mundos.
Parece que esta é a marca característica do
mundo dos homens: ele é duplo, rachado. Vivemos
entre jato s e valores,
as coisas tais como são, e as coisas tais como
poderiam ser.
Olhos e imaginação.
O real e o possível.
O presente e aquilo que ainda não nasceu.
O que já se instaurou e aquilo que só existe
como objeto do desejo, aquilo por que se
espera...
O presente século e o reino, objeto de uma
súplica...
É a própria unidade dos animais com os seus
corpos que os torna livres das neuroses, mas tam­
bém incapazes de produzir a cultura e de orar. Su­
gestão que nos vem do Feuerbach: “ no animal a
vida interior é idêntica à vida exterior” . Fatos são
valores. “ Os animais conhecem um só mundo,
aquele que percebem pela experiência... Mas o ho­
mem tem uma vida dupla, tanto uma vida interior
quanto uma exterior” . Fatos não são valores. (Feuer­
bach, op. cit., p. 2).
Durkheim repete a mesma coisa. “ Os animais
conhecem apenas um mundo, aquele que perce-

43
bem pela experiência... Somente os homens têm
a faculdade de conceber o ideal, de acrescentar algo
ao real” (E. Durkheim, The elementary forms of
the religious life, p. 469).
E poderiamos multiplicar as referências.
Kierkegaard, referindo-se ao homem como
uma “ síntese impossível” entre o finito e o infi­
nito; Camus, afirmando que o homem é o único
ser que se recusa a ser o que ele é; Freud, indi­
cando o conflito eterno entre o princípio do prazer
e o princípio da realidade.
E é disto, deste poder para separar fatos de
valores, as coisas que simplesmente existem das
outras, objetos do desejo, que faz com que o ho­
mem seja capaz de conhecer o mundo à sua volta,
sem conseguir, entretanto, fixar nele morada. Q
amor busca outros mundos, constrói fantasias, ex­
plora possibilidades ainda_ausentes. Homem, ser
deslocado, exilado, emigrante, peregrino...
“ Exilados sereis em todas as terras paternas...
Que o futuro e o mais distante sejam a causa
do vosso hoje...
Onde subirei com a minha nostalgia?
De todas as montanhas procurei terras mater­
nas e paternas.
Mas não encontrei lar em lugar algum. Sou
um fugitivo em todas as cidades, um adeus
em todas as portas. Sou expulso de terras
maternas e paternas. Assim, agora, amo so­
mente a terra de meus filhos, ainda não des­
coberta, no mar distante. Para lá direciono
minhas velas, numa busca sem fim ...”

44
Palavras de Nietzsche que foi, talvez, aquele
que melhor exprimiu o caráter utópico da cons­
ciência: sem lugar no presente, voltada para um
lugar que não está em lugar algum, a não ser na
imaginação e na esperança. -J
De fato é este conflito que nos torna neuró­
ticos. Mas é este mesmo conflito que faz possível
o ato de criação. Plantar um jardim: para quê? O
homem contempla aquilo que o mundo estende à
sua frente: os dados, os fatos, o empírico, o que é:
solo árido, seco, esbraseado;
pedras e cacos;
espinhos e pragas.
Não, isto não pode ser amado.

E, lá dentro, a voz do amor e dos valores


lhe diz: que os fatos sejam abolidos; que a reali­
dade deixe de ser; aquilo que é não pode ser ver­
dade (Bloch), pois não corresponde às exigências
do desejo.
Constatação, reconhecimento.
Negação, recusa.
Aí a imaginação emigra da realidade, aliena-
-se, torna-se estranha ao mundo, recusa o veredito
dos fatos, e começa a explorar possibilidades ausen­
tes, a montar fantasias sobre o jardim que poderia
existir, se o amor e o trabalho transformassem a
realidade. A imaginação voa e o corpo cria.
A imaginação são as asas do corpo.
O corpo, a força da imaginação.
O desejo e o poder se interpenetram para dar
à luz a esperança.

45
Criamos então a cultura. Os mundos em que
vivemos: jardinsflírtes, poemas, pinturas, vestidos,
canções, danças, jogos, rituais, valores, ferramen­
tas, casas, parques, ciência, magia, armas, sepultu­
ras. Dewey sugere que o processo pelo qual cria­
mos a cultura pode ser compreendido se tomarmos
como nosso modelo o processo pelo qual o artista
produz a obra de arte: em ambos os casos o pro­
duto final não pode ser explicado se não se pres­
supuser o vôo utópico da imaginação. Na arte a
imaginação se torna objetiva. Será por isto que He-
gel se referia ao mundo da cultura como “ objeti-
vação do Espírito” ?
Mas o homem não cria somente um mundo
diferente.
Ele recria o seu próprio corpo.

O corpo humano não é uma entidade da natu­


reza. Ele é produto da imaginação. E é por isto
que nos vestimos, sentimos vergonha, usamos tem­
peros, criamos a culinária, temos desejos sexuais
mesmo na ausência dos odores do cio, contempla-
mo-nos no espelho, damo-nos um nome, somos as­
solados por ataques de hipocondria, enterramos os
nossos mortos e choramos a nossa própria morte...
Não mais estamos à mercê da programação
biológica.
Movemo-nos na rede cultural que lançamos.
Como se foliemos aranhas, produzimos o nõsso
mundo a partir de nossas próprias entranhas. Aos
duros materiais à nossa volta misturamos o desejo
e o amor... Nossos valores, portanto, não serão
apenas os condicionamentos herdados. São criações

46
mais poderosas que a própria natureza e que sub­
sistem pela mediação da palavra.
“ No princípio era a palavra...”
Mas, não são as palavras autênticas, todas
elas, expressões de uma ausência? Se as palavras
significassem apenas o presente não seria neces­
sário falar. Bastaria usar o dedo e apontar.
Poderemos agora entender a religião?
Imaginação projetada até os confins do espaço
e do tempo; nossos valores, objetos de nossa de­
voção, transformados em horizontes da realidade;
o corpo se expandindo e inchando, até tomar o
universo inteiro.

“ As origens do universo simbólico têm suas


raízes na constituição do homem. Se o homem
é um construtor de mundos, isto é possível
graças ao fato de que ele é, por constituição,
aberto ao mundo, o que, de saída, implica
o conflito entre caos e ordem. A existência
humana, desde os seus inícios, é um processo
de externalizações constantes. Na medida em
que o homem se externaliza, ele projeta os
seus sentidos sobre a realidade. Os universos
simbólicos que proclamam que toda a reali­
dade é humanamente significativa e invocam
o cosmos inteiro para representar a validez da
existência humana constituem os limites últi­
mos desta projeção” (Berger & Luckmann,
p. 104).
Equivocaram-se aqueles que denunciaram a
religião porque ela fala de coisas não dadas à

47
experiência. De fato é isto mesmo e as pessoas
religiosas não devem pedir desculpas e nem ofe­
recer explicações. Se ela falasse sobre algo dado
à experiência ela seria ciência e renunciaria, de
início, a qualquer pretensão de transcendência. Seus
navios ficariam ancorados e suas velas vazias... Ao
contrário, são os acusadores que devem responder
à pergunta:
“ — Quem os autorizou a transformar fatos
em valores? Que conspiração política os levou
a fazer silêncio sobre os objetos do desejo e
as esperanças do corpo? Não será verdade que
seu cientificismo implica, em última análise,
numa sacralização da realidade, tal como ela
se encontra posta à nossa frente? ”
Desejo e esperança só existem perante as
ausências. Como sentir saudades da pessoa amada,
se ela está ali, ao alcance da mão? Mas quando a
distância se interpõe, a saudade brota da falta, das
palavras de amor que não podem ser ditas, por
não haver ninguém para ouvi-las, e dos gestos de
carinho que não ocorrem, porque o corpo se foi...
^ Desejo e esperança são testemunhos de uma
ausência.
Por isto mesmo Deus, símbolo máximo do
desejo e da esperança, não é o sinal de uma pre­
sença, mas a confissão de um vazio imenso, de uma
saudade sem fim, de uma nostalgia pela plenitude
do sentido, do amor...
Como se equivocaram aqueles que viram em
Nietzsche a expressão máxima do ódio à religião.

48
Sem dúvida inimigo implacável de todos os que
anunciavam presenças, realizações de valores, sa-
cralizações de realidades instauradas. Contra os po­
sitivistas, contra os cientistas sem imaginação, con­
tra os educadores/domesticadores, contra o Estado,
contra os sacerdotes, contra os fariseus: todos eles,
alvos de sua fúria. Mas notem a tristeza e a sau­
dade na página mesma em que o louco proclama
a morte de Deus:

“ Não ouvistes do louco que acendeu sua lan­


terna nas horas mais brilhantes da manhã,
correu para o mercado e começou a gritar
sem parar: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!
Para onde foi D eus?’... E eu vos vou dizer.
Nós o matamos — vós e eu. Todos nós somos
seus assassinos. Mas, como é que fizemos isto?
Como fomos capazes de beber o mar? Quem
nos deu a esponja para apagar o horizonte
inteiro? Que foi que fizemos ao quebrar a
corrente que prendia a terra ao seu sol? Para
onde vai ele agora? Para onde vamos nós,
agora? Para longe de todos os sóis? Não es­
tamos mergulhando sem cessar? Para trás,
para o lado, para a frente, em todas as dire­
ções? Restam-nos ainda o para cima e o para
baixo? Não estamos errando por um nada
sem fim? Não sentimos o hálito do espaço
vazio? Não é verdade que está ficando frio?
Não é verdade que a noite chega, sem cessar?
As lanternas, não devem elas ser acesas pela
manhã?” (Friedrich Nietzsche, The gay Scien­
ce, p. 95).

49
4. Variações...
Existirá confissão mais pungente de nostalgia?
Não, religião não é ciência.
Ela não pode descrever ou explicar presenças.
' Deus não é um objeto dado entre outros. Religião
é imaginação, voo do amor para a terra da fan­
tasia, onde habitam o possível e o impossível, e o
milagre que torna possíveis os impossíveis, a gra­
videz das estéreis e das virgens, a ressurreição dos
mortos, projeto utópico, horizonte de uma nostal­
gia, luz sobre um rosto que caminha, saudade de
uma presença que se busca. Seu lugar são os gelos
glaciais ou os desertos tórridos — longe dos oásis.
Nos oásis estão os ídolos (Nietzsche), os patos do­
mesticados, a obesidade, o muito comer, a sacie-
dade, a flacidez, a vontade morta... Nos gelos e nos
\ desertos estão os projetos, o desejo de partir, a
' nostalgia pelo calor do sol e pelo frescor da som­
bra, o inclinar-se para o ausente e distante...
^ Sei que minha apologia da religião faz estre­
mecer até mesmo os religiosos. Sei que eles temem
a companhia das ausências. Eu também... E é por
isto que nos agarramos à religião como “ sinal visí­
vel de uma graça invisível” . Invisibilidade, sim;
ausência, não. Não foi assim que a Igreja inter­
pretou os símbolos sacramentais, por séculos? Não
foram as discussões sobre a presença de Cristo na
eucaristia que marcaram as mais ferozes disputas
entre católicos e protestantes, durante os anos da
Reforma?
“ Comei, bebei, meu corpo, meu sangue...
Assim anunciais a morte do Senhor até que
venha” .

50
Até que venha? Ora, só pode voltar quem
não está presente. Símbolo de uma ausência, con­
fissão de um amor, de uma saudade, de uma fideli­
dade, de uma espera.
O Reino de Deus não se realizou. Tanto que
oramos: “ Venha o teu Reino...”
Nada é sagrado. Sagrado é o futuro.
Pela esperança vivemos...
Protestantes e católicos equivocados. Dispu­
tas pelas questões erradas. Porque a polêmica não
se travava entre presença e ausência, mas em torno
da questão: onde e como se dá a presença? Seja
na magia dos sacramentos, como queriam os cató­
licos, seja no segredo da subjetividade, como que­
riam os protestantes — todos estavam de acordo:

/y
Mas a questão é outra. A experiência de Deus
é o encontro com um vazio, como aquele que fica
após a partida, (vazio que fala, que invoca e pro­
voca, que faz chorar e rezar...
Aqui brota a fala sobre aquilo que não está
presente.
O que nos faz recordar a bela observação de
Paul Valery:
“ O pensamento é, em suma, o trabalho que
faz viver em nós
aquilo que não existe.
Que somos nós sem o socorro daquilo que não
existe? ”
(Paul Valery, Oeuvres, pp. 1333 e 966).

51
Fala do corpo, fala sobre o corpo.
Mas o corpo fala dos seus desejos,
aquilo que lhe falta,
o summum bonum, felicidade suprema,
gozo, alegria sem fim.
João Batista manda perguntar a Jesus sobre
o Reino.
E ele lhe responde curando corpos: os cegos
vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados...
Deus ganha visibilidade e presença no corpo
de Jesus Cristo, no nascimento, nos atos, na morte
e na ressurreição deste corpo.
Não será legítimo concluir que a manifestação
do seu reino se apresentará como o triunfo do
corpo?
“ Sabemos que o universo criado geme em
todas as suas partes como se estivesse em
dores de parto,... esperando que Deus nos
torne seus filhos e liberte os nossos corpos...”
(Rm 8,22-23).

E o lugar da teologia? Nada mais que parte


desta sinfonia de gemidos: fala sobre Deus, que
é (á confissão de um tf nostalgia infinita) que brota
deste corpo tão bom e amigo, que põHe sorrir, aca­
riciar, plantar, tocar flauta, fazer amor, empinar
papagaio, entregar-se como holocausto por aqueles
a quem ama e mesmo fazer teologia...
Teologia: poesia do corpo, sobre esperança e
nostalgias, pronunciadas com uma prece...

52
O corpo dos sacrificados

Cada organismo é uma melodia que se canta


a si mesma, sem fim. O homem, diferente, é com­
positor que abandona melodias velhas e inventa
temas novos. E assim ele cria a cultura, transfor­
mando em asas os sonhos que seu corpo gerou.
Enquanto as melodias se fazem ouvir tudo é
alegria e vigor.
Mas há o momento do crepúsculo. Vem o
declínio e, com ele, a tristeza.
Morre a borboleta, morre o pássaro, morre o
homem.
Vem a morte quando o poder se vai. O cre­
púsculo da vida é o crepúsculo do poder.
E justamente aqui está a tristeza de todos os
ocasos: porque vão-se poder e vida, sem que se
apaguem amores e desejo:
vontade de cantar, sem poder cantar,
vontade de jardins, sem mãos para plantá-los,
vontade de amor, sem um corpo capaz de
estremecer e fecundar,
vontade de beleza, sem os ouvidos para ouvir
as harmonias.
Vontade: libertador na prisão,
herói acorrentado.

53
Lembro-me do cântico do crepúsculo do corpo
que se encontra no livro de Eclesiastes:
w... o sol e a luz do dia dão lugar às trevas,
e a lua e as estrelas ficam difíceis de se ver,
e as nuvens retornam com as chuvas,
os guardas da casa tremem,
os fortes se curvam,
as mulheres que moíam os grãos, por já serem
poucas, param,
os que olhavam pelas janelas não mais o fazem,
as portas da rua se fecham,
não mais se ouve o ruído da mó
e nem o chilrear dos pardais
e o canto dos pássaros;
vem o medo das ladeiras inclinadas
e as ruas se enchem de terror.
As flores da amendoeira ficam brancas e,
ao redor da praça,
andam os primeiros pranteadores,
até que
se parte o fio de prata,
e a taça de ouro se quebra
e a jarra se despedaça junto à fonte...”
( 12 , 2 - 6 )

Os jogadores tentam mover a conta de vidro


em que o corpo, o seu tema, está contido. Mas
tudo acontece como nas estórias de fadas: ele per­
manece inerte, adormecido. Até o momento encan­
tado em que o poder lhe beija o rosto e os dois,
corpo e poder, se levantam então para a dança eró­
tica da vida.

54
Curioso que as almas religiosas tenham acha­
do tão difícil que a vida e o poder andam de mãos
dadas. Nada lhes parece mais natural que a reve­
rência pela vida. No entanto, nada lhes parece mais
perverso que a reverência ao poder. Elas não se
esquecem do pecado que nos assombra a todos:
saber absoluto, poder absoluto, vida eterna, ser
como deuses. Os deuses seriam então desnecessá­
rios e os filhos poderíam cometer o patricídio de­
finitivo. O mesmo poder que faz corpos dançar e
sorrir é o poder que faz corpos se contorcer e gri­
tar. O poder pode ser divino ou demoníaco, pode
libertar ou escravizar, dar vida ou matar. Do poder
nascem universos, as estéreis dão a luz, vales de
ossos secos se levantam como exércitos, a virgem
fica grávida, os cegos e leprosos ficam curados,
os mortos são ressuscitados, céus e terra se trans­
formam. Mas com o poder nasce o orgulho, a opres­
são, Herodes matando crianças, o império romano
crucificando o Filho de Deus... De fato, parece que
o poder é mais visível em companhia da crueldade
que no silêncio da bondade. Câmaras de tortura,
campos de concentração, guerras: aqui a voz do
poder é inequívoca. Lembro-me de um diálogo
entre torturador e torturado, nos subterrâneos de
1984, de Orwell. A lição é o torturador quem
ministra:

“ O Partido busca o poder exclusivamente por


amor ao poder. Não estamos interessados no
bem dos outros; estamos interessados ape­
nas no poder. Não se trata nem de riqueza,
nem de luxo, nem de felicidade; poder ape­

55
nas, puro poder. Aquilo que significa poder
puro você vai entender agora. Somos diferen­
tes de todas as oligarquias do passado por­
que nós sabemos o que estamos fazendo. To­
dos os outros, mesmo aqueles que mais se
pareciam conosco, foram covardes e hipócri­
tas. Os nazistas alemães e os comunistas rus­
sos chegaram muito perto de nós em seus mé­
todos, mas eles nunca tiveram coragem para
reconhecer seus próprios motivos. Eles fa­
ziam crer e talvez mesmo acreditassem que
haviam se apoderado do poder contra a von­
tade e por um tempo limitado, e que, logo
ao virar da esquina, se encontraria um paraíso
onde os seres humanos seriam livres e iguais.
Não somos como eles. Sabemos que ninguém
se apropria do poder com a intenção de dele
abrir mão. O poder não é um meio; o poder
é um fim. Não se estabelece uma ditadura a
fim de salvaguardar uma revolução; faz-se uma
revolução com o objetivo específico de esta­
belecer a ditadura. O objetivo da perseguição
é a perseguição. O objetivo da tortura é a
tortura. O objetivo do poder é o poder” (Or-
well, 1984, pp. 266-67).

Compreende-se que esta familiaridade que


existe entre poder e crueldade faça a alma religiosa
estremecer. Seria mais fácil falar apenas sobre a
vida e sobre o amor. Mas, existirá amor sem o
poder? Haverá vida sem poder? O fato é que so­
mente os mortos fazem abstinência do poder. E,
se formos honestos, teremos de reconhecer que

56
só nos entregamos a um deus quando ele nos re­
compensa com a dádiva do poder. Não se trata de
uma afirmação da teologia; é a própria observação
empírica que o constata:
“ O crente que entrou em comunhão com o seu
Deus não é meramente um homem que vê
verdades novas que os descrentes ignoram;
ele é mais forte que os outros. Ele sente mais
força dentro de si, seja para suportar os so­
frimentos da existência, seja para conquistá-
-los” (Émile Durkheim, The elementary forms
of the religious life, p. 464).
Talvez que Agostinho tenha sido o primeiro
a compreender que a vida é uma rede tecida pelo
amor e pelo poder que, juntos, vão e vem cons­
truindo o nosso mundo.
Arde o amor...
...e as mãos se movem, trabalhando a madei­
ra, a terra, a lã, as tintas, os sons, as palavras...
Oue é o trabalho senão a conspiração do poder e
do amor que assim moldam a natureza para que
ela se torne em lar, espaço amigo e quente...?
... e as gotas para o fígado, a homeopatia, a
ginástica ioga, o controle da hipertensão, as dietas,
as caminhadas, as corridas, rituais do poder, por­
que saúde é nada mais que o poder sorridente e
feliz através do corpo...
... e as mãos se dão, iniciando então aquilo
a que denominamos política. Mãos que se seguram,
em nome de um mesmo amor, nara que. sendo
maior a força, maior seja a possibilidade de reali­
zação do amor. E o poder que não ia além da

57
extensão do braço se torna agora tão poderoso
quanto o círculo dos corpos entrelaçados.
E o que dizer das agulhas, dedais, sapatos,
martelos, óculos, pás, barbantes, linhas, pregos,
arames, velas, enxadas, armas, livros? Extensões
do corpo, ferramentas do poder.
Plantar um jardim,
curar um cego,
derreter espadas para transformá-las em arados:
liturgias do poder.
Voltamos ao mestre Agostinho. Não somos
livres para escolher entre o amõF~e o poder. So­
mente somos livres para escolher as alianças entre
eles: oiTo poder do amor ou o amor ao poder. E
é a partir desta visaõ que ele instaura a teologia
como uma meditação sobre o amor e o poder.
Para onde fugir do poder?
Para a não violência?
Mas, que é o que caracteriza a não violência?
Será o abandono do poder? Ou será antes a crença
no poder superior da bondade, da mansidão, da
solidariedade? O não violento crê que a ternura
e a persistência são mais eficazes que a brutalidade.
Em nenhum momento abandona o compromisso
com o poder.
São Francisco?
Crença no poder da pobreza e da comunhão
com a natureza.
Albert Schweitzer?
Crença no poder inesgotável da vida, do
amor, da beleza.

58
E o poeta? O educador?
Terão abandonado o poder?
Parece que sim, quando se sente a insignifi­
cância do mestre-escola e do fazedor de versos,
abafados pelo ruído das botas em marcha. Mas não
será verdade que, do fundo do seu silêncio ou de
sua fala, desponta uma confiança profunda no po­
der da palavra ou mesmo do olhar?
E o mártir que enfrenta a forca ou a tortura
— que é que o mantém inteiro? Não será a teimosa
afirmação de que, de alguma forma, no futuro, as
sementes que ele semeou serão fortes o bastante
para brotar? Lembro-me que Bonhoeffer, falando
a partir daquela impotência que só um encarcerado
conhece, dizia que nosso Deus se apresenta fraco
e indefeso no mundo. No entanto, e a despeito
disto, ele ainda o chamava pelo seu nome sagrado:
“ Deus” . E isto lhe permitia visualizar, na sua im­
potência mesma, já com o cheiro do fim, os sinais
de um início permanente. E o fim, pela magia do
poder, se transforma em início: morte em ressur­
reição; “ é morrendo que nascemos para a vida
eterna” .
E é justamente aqui que se manifesta aquele
sentimento característico dos encontros com o sa­
grado: a experiência do sentido.
“ O sentido da vida é algo que se experi­
menta emocionalmente, sem que se saiba explicar
ou justificar. Não é algo que se construa, mas algo
que nos ocorre de forma inesperada e não pre­
parada, como uma brisa suave que nos atinge, sem
que saibamos de onde vem nem para onde vai, e
que experimentamos como uma intensificação da

59
vontade de viver ao ponto de nos dar coragem
para morrer, se necessário for, por aquelas coisas
que dão à vida o seu sentido. É uma transforma­
ção de nossa visão de mundo, no qual as coisas se
integram como em uma melodia, o que nos faz
sentir reconciliados com o universo ao nosso redor,
possuídos de um sentimento oceânico, na poética
expressão de Romain Rolland, sensação inefável de
eternidade e infinitude, de comunhão com algo que
nos transcende, envolve e embala, como se fosse
um útero materno de dimensões cósmicas. ‘Ver um
mundo em um grão de areia e um céu em uma flor
silvestre, segurar o infinito da palma da mão e a
eternidade em uma hora’ (Blake)” . (Rubem Alves,
O que é religião, pp. 122-3).
Aqui a alma religiosa se descobre reconciliada
com o universo que a cerca. Mas como é isto pos­
sível? É que ela crê que o poder infinitamente amo-
rável e o amor infinitamente poderoso do seu Deus
farão com que seus valores triunfem, a despeito de
tudo... De fato, dizer que a vida faz sentido, que
vale a pena viver e morrer, é crer que aqueles
valores, objetos do nosso amor e do nosso desejo,
são poderosos para viver e sobreviver, ainda que,
no presente, eles sejam esmagados pela brutalida­
de: depois da cruz, a ressurreição, depois do incên­
dio que esturrica os pastos, o renascer milagroso
do verde sob a chuva, do ventre flácido e seios
murchos, a turgidez da gravidez. E s t eranca: crença
na plausibilidade dos nossos valores. Destruída a
esperança, esfacela-se o sentido da vida, e já nada
mais faz diferença. Chegou a hora em que os cor­
pos geram os suicídios.

60
Lembro-me de que Fanom conta de um tor-
turador que freqüentava o seu consultório e lhe
explicava que é necessário muita habilidade por
parte do profissional da dor para que o sofrimento
não leve o torturado a perder a esperança. É o
tênue fio da esperança que o mantém inteiro. E se
ele vai se decidir a falar é porque ele crê que este
gesto de confissão é poderoso para libertá-lo. Mas
se o prisioneiro chegar à conclusão de que a con­
fissão não faz diferença alguma, ele mergulhará no
silêncio do qual não mais se sai.
Também Ezra Stotland, em seu estudo sobre
as relações entre a esperança e a doença mental,
sugere que, com a perda da esperança, perde-se
também o caminho de volta à saúde mental.
Mas, o que é isto, esperança?
É fácil compreender que esperança não existe
sem amor e sem desejo. A gente só espera aquilo
por que o coração sente nostalgia. Mas o amor não
chega. Por mais que o doente ame a vida e queira
viver, há um momento em que ele sucumbe e se en­
trega. Deixa de esperar e aceita com serenidade o
veredito da enfermidade. Lembro-me de uma afir­
mação de Fernando Pessoa que não compreendí ou
me recusei a entender: “ Gozo a paz absoluta da­
queles que perderam todas as esperanças” . Mas é
isto mesmo... Aqui estamos diante do amor total­
mente desvestido e roubado do poder. Ele fulgura
na sua imensa beleza: beleza triste e com lágrimas
nos olhos, por estar condenada. É assim sempre
quando o amor se descobre abandonado pelo poder.
O que faz a esperança é o fato de que nela
o amor se encontra amparado pelo poder. Aquele

61
ele mesmo entende bem, os valores pelos quais vive
e morre, no presente, viverão, ressuscitarão, renas-
cerão... Ergue-se assim a esperança, filha do poder
e do amor...
... como a Fênix que renasce das cinzas,
como o crucificado que ressurge dos mortos,
como a flor que floresce após o inverno,
como o capim que revive após a queimada...

A esperança só se mantém na medida em que


se crê que o amor e o desejo serão validados por
um poder maior que o nosso,
seja o poder da classe,
da revolução,
da história,
do universo,
de Deus...

Deus é o nome que damos à esperança quando


vara todos os espaços e se espalha por todos
tempos...
E é assim que se explica aquela inexplicável
tenacidade daqueles que, mesmo quando tudo lhes
diz que seus valores foram derrotados, continuam
a plantar sementes que só darão frutos para os
filhos e os filhos de seus filhos...
E Abraão pensa: “ Ainda que eu tenha de
sacrificar meu filho, meu único filho, continuarei
a ter esperanças...”
E Habacuc pensa: “ Ainda que a figueira não
floresça, nem haja fruto na vide, o produto da

62
oliveira minta... contudo, meu rosto continuará a
sorrir...”
E Jeremias pensa, na cidade invadida, deso­
lada, silenciosa:
“ Ainda que tudo tenha sido destruído, con­
fiarei no futuro. Ainda se plantarão vinhas neste
lugar” . E ele compra um pedaço de terra...
De alguma forma, algum dia...
Fora da tenacidade da espera só há duas
alternativas: suicídio ou capitulação,
exílio sem retorno ou a entrega prostituta do
corpo a outros amores...
É sobre isto que fala a religião.
É sobre isto que se tecem os padrões do jogo
das contas de vidro: símbolos que contam estórias
de amor e poder, de derrotas, esperanças e sur­
presas, de pureza — sim, aquela pureza que con­
tinua a desejar sempre a coisa ausente. “ Pureza
de coração: desejar uma só coisa” (Kierkegaard),
esperar sem se prostituir. E assim se constroem
as redes da religião, dançando a agulha do homem
para o seu mundo, do seu amor para o seu poder,
do seu poder para o poder dos outros, e também o
seu contra-amor... Conflitos, batalhas...
Muitas redes,
cada uma delas com uma configuração es­
pecífica, revelando o amor e o poder
das mãos que as teceram:
poder do amor,
amor ao poder.
Primeiro é necessário falar dos que amam
muito e podem pouco. Não é por acidente. É sem­

63
pre assim. Amar muito e poder pouco se perten­
cem. O amor vai junto com o desejo, e o desejo
testemunha da ausência do objeto por que se as­
pira. Mas se o objeto está ausente é porque falta
ao amante o poder para fazê-lo próximo. Assim,
caminham dolorosamente de mãos dadas a nostal­
gia pelo objeto amado e a consciência da fraqueza.
E é por isto que, na boca dos fracos, o amor se
transforma numa prece e o encontro com a coisa
amada só pode ser compreendido como graça. Não,
não foram nem os carros e nem os cavalos, não foi
o braço e nem a espada... Foi o suave sopro do
Espírito que invocou o inesperado.
Amor dos derrotados... Fez-me lembrar do
“ Cancioneiro da Inconfidência” , da Cecília de
Meireles:

“ Já se ouve cantar o negro.


Mas inda vem longe o dia.
Será pela estrela d ’alva,
com seus raios de alegria?
Será por algum diamante
a arder, na aurora tão fria?
Já se ouve cantar o negro,
pela agreste imensidão.
Seus donos estão dormindo,
quem sabe o que sonharão!
Mas os feitores espiam,
de olhos pregados no chão.
Já se ouve cantar o negro.
Que saudades, pela serra!
Os corpos naquelas águas,
as almas, por longe terra.

64
Em cada vida de escravo,
que surda, perdida guerra” .
(Cecília de Meireles, Flor de poemas, pp. 200-1).

Mundo de saudades e ausências. Lindas ser­


ras: molduras da escravidão e do exílio. Voa a
alma pelas memórias que o desejo invoca. A cons­
ciência parte-se ao meio.
De um lado, os fatos, o conhecimento: a vida
escrava de perdidas guerras.
Do outro, a tristeza, a recusa, o amor: a nos­
talgia de perdidas terras.
Passeiam os olhos e onde quer que pousem
ali se encontra inscrito: “ Nunca m ais” . É o feitor,
o ferro em brasa, o tronco, as correntes, as armas.
Onde preservar os amores? Como guardá-los?
Os espaços externos se encontram ocupados
pelo dominador. Ao escravo impotente restam os
espaços internos, onde a imaginação reina onipo­
tente, e que se abrem como umbrais de mundos
sem senhores e sem escravos. E tais espaços se
enchem simbolicamente com os objetos últimos do
desejo. E assim se constitui a religião daqueles
que amam sem ter poder. Assim sobrevivem o
amor e o poder entre os que foram derrotados,
nos guetos, prisões, campos de concentração, asilos
de velhos, exilados, refugiados sem terra, índios j
sem nada, favelas, pobres, deserdados: nas profun- /
dezas da alma, em gestos modestos e silenciosos,
nas festas e carnavais, nas procissões e romariass
Religião, confissãqjjf* d f ^ j ^ farree dp.-rorpos fra:
cõs^é, p o F lsto mesmo, promessa e esperança de

65
5. Variações...
um corpo novo — corpo grande, belo, sublime,
corpo de Cristo. Promessa de poder aos fracos,
aos que têm fome e sede, aos que são perseguidos,
aos mansos, aos que choram... Amor sem poder,
nostalgia dos impotentes, poesia, quem sabe
misticismo?...
Mas há aquelas ocasiões em que os fracos se
dão as mãos: milhões de bocas, milhões de mãos,
milhões de corpos que marcham, milhões que de­
sejam. E os sonhos dos céus invadem a terra: que
o paraíso seja construído, que as lanças sejam
transformadas em arados e tesouras de podar, que
as portas das prisões sejam abertas, que nunca
mais o pobre seja vendido por dinheiro e a sua
vida trocada por um pedaço de terra.
Mas nem todos são escravos.
Nem todos são rebeldes.
Que dizer dos reis e senhores?

Há de se levar em conta os oásis, onde se


levantam os ídolos. Os patos domésticos não to­
mam o risco dos voos: basta-lhes a gordura, a sa­
tisfação com o presente. Por que mudar?

Pintar os muros rachados...


Curar superficialmente as feridas do povo...
Dizer “ paz, paz, quando não há paz...”
Cochilar ao som das canções de amores...
Gestos de grande efeito...
Amanhã tudo estará melhor...
Promessas...
Repartir os despojos...

66

L
Os pobres podem esperar. Afinal de contas
eles não têm direito nem mesmo às migalhas que
caem da mesa...
Que se corte a cabeça de João Batista, aquele
que batizava no deserto. Herodes o exige.
Que se crucifique um tal Jesus de Nazaré,
tipo sem domicílio ou emprego certo e anda por
aí dizendo que os pobres herdarão a terra.
Aos ricos e poderosos não basta a riqueza
e o poder. Eles necessitam que alguém lhes diga /
que riqueza e poder são dádivas dos deuses. Sinais^
visíveis de uma graça invisível. Sacramentos. E
assim se cria a religião dos poderosos. —*
Os corpos não são iguais. Por isto “ o mundo
dos felizes é diferente do mundo dos infelizes”
(Wittgenstein). E também os seus deuses. Se é
verdade que cada organismo é uma melodia que
se canta a si mesma, também é verdade que as
melodias dos fortes são diferentes das melodias dos
fracos. Esta reflexão nos faz voltar a Agostinho. E,
com esta volta, a suspeita de que os poderosos
estejam condenados, predestinados (ah! palavra
calvinista que me faz estremecer!) a cantar o amor
ao poder, enquanto aos fracos só resta o poder do
amor.
Não, não foi engano.
Repito: aos fracos só resta...
É isto mesmo. Para que ninguém se equivo­
que, pensando que atribuo aos fracos e pobres uma
virtude especial. Sou deformado o suficiente pelo
calvinismo, pela psicanálise, pelo marxismo. Trí-
^pílce maldição que impede ilusões otimistas acerca
de pessoas, grupos, classes. Se os fracos e pobres
fazem soar o tema do poder do amor não é porque
esta seja uma opção sua. Eles estão a isto conde­
nados. Se alguém só possui uma flauta, está con­
denado a tocar na flauta suas melodias. Os fracos
e pobres só possuem uma coisa: seu amor, seu
desejo. Falta-lhes o poder. E é por isto que sua
melodia não pode se fazer ouvir através do poder,
mas somente através do amor. Abre-se-lhes, então,
o caminho mágico: o de crer que, do amor, uma
nova ordem de coisas surgirá.
CaminEornágico? Sim. Os fracos e pobres
esperam o Messias, aquele que, trazendo o Reino
de Deus, redime o corpo dos homens que gemem.
Fazer vibrar a melodia que surge dos seus corpos,
a nostalgia do seu amor e a fragilidade do seu
poder, é proclamar a esperança de que, de alguma
forma inexplicável, um Messias virá. Messias: o po­
der do amor em uma pessoa, bem-aventurança de
todos aqueles que esperam.
Todo o nosso jogo de contas de vidro depende
de nossa capacidade para articular a estranha lógica
que se constrói em cima desta esperança. Não sei
bem. Talvez o oposto seja a verdade, e seja a espe­
rança messiânica que nasce desta estranha lógica...
Lógica que se resume na expressão a des­
peito de.
Os teólogos lhe deram o nome de graça. As
explicações são difíceis, mas as imagens são claras:
... a estéril engravida,
os mortos ressuscitam,
os velhos ficam crianças,
a virgem dá à luz,
do nada surgem universos...

68
É claro que é difícil compreender.
Tudo parece uma tolice tão grande. Violenta
tudo aquilo que a experiência e o realismo político
nos ensinaram. A política é uma prática racional
que se constrói pela cuidadosa articulação de meios
e fins e o uso impiedoso da força. Não existe nela
um lugar para os cordeiros, nem para a mansidão,
nem para as lágrimas. As vitórias são efeitos de
causas precisas e formam uma cadeia de eventos
compreensíveis pela lógica dos porquês e dos em
decorrência de.
Mas a esperança messiânica surge justamente
quando o poder humano chega ao fim, quando a
política entra em colapso. Invoca-se o braço de
Deus quando, derrotados, caem os braços dos
homens...
Mais além da política está a magia. E que
arrepios tal palavra produz. Nem tanto no meio
dos pobres, em cujo nome pretendemos falar. Mas
claramente nos meios eruditos e desenvolvidos, onde
o poder econômico para comprar livros é evidência
de estarmos distantes da impotência daqueles cujo
problema não é ler mas comer. Nossos corpos são
diferentes. E, por isto mesmo, nossas formas de
pensar, nossas avaliações dos limites entre o pos­
sível e o impossível. Será necessário que a doença
incurável se aloje em nossos corpos ou nos
corpos dos nossos filhos para que em nós acordem
os magos, os feiticeiros, aqueles que fazem mila­
gres... Será necessária a fraqueza. No êxodo e nas
vitórias são fáceis os equívocos acerca do nosso
poder. É no cativeiro que reconhecemos os nossos

69
limites e oramos por possibilidades impossíveis. É
então que se espera pelo Messias, a encarnação do
poder do amor. Os lábios balbuciam então: “ Ve­
nha o teu Reino” . E esta é a razão por que são os
fracos e pequenos que podem entender, sendo tão
difícil aos ricos descobrir o caminho.
Está assim constituída a lógica do nosso jogo
de contas de vidro, a teologia. Aos pobres e opri­
midos não bastam os porquês. É necessário que se
invoquem os entretanto e os a despeito disto.
E esta é a razão por que, por mais diversas
que sejam as variações que a imaginação teológica
possa dar ao tema que lhe é proposto, todo o jogo
será presidido pelos símbolos da fraqueza e do
sofrimento. Não se trata de morbidez de senti­
mentos. Ocorre que é aí que se gera a visão e a
nostalgia pelo Messias. Cada gemido é o anúncio
de um futuro novo. Gemem os homens, geme a
criação inteira, sinfonia de gemidos, tendo o Es­
pírito Santo como regente: dores de parto, a espe-
ranca da redenção do corpo. A teologia é unTdizer
daquilo q u ê o c o r p o s o ^ p ò d e chorar. Exercício
sobre o crucificado. Ou, mais precisamente, exer­
cício sobre os crucificados. E eu me permito trans­
crever a meditação incomparável do padre Antônio
Vieira:
“ Os discursos de quem não viu, são discur­
sos; os discursos de quem viu são profecias.
Os Antigos, quando queriam prognosticar o
futuro, sacrificavam os animais, consultavam-
lhes as entranhas, e conforme o que viam ne­
las, assim prognosticavam. Não consultavam a
cabeça, que é o assento do entendimento, se­
não as entranhas, que é o lugar do amor;
porque não prognostica melhor quem melhor
entende, senão quem mais ama. E este cos­
tume era geral em toda a Europa antes da
vinda de Cristo, e os portugueses tinham
uma grande singularidade nele entre os outros
gentios. Os outros consultavam as entranhas
dos animais, os portugueses consultavam as
entranhas dos homens. A superstição era falsa,
mas a alegoria era muito verdadeira. Não há
lume de profecia mais certo no mundo que
consultar as entranhas dos homens. E de que
homens? De todos? Não. Dos sacrificados.
Se quereis profetizar os futuros, consultai as
entranhas dos homens sacrificados: consultem-
-se as entranhas dos que se sacrificaram e dos
que se sacrificam; e o que elas disserem, isto
se tenha por profecia. Porém, consultar de
quem não se sacrificou, nem se sacrifica, nem
se há de sacrificar, é não querer profecias ver­
dadeiras; é querer cegar o presente, e não
acertar o futuro” .
(Citado por Alfredo Bosi, em Carlos Guilher­
me Mota, Ideologia da Cultura Brasileira, p.
X V II).

É sobre as entranhas dos sacrificados que


surge este jogo de contas de vidro que chamamos
teologia. Palavras, nada mais que palavras. Mas as
palavras são ais, suspiros, profecias. E com elas
se constroem mundos...

71
A magia da palavra

Teologia: jogo de palavras, jogo com palavras.


Palavras, nada mais que palavras.
E com elas se constroem mundos...
Foi assim que terminamos nossa última me­
ditação. E sei que o desfecho foi inesperado. Nos­
sa conversa pretendia ser uma reflexão sobre o
poder e teria sido mais natural se, no fim, tivés­
semos falado sobre ferramentas, armas e estra­
tégias: todo mundo sabe muito bem que com téc­
nica, artefatos bélicos e política é possível cons­
truir e destruir mundos. Ao invés disto, tudo indica
que perdi o meu caminho e mudei de assunto ao
falar desta vibração sonora tão efêmera e tão sem
lugar que se chama palavra.
Mas não fui eu que fiz a escolha. Os símbo­
los me obrigaram. Acha estranho que isto tenha
acontecido? Pois é, uma vez escolhidos, os sím­
bolos passam a nos dominar. Veja o compositor
possuído pelo tema que ele mesmo escolheu. E o
jogador de xadrez, à mercê de bispos e peões. E
nós, por mais que o desejemos, não podemos, neste
jogo que se chama linguagem, usar substantivos
como se fossem verbos... Estamos sob o domínio
da lógica dos símbolos.

73
É assim no mundo da teologia. Por mais que
já nos tenham dito acerca da impotência dos sím­
bolos, fantasmas superestruturais, ecos vazios de
poder, em nosso jogo de contas de vidro os uni­
versos se constituem pelo poder das palavras,- grá­
vidas de desejos.
Deus fala.
E da sua voz coisas que não existiam vêm a
ser, enquanto outras, que pareciam ser, são redu­
zidas a nada.
Mundo da onipotência do amor, em que as
palavras são túrgidas de poder e eficácia, e o anún­
cio de ausências gera presenças: magia.
~ E muito difícil justificar o que acaba de ser
dito. O máximo que podemos fazer é trilhar de
novo o caminho das analogias e das parábolas para,
pelo menos, tentar entender o que parece ser a
metafísica da loucura.
Vou começar de longe. Falando de uma vespa,
famosa e conhecida, que pode ser vista pelos cam­
pos numa eterna caçada que se repete há milhares
de gerações. A vespa procura uma aranha. Trava
com ela uma luta de vida ou morte. Pica-a várias
vezes, paralisando-a viva. Arrasta-a, então, indefesa,
para o seu ninho, um buraco na terra. Deposita os
seus ovos. Depois disto sai e morre. Tempos de­
pois nascem as larvas que se alimentarão da carne
viva da aranha. Crescerão sem ter nenhuma mes­
tra que lhes ensine o que fazer. A despeito disto
farão exatamente o que fizeram sua mãe, sua avó,
e todos os ancestrais, por tempos imemoriais...
Programada perfeitamente para viver e mor­
rer. No seu corpo se encontra, silenciosa, a sabe­

74
doria que passa de geração a geração. Vida sem
problemas novos, sem angústias ou neuroses.
Nós?
Seres de programação biológica atrofiada,
encolhida, restrita. Verdade que ela diz o bastante
sobre aquilo que deve ocorrer dentro de nossa
pele: as criancinhas continuam a nascer, na maio­
ria das vezes perfeitas, de mães e pais que nada
sabem. Mas a sabedoria dos nossos corpos nos diz
muito pouco, se é que diz alguma coisa, sobre o
que fazer por este mundo afora. Tanto assim que
os homens tiveram que inventar os seus progra­
mas de vida. Da nossa inferioridade biológica sur­
giram os mundos da cultura. E, diferentemente da
vespa que é vespa por nascimento, sem escolha, a
nossa humanidade é uma invenção. Não existe uma
natureza humana, no sentido de uma essência bio­
lógica fixa. Nós nos tornamos humanos trilhando
os caminhos que as culturas estabeleceram.
Acontece que tais receitas culturãis~3ê huma­
nidade não entram em nossos corpos e nao se
transmitem biologicamente. Elas só são preserva­
das e transmitidas na medida em que contamos às
gerações mais novas sobre nosso jeito típico de
existir. Nossos mundos existem graças ao poder da
fala.
Aqui eu peço licença para introduzir, neste
discurso para intelectuais, coisas que parecem ter
sido sugeridas por um feiticeiro. Tenho de confes­
sar que não sei se se trata de fato ou de imagi­
nação, o que, realmente, não faz diferença alguma.
Assim, vamos fazer de contas que o bruxo e a sua
fala não passam de um mito...

75
Tudo gira em torno de uma experiência edu­
cativa, para nós absurda, de iniciação ao mundo
da feitiçaria. E D. Juan, o feiticeiro da estória de
Castaneda, insistia em que
“ para o feiticeiro, o mundo da vida coti­
diana não é algo real, lá fora, como a gente
crê. Para o feiticeiro a realidade, o mundo,
tal como o conhecemos, é apenas uma des­
crição” .
Alguém viu e sabe.
Este alguém descreve para quem não viu ain­
da, não sabe ainda. E assim, aquilo que os olhos
não viram vai, aos poucos, tomando forma na men­
te dos que ouvem. Ah! Mundo nascido da atividade
docente de um sem número de pessoas que, sem
diplomas em educação, ensinam, sem saber como,
e assim constroem mundos. “ Cada pessoa que entra
em contato com uma criança é um professor que
incessantemente lhe descreve o mundo, até o mo­
mento em que ela é capaz de perceber o mundo
tal como foi descrito” . (Carlos Castaneda, Journey
to Ixtlan, pp. 8-9). E pais, mestres, párocos, pas­
tores, profetas, conselheiros, líderes políticos, e to­
dos os “ outros significativos” , através da sua fala,
vão descrevendo, criando olhos, formando mentes,
solidificando realidades.
O falado instaura o mundo. Os olhos sucum­
bem perante o poder da palavra.
E voltando ao mundo respeitável dos inte­
lectuais, defrontamo-nos, espantados, com a afir­
mação do mestre Wittgenstein, tão próxima das
sugestões do bruxo:

76
“ Os limites da minha linguagem denotam os
limites do meu mundo” (Tractatus logico-phi-
losopbicus, § 5.6).
Coincidência acidental? Não é curioso que o
próprio Wittgenstein tivesse se apropriado do voca­
bulário da bruxaria e tivesse se referido ao feitiço
da linguagem, ao ponto de definir a filosofia como
contrafeitiçaria, beijo de príncipe que desperta do
sono encantado princesas adormecidas, exorcismos?
“ A filosofia é uma batalha contra o feitiço
que certas formas de expressão exercem sobre
{The blue and the brown books, p. 27).
“ Os limites da minha linguagem denotam os
limites do meu mundo” . Que ocorreria, se no lugar
da palavra “ linguagem” colocássemos “ teologia” ?
Por enquanto basta a sugestão...
Há muitos testemunhos a favor do bruxo. E
de gente muito respeitável.
“Não mais num universo físico, o homem
vive num universo simbólico. O homem não
pode se defrontar com a realidade sem inter­
mediários; ele não pode vê-la face a face”
(Ernst Cassirer, An essay on man, p. 29).
“ As coisas vêm a uma criança vestidas pela
linguagem, não em sua nudez física. Temos
aqui as categorias de conexão e unificação, tão
importantes quanto aquelas de Kant, mas com
uma diferença: elas são agora empíricas e não
mitológicas...” (John Dewey, Reconstruction
in philosophy, p. 92).

77
Claro que pedras, árvores e estrelas existiam
muito antes que qualquer palavra lhes tivesse dado
um nome. Mas é somente no momento em que o
homem as batiza com um nome que o mundo hu­
mano vem a existir. O mundo em que se dá o nosso
comportamento, seja um sacrifício num altar, seja
uma revolução que muda a direção da história, é
o mundo estruturado pela linguagem. São os no­
mes que nos dizem o que as coisas significam, se
devemos nos aproximar ou fugir. Quando, em de­
corrência de uma experiência catastrófica qualquer,
desarticulam-se nossos esquemas língüísticos e nos
vemos privados do poder de dar nomes às coisas,
perdemos a capacidade de agir como seres huma­
nos. A ansiedade nos invade e o comportamento,
dantes orientado por uma direção, é dominado pelo
pânico. A leitura da obra de Kurt Goldstein, The
organism, contém uma fascinante análise deste
fenômeno.
Mas aquilo que podemos dizer do mundo
podemos dizer também do corpo:
“ Os limites da minha linguagem denotam os
limites do meu corpo” .
O corpo humano não é um organismo animal,
em sua imediatez biológica. É curioso que um dos
mitos bíblicos acerca dos nossos primórdios se re­
fira ao fato de que, certo momento, homem e mu­
lher, que já estavam nus, perceberam que estavam
nus. E ficaram com vergonha. E a vergonha doía
tanto que foi o próprio Criador, com dó, quem
tratou de costurar umas folhas de figueira, à guisa
de tangas. Mas, se não fosse pela palavra nu, com

78
o tom com que ela é pronunciada, não poderiamos
saber o significado do fato cultural da nudez. Não
nos ruborizaríamos. Curioso. Parece ser verdade
tanto para o mundo humano quanto para o pró­
prio corpo: “ No princípio era a Palavra...” O cor­
po é uma criação da linguagem.
Lembro-me de um cavalheiro, educado num
mundo de inter/ditos alimentares e que aprendera
a detestar miolo, sem nunca haver provado um.
Foi jantar em uma casa em que foi servida couve-
-flor empanada. Após a refeição dirigiu um elogio
à anfitriã:
“ — Divina, a couve-flor...”
“ — Couve-flor? O senhor se enganou. É miolo
empanado...”
E, sem que tivesse havido uma única altera­
ção nos componentes físico-químicos da situação,
a linguagem que envolvia o corpo se encrespou,
e a polidez do hóspede se transformou em palidez
de um corpo cujo estômago vem à boca, seguida
da corrida inevitável ao banheiro, para vomitar.
Vomitar, o quê?
Miolo?
Absolutamente.
Vômito de palavras, rótulos, etiquetas.
Assim são as coisas: a linguagem tem o poder
de fazer curto-circuitos em sistemas orgânicos intac­
tos, produzindo úlceras, impotência, frigidez. Mun­
do marcado pelos interditos. Na verdade, inter-
-ditos: o dito que vem no meio, desfazendo con­
tatos previamente existentes e fazendo contatos
que não existiam.

79
E é por isto que a psicanálise se propõe ape­
nas a escutar a fala dos pacientes, por saber que
nela se escondem segredos do corpo. A anatomia
e a fisiologia se subordinam à linguagem. E daí
decorre a curiosa e perturbadora conclusão de que
nós, seres humanos, não passamos de uma encar­
nação das palavras. Personalidade: uma estrutura
de hábitos de linguagem. Crenças básicas: hábitos
de sintaxe e estilo. Valores: conjunto de atitudes
retóricas. (Veja-se Frederick Perls^ G e sta lt tFnT
rapy, p. 321).
E que dizer da economia, da política, da guer­
ra? Realidades tão duras e brutas que pareceria
absurda a hipótese de que elas também são encar­
nações da linguagem. A questão é se qualquer delas
poderia ser compreendida sem admitir o poder
criador do verbo... A questão é se o mundo do
poder se torna mais inteligível se exilamos as
coisas ditas no sótão das entidades fantásticas,
superestruturais e impotentes... No mundo brutal
de 1984 uma das técnicas para o controle do com­
portamento era a redução sistemática dos vocabu­
lários, pela eliminação de palavras, sob o pressu­
posto de que não podemos pensar as coisas que
não podemos falar. E se não as podemos pensar,
como agir? A política oscila com as oscilações da
conversação. Não é sem razão, portanto, que a
subversão (e sua irmã gêmea, a heresia) se desco­
brem através da fala. No julgamento do tenente
Calley, responsável pelo massacre de Mi-lay, reve­
lou-se que os comandantes não usavam nunca a
palavra “ matar” , por saberem que ela trazia asso­
ciações criadas em aulas de escola dominical e

80
catecismo — o que era mau para a eficácia em
combate. Inventaram, assim, um eufemismo. Pas­
saram a usar o verbo “ to waste” , que significa jogar
fora o que é imprestável, e produz associações rela­
tivas às latas de lixo e ao supérfluo. Ninguém mata
ninguém. Pedia-se simplesmente dos soldados que
dessem aos inimigos o mesmo tratamento que se
dá aos restos de comida. Também na Alemanha
nazista as autoridades se referiam ao assassínio dos
israelitas como “ des-piolhização ” : nada mais que
uma medida de assepsia, para a saúde de todos.
E que dizer da economia? Aconselharia uma re-
leitura de Veblen. Não compramos coisas em
função de sua utilidade, mas em função do seu
valor simbólico. Se comprássemos as coisas por­
que elas são úteis estaríamos nos mantendo rigo­
rosamente ao nível de suas propriedades materiais.
Acontece que as coisas são desejadas, produzidas
e compradas por aquilo que elas dizem. Não é
verdade que garrafas de vinho, roupas, automóveis,
livros, viagens turísticas, quinquilharias eletrôni­
cas e cigarros são mensagens, tendo por isto mes­
mo uma dimensão sacramental? O homem não
vive só de pão...
Aqui, entretanto, se insinua a tentação epis-
temológica, tão típica das pessoas que passaram
pelos rituais de iniciação patrocinados pelas comu­
nidades que se chamam científicas. Tentação que
separa os cientistas das demais pessoas, pela qual
se afirma que, se é verdade que os leigos pensam
e agem em decorrência do feitiço da linguagem,
os cientistas, ao contrário, se submeteram às exi­
gências da lógica e das evidências empíricas.

81
6. Variações...
Mas, sobre que se fazem as investigações?
Não são elas organizadas em cima das teorias? E
que são teorias senão arquiteturas lingüísticas do
mundo? O cientista, ao contrário do que diz a
lenda, habita uma linguagem, e só vai às evidên­
cias para se certificar de que seu mundo está se­
guro. O que um cientista faz é nada mais que
propor declarações, testando-as a seguir (Karl Pop-
per, The logic of scientific discovery, p. 27). E
mais do que isto, até mesmo os sentidos do cien­
tista são condicionados pela linguagem. Na ver­
dade ele só vê aquilo que sua linguagem lhe diz
que deve ser visto. E se os olhos apresentam algo
que a teoria não previu, viva a teoria e abaixo os
sentidos que se equivocam! Isto é compreensível.
Ver algo que não foi preparado, previsto e predito
pelo verbo é entrar no labirinto das sensações não
organizadas, espaço freqüentado pelas alucinações
e pela loucura. Também os cientistas, como todos
os outros, falam primeiro para ver depois. E sua
fala tem início em sua crença nas coisas que os
mestres lhes disserem, quando do seu período de
iniciação ao mundo da ciência. Nossa linguagem
tende a fixar as nossas percepções e, a seguir, o
pensamento e o comportamento. Não responde­
mos às situações em sua imediaticidade física, mas
aos conceitos com o auxílio dos quais nós a tece­
mos... (Robert K. Merton, On theoretical socio-
logy, p. 143).

Imagino que o seu espanto cresce, na me­


dida em que minha fala se desenrola. Não só em
virtude das coisas que me atrevi a dizer, como

82
também em virtude das coisas sobre que me
silenciei...
Coisas que disse: aproximar a teologia da lin­
guagem mágica que, surgindo das profundezas do
desejo, torna-se uma encantação da qual emergem
mundos... De fato, foi um atrevimento, pois todos
sabemos que a magia é uma ilusão de povos pri­
mitivos e de pessoas neuróticas. Bem dizia Freud
que primitivos e neuróticos vivem em meio à inten­
sidade das emoções e confundem sua eficácia psí­
quica com a eficácia física, terminando por acre­
ditar na onipotência dos pensamentos que dizem
tais emoções. Mas eu não tive escolha. De um
lado foram os símbolos mesmos do nosso jogo de
contas de vidro que me obrigaram a enveredar por
este caminho. Do outro lado temos de reconhecer
que os fracos e oprimidos se dependuram em espe­
ranças mágicas... Como poderiamos ser com eles
solidários se pressupuséssemos que lhes falta inte­
ligência e que eles não podem ser levados a sério
por aquilo que dizem e pensam?
E me silenciei sobre aquilo que já se tornou
lugar comum: pensar a teologia como uma for­
mação ideológica.
Acontece que a palavra ideologia está cheia
de “ acordos silenciosos” : o ventre do cavalo de
Tróia está cheio...
Em primeiro lugar, dizer ideologia é nomear
uma rua no mundo das superestruturas, lá onde
habitam os fantasmas, ecos, sublimados, sombras.
Ontologia grega de pernas para o ar. Se lá, entre
os neoplatônicos, a matéria marcara o limite mais
baixo do não-ser e as idéias continham o máximo

83
de realidade, aqui é o contrário. Os inquilinos tro­
caram de casa, mas os dois andares permaneceram.
Assim, falar de ideologia é aceitar uma ontologia,
perpetuar um dualismo no qual o pensado e o fa­
lado se esvaziam como sombras ineficazes.
Em segundo lugar está o acordo de que ideo­
logia é um discurso que se opõe à verdade. Tan­
to assim que a palavra ideologia é usada sempre
de maneira pejorativa. Não conheço ninguém que
tenha aplicado o adjetivo “ ideológico” ao seu
próprio pensamento. O seu uso tem a função de
estigmatizar um certo discurso como ilusão ou men­
tira, enquanto o cientista se afirma como ser capaz
de separar o joio do trigo, a falsidade da verdade,
as ideologias da verdade.
Assim, ao dizer que certa linguagem é ideo­
logia estamos afirmando:
discurso apenas, sem eficácia,
discurso falso, vazio de verdade.
Será que, depois disto, estou em condições
de explicar as razões da minha opção? Antes de
mais nada é necessário confessar que as razões são
existenciais, emocionais. Sou um jogador, as con­
tas de vidro me fascinam, e eu quero guardá-las
num lugar que não seja esta arca maldita que tem
o nome de ideologia.
Conta-se que uma senhora perguntou a Bee-
thoven, depois de haver ele executado ao piano
uma de suas composições: “ Que queria o senhor
dizer com esta peça?”
“ — O que queria eu dizer? É muito simples” .
Assentou-se ao piano e executou-a novamente.

84
A peça não significa nada.
Ela não se encontra no lugar do apenas
símbolo.
Ela é a coisa.

Sempre me fascinou um comportamento cai­


pira que nunca pude compreender. Lá em Minas,
estado onde nasci, após o jantar, juntavam-se os
grandes para contar casos. Mesmo menino eu per­
cebia que as coisas relatadas eram portentosas de­
mais para serem verdadeiras. As mentiras circula­
vam livremente. No entanto, não me recordo de
jamais ter ouvido alguém dizer: “ Isto é mentira” .
Ao contrário. A reação própria e esperada frente
a uma desproporcionada composição verbal era
sempre: “ Mas isto não é nada” . E, a partir daí,
o novo contador propunha seu tema e passava a
construir suas variações.
Levou muito tempo para que eu compreen­
desse que as interjeições epistemológicas eram mo­
vimentos proibidos naquele jogo. Ninguém ali es­
tava em busca de palavras verdadeiras, cópias do
que existia em algum lugar. As palavras lhes eram
algo semelhante às matérias-primas. E eles as tra­
balhavam da mesma forma como o pintor traba­
lha as tintas, o seleiro trabalha o couro, o pe­
dreiro trabalha os tijolos. No seu jogo, as pala­
vras eram coisas, contas de vidro com as quais
construíam seu pobre mundo. E delas surgiam
risadas de prazer, gestos de espanto, materializa­
ções mágicas de fantasias e, quem sabe, um pouco
desta coisa imponderável, a mais importante de
todas, e que se chama felicidade.

85
Palavras: coisas.
Estórias: estruturas concretas construídas com
palavras-coisas, que jogamos no mundo. E, uma
vez lançadas no mundo, estas coisas — se verda-
dadeiras ou não é irrelevante — fazem o mundo
diferente.
Estórias dos sacrificados: as profecias saídas
de suas entranhas. Estória de Jesus...
Palavras: coisas, entidades, monumentos, que
passam a habitar o mundo ao lado de árvores, ao
lado de tochas, ao lado da comida.
Palavra: semente,
luz,
alimento.
E esta entidade, que séculos de tradição filo­
sófica e de repetição científica nos descreveram
como abstração desencarnada, entidade imaterial,
fantasma superestrutural, eco, reflexo na superfí­
cie da água, adquire agora contornos concretos e
ganha uma densidade material e uma gravidez de
poder de que nunca suspeitávamos. A palavra se
defronta conosco como um corpo; o Verbo se en­
carna. E, de agora para diante, por toda a eterni­
dade, fica terminantemente proibido pensar na pa­
lavra separada da vida, da mesma forma que está
interditado separar a alma do corpo.
Palavra, coisa material:
treliça em que a vida se entrelaça,
sulco em que a ação se escoa,
teia sobre o espaço vazio, onde viver e andar,
rede em que o corpo descansa, suspenso.
Compreendo o espanto.

86
Aprendemos que a dignidade máxima da pa­
lavra se encontra em sua capacidade de enunciar
a verdade. Mas, neste mundo estranho da teolo­
gia, com a palavra se faz a verdade, desde que ela
seja dita com amor...
O fato é que palavras que nosso arsenal cien­
tífico classificou como ídolos, superstições, ilusões,
ideologias, entraram em nosso mundo e o molda­
ram, ao lado do comércio e das guerras... Na ver­
dade, nem comércio e nem guerras teria havido
se as palavras não tivessem juntado as coisas, cons­
tituindo-as como um mundo significativo, mundo
que fala e sobre que se fala...
Cosmovisão medieval? A ciência já a con­
denou. No entanto, por mais de um milênio ela
foi a treliça de um mundo humano.
Magia? Coisa de primitivos.
Uma visão mística da natureza? Superstição.
Religiões? Falsas consciências.
No entanto, deste caldeirão de palavras que
desprezamos como ilusões e falsidades surgiram
mundos e culturas que tiveram vida muito mais
longa que provavelmente terá esta nulidade que se
chama civilização técnico-científica, que parece con­
denada a morrer por afogamento em suas próprias
fezes.
Poderiamos dizer de treliças, sulcos, teias,
redes, que são falsas ou verdadeiras? E das se­
mentes, das tochas, do pão?
Ah! Poderemos dizer muitas coisas e os ad­
jetivos aí estão, para nossa escolha: adequadas,
fortes, fracas, belas, feias, saborosas, confortáveis,
desconfortáveis, causas de dor ou prazer... Palavras
do corpo, mas não do cérebro. Bem dizia Ferenzci
que a inteligência pura é um produto da morte e
uma expressão de loucura. E é somente a inteli­
gência pura que se interessa pela palavra apenas
como portadora da ciência, do conhecimento —
obsessão que a liga a uma certa serpente, nossa
conhecida. Ao corpo, entretanto, interessa a sapiên­
cia, conhecimento que tem gosto bom, porque o
corpo avalia com o amor e o prazer, e não com a
inteligência desencarnada. E é aqui que mora o
teólogo, no lugar onde a palavra é corpo, poder,
entidade do mundo material, chave que abre e fecha,
agulha que costura as partes do mundo...
Teólogo, pastor de palavras. Ele as apascenta
com amor, porque sabe que elas vivem e sairão
por aí, de boca em boca, fazendo coisas, que­
brando feitiços, abrindo olhos que não enxergavam,
fortalecendo joelhos fracos e trêmulos, dando co­
ragem, desenhando horizontes... Sobretudo isto:
desenhando horizontes: porque é lá que vivem as
esperanças e é para lá que caminhamos...
Mas com palavras todo mundo mexe. Tam­
bém o comandante do pelotão de fuzilamento e o
sedutor...
E é justamente aqui que está a arte e o po­
der deste jogo de contas de vidro. É preciso saber
escolher as palavras vivas. Distinguir pedras de
sementes. E surge a coisa curiosa: é que neste jogo
as palavras que constroem o mundo são os gemi­
dos dos sofredores. Vale o clamor do povo de
Israel, mas não o alarido dos exércitos do faraó.
Vale o “ choro às margens dos rios de Babilônia” ,

88
mas não a jovialidade sorridente dos vitoriosos que
desejavam ouvir as canções de Sião. Vale o gemi­
do dos pobres, dos mansos, dos que têm fome.
Vale a intercessão do Espírito, com gemidos pro­
fundos demais para qualquer palavra...
E isto nos leva a uma pergunta final:
Que lugares freqüenta o teólogo?
A quem dá ouvidos?
A quem dirige a sua palavra?

89
A heresia da verdade

E se eu lhes dissesse agora que em nosso jogo


de contas de vidro há um movimento proibido?
Proibições não nos devem assustar. É pelo seu
poder que o mundo humano surge. São os inter/
ditos que estabelecem a ordem. E eles se aninham
dentro de todos os acordos com que tecemos nossas
redes culturais e são eles que amarram os fios da
linguagem, das relações de parentesco, da aprecia­
ção da música...
Até mesmo no Paraíso havia um fruto proi­
bido. E o Criador advertia o homem, depois de
lhe indicar os espaços que a permissão abria para
a liberdade e o prazer:
“ Tu podes comer de qualquer uma das árvo­
res do jardim, mas não da árvore do conhe­
cimento do bem e do mal; pois no dia em
que dela comeres, certamente morrerás” .

E o estranho da proibição é que este fosse


um fruto maravilhoso, capaz de abrir olhos até
então fechados e de arrebatar o homem em voos
que o levariam até os patamares da divindade. E a
serpente sussurrava em segredo: “ Vossos olhos se
abrirão, sereis como deuses, conhecendo o bem
e o m al...”

91
É preciso notar que as proibições estão sem­
pre ligadas ao desejo. Não existe lei alguma que
nos proíba de comer pedras. É desnecessário fincar
aqui um interdito. Não há ninguém que se sinta
tentado a isto.
Mas o incesto e o assassínio são proibidos
porque eles são desejos que moram fundo dentro
de nossas almas. A intensidade de uma proibição,
longe de ser um testemunho de horror ao ato proi­
bido, é mais uma confissão de como o desejo deste
ato nos freqüenta e nos tenta.
Qual a tentação do teólogo?
Qual o seu desejo mais profundo?
Sua maior tentação: ver face a face, conhecer...
Seu desejo mais profundo: dizer Deus no seu
discurso, enunciar coisas que o comum dos mor­
tais não vêem e nem conhecem... Falar a verdade
sobre o sagrado, conhecer o Absoluto. Não foi
por isto mesmo que ele ousou batizar sua fala
como teologia? Logos, discurso, conhecimento,
ciência do divino... E nós que dizíamos que teo­
logia é conversa do corpo sobre o corpo... Vocês
terão boas razões para suspeitar que quem fala
aqui não é um respeitável membro da confraria
dos “ grandes mestres” deste jogo. Talvez um mar­
ginal, herege, que se atreve a propor mudanças...
E, de fato, eu ousaria dizer que o mais alto de­
sejo é justamente aquilo que é proibido: o teólogo
não tem a permissão para dizer a verdade. Lem­
bra-se do bailarino que queria fazer-se passar por
um ser alado? Dizer a verdade sobre Deus não
será um voo por demais alto para nós que mal

92
conseguimos saltar? O conhecimento do Absoluto
é traiçoeiro. No mito da queda, homem e mulher
esperavam que o fruto do conhecimento lhes abris­
se os olhos para coisas sublimes, mas o que eles
viram foi apenas a sua nudez. E é por isto que o
teólogo, corpo de carne e osso como todos os de­
mais, tem diante de si o interdito. Pode falar
e dançar como quiser, desde que sua fala seja o
poema do corpo, mas nunca a ciência do divino.
E é por isto mesmo que a verdade lhe é interdi­
tada. Mas é necessário ter paciência, não apressar
as conclusões.
Todos os jogos se movem para um final.
Palavras cruzadas: todos os espaços devem
ser completados.
Um quebra-cabeça: as peças encaixadas umas
nas outras, nenhuma faltando, nenhuma sobrando,
revelando um padrão.
Matemática: encontrar uma quantidade des­
conhecida, que completa um espaço lógico.
Xadrez: aplicar o xeque-mate sobre o ad­
versário.
Contar um chiste: provocar o riso.
Assim são todos os jogos. Eles se organizam
em função de um final que deve ser alcançado
pela argúcia do jogador que, para isto, é obrigado
a obedecer a certas regras. É neste ponto, onde
argúcia, regras e final se entrelaçam, que se encon­
tra o prazer de jogar.
A fala é um jogo entre outros.
Quem fala ou escreve lida com símbolos, é
obrigado a obedecer a regras e se orienta na dire­

93
ção de certos objetivos (mesmo quando o seu ob­
jetivo é falar apenas, pelo puro prazer de falar...)
São muitos os jogos que nascem da fala:
cantar, escrever poemas, contar estórias, mentir,
confessar, dar ordens, contar chistes, interrogar,
fazer ciência, orar...
As regras que valem para um jogo não podem
ser aplicadas a outros. Se uma pessoa nos per­
guntasse se Cem anos de solidão ou A montanha
mágica são livros verdadeiros, teríamos a estranha
sensação de não haver entendido a questão ou a
suspeita de que nosso interlocutor não entendeu
o que leu. Não é curioso isto, que em certas situa­
ções a compreensão exige que não se levante a
'^ciuestão da verdade ou AsT^falsidade? E que dizer
destas outras perguntas: A divina comédia é en­
graçada? A Crítica da razão pura é comovente? O
Tractatus logico-philosophicus é belo?
Os jogos que podemos fazer com as palavras
são muitos. O jogo da verdade é um, apenas um,
dentre todos os outros que são possíveis. E a su­
gestão insólita que fizemos é que o nosso jogo de
contas de vidro, a teologia, se localiza fora dos
espaços determinados pelas exigências do dizer ver­
dadeiro. Pode ser que a verdade apareça aqui e
ali, da mesma forma como, no xadrez, fazem-se
muitas jogadas que não são xeque-mate. O que
interessa é que o jogo não termina com o enun­
ciado de proposições verdadeiras. O que está em
jogo é outra coisa.
De que consiste o jogo da verdade?
Parece que suas origens se perderam no tem­
po, sendo-nos impossível reconstituir sua árvore

94
genealógica. É dos gregos que nos vêm os primei­
ros relatos que nos ajudam a entendê-lo. Tudo
começou quando os primeiros filósofos se deram
conta de uma contradição que marca nossa percep­
ção da natureza e o nosso pensamento sobre ela.
Pense, por um momento, nas coisas que o
cercam: as nuvens, o mar, o vento que sopra a
areia, as cores que se alternam no céu, as plantas
que nascem e morrem, os animais que crescem e
envelhecem... Tudo flui, tudo escoa, nada per­
manece. Por mais que procuremos, não encontra­
mos um só ponto fixo onde nos ancorar. Na natu­
reza tudo é transitório, nada se repete. Inútil ape­
lar para os rochedos. A areia das praias testemu­
nha também de sua vida efêmera...
Mas vem o espanto quando nos damos conta
de que o fluxo sem descanso não desemboca no
caos. O transitório, ao contrário, parece cavalgar
uma realidade invisível, eterna, racional, compreen­
sível, da mesma forma como no olho do furacão
se encontra o repouso absoluto. Será que o visível
efêmero nada mais é que uma sombra de um ser
imutável, que se esconde no centro de tudo? E
foi assim que os filósofos gregos se lançaram à
busca do ser que se encontra na raiz de todas as
aparências, parecendo, por vezes, encontrá-lo na
água, no fogo, no ar ou em quaisquer outros ele­
mentos, como aconteceu com os milesianos; ou
nas relações matemáticas, como quiseram os pen­
sadores pitagóricos; ou nas idéias, segundo a in­
tuição platônica. Concluíram que, para que nossa
experiência se torne inteligível, é necessário inau­
gurar uma fala que aparentemente contraria tudo

95
o que diz nossa experiência cotidiana. E se puse­
ram a falar sobre uma realidade invisível e per­
manente, origem e explicação do visível e do tran­
sitório: o ser. Surgiu então a pergunta ontológica:
que é o que realmente existe?
Foi assim que se estabeleceu o seu progra­
ma de trabalho.
Em primeiro lugar cumpria à filosofia des­
cobrir este ser, fundamento da realidade.
Em segundo lugar instaurou-se o ideal para
a linguagem filosófica: falar não sobre aquilo que
passa e desaparece; falar sobre o imutável e que
permanece para sempre. Cabia a ela articular, no
seu discurso, o fundamento invisível das coisas.
Que é o que realmente existe? A pergunta
ontológica afirma, silenciosamente, que o fun­
damento das coisas está dado, objetivamente.
Ele está lá fora, em algum lugar, esperando ser
descoberto. Os filósofos não são, assim, chama­
dos a criar coisa alguma; tudo já está feito. Res­
ta-lhes simplesmente contemplar e compreender.
O homem não pode fazer coisa alguma seja para
transformar, seja para abolir o logos da realidade.
Mas ele pode entender a forma como ele opera.
A filosofia grega não pode desenvolver o seu
programa até suas conseqüências finais. Os filóso­
fos sabiam que as percepções e sensações nada
mais são que sombras da realidade. Mas eles não
possuíam um método que lhes permitisse traduzir
tal intuição numa doutrina. Eram interrogadores
que estavam conscientes de que a testemunha es­
tava mentindo, mas faltavam-lhe as técnicas e as
perguntas para obrigá-la a dizer a verdade.

96
Foi a ciência moderna que transformou tal
visão em realidade. Ela percebeu, com Galileo,
que as respostas verdadeiras não eram obtidas por­
que as perguntas não eram feitas de maneira cor­
reta. A natureza fala a linguagem da matemática.
E foi assim que a matemática se tornou no “ abre-
-te Sésamo” que destrancou as câmaras ocultas da
realidade onde as leis eternas habitam. As leis são,
para a ciência moderna, aquilo que o ser era para
os gregos antigos. Não são as leis aquele núcleo
eterno e imutável que se encontra nos fundamen­
tos do transitório?
A ciência, assim, no jogo da verdade e como
uma de suas regras, se viu forçada a abandonar a
linguagem comum que se refere aos fenômenos,
tais como são percebidos pelos sentidos, pelo cor­
po, pelo senso comum. “ A verdade científica é
sempre um paradoxo, se julgada pelos critérios
da experiência cotidiana, que agarra somente a
aparência ilusória das coisas. Toda ciência seria
supérflua se a aparência, a forma e a natureza
das coisas fossem totalmente idênticas” . Qualquer
cientista concordará com estas declarações que nos
vêm de Marx, não importando, neste contexto, os
odores ideológicos. Na verdade existe um consen­
so universal em torno deste assunto, um credo ecu­
mênico, uma declaração de fé compartilhada por
todos os que fazem o jogo científico da verdade:
Artigo 1°: Existe um abismo entre coisas visí­
veis e coisas invisíveis.
Artigo 2°: O objetivo do jogo da ciência é a
contemplação das coisas invisíveis e permanentes,

97
7. Variações...
pois somente elas merecem o nome de realidade e
somente nelas nos encontramos com as leis.
Artigo 3°: O discurso científico, no jogo da
verdade se preocupa, em caráter último, com a
esfera invisível da natureza última das coisas. A
verdade científica, portanto, não se satisfaz com
declarações do tipo “ a neve é branca” ou “ uma
bomba atômica foi lançada em Hiroshima” . Estas
não são a verdade, objetivo do jogo da ciência. A
ciência deseja construir declarações que ofereçam
à intuição intelectual um quadro daquele sistema
de leis que se encontra, objetivamente, no funda­
mento da experiência. É este sistema apenas que
merece o nome de realidade. Tudo o mais é con­
tingente, acidental, efêmero.
O que é, então, o jogo da verdade?
Verdade, é claro, tem a ver com aquilo que
afirmamos. Somente afirmações, atos de linguagem,
podem ser verdadeiros ou falsos. Atribui-se ao fi­
lósofo neoplatônico judeu Isaac Israeli, do século
IX , a seguinte definição: “ Veritas est adaequatio
rei et intellectus ” — verdade é a adequação das
coisas ao intelecto, declaração que reverbera em
Bertrand Russell: “ a verdade consiste em alguma
forma de correspondência entre a crença e o fato” .
- Assim, qciãndÕalzemos que uma declaração é ver­
dadeira, estamos afirmando que as palavras são
tão boas quanto os olhos. Na verdade melhores
que os olhos porque elas nos permitem ver, con­
templar aquilo que realmente é, estabelecendo-se
então uma absoluta harmonia entre o pensado/
falado e aquilo que realmente existe, de forma

98
objetiva, fora do círculo da subjetividade. A ima­
ginação é, assim, subordinada à observação. Os
fatos impõem-se ao desejo. O princípio do prazer
é controlado pelo princípio da realidade. Silencia-
-se o poeta, instaura-se o monopólio do dizer cien­
tífico. Dizer a verdade é dizer o que é; é enunciar
aquilo que está presente, que é efetivamente dado
à observação. O discurso das coisas ausentes passa
a fazer parte do jogo da ficção...
E o jogo da teologia?
Parece não existir coisa alguma mais dese­
jável e saborosa que buscar e encontrar a verdade:
contemplar as coisas, tais como elas são; dizê-las,
num dizer transparente e preciso que oferece, aos
olhos da razão, a visão da realidade, sem sombras
e sem enganos...
E não se pode negar que assim seja, bas­
tando, para isto, que se aceite que a realidade já
está pronta, dada, fixada, simplesmente à espera
do olhar deslumbrado do homem que a vê pela
primeira vez. Se a realidade está pronta e acabada,
dizer a sua verdade é apenas des-velar, des-cobrir:
acender a luz.
E a teologia tomou para si este ideal. Falam
os filósofos sobre coisas que estão ao alcance da
razão humana. Fala a teologia sobre as coisas que
estão mais além. Ciência: conhecimento daquilo
que está deste lado. Teologia: conhecimento das
coisas que estão além do horizonte. Em ambos os
casos o que está em jogo é aquele discurso ade­
quado às coisas.
E foi assim que o pensar correto, orto/doxia,
se impôs como objetivo final do nosso jogo de

99
contas de vidro. E dogmas foram divinizados, dou­
trinas foram cristalizadas, confissões foram recita­
das, catecismos foram repetidos — todos, como
expressões da verdade... E a ela muitas fogueiras
se acenderam e muito ódio escorreu das bocas.
Nem sei direito porquê. Parece que os jogadores/
teólogos tiveram a curiosa e inexplicável idéia de
que o destino do corpo se dependurava em sua
capacidade para dizer a verdade e não na graça de
Deus, aquela conta encantada de onde o corpo re­
cebe seus sorrisos e suas esperanças.
Mas logo os problemas começaram a surgir.
E isto porque a verdade não era tão pura quanto
parecia. Por vezes, prostituta grávida de serpen­
tes. Não é de se admirar que Lutero tenha per­
cebido a vocação da razão para o meretrício... Co­
mo o cavalo de Tróia. Externamente, dádiva dos
deuses. No seu ventre, entretanto, escondem-se pos­
sibilidades insuspeitadas. Armadilha. E foi assim
que, fascinados pelo esplendor do fruto, nem se­
quer paramos para nos perguntar acerca dos pres­
supostos e das conseqüências. Apenas alguns tive­
ram coragem bastante para questionar a pureza
virginal da verdade. Mas eram indivíduos isola­
dos que, por serem fracos e solitários, puderam ser
estigmatizados e esquecidos como marginais, ro­
mânticos, irracionais...
Acontece que, para que a boca diga a ver­
dade, é necessário que se congele o corpo e se ar­
ranque o coração. Não, não se trata de um exagero
poético. Simples decorrência do ideal de verdade:
um discurso totalmente fiel ao dado, totalmente
subordinado e subserviente a ele. Contemplar a

100

I
coisa e dizê-la. Silenciar a imaginação. Colocar a
observação em seu lugar. Objetividade. Silenciar o
sujeito. E é assim que corpos de carne e osso não
mais falam. Em seu lugar, a inteligência pura, ma­
temática, abstrata, universal. Não é isso que en­
contramos nos artigos científicos? Observa-se, cons­
tata-se, conclui-se... Quem? Ninguém e todos.
Compreende-se a razão por que o corpo deve
ser reprimido para que a verdade seja dita. É que,
para o corpo, não existe nunca um mundo lá fora,
neutro, objeto de uma contemplação pura e indi­
ferente. A natureza é sempre um convite ou uma
ameaça, uma questão de amor ou medo, aproxi­
mação ou fuga — algo que diz respeito emocional,
vital, à exigência de sobrevivência e prazer. O
corpo não pode ser objetivo. Ao contrario. Ele é
sempre o centro de tudo, o ponto de partida e o
ponto de chegada do pensamento e é nas teias do
seu desejo que ele conhece o seu mundo. Chega­
ríamos então à curiosa conclusão de que cada corpo
tem a sua própria verdade. O mundo dos felizes
é diferente do mundo dos infelizes, o mundo dos
opressores é diferente do mundo dos oprimidos...
Os tigres têm olhos na frente. Os antílopes têm
olhos de lado. Caçador e caça, perseguidor e per­
seguido. Mundos distintos, já patentes na própria
organização anatômica dos órgãos da visão. Mas
esta é uma conclusão absurda, no jogo da verdade.
A verdade é uma só, universal, eterna. É assim
que ela se move nos jogos que brincam com ela.
Pena que o corpo não possa dançar aqui, porque
o corpo só se move ao som do desejo e do erótico.
Acontece que, quando tais protagonistas entram

101
em cena, a verdade, por alergia, fica asmática e
exibe um comportamento afásico, e se contam chistes
enquanto bailam. Já a verdade prefere dançar com
a inteligência pura, que arrasta apenas vestígios de
um corpo que se atrofiou. Freud tinha razão total
ao afirmar que os que se dedicam ao serviço da
verdade têm de aprender primeiro a reprimir o
corpo e a cegar os instintos. E é assim que, sob a
exigência da verdade universal e objetiva, a natu­
reza colorida, brilhante, movida por sons, perfu­
mes e sabores, se torna “ uma coisa vazia de inte­
resse, sem sons, sem perfumes, sem cor” (Whi-
tehead): uma construção matemática apenas.
E que diferença faz, para o corpo, a verdade
abstrata? Parece, inclusive, faltarem-lhe natural­
mente os necessários registros compreendê-la e
enunciá-la. É sempre sob regime de tortura que o
corpo confessa: é necessário que um poder, vindo
de fora, reprima o amor e o desejo primeiro. Uma
vez realizada esta lobotomia epistemológica, o cor­
po perde contacto consigo mesmo e a natureza
deixa de ser coisa viva que promete e ameaça,
metamorfoseando-se em puro objeto de contem­
plação, neutro, distante milhares de quilômetros,
não importa que esteja mesmo sobre o balcão do
laboratório. Talvez seja este o primeiro artigo do
código da moralidade científica:

“ Artigo primeiro: Para que o cientista se cons­


titua como um percebedor puro, livre de de­
sejos e emoções, o corpo deve morrer. So­
mente então desponta a inteligência pura” .

102
Dos percebedores puros — ninguém mais do
que eles comprometidos com o jogo da verdade —
Nietzsche tem coisas amargas a dizer.

“ É assim que o vosso espírito, mentiroso,


diz para si mesmo, vós, percebedores puros:
‘Para a minha mente o mais sublime é olhar
para a vida sem desejo, e não como um ca­
chorro, com a língua de fora, dependurada.
Encontrar a felicidade no próprio ato de
olhar, com uma vontade que morreu... o corpo
inteiro frio e reduzido a cinzas... É disto que
eu gostaria, de amar a terra como a lua a
ama, e tocar a sua beleza apenas com os meus
olhos. E é isto que a imaculada conceição
de todas as coisas significa para mim: que
eu nada desejo delas a não ser a permissão
para ficar prostrado diante delas, como um
espelho de cem olhos’.
“ Mas esta será a vossa maldição, vós que sois
imaculados, vós, percebedores puros, pois
nunca dareis à luz, mesmo que vos deiteis
largos e grávidos no horizonte, como a luz” .

A verdade, o quanto ela é importante?


Certamente que a nossa capacidade de mor­
rer por uma pessoa é um testemunho final do
quanto a amamos. Às vezes as idéias parecem ser
mais importantes que as pessoas. Seria de se espe­
rar que, se organizássemos as verdades numa or­
dem de importância, deveriamos estar prontos a
morrer por aquelas que são mais significativas.

103
E é aqui que Camus pergunta:
“ Já viu alguém morrer pelo argumento onto-
lógico? O argumento é lindo e tem a ver com a
existência de D eus...”

“ Galileo, que mantinha uma verdade cientí­


fica de grande importância, a abjurou com
grande facilidade, tão logo percebeu que sua
vida estava em perigo. E, num certo sentido,
ele fez o que era certo. Aquela verdade não
valia a fogueira. Se a terra ou o sol giram
um em torno do outro é uma questão de
profunda indiferença. Para dizer a verdade,
trata-se de uma questão fútil” (O mito de
Sísifo, p. 3).

Claro que Galileo estava certo: seu corpo valia


mais que aquela e todas as demais verdades
científicas que viriam a ser empilhadas. Ver­
dades científicas e corpos humanos são bens
de uso, não podem ser trocados.
Verdades científicas são coisas ditas pelas
quais não vale a pena morrer. Isto é absolutamente
claro. Às vezes, entretanto, em meio a uma luta
em que o destino de corpos está em jogo, as ver­
dades científicas podem ser usadas como armas.
Possuem um valor instrumental. Voltamos a Niezts-
che: brinquedo e ferramenta do corpo, isto a que
dais o nome de razão... Como poderia o corpo
morrer por aquilo que é apenas brinquedo e fer­
ramenta? Ah! Mas ele estaria pronto a morrer por
aquilo que ele ama, a fim de que suas sementes

104
germinem e sua presença continue, mesmo depois
de sua morte...
Para o corpo pouco importam as verdades
científicas. Galileo sabia disto muito bem. O cor­
po não está em busca da verdade objetiva que
mora com a ciência, mas da verdade gostosa e
erótica que vive com a sápida-ciência, sapiência,
ciência saborosa, ciência que tem a ver com viver
e morrer. E Camus passa de Galileo para aquelas
muitas outras pessoas que morrem por decisão,
por julgarem que a vida não é digna de ser vivida.
Enquanto isto, outros avançam para a morte tendo
como bandeiras idéias e ilusões que nunca passa­
riam nos testes científicos da verdade, mas que lhes
dão razões para viver e para morrer. É sempre
assim. Boas razões para morrer são boas razões
para viver.
Mas quando olhamos para a verdade, trans­
parente e impassível, deusa da ciência, sentimos
que ela tem o poder para congelar e imobilizar. Foi
Orozco, se não me engano, que pintou o mural
“ A formatura” , resultado de sua experiência nos
eruditos círculos universitários. É o ponto culmi­
nante da vida acadêmica, o rito final de qualifi­
cação de um cientista. Dominante e ligeiramente
de costas para o espectador, ergue-se o professor
velho, magro, verde, cadavérico, trazendo as mar­
cas de toda uma vida dedicada à repressão do
corpo e ao cultivo do cérebro, sorrindo para seu
jovem aluno, menor, mais baixo, mas já exibindo
as mesmas marcas de repressão e cerebralidade: o
sorriso é o mesmo, e a cor esverdeada e a magreza.
E recebe do mestre da verdade as suas credenciais:

105
o diploma, um feto, dentro de um tubo de ensaio...
O que nos faz invocar novamente um morto,
Nietzsche:
“ Cuidado com os eruditos. Eles o odeiam, pois
eles são estéreis. Eles têm olhos frios e secos.
À sua frente todos os pássaros têm suas penas
arrancadas. Tais homens se jactam de nunca
mentir: mas a inabilidade para mentir está
muito longe do amor à verdade. Não acre­
dito nos espíritos enregelados. Quem quer
que seja incapaz de mentir não sabe o que
a verdade significa” (TSZ, p. 402).
O que é a verdade? Nietzsche nos assombra
com sua última afirmação. Quem não é capaz de
mentir nada sabe sobre a verdade... E é assim que
ele a arranca dos cenários gelados onde olhos sem
lágrimas e bocas sem tremores simplesmente enun­
ciam o que é, para apontar para uma outra fala,
homônima desta primeira, e que tem o gosto
bom/amargo/orgásmico do sangue, e da água sal­
gada do mar, e do pão e do vinho partidos repar­
tidos no adeus, e do suor das caminhadas, e dos
olhos que se abrem, doentes que são curados,
mortos que são ressuscitados, e a verdade cientí­
fica dos que falavam com as pedras na mão, sa­
bedores de que a verdade justificaria a execução,
e a da mulher que, contra todas as expectativas,
encontrou-se com uma palavra que a mandou de
volta para a vida, e a pergunta sem resposta sobre
a verdade e a presença da verdade em um corpo
de carne e osso, que acabou sendo morto: Eu
sou a verdade...

106
O que é a verdade?
A palavra é a mesma.
Os jogos são diferentes.
Porque num caso a verdade é a fala que diz
o que é, sem nunca sorrir ou chorar. Enquanto
que, no outro, verdade é coisa viva que, por onde
passa, faz brotar mananciais de águas e provoca
pulos de alegria. A primeira verdade se situa num
espaço indiferente-lógico-glacial. A segunda habita
um espaço erótico-vital-tropical: plantar sementes
em terra árida, engravidar as estéreis, fazer brin­
car as crianças, despertar, para o prazer, corpos
ainda adormecidos de jovens e velhos, desmantelar
arsenais inteiros para de seus debris fazer moinhos
de vento, monjolos, arados, carrinhos de pipoca,
milhares de flautas e vasos de flores, e especial­
mente redes, balanços, gangorras e pedalinhos,
para o “ sabath” do ano do jubileu...
A questão é se sabemos jogar este outro jogo,
que não é o jogo da verdade, pois a verdade não
deseja e tem os olhos secos.
Quem é o teólogo?
Poucos me parecem dançarinos.
Raramente os vejo com papagaios e linha à
mão.
E não me recordo de jamais haver ouvido as
estórias que as crianças lhes contaram ou as estó­
rias que eles contaram para as crianças...
Vejam os seus textos. O estilo, as palavras
difíceis, o número de páginas, as notas de rodapé,
os pressupostos exigidos do leitor — tudo isto
revela as regras do seu jogo, tudo isto indica quem

107
são os membros da confraria em que ele se sente
em casa. Testemunhos do lugar do seu corpo,
entre aqueles que conseguiram galgar os difíceis
degraus da vida acadêmica, longe das entranhas
daqueles que foram sacrificados...

Quando foi que isto aconteceu?


Não sei.
Mas o fato é que deve ter havido um mo­
mento em que a verdade e a bondade se despe­
diram uma da outra, num adeus. Por razões ób­
vias. Os caminhos das pessoas comuns não são os
mesmos que os caminhos dos especialistas na ver­
dade. Diz-nos Alvin Gouldner que um dos pres­
supostos fundamentais da empresa científica é que
as pessoas comuns crêem em razão dos seus dese­
jos e interesses, estando por isto mesmo mergu­
lhados nos desvios ideológicos e neuróticos, en­
quanto que somente os cientistas, em virtude do
seu método, crêem em decorrência das exigências
das evidências e da lógica. E foi assim que a teo­
logia, ciência das coisas divinas, se viu obrigada
a abandonar o caminho das pessoas comuns a fim
de subir, subir para ver. A verdade tem de ser
objetiva e universal, sem amor e sem desejo. E os
teólogos deixaram de freqüentar os caminhos e fi­
zeram nas bibliotecas e nos anfiteatros acadêmicos
a sua morada. É compreensível que nem os profe­
tas e nem Jesus tenham jamais atingido a digni­
dade do saber teológico. Teólogos falam sobre Je ­
sus, falam sobre os profetas, mas não falam como
os profetas e Jesus falaram. É este como falar que
faz toda a diferença. E passaram a falar com aque­

108
les que falavam a mesma linguagem, e escreveram
livros para aqueles que viviam no mesmo mundo,
e propuseram fórmulas e teorias que somente eles
entendiam ou faziam de conta que entendiam, e
celebraram disputas, e tiveram polêmicas... E es­
queceram as dores e os sorrisos das pessoas comuns
e a linguagem que delas brota, pois não é neste
nível que o saber habita. E eles, sem saber ou
sem se lembrar da lição de Vieira, lição cristoló-
gica, deixaram de fazer suas meditações sobre os
corpos das vítimas, preferindo antes retirar suas
verdades de dentro de seus tubos de ensaio e de
seus cérebros assépticos...

Afinal de contas, como pode a bondade com­


petir com a verdade em dignidade e densidade sa-
cral? Eu lhes pergunto: “ Quantas pessoas os se­
nhores já viram sofrer o peso da censura e disci­
plina eclesiástica em conseqüência de sua falta de
amor, ou por lhes faltar a paciência, quem sabe
por hipocrisia?” No entanto as penas pelos des­
vios intelectuais são severas. Os homens foram e
são levados às fogueiras nunca como conseqüência
de sua falta de bondade, mas por sua rejeição à
verdade. Quando fogueiras são acesas e as vítimas
são preparadas para o sacrifício à verdade, a bon­
dade é obrigada a manter silêncio. É sempre as­
sim. Os hereges são mais perigosos que aqueles
que cometem os grosseiros pecados da carne. O
perdão para estes é mais fácil, mais rápido... Da
mesma forma como o eunuco, que defende o amor
livre, é mais perigoso que o devasso que proclama
a sacralidade da família...

109
O teólogo não tem permissão para dizer a
verdade: foi com esta afirmação estranha que ini­
ciamos nossas reflexões. O problema está nas ser­
pentes, acordos silenciosos, que o jogo da verdade
trás no seu ventre. O jogo da verdade exige a re­
pressão do desejo e do amor. Mas no nosso jogo
de contas de vidro cada vez que a verdade é toca­
da, ressoam risos e ouvem-se choros... É que as
regras são diferentes. No jogo do conhecimento,
somente “ o que é ” pode ser verdade. No
jogo da teologia “ o que é, não pode ser ver~
~dãde". Porque aihdíThá^ágrimas. O universo intei-
Tõ~aguãrda a redenção.^AqüíT^cãdã palavra d^ver-
cTade é uma oração...

110
A verdade da heresia

Os pensamentos seguem as trilhas abertas


pelo corpo.
Lembro-me daquele engraxate (estória que
repito sempre) que observava, seguro de si, um
indivíduo que se aproximava ao longe:
“ Lá vem um freguês” .
“ Você já o conhece há muito tem po?” , per­
guntei.
“ Não, nunca o v i” .
“ Então, como é que você sabe que ele é um
freguês? ”
E ele, olhos espantados perante tanta estu­
pidez, respondeu a coisa mais óbvia do mundo,
para quem vive debruçado sobre os sapatos sujos
dos outros:
“ O senhor não olhou prôs sapatos dele?”
É assim, os olhos e os pensamentos dos en­
graxates andam pelos caminhos que seu trabalho
lhes abre. O pensamento é a extensão do corpo.
Voltamos a Feuerbach:
“ Se as plantas tivessem olhos, capacidade para
apreciar e julgar, cada uma delas diria que
sua flor é a mais bonita” (The essence of
Christianity, p. 8).

111
É perfeitamente compreensível. Como pode-
ria uma planta pensar com um corpo diferente do
seu? Somos prisioneiros e amantes desta coisa
frágil e bela que é o nosso corpo. Mesmo quando
ele envelhece e se torna flácido. Vem então a ma­
gia das operações plásticas — destinadas, mais cedo
ou mais tarde, ao fracasso e a esperança de um
corpo ressuscitado, eternamente jovem: “ Os que
têm seus olhos voltados para o Senhor renovarão
as suas forças, terão asas como as águias, correrão
sem se cansar...” (Isaías 40.31). O corpo faz o
pensamento voar. O corpo é o mistério do pen­
samento.
Dizia José para um dos seus captores:

“ O mundo tem muitos centros, um centro


para cada criatura, e cada uma delas vive den­
tro do seu próprio círculo. Tu estás a um
pouco mais de um metro distante de mim;
no entanto, à tua volta, jaz um mundo cujo
centro és tu, e não eu” (Thomas Mann, José
no Egito).

Corpos diferentes. Mundos diferentes. Um é


o mundo dos captores. Outro é o mundo dos es­
cravos. Um é o mundo dos tigres. Outro é o mun­
do dos antílopes.
E as coisas diferentes que fazemos fazem os
nossos corpos e pensamentos que, por sua vez, nos
fazem fazer as coisas diferentes que fazemos... E
os homens tecem, a partir e em torno de seus
corpos, com os seus pensamentos, infinidades de
mundos/teias, redes em que descansam.

112
Acontece que o jogo de contas de vidro, nosso
brinquedo, é movido por homens de carne e osso,
como todos os demais. Mas desde cedo eles apren­
deram que a fala sobre Deus se tece com os fios
da verdade, e que nestes fios se dependuram a
vida e a morte dos homens, e que ao ver a ver­
dade eles ficarão mais belos, mais mansos, mais
crianças...
E por amor a Deus e amor aos homens os
teólogos se entregam à disciplina da verdade, dis­
ciplina que se pode contemplar nos seus olhos, na
sua pele, nos seus músculos e talvez no seu em­
baraço frente aos outros que, sem se preocupar
com a verdade, puderam dar-se ao sol, ao vento
e ao sono... A busca da verdade deixa cicatrizes.

E agora, estupefactos, ouvem que tudo foi


em vão: equívoco. A verdade está interditada aos
teólogos. O que eles fazem com seus pensamen­
tos e suas palavras é outra coisa, menos contem­
plação dos horizontes da eternidade. E eles vêem
suas estrelas transformarem-se em espumas de
ondas...
Pedimos então licença para nos apropriar do
que disse Wittgenstein: “ Filosofia, batalha contra
o feitiço que certas formas de expressão exercem
sobre nós...”
Palavras, poderes mágicos, possessão demo­
níaca.
Teologia como exorcismo.
E que palavras nos enfeitiçam?
A verdade poderá ser uma delas?
A fala da serpente deixa fortes suspeitas no ar...

113
8. Variações...
“ Poder sobre os demônios se obtém chaman-
do-os pelo seu nome real” (Martin Buber, I and
thou, p. 58).

A verdade, terá ela outros nomes?


Os corpos são muitos, os mundos são mui­
tos, as verdades são muitas...
Pesquisa genealógica: onde é que nasce esta
palavra mágica? Que poderes a engendram? Que
destino lhe é dado? Quais aqueles que mais a invo­
cam? O que desejamos é elucidar; quebrar o fei­
tiço de uma palavra bela: todas as palavras enfei-
tiçantes são belas e desejáveis...
A primeira lição nos será dada por um tipo
esquisito, tirado do mundo fantástico que Lewis
Carroll criou, num diálogo absurdo com Alice. Pa­
rece que um tal Humpty-Dumpty não conhece
muito bem o significado das palavras e a menina
tenta introduzi-lo ao mundo da semântica e da
comunicação.
“ Eu não sei o que você quer dizer por ‘gló­
ria’, disse Alice.
Humpty Dumpty sorriu com desdém.
— É claro que não, até que eu lhe diga.
Significa: ‘há um belo argumento decisivo para
você’.
— Mas ‘glória’ não significa ‘há um belo
argumento decisivo’, objetou Alice.
— Quando EU uso uma palavra, disse Hump­
ty Dumpty, num tom de deboche, ela significa
apenas aquilo que eu quero que ela signifique,
nem mais e nem menos.

114
— A questão é, disse Alice, se você pode
fazer com que as palavras signifiquem tantas coi­
sas diferentes.
— A questão é, disse Humpty Dumpty, quem
é o senhor — isto é tudo” (Lewis Carroll, Alice’s
Adventures in Wonderland-Through the looking
Glass, p. 247).
Façamos de conta que Alice é uma teóloga e
que eu estou brincando de Humpty-Dumpty. A dis­
cussão tem a ver com o significado das palavras,
a relação entre os símbolos e as coisas. E vejam
vocês, esta é, exatamente, a nossa questão: o sig­
nificado da verdade.
Alice é deliciosamente ingênua, como o de­
vem ser as meninas. Ela não sente problema algum
no ato de significar. Parece-lhe natural que cada
palavra possua um significado, como se o signifi­
cado fosse algo inerente ao símbolo. A discussão
é filosófica. O problema: o sentido das palavras.
E Alice pertence àquele grupo que, na caracteri­
zação de Wittgenstein (The blue and the brown
books, p. 28), acredita ser possível “ um tipo de
investigação científica sobre o que a palavra real­
mente significa” . Que é que a palavra verdade
significa? E Deus? E graça? E salvação? E se
escrevem léxicos, dicionários, para esclarecer o sen­
tido das palavras. E se organizam reuniões entre
bispos e teólogos, em que se discutem as palavras,
sobre o pressuposto de que nossas desavenças se
baseiam num enorme mal-entendido que poderia ser
resolvido pela filologia, pela crítica, pela exegese...
Alice é tão protestante! Nós nascemos dos atos
puros/ingênuos de ouvir/ler, em busca das ori­

115
gens, das fontes, na esperança de tirar do símbolo
aquilo que ele realmente significa. E foi com esta
filosofia que enfrentamos o mundo inteiro, tendo
nas mãos a palavra da verdade...
Humpty-Dumpty, ao contrário, parece já ter
lido Maquiavel, tem consciência das relações entre
o poder e o saber, revela um certo acordo com a
afirmação de Lutero de que a razão é uma pros­
tituta e contrapõe à semântica ingênua/protestan-
te de Alice uma outra cruelmente política, que
Alice parece/não pode/não quer entender, pois
todo o seu mundo viria abaixo, com a demissão
em massa de exegetas e filólogos, face à súbita
vaporização dos seus objetos...
Acompanhemos o curioso diálogo. Diz Alice:
— Mas ‘glória’ não significa...
Vejam como o mundo de AJice é regido pelo
modo indicativo. Ela toma por pressuposto que
há uma forma natural de significar... Ao que Hump­
ty-Dumpty retruca:
— Estamos em jogos diferentes. Meu mun­
do não é regido pelo indicativo mas pelo imperativo.
As palavras não significam porque signifiquem. Seu
significado se deriva da forma como eu as uso.
Claro que você ainda não leu as Investigações Fi­
losóficas do Wittgenstein. Estamos em 1871, e
elas só serão publicadas em 1953. Mas está lá, no
parágrafo 43: “ O sentido de uma palavra é o seu
uso na linguagem” . E você já pensou isto, que a
questão do uso é, no fundo, a questão de querer
e poder? Se eu uso a palavra ‘glória’, quero que
ela signifique “ há um belo argumento decisivo para
você” , e tenho os meios para impor tal significado,

116
este será o significado que ela terá. Até o cachorro
de Pavlov aprenderá isto, no futuro. Você já viu
frangos dançarinos? Curioso que frangos se ponham
a dançar, porque nem a música e nem os saltos
lhes significam coisa alguma. Prenda as aves numa
gaiola. Ponha-se a tocar flauta. Fale manso com
os bichos. Eles continuarão impassíveis, interesse
concentrado no milho. É que você não está falan­
do com poder. Coloque a gaiola de fundo metá­
lico sobre uma chama e toque sua flauta. Dentro
em pouco, você verá, na medida em que o fundo
metálico se aquece, a sensibilidade do animal para
a dança começará a aparecer. Começará a saltar,
cada vez mais rápido. Repita a mesma lição, com
a mesma pedagogia, por duas ou três vezes. De­
pois bastará tocar a flauta. O seu poder terá comu­
nicado ao frango uma sensibilidade artística que
ele ignorava antes. Esta é a razão por que, em
oposição à sua filosofia ingênua, eu posso fazer
com que as palavras signifiquem qualquer coisa. A
semântica se reduz à política. O que importa é
quem é o senhor. Em outras palavras: o sentido
é decidido por aquele que tem o poder para bater
na mesa e dizer: “ Está encerrada a discussão” . O
senhor é aquele que tem a última palavra. E a
última palavra não é um ato de significar mas
um ato de poder.
Argumentarão dizendo que não é assim entre
os cientistas, que foram treinados a se curvar pe­
rante a verdade, não importa que ela seja gélida
ou tórrida. E eu perguntarei pelas evidências desta
afirmação. Porque, se Kuhn está certo, também na
comunidade científica a verdade é uma função do

117
grupo de maior poder. E as coisas mudam não
porque as pessoas se convertam a novas teorias
mas porque, contra a sua vontade, acabam por
morrer e deixam vazio o espaço para que os outros,
por sua vez, venham a dominar o campo semântico.
Verdadeiras são as palavras pronunciadas pe­
los fortes. Os fortes fazem com que seu discurso
seja aceito como verdadeiro. Não seria um ab­
surdo que eles permitissem que fosse de outra
forma? Os fortes falam, não para dizer a verdade,
mas para impor a sua força. E chamar o seu dis­
curso de verdadeiro é uma forma de legitimar o
seu exercício de poder. A semântica está a serviço
da política, o saber subordina-se ao poder. Lem­
bro-me que nos mundos de Orwell, tanto 1984
quanto A revolução dos bichos, havia equipes encar­
regadas de permanentemente reescrever a história,
para harmonizá-la com os fatos dominantes do mo­
mento presente. Faz pouco tempo que os histo­
riadores se deram conta deste fato terrível, que a
história é sempre interpretada e escrita pelos vito­
riosos. E neste processo os derrotados são sem­
pre silenciados. E isto porque o fato de terem
sido derrotados faz com que eles sejam alinhados
ao lado da mentira.
Onde está a história da heresia contada pelos
hereges?
Os hereges foram mortos; não podem falar;
seus escritos foram queimados e proibidos.
Quem os classificou como hereges?
Se eles foram capazes de enfrentar a fogueira,
sem se retratar, não será porque eles se julgavam
possuidores de uma verdade que dava sentido à

118
sua vida e à sua morte? Não, eles nunca se con­
sideraram hereges. Ao contrário, estavam conven­
cidos de que os que estavam no erro eram aqueles
que os queimavam.
Mas não tinham poder.
Indivíduos isolados, fracos, abandonados.
E, por isto mesmo, os mais fortes puderam
defini-los como hereges e puderam definir-se a si
mesmos como ortodoxos. Não há nenhum caso na
história em que os vitoriosos tenham se proclama­
do equivocados.
Os fracos são as vítimas.
Sobre as vítimas se coloca o estigma do erro.
Assim aconteceu com
as bruxas (que nunca se chamaram bruxas),
com os anabatistas,
com as civilizações pré-colombianas,
com as culturas índias,
com os negros,
com os pobres,
com aqueles que inventaram
novas maneiras de pensar.
Os estigmas têm os sons mais variados. Mas
todos eles sugerem a sua distância da verdade:
tipos exóticos, ex/óticos,
primitivos,
atrasados,
supersticiosos...
Amá-los não é difícil.
Difícil é ouvir sua fala como portadora de
uma verdade que somos incapazes de entender.

119
E, assim, teólogos e habitantes outros das
alturas acadêmicas se sentiríam bem, lutando pelos
direitos destes fracos, mas não poderíam dissimu­
lar um certo senso de superioridade epistemológica
e científica. Daí este estranho discurso sobre o
popular, embrulhado em categorias eruditas. E que
dizer da palavra dos velhos e da palavra das
crianças?
Será possível compreender agora as razões por
que a verdade está interditada ao teólogo? O teó­
logo não é um colecionador de ortodoxias... Pelo
contrário... É necessário não nos esquecermos de
que as Escrituras Sagradas são um documento de
derrotados; escravos; nômades no deserto; opri­
midos em sua própria terra; falam os profetas em
nome dos que não têm voz; são perseguidos e
mortos; exilados em terra estranha; à espera de
um Rei Forte, que nasceu entre animais, andou
pela terra preferindo sempre a companhia dos mal-
-cheirosos morais e físicos, prostitutas, adúlteras,
publicanos, leprosos; e acabou sendo executado
como herege religioso e herege político, blasfemo
e subversivo... Mas os documentos dos derrotados
são sempre definidos como loucura — e de fato
assim aconteceu. E é desta tradição que surge uma
estranha predileção pelo que é fraco e derrotado...
... o que cria um enorme problema para o
teólogo, colecionador de verdades. Porque as ver­
dades são troféus dos vitoriosos. E na companhia
dos fracos o que se encontra é a loucura, a heresia...
Será isto: que a sabedoria de Deus se aninhe, pre­
ferencialmente, dentro das heresias dos fracos? E
se este for o caso, o teólogo, treinado nas biblio-

120
t<vns, onde se preservaram os textos vitoriosos,
lerá de aprender a preparar suas redes para dor­
mi i entre os pobres, ouvindo os relatos e canções
i|uc acontecem à luz da lamparina — porque a sa­
bedoria dos oprimidos, impotente para ganhar a
dignidade de texto erudito, continua colada à vida...
li isto: a preferência pela heresia, que é a verdade
daqueles que não têm poder. É necessário ouvir as
estórias dos derrotados, contadas por eles mesmos,
li quando isto acontece, os nomes mudam de lugar
e o mundo vira de cabeça para baixo: os heróis se
tornam vilões, os vilões se transformam em heróis,
e ocorre a metamorfose das versões criadas pelos
vitoriosos, com a vergonha geral ante o grito: “ o
rei está nu...”
Mas estes são embaraços que devem ser evi­
tados a todo custo, e esta é a razão por que os
vitoriosos e os fortes estão cheios de verdades que
espalham pelos pontos estratégicos do mundo. Pen­
so que é provável que a mulher de Ló, ao olhar
para trás, tenha contemplado a verdade, porque a
verdade transforma sempre coisas vivas em está­
tuas de sal, fixadas e imóveis. A conclusão é logi­
camente necessária. Se a verdade já foi atingida,
se o ponto de chegada já foi alcançado, por que
mudar? A razão está com Nietzsche:
“ Oh! meus irmãos, quem representa o maior
perigo de todos para o futuro do homem?
Não são, porventura, os bons e os justos?
Pois eles dizem e sentem em seus corações
'Nós já sabemos o que é bom e justo, e nós
já o possuímos; ai daqueles que, entre nós,

121
ainda procuram’ (Thus spoke Zarathustra,
P- 324).
Quem já sabe so pode amaldiçoar e crucificar
aqueles que ainda procuram, pois a própria pro­
cura, em si mesma, é um questionamento do já
saber, uma negação da chegada. Esta é a razão por
que todas as ditaduras, de direita e de esquerda,
se nutrem de infalibilidades, escrevem e ensinam
seus catecismos, perseguem aqueles que resistem
aos processos educacionais que estabelecem e des-
troem os poucos que veem outros mundos e têm
a coragem de proclamar suas visões.
Não há escolha.
Os fortes estão condenados à verdade.
Os que têm a verdade estão condenados a
acender fogueiras.
Não e por acidente que a tolerância vá cres­
cendo sempre na medida em que a força diminui
e que, nas instituições totalmente marcadas pela
força, não exista para ela lugar algum.
Vale para a Igreja,
para os partidos de direita e de esquerda,
para o mundo acadêmico...
A mesma maldição,
o mesmo pecado original,
o amor ao poder,
que possui a estranha propriedade de não men­
tir nunca, de nao duvidar nunca, de dizer
sempre a verdade...
Peço licença para transcrever um pequeno
trecho de um filósofo polonês, Leszek Kolakow-

122
ski, que compreendeu bem esta questão. Ele es­
creveu um ensaio com um título que horrorizaria
pessoas com um pouco de sensibilidade moral,
cspecialmente a nós, protestantes: “ Em louvor à
inconsistência” .
Lembro-me, quando adolescente, que aquilo
que mais desprezávamos nos católicos era precisa­
mente a sua inconsistência, a distância entre o seu
discurso teológico/moral e o seu comportamento.
O confessionário lhes abria possibilidades que eram
interditadas a nós.
Kant. O imperativo categórico. Dizer a ver­
dade sempre. Batem à minha porta. Abro. Uma
pessoa em pânico. Pede abrigo. Está sendo perse­
guida por alguém que deseja matá-la. Escondo-a.
Dentro de poucos minutos batem de novo. O pos­
sível criminoso. “ — Entrou, por acaso, aqui, há
poucos minutos, uma pessoa...?” Que digo? Kant
responde: “ — A verdade, qualquer que seja o seu
preço. Consistência absoluta” . Kant era um bom
protestante. Sabia o que era a verdade e quais eram
as suas exigências. Que teria feito quando tropas
da Gestapo procuravam por judeus, escondidos em
casas onde se julgavam protegidos pela compaixão?
A consistência não conhece a compaixão. Fala
Kolakowski:
“ Falo de consistência em apenas um sentido,
limitado à correspondência entre o comporta­
mento e pensamento, à harmonia íntima entre
princípios gerais e suas aplicações. Portanto,
considero como consistente simplesmente um
homem que, possuindo um certo número de

123
conceitos gerais e absolutos, esforça-se hones­
tamente em tudo o que faz, em todas as suas
opiniões sobre o que deve ser feito, para
manter-se na maior concordância possível com
aqueles conceitos.
Por que deveria qualquer pessoa, inflexivel­
mente convencida da verdade exclusiva dos
seus conceitos relativos a qualquer e a todas
as questões, estar pronta a tolerar idéias opos­
tas? Que bem pode ela esperar de uma si­
tuação em que cada um é livre para expres­
sar opiniões que, segundo o seu julgamento,
são patentemente falsas e, portanto, prejudi­
ciais à sociedade? Por que direito deveria ela
se abster de usar quaisquer meios para atin­
gir algo que ela julga correto? Em outras
palavras: consistência total equivale, na prá­
tica, ao fanatismo, enquanto que a inconsis­
tência é a fonte da tolerância” .

Que me demonstrem o lugar onde o argu­


mento falhou. A questão é: se estou absolutamente
convencido da verdade, se tenho a verdade, por
que permitir idéias diferentes dela? Por que dia­
logar? A menos que o diálogo se transforme numa
armadilha e que seja uma tática de engodo arti­
culada por quem não se sente forte o bastante
para impor...
Curioso, mas até hoje não soube que um
poema tenha gerado ortodoxias ou inquisições. Tal­
vez que a palavra de um poema seja diferente da
palavra da verdade. De fato, não se exige de uma
declaração que se afirma verdadeira que ela seja

124
bela, e nem de um texto belo que ele seja verda­
deiro... Jogos diferentes.
No jogo da verdade exige-se que o falado
seja um reflexo/imagem da coisa sobre que se fala.
E da fidelidade deste reflexo dão testemunho aque­
les que têm a última palavra. Os que vêem dife­
rentemente e não concordam são silenciados e de­
clarados amigos do erro.
No jogo da poesia, entretanto, as regras são
outras. O que se pede de cada palavra é que ela
seja uma confissão e que, juntas, formem uma
rede simbólica capaz de acolher o outro também.
Poemas são estruturas verbais boas para que nelas
também os outros se abriguem.
O poema interdita o dogmatismo por ser, no
fundo, uma confissão. E confissões podem, quan­
do muito, oferecer um convite, mas nunca uma
exigência.
É que a verdade habita o mundo do deter­
minismo e os poemas constituem o mundo da
liberdade...
Claro que ninguém que tenha entendido o
poema pretende haver dele extraído a sua verda­
de. Veja a afirmação matemática, tão simples, trans­
parente, definitiva: 2 + 2 = 4. Curioso que, nas
próximas vezes que eu a ler ela continuará a dizer
a mesma coisa. O seu sentido se esgota na pri­
meira vez... Mas, e os poemas? Cada nova leitura
é um novo encontro, como se o poema fosse ape­
nas a face visível de uma profundidade inesgotá­
vel. E é somente por isto que um poema é para
ser lido e relido, sem fim, cada nova leitura sendo
uma nova surpresa e uma nova experiência, en-

125
quanto a verdade definitiva da equação matemática
se diz totalmente na primeira vez...
Talvez seja esta a diferença.
Discursos que se dizem totalmente, de uma
vez, e que se esgotam, fincando limites e erguendo
cercas...
... e os discursos que nunca se dizem porque
guardam sempre uma parcela de segredo e de
mistério...
No primeiro caso o discurso está colado, su­
perposto à coisa que ele diz. A linguagem e o ser
estão unidos numa mesma cadeia, elos de uma
mesma corrente.
Na linguagem poética o símbolo apenas apon­
ta, sugere, indica... Há aquela enorme distância
entre o que foi dito e o que foi vivido. E se se
pode falar de verdade neste jogo de contas poé­
ticas, já será num sentido totalmente diferente, de
encontro face a face com o mistério para o qual
a palavra aponta, sem nunca refletir ou conter,
mistério que só se encontra no caminho...
Coisa que a psicanálise entende.
Não é a verdade intelectual que é decisiva.
É o amor. Foi assim que Freud entendeu a coisa.
E lá está o psicanalista, impedido de dizer a ver­
dade, dizendo um discurso que é análise e é engodo,
porque é necessário que o paciente tenha a cora­
gem para sair do dito para trilhar os caminhos do
amor...
... e eu me lembro de Kierkegaard, que tal­
vez tenha sido o primeiro a dizer esta coisa filo­
soficamente (claro que os poetas a praticaram mui­

126
to antes), e que afirmava, para horror dos teólogos
que colavam a verdade na palavra:
“ Verdade é subjetividade” .
Para se falar da verdade, neste jogo que se
chama teologia, é necessário sair do dito e passar
ao corpo/alma da pessoa.
A verdade da dança: estará na teoria da dança
ou no corpo que salta?
Mas, e se o dançarino não souber contar o
seu segredo? E se as suas palavras forem arreme­
dos grotescos da graça dos seus vôos?
“ Se uma pessoa que vive no meio da cris-
tandade vai até a casa de Deus, a casa do ver­
dadeiro Deus, com a verdadeira concepção de
Deus no seu conhecimento, mas ora num falso
espírito; e um outro que vive numa comuni­
dade de idólatras ora com aquela paixão que
pertence às coisas infinitas, muito embora
seus olhos descansem sobre a imagem de um
ídolo: onde existirá mais verdade? Um deles
ora, na verdade, a Deus, muito embora cul­
tue um ídolo; o outro ora falsamente ao Deus
verdadeiro e, por isto mesmo, cultua, na ver­
dade, um ídolo” (Kierkegaard, Concluding
unscientific postscript, p. 180).
E assim a teologia arrebenta as gaiolas da ver­
dade, e se contenta com muito menos, dizendo
palavras poéticas, porque ela quer muito mais:
antes navegar, livre, nos mares da incerteza, na
esperança de horizontes, que habitar, seguro, nos
charcos onde o naufrágio é impossível...

127
Estórias que despertam o amor

E há a estória daquela aldeia de pescadores,


contada por Gabriel Garcia Marques...
Aldeia onde os dias sucediam às noites e as
noites sucediam aos dias, naquela ciranda sem fim
das mesmas coisas que se repetem, os mesmos
rostos que se cruzam, sem nunca surpreender ou
espantar, das mesmas coisas que são ditas e repe­
tidas, e que, por serem sempre as mesmas, não são
mais ouvidas, e dos mesmos gestos, desembocando
tudo naquela monotonia e no enfado de um mundo
esgotado, onde a vida acontece pela inércia por­
que o seu gosto bom há muito se perdeu nos cor­
pos cansados de viver...
Até que algo estranho apareceu e desapare­
ceu, nas ondas que subiam e desciam, algo inusi­
tado, diferente, não visto antes e que fez com que
as pessoas que nunca paravam, por já haverem
visto tudo o que há para ser visto, parassem e se
ajuntassem na praia, olhando e perguntando umas
às outras: “ O que será?”
E a coisa foi chegando, sem se apressar, até
que finalmente chegou, para espanto de todo mun­
do. Um homem morto. Desconhecido. Parece que
havia viajado muito porque seu corpo sem vida
estava coberto por algas e líquens, testemunhas

129
9. Variações...
das solidões e dos mistérios por onde havia
passado...
Era necessário enterrá-lo. Que outra coisa se
pode fazer com um cadáver?
Acontece, entretanto, que sem querer e sem
saber, os homens e as mulheres começaram a fazer
com aquele corpo inerte e o seu silêncio uma
coisa de que nem eles mesmos suspeitavam... E
as mulheres que o preparavam notavam seu porte
enorme. E pensaram e falaram que ele teria de
abaixar sempre a cabeça para passar pelas portas.
E pensaram e falaram que ele deveria ter sido gen­
til, fala mansa como a brisa, por vezes ousada
como o quebrar das ondas... E pegaram suas mãos,
e pensaram e falaram que ele deveria ter sabido
amar como ninguém, e que deveria ter sabido dizer
palavras que há séculos não eram pronunciadas na­
quela aldeia, e que ele deveria ter sabido fazer com
que as mulheres buscassem uma flor para colocar
nos cabelos... E os homens também pensaram e
falaram sobre os lugares por onde aquele corpo
deveria ter andado, e os gestos que teria feito, e
o viram brincando com as crianças e segurando
as mãos dos velhos...
E foi assim que, enquanto as mãos faziam
aquilo que se devia fazer para preparar um corpo
para a morte, o pensamento e as palavras iam e
vinham, tecendo por cima dele... E na teia que se
tecia, um milagre ia acontecendo, porque, da fala
sobre o morto, uma vida nova ia nascendo, e as
pessoas olhavam para o seu passado, aquilo que ha­
via sido, e imaginavam que poderia tudo ter sido
diferente, se o afogado tivesse vivido entre eles.

130
Com certeza ele teria plantado jardins... E, de re­
pente, a ciranda sem fim das mesmas coisas que se
repetem se interrompeu por um morto que propôs
uma nova dança... E os olhos cansados de ver as
mesmas coisas começaram a ver coisas diferentes...
E diz a estória que a aldeia nunca mais foi
a mesma, em virtude do silêncio de um morto e
das estórias que sobre ele se contaram...
E sem querer eu também entrei no jogo do
fala-tece, porque o afogado começou a me parecer
alguém que freqüentava estórias que me contaram
e estórias que eu contei, um tal de Jesus de Na­
zaré, morto há quase 2.000 anos... E as estórias
não cessam, e são contadas como canções de ninar
para as criancinhas no berço, e repetidas para os
velhos que já as sabem de cor, e para os moços
que param, incrédulos...
Pensei então que o teólogo deveria, talvez,
abandonar a solenidade do seu título, e reapren-
-der-se como contador de estórias, tal como o mor­
to silencioso sobre quem ele fala. O teólogo vive
no mundo encantado das estórias, no mundo en­
cantado pelas estórias.
Sei da estranheza que tal afirmação tem de
produzir. Confesso-lhes que eu mesmo estou me
assustando com as coisas que se estão dizendo
nestas meditações sobre a teologia. Antes de co­
meçar a escrevê-las elaborei um roteiro que me pa­
receu sugestivo, com certa dose de originalidade.
Mas, naquele momento eu nem de longe suspei­
tava que a caminhada iria acordar idéias tão insó­
litas que, uma vez despertas, me obrigariam a colo­
cá-las no papel. E daí esta estranha sensação de

131
que não sou eu que estou dizendo, mas de que são
as coisas que se dizem. É sempre assim. Idéias
não são objetos que carregamos em nossos bolsos
cerebrais. Elas são surpresas que nos ocorrem ines­
peradamente, como aquele palhaço que pula repen­
tinamente de dentro da caixinha de música... E
elas se apropriam do nosso corpo, a despeito de
nossa resistência, como se fossem espíritos mais
fortes que nós...
E a idéia que me martela agora é que o
teólogo é cidadão de outro mundo, peregrino cuja
condição de estrangeiro se revela através de sua
maneira estranha de falar. O teólogo nasce num
mundo onde o pensamento e o corpo dançam ao
ritmo e às palavras das estórias que se contam.
Não, não se trata de um mundo onde as
pessoas se divertem contando estórias. Também
isto existe entre nós. Acontece, entretanto, que
aqui se nota o cuidado de reduzir as estórias à
impotência, para que ninguém as confunda com a
realidade para que ninguém as leve a sério, para
que elas não provoquem metamorfoses nos olhos
e nos pensamentos...
O mundo de onde vêm os teólogos é dife­
rente, porque ele não é simplesmente um lugar
onde as pessoas tinham este interessante hábito de
falar por meio de metáforas e parábolas. Ao con­
trário, trata-se de um mundo que é inaugurado,
sustentado e iluminado pelo próprio ato de con­
tar e repetir as estórias. Nas estórias se tece o
pensamento, se apontam horizontes, se dão nomes
aos desejos... Mundo onde não existe o discurso
da teologia acadêmica, porque quando as gerações

132
mais novas perguntam pelas razões a resposta co­
meça com um “ era uma vez...”
Acontece que o teólogo é alguém que con­
versa sobre um morto de 2.000 anos, brotando o
seu discurso daquela dor funda da saudade e da
ausência... E nas ausências se contam estórias que
são o mais próximo que as palavras podem chegar
da coisa viva. Caberia num velório o discurso cien­
tífico e verdadeiro sobre os processos de decom­
posição que ali estão ocorrendo? Há certas ver­
dades que são piores que um ultraje. Mas a imagi­
nação voa para fazer ressuscitar palavras de amor,
gestos de alegria, manifestações de bondade... Ver­
dades podem ser nada mais que necrológios, mas
as estórias são invocações da vida. E é deste mun­
do onde a vida é invocada por meio das estórias
que surge o teólogo. Não, não me entendam mal.
Não estou dizendo que as coisas que se batizam
de teologia sejam produtos deste mundo. Porque
também os teólogos se prostituem e trocam os
desertos pelos oásis. Estou, ao contrário, sugerin­
do que onde quer que encontremos estas estórias/
invocações da vida, ali encontramos a teologia. E
esta é a razão por que me sinto irmão de um ho­
mem como Friedrich Nietzsche, contador de pará­
bolas, vidente, iluminado por sinais astrais... E não
teria dificuldades em incluir o conto de Gabriel
Garcia Marques entre os mais belos discursos cris-
tológicos jamais produzidos... E preferiría, no meu
jogo de contas de vidro, brincar com as estórias
dos romeiros, os mitos e lendas que andam de
boca em boca, porque sinto que eles se encontram
a uma distância menor das fontes da vida que o

133
duro e difícil discurso com que os habitantes do
mundo acadêmico tecem os seus casulos e se amar­
ram uns aos outros.
Tenho de reconhecer que tudo isto parece
absurdo. Não bastou a vergonha de ter de confes­
sar “ — A minha profissão? Bem... sou teólogo” .
Se nosso interlocutor se assombrou com esta res­
posta, que sem duvida alguma sugeriu os respei­
táveis círculos da erudição acadêmica, qual não
teria sido o seu espanto se tivéssemos dito “ — Sou
um contador de estórias...” Mas não há formas
de escapar porque é o nosso morto, do mistério
de 2.000 anos, que nos repete, com um sorriso:
“ Eu também não sou teólogo. Eu conto estórias” .
Se, nas estórias que se contam sobre este morto,
há uns tipos que se parecem com teólogos, são
justamente aqueles que teceram redes para o apa­
nharem e justificativas para o matarem. Quanto a
Tesus, parece que não sabia falar de outra forma.
A cada pergunta teológica de catecismo ele res­
pondia com uma parábola, novela relâmpago com
desfecho inesperado. E não há dúvidas de que esta
sua mania de contar estórias tenha muito a ver com
sua morte. Porque as estórias tem o poder mágico
de mexer fundo dentro da alma, atingindo os lu­
gares onde os risos, as lágrimas e as fúrias se ani­
nham... É que as estórias, por serem invocações
da vida, provocam o amor e frequentemente armam
o braço...
O sentimento de estranheza tem justamente
a ver com o fato de que, em nosso mundo, contar
estórias é coisa de ficção. Quem dependura numa
estória a sua vida só pode ser um louco. Há gan­

134
chos mais sólidos como a caderneta de poupança,
o crédito, as armas, as multinacionais... Nosso mun­
do é brutalmente determinado pelo lucro e pela
força. E vem um tipo que conta estórias e quer
que as pessoas se deitem nelas.
Talvez que, se explicássemos um pouco mais,
o absurdo ficaria mais límpido e o abismo mais
fascinante e atraente...
Comecei a pensar no mundo dos gregos. Ali
as coisas não se iniciam com as estórias, mas antes
com o olhar deslumbrado diante da luz e do mar...
“ No princípio era a luz,
os olhos,
a contemplação,
o maravilhar-se tranqüilo perante a imponên­
cia eterna do ser, presente no jogo de luz e sombra
do mar que cintila...”

Antes de mais nada, é necessário ver.


E se constrói o saber filosófico como exten­
são do olhar: teoria, contemplação.
Que é a palavra verdadeira?
É a palavra que é olho melhor que o olho,
palavra que vê mais fundo, mais longe. E, sobre­
tudo, que contempla o ser, na beleza do seu re­
pouso... O que foi, o que é, o que sempre será...
Intuição que se fará sentir em doxologias da Igreja
cristã.
Lá está a realidade, como mar indomável.
Dominá-lo?
Tolice. Nada mais que arrogância daqueles
que sobreestimam suas próprias forças: “ hybris” .

135
Nada há a se fazer. O ser é fundamento imu­
tável de tudo, ventre de onde emerge o mundo.
Importa buscar compreendê-lo, contemplar sua ver­
dade/beleza/bondade.
E a palavra se desdobra como dádiva do olhar.
E por detrás da tranqüila contemplação existe
sempre alguém que sente ou que não é necessário
fazer coisa alguma, porque a vida é bela tal como
está aí; ou que é inútil fazer qualquer coisa... E
penso na tragédia, descrição da inutilidade da ação,
frente ao inexorável da realidade ou na vida mo­
desta e sofrida de um Spinoza, tanto tempo de­
pois, abençoado só no nome, que não desejava nem
lamentar e nem chorar, mas apenas ver e com­
preender... Polia lentes com as mãos e queria que
seus pensamentos fossem os melhores dos olhos,
para contemplar fundo e encontrar a tranqüilidade.
É. A vida se satisfaz com os olhos ou quando ê
desnecessário ou quando é inútil o movimento do
corpo. Aqui o olhar domina supremo e as pala­
vras o servem. Jogo de contas de vidro, é bem
verdade, mas tão distante dos profetas e dos con­
tadores de estórias...
E passei então a outro jogo em que a dança
das contas de vidro não era mais regida pelo pra­
zer estético dos olhos que contemplam, mas pela
atividade irrequieta das mãos que tudo transformam.
“ No princípio foi o ato...”
Sob o império dos olhos, compreender era
o mesmo que ver e as palavras tomavam forma
como extensões da visão. Agora, entretanto, a ra­
zão se separa da vista e se descobre uma dádiva
das mãos. Entender é transformar. E o universo

136
se metamorfoseia na medida em que as mãos se
metem em todos os lugares, e constroem máqui­
nas, derrubam reis, singram os mares, produzem,
vendem, amontoam riquezas, e exorcizam os deu­
ses e demônios que habitavam a natureza encan­
tada, agora transformada em matéria bruta, a ser
arrancada, quebrada, manipulada, recriada como
mercadoria...
E as palavras também ficam diferentes. Não
mais extensões da vista, elas são agora prolonga­
mentos dos dedos, músculos novos, possibilidades
dantes insuspeitadas de poder e controle. Conhe­
cimento é poder.
O que é a palavra verdadeira?
É a palavra eficaz, receita, pouco importa
que ela nos ensine que desodorantes comprar ou
que novas armas construir. O que importa é a
eficácia, poder, puro poder, como dizia o tortu-
rador nas câmaras subterrâneas de 1984.
Claro que as estórias sobre um afogado são
reduzidas à condição de contos da carochinha por­
que, se bá uma coisa que o jogo das mãos sabe
muito bem, é que não há receitas para ressuscitar
mortos.
Acontece que esta fala de onde nasce o teó­
logo surgiu de um povo que não podia se entregar
aos deleites da contemplação, pois que habitava o
lugar dos derrotados: escravidão, deserto, exílio,
devastação, domínio estrangeiro. Cada ato de ver
era uma dor, e os olhos se fechavam, para se pro­
teger e chorar, sem encontrar descanso e prazer
em lugar algum.

137
... e surgiu também de gente que não tinha
poder em suas mãos para fazer o futuro, pois eram
os exércitos do faraó que empunhavam as armas,
e o desamparo no deserto, e a impotência dos
pobres...

Sem o auxílio dos olhos,


sem o auxílio das mãos,
sem o prazer da beleza,
sem o prazer do poder...

Tiveram de aprender a viver além do que os


olhos viam e além do que as mãos podiam, pelo
poder da palavra...
E surge a palavra que não é nem extensão
dos olhos e nem extensão das mãos, mas palavra
que é expressão do desejo e manifestação de espe­
rança. E os olhos e as mãos se transfiguram por­
que eles mesmos passam a ver e a poder pela ins­
piração da palavra.
Já notaram que os olhos e as mãos só acor­
dam em meio a presenças? Imagine um olho que
nada tenha para ver: que não haja o azul do céu,
nem as nuvens, nem árvores, nem rostos... Que
haveria lá dentro deles? Porventura aquela sen­
sação de infinito vazio de um espelho colocado
frente ao outro? Não. Os olhos não criam. Não
têm a capacidade de ficar grávidos. Só podem re­
colher, acolher, acariciar aquilo que a natureza
gerou... Os olhos são dádivas das presenças.
E as mãos? Se não houvesse uma pele para
ser acariciada, uma tecla para ser percutida, algo
que apalpar, tocar, que seria delas?

138
A coisa curiosa com as palavras é que elas
parecem ter o poder para produzir, construir enti­
dades ideais com que o pensamento brinca e se
diverte, sem que elas existam, como objeto, em
lugar algum. Elas são capazes de designar ausên­
cias e, na medida em que o discurso passa de boca
em boca e nele investimos o nosso amor, aparece
aquela coisa curiosa que é um pacto em torno
daquilo que não existe, seja uma saudade, seja uma
esperança...
E é por isto que a fala sobre um afogado sem
nome e sem genealogia pode transformar uma al­
deia de pescadores, da mesma forma como uma
refeição em memória de alguém que se ausentou
é capaz de invocar vida e coragem, e a fala sobre
o Reino de Deus, da metamorfose mágica dos de­
sertos, dos lobos, dos aleijados é capaz de provo­
car danças de alegria. Toda liturgia não será uma
dança ao som de uma música que brota de uma
ausência? Alguns a ouvem mal, e o corpo perma­
nece timidamente birto, por medo de que a tal
música seja irmã gêmea da famosa roupa nova do
rei, da estória de Andersen, enquanto outros sol­
tam o corpo e ele se transfigura pelo poder do de­
sejo que espera/mergulha nos espaços vazios, na
expectativa / esperança.
Um novo jogo.
“ No princípio era a Palavra...”
Estamos, de novo, muito próximos da magia.
Crença mágica: crer que o universo inteiro
está ligado com fios de amor. O choro de uma

139
criança faz galáxias estremecer. Jesus chorou; Deus
chorou; isto faz uma diferença. Como a água do
lago, que vai se encrespando em ondulações, sem
parar, porque uma pedrinha lhe foi lançada, o uni­
verso também vai se encrespando com estremeci­
mentos sucessivos, quando um gesto de amor ou
de ódio lhe é lançado, por alguém...
E é só porque se acredita nisto, não importa
que a crença seja construída com palavras rudes
ou gentis, que os bruxos dançam suas emoções nos
rituais mágicos, e as almas, no silêncio de suas
preces, plantam seus desejos, na esperança de que,
de alguma forma, algum dia, a realidade (não
importa o nome que se lhe dê), fará brotar as
sementes que o amor espalhou ao vento...
Sei que esta fala não pode resistir à chacina
que o discurso das mãos lhe prepara. As mãos
construíram um universo atômico e mecânico, po­
voado de entidades isoladas e independentes, e que
se movem porque umas se chocam com as outras.
Tal e qual uma mesa de bilhar. De nada valem os
pensamentos do jogador. Vale apenas a eficácia
da tacada. E é claro que aqui não há lugar para
emoções. Porque emoções não são entidades físi­
cas habitantes do espaço glacial que as mãos ins­
tauraram através da matemática. O desejo do jo­
gador, por mais intenso aue seja, e por mais que
se manifeste nas contorções do corpo que, à dis­
tância, deseja mudar o curso da esfera de marfim,
é impotente. Que lugar existe, num mundo assim
construído, para esta crença louca de que as pala­
vras, carregadas de amor, são capazes de mudar
o mundo? No final as coisas se reduzem a estímu­

140
los físicos, a determinismos econômicos e a fala
grávida de desejos da religião, da utopia, da cul­
tura é descartada como ilusão.
Acontece que, neste jogo de contas de vidro,
que se chama teologia, as pessoas têm de falar sobre
Deus, mas, falar sobre Deus é apostar no triunfo
do amor a despeito de tudo. Se, entretanto, para
negar o que afirmo, invocarem o Deus de Aristó­
teles e o Deus dos filósofos, como causa primeira
e princípio explicativo do universo, eu direi que
não é este Deus que a alma religiosa conhece,
pois o Deus a que se ora não surge das exigências
da causalidade natural, mas das exigências do
desejo.
“ A religião é o solene desvelar dos tesouros
ocultos dos homens, a revelação dos seus pen­
samentos mais íntimos, a confissão aberta dos
seus segredos de amor” (Feuerbach, The
essence of christianity, p. 13).

E é por isto que o nosso jogo tangencia o


mundo das esperanças mágicas. E é assim que
mexo minhas contas de vidio, transgredindo as
interdições do determinismo, continuando a apos­
tar na bondade e na ternura. Creio, a des­
peito de tudo, que o universo tem um cora­
ção. Creio, a despeito de tudo, que as palavras
grávidas de amor fazem brotar realidades até então
adormecidas. E , falando destas coisas, o frio e indi­
ferente discurso da verdade científica fica para
trás, porque ao redor do fogo, onde os homens se
aquecem, nos velórios onde choram suas sauda­
des, nas trincheiras onde cantam suas esperanças,

141
nas insônias onde oram seus temores, sob as árvo­
res, onde cantam os seus amores — são as estórias
contadas que ligam os corpos com os seus desejos.
No discurso científico não há nem corpos e nem
desejos...
Era costume, entre certos povos, que os ju­
ramentos de fidelidade se fizessem com o sangue
misturado daqueles que celebravam o pacto. Acon­
tece que há certas palavras que se escrevem com
sangue (Nietzsche), e quando elas são repetidas é
como se o ato sacrificial o fosse também. Esta é
a razão por que é em torno das mesmas estórias
que se contam e se repetem que uma comunidade
se constitui, comunidade que em nosso jogo se
chama igreja: aqueles que, por amor a uma estó­
ria, confessam o seu amor comum pelas mesmas
coisas — as mesmas esperanças, que se teceram
sobre o corpo de um afogado de 2.000 anos.
E os corpos que caminhavam sozinhos,
desgarrados como ovelhas,
se dão as mãos...
Caminham na direção daquilo que não se vê.
Falharam os olhos,
falharam as mãos,
falhou a contemplação,
falhou a técnica,
falhou a ciência.
Caminham na direção daquilo que não podem
ver, pela esperança.
Caminham na direção daquilo que não podem
fazer, pela graça.
E dos corpos que caminham,

142
corpos que gemem,
nas dores do trabalho de parto,
surgem as palavras
que selam um destino comum.
A esperança é mágica: a redenção do corpo.
Duplamente mágica: a redenção da natureza.
(Rm 8,18-30)

E, com as palavras, se estabelece a conspi­


ração que funda a comunidade da esperança: cons­
pirar, respirar juntos, inspirar o mesmo sopro,
que vem das ausências...
Com a sua estória o teólogo se revela. Con­
fessa de que mundos provém e para que mundos
veleja. Tão distinto do dizer científico: impessoal,
seco, sem nenhum lugar para o sujeito, expurga­
do de interjeições de amor, longo, compreensível
apenas aos iniciados, tecido compactamente, sem
espaços em branco, sem reticências, sem interro­
gações não respondidas, construído para impor o
silêncio sobre o que lê. Discurso constituinte do
mundo que Buber definiu como o do eu-isso, em
que se fala sobre, todas as suas entidades sendo
objetos de conhecimento, não importa que seja um
verme ou um Deus...
Mas quando a estória se inicia um outro
mundo vem a ser: o relato é curto, contado para
quem está a caminho; a linguagem é direta e poé­
tica, fazendo dançar um sem número de sentidos
possíveis; e, de forma semelhante ao chiste, ele
termina numa armadilha, que desarma sobre o
interlocutor, no inesperado da conclusão. E ele
repentinamente descobre que a estória não fala

143
sobre um objeto, mas é uma rede que o agarra,
obrigando-o a uma palavra que seja uma confissão
ou uma decisão. A estória não fala sobre algo. Não
pertence ao mundo do isso. Ela fala com alguém,
estabelece uma rede de relações entre as pessoas
que aceitam conspirar, co-inspirar em torno do
fascínio do que é dito...
“ — Tudo bem” , retrucarão os amantes do
conhecimento. “ Mas, e a verdade? Onde está?
Será que, porventura, neste jogo de contas de vi­
dro, o fascínio estético e existencial de um estilo
de discurso toma o lugar da fala sóbria e modesta
da verdade?”
Eu sei que esta questão continuará voltando
sempre e nem penso que ela possa ser resolvida.
E é necessário levá-la a sério porque, por bem ou
por mal, o fato é que ela é invocada sem cessar
na teologia, e cabeças continuam a rolar, ainda
que de forma mais discreta, no altar da verdade.
O silêncio de Teilhard de Chardin, a proibição
sobre Hans Küng, as ameaças que se misturam
com processos dependurados sobre teólogos... No
Protestantismo continuam à solta os caçadores de
bruxas, mas o pior é a profundidade em que a
intolerância penetrou, anônima, dentro da pele
das pessoas. Lembro-me que, quando trabalhava
sobre o meu livro Vrotestantismo e Repressão, fi-
quei fascinado por algo que me pareceu um enig­
ma curioso. Eu sabia que, em virtude da doutrina
da inspiração verbal das Escrituras, sustentada pe­
los grupos mais conservadores, a exegese dos tex­
tos deveria ser consistentemente literal. Mas eu
sabia também que não era isto que acontecia na

144
prática. Certos textos tinham de ser interpretados
literalmente. Outros podiam ser entendidos de
outra forma. Eu era capaz de separar os dois gru­
pos de textos, mas ignorava a regra para tal. Era
um conhecimento prático. Assim, resolvi fazer
listas dos dois tipos de passagens bíblicas.
O mundo foi criado em seis dias; o Paraiso
foi um lugar preciso, localizado no tempo e no
espaço; a besta de Balaão falou; Jonas foi engo­
lido por um peixe; Maria era virgem; Jesus andou
sobre as águas; etc.
Se queres ser perfeito vai, vende o que tens,
dá-o aos pobres...
Se alguém lhe bater em uma face ofereça-lhe
também a outra...
Se o teu olho direito te escandalizar, ar­
ranca-o...
O primeiro é o grupo dos textos que devem
ser interpretados literalmente. Negar alguma das
afirmações que ele contém é negar a fé. Mo­
dernismo.
Curioso que o mesmo não ocorra com o
segundo grupo de textos. Não conheço nem um
caso sequer de uma pessoa que tenha sido excluí­
da da Igreja por não haver repartido seus bens
com os pobres...
Perceberam a diferença entre os dois grupos
de textos?
O primeiro está todo no modo indicativo. Ele
define a ordem do conhecimento e da verdade.
O segundo está todo no modo imperativo.
Define o círculo da bondade...
Curioso que a bondade seja menos importante.

145
10. VarlaçCes...
Curioso que os hereges sejam mais peri­
gosos...
Mas assim é!
Mas, que fazemos com as estórias?
Onde está a sua verdade?
O que é uma interpretação ortodoxa de uma
parábola?
Que sentido unico e unívoco se pode esta­
belecer perante às possibilidades polissêmicas de
uma metáfora?
E os poemas?
As orações?
Os salmos?

E descobrimos então que o que separa o dito


verdadeiro da estória é que o primeiro se confir­
ma no campo da epistemologia, enquanto que as
estórias se verificam na esfera da bondade. “ Tu
sabes que há um só Deus. Também os demônios...”
Mas o que está interditado aos demônios é contar
as estórias que fazem nascer os sorrisos, e os
gestos ternos, e as mãos pacientes...
E que somos nós?
Aldeia de pescadores, em torno de um afo­
gado, e de nossas bocas saem as estórias que trans­
formam as memórias e as esperanças, e nada fica
como era... Encantamento que faz ressuscitar a
vida que já estava morta.
E poderá haver definição mais bela de ver­
dade que a palavra que engravida as estéreis, faz
renascer os mortos e transforma os desertos em
mananciais de águas?

146
Na companhia dos bufões...

Tenho de confessar que não sei o que foi


que fiz com aqueles uniformes que, em outros
tempos, davam ao teólogo profissional a sua dig­
nidade, marcando a gravidade do seu labor e a
velhice séria da sua profissão. Os colarinhos cle­
ricais brancos, as becas pretas, as capas doutorais
coloridas, a linguagem erudita, símbolos perante
os quais os jovens alunos se calavam, respeitosos,
e os leigos sorriam os sorrisos dos que reverenciam
sem entender — não me recordo onde os enfiei.
É que andamos por lugares onde eles não serviam
para nada, e acabaram por virar contas de vidro
rachadas, sem brilho, cacos sem valor... De fato,
nos lugares por onde passou o teólogo em busca
de si mesmo não havia o que fazer com tais coisas:
nos desertos,
nas geleiras,
ao lado dos ventres abertos dos sacrificados,
preferindo as canções dos derrotados,
ouvindo as verdades dos hereges,
contando, para os vivos, estórias sobre os
mortos, celebrando rituais mágicos,
tudo isto como parte de um jogo em que o
teólogo faz dançar as contas de vidro e
as contas de vidro fazem dançar os teólogos
e aqueles que os acompanham.

147
O espanto apareceu quando, ao nos prepa­
rarmos para ouvir a sua voz, voz de quem fre-
qüentou a dor e a solidão, voz que deveria ser um
lamento, ouvimos vozes de crianças, o barulho dos
brinquedos, o riso de palhaços, a algazarra da ale­
gria. E eu até pensei que se tratasse daquela
orgia/bacanal a que se referia Hegel, festa da Ver­
dade, em que todos estão embriagados (Walter
Kaufmann, Hegel: texts and commentary, II 1.3)...
— Ah!, dirão os senhores, o teólogo em
seus momentos de lazer. É compreensível. É neces­
sário descansar de freqüentar a dor...
Mas o teólogo retruca, num protesto, que
não é nada disto. Ele não está descansando, mas
trabalhando. E nos segreda então que, para ver e
falar, ele tem de abandonar a companhia daque­
les que aprenderam a ver e a falar segundo manda
a educação e o bom senso, sendo forçado a pro­
curar a companhia dos bufões, das crianças, sem­
pre unidos pelo riso e pela irreverência.
Levamos um susto e pensamos que o teólogo
ficou louco. No que não estaremos totalmente er­
rados, porque o teólogo vive num mundo em que
todas as coisas estão de cabeça para baixo, em
que o que é deixa de ser e o que não é vem a
ser, tal e qual o país maravilhoso da Alice cujos
assombros Lewis Carroll, matemático/teólogo, nos
contou. É, Carroll nunca falou de Deus, mas do
jeito como ele falava, ele tinha de ser teólogo. É
por isto que os teólogos têm de fugir dos gran­
des. Quem, pela educação, ficou maduro (tal e qual
o filho mais velho, da parábola), é boi de carro;
animal doméstico; eunuco; trocou as águias por

148
tartarugas. Maturidade é estado mental que se
acomodou, cachoeira que virou charco, pato sel­
vagem que preferiu a gordura preguiçosa do milho
doméstico, prisioneiro que desistiu de fugir. O teó­
logo vive na companhia das crianças e dos bufões,
pois eles sabem que o brinquedo e o riso são
coisa séria, que quebra feitiços e exorciza a reali­
dade. Octávio Paz entendeu isto muito bem. “ Os
verdadeiros sábios não têm outra missão que aque­
la de nos fazer rir por meio de seus pensamentos
e de nos fazer pensar por meio de seus chistes” .
Ao que o teólogo acrescenta: “ Amém” . O calei­
doscópio é girado e “ eis que tudo se faz novo,
as coisas velhas desaparecem” (2 Cor 5,17): os
olhos começam a ver o que os outros não veem.
Cuidado! É necessário dizer isto num sussurro.
Quem vê coisas que outros não vêem e não vê
coisas que os outros vêem corre o risco de ser tran­
cado num hospício — tal como as pessoas nor­
mais (cujos nomes se perderam) fizeram com Nietz-
sche e Van Gogh... Os grandes pensam que crian­
ças e bufões são personagens curiosos e divertidos
dentro do seu mundo, sólido e firme. Mal sabem
eles que crianças e bufões são perigosos subversi­
vos que anunciam novos mundos e o seu riso...
Bem, o seu riso — é como nos contou Andersen.
“ Havia, num distante país, muito tempo atrás,
um rei vaidoso cercado de ministros vaidosos. O
rei combinava sua presunção com um enorme pra­
zer em roupas coloridas e brilhantes, o que não
é incomum. Sabedores disto, dois espertalhões re­
solveram ganhar dinheiro à custa da vaidade dos
maiorais do poder. Dirigiram-se ao palácio, carre­

149
gando uma arca que, segundo relataram, continha
um tecido maravilhoso. Maravilhoso, em primeiro
lugar, pela beleza do seu material e brilho de suas
cores. Maravilhoso, em segundo lugar, porque ele
tinha a propriedade mágica de separar as pessoas
inteligentes das pessoas estúpidas. Somente aque­
las dotadas de um alto grau de capacidade inte­
lectual podiam ver o tecido maravilhoso. E abri­
ram a canastra. Diante de todos exibiram o plano
que ninguém se atreveu a não ver. O rei, o mais
inteligente, foi o primeiro a se manifestar, des­
lumbrado, seguido dos ministros e das damas da
corte que esfregavam o material entre seus dedos,
comentando a delicadeza do seu toque. E os dois
foram contratados para fazerem um uniforme novo
para o soberano que, em data nacional, desfilou
perante seus súditos, todos eles inteligentes, e
que viam a beleza da roupa nova do rei. Até que
um menino, do alto de uma árvore, sem nada saber
sobre sua inteligência, mas acreditando muito nos
seus olhos, soltou um grito de espanto: — ‘O rei
está nu’
E abriram-se os olhos a todos.
E o riso, as gargalhadas vieram, espontâneas,
saíram das ruas e entraram pelas noites a dentro.
E aqueles que tinham medo do rei e tiravam o
chapéu para os seus ministros puderam se rir da
farsa do poder. E o poder ficou um pouquinho
mais fraco, porque uma criança, estranha ao mun­
do dos adultos, fez o riso estourar. É por isto
que os bufões estão sempre em perigo. E eles,
sabendo disto, tratam de fazer rir por meio de
parábolas: falam sobre o que é, falando sobre o

150
que não é, para escapar ao castigo, mas piscando
os olhos e sorrindo com malícia, convidando o
ouvinte a ver além...
Estas coisas não fui eu que inventei. É que o
nosso afogado tinha um brinquedo na mão. E os
contadores de estórias nos disseram que ele gos­
tava de crianças. Não queria que elas ficassem adul­
tas. E aos já crescidos avisava que se não deixas­
sem de ser como eram jamais veriam o reino dos
céus. Teriam de voltar a ser crianças. Nicodemos
se atrapalhou. Era homem adulto, respeitável, le­
vava as coisas a sério, ao pé da letra, e pensou que
Jesus falava de obstetrícia. Ao que ele retrucou:
“ Não é obstetrícia, Nicodemos, é o vento. O ven­
to assopra...” E ele deve ter ficado mais confuso
ainda.
As crianças veem coisas que os adultos não
podem ver...
O que me faz lembrar o final enigmático e
mítico de 2001-Odisséia no espaço: fim da viagem
espacial, mergulho em profundezas e distâncias
nunca dantes atingidas, por este universo afora...
Em busca de um mistério, que chamava o homem
desde os tempos imemoriais em que ele habitava
com o medo, nas cavernas escuras pelas noites a
dentro... E ele chega onde não esperava chegar,
num mundo encantado de nebulosidade onírica:
o viajante se descobre em sua própria casa. E lá
está ele assentado, silencioso, tomando o seu café
matutino. Mas, repentinamente, um movimento
em falso derruba a taça de cristal, que se quebra.
E é com a taça de cristal que se quebrou que a
cena se transporta do cotidiano tranqüilo do café

151
matutino para o leito final do velho acabado, à
espera da morte. Mas a cena se muda de novo,
do leito de morte para os espaços do universo,
onde alguma coisa se alterou. Lá, no meio dos
sóis e dos mistérios, há uma nova presença: um
feto, olhos enormes, silenciosos, tranqüilos, exta­
siados, contemplando tudo como se fosse pela pri­
meira vez, primeiro olhar, flutuando, como se es­
tivesse ao embalo dos líquidos quentes do ventre
materno... E eu me lembrei: “ É-vos necessário
nascer de novo. Se não vos tornardes como crian­
ças, não vereis o Reino dos Céus...”
O que desejo sugerir, com esta conversa sobre
crianças e bufões, é que o teólogo traz, na sua
fala, as marcas do mundo dos brinquedos e dos
risos. Crianças e bufões são mensageiros do Reino;
brinquedos e risos são mais divinos do que nor­
malmente julgamos. Sacramentos de uma ordem
por vir, aperitivos do Reino de Deus...
O teólogo fala como quem serve aperitivos.
É este o seu estilo...
E seria próprio que me perguntassem se o
estilo tem alguma importância. Se ele não passa
de preocupação de literatos, simples pacote com
que se embrulha a verdade...
Aprendi com Kierkegaard.
O que importa não é o que é dito, mas como
é dito.
Daí sua fórmula enigmática: “ verdade é sub­
jetividade” .
As palavras certas do cristão ortodoxo se
transformam em mentiras, e as blasfêmias do idóla­

152
tra se metamorfoseiam na mais pura prece. A dá­
diva brota das mãos que a carregam.
Há uma verdade que as palavras não podem
dizer, porque ela habita os silêncios e os espaços
vazios da linguagem. Semelhante àquilo que ocorre
na música. Todos os compositores tiveram ao seu
dispor as mesmas notas do piano. Mas ninguém
que tenha freqüentado o mundo da música, ainda
que por pouco tempo, confundirá Bach, Chopin,
Debussy, Prokoffief... O mesmo ocorre com aque­
les que compõem mundos com o auxílio das pala­
vras. A diferença não se encontra nas palavras.
São sempre as mesmas. Estão lá, inertes, nos di­
cionários. E nem nas regras da sintaxe... E com
coisas que são as mesmas, o estilo inconfundível
do autor constrói o seu mundo, único entre mui­
tos. Ouem confundiría Guimarães Rosa com José
de Alencar, Cecília de Meireles com Graciliano
Ramos?

Há o estilo do cientista,
do jurista,
do vendedor,
do sacerdote,
do general,
do inquisidor,
do banqueiro...
Estilos que carregam
certezas,
princípios abstratos,
cálculos de lucros,
cheiro de incenso,
tropel de cavalos,

153
gritos de dor,
cifrões...
E há o estilo dos bufões e das crianças, que
carrega consigo o riso que desnuda os ídolos, e o
brinquedo que cresce com o prazer...
O que têm bufões e crianças a dizer sobre
Deus?
Creio que nada.
Como justificar a dignidade teológica para o
seu estilo?
É simples. E que me perdoem a analogia.
Acontece aqui aquilo que acontece com aqueles
que se alegraram com o vinho. Não é a sua fala
sobre, o que dizem acerca do vinho que dá teste­
munho de haverem eles bebido do fruto da videi­
ra. É antes aquilo que o vinho, silencioso, faz com
que eles digam: a alegria, o riso... A marca não
se encontra no conhecimento, mas no estilo.
O que está em jogo não é o que os bufões
e crianças dizem sobre o Espírito, mas antes o
sopro misterioso do Espírito que os torna bufões
e crianças...
E eles falam.
Sobre o que?
Não importa. Sobre qualquer coisa. A teo­
logia não se encontra no que se diz, mas no como
se diz. O chiste mais saboroso deixa os rostos
imóveis se ele é anunciado no estilo do sacerdote
enquanto o bufão, antes de dizer qualquer coisa,
já provoca o riso, porque o seu estilo anuncia o
cômico... Falar com rigor e seriedade sobre o vinho
testemunha que aquele que fala não bebeu vinho.

154
Falar sobre Deus, com a mulher amacia nos braços
é, no mínimo, falta de bom gosto... Pelo menos
era isto que dizia Bonhoeffer...
E eu estou sugerindo, como bufão e como
criança, que o estilo da teologia é o estilo do riso,
não importa que ele brote das cantigas de roda
ou da visão do rei nu... O riso é o sacramento que
faz com que crianças e palhaços andem de mãos
dadas, muito embora seus risos sejam diferentes.
O riso dos palhaços é o riso zombeteiro, que
desenha bigodes no rosto solene de presidentes e
usa botas de guerra como vasos de flores, procla­
mando que as coisas podem ser diferentes...
O riso das crianças é o riso do corpo que
exulta na sua própria nudez, que nada tem do que
se envergonhar, que brinca com os raios de sol...
O riso dos palhaços mata dragões e trans­
forma leões em lagartixas...
O riso das crianças é o riso do corpo que,
livre dos dragões, pode amar e voar...
Os palhaços gargalham e os maus espíritos
fogem, amedrontados... Sabiam? Os demônios são
sempre graves. Foi assim que Nietzsche os viu.
Diz-nos que quando se encontrou com o seu de­
mônio, achou-o sério, comedido, profundo, solene.
Gravidade que vira gravidez de onde nascem os
ídolos... Pelo seu peso, todas as coisas caem...
Livres dos maus espíritos, as crianças riem,
o corpo velho ressuscita, volta à infância, desco­
bre o prazer, e quanto mais ri mais voa...
É necessário explicar, pelo menos para os que
têm medo de brincar. E vamos chamar Freud,
adulto que compreendeu as mensagens dos brin­

155
quedos e as intenções das gargalhadas. Ele vai nos
contar que somos seres especiais, diferentes de
tudo o mais que existe neste mundo maravilhoso.
Porque nós, sem exceção, padecemos de uma doen­
ça para a qual não há cura. É que vivemos em
dois mundos ao mesmo tempo, mundos de lingua­
gens, leis e costumes diferentes e que nos provocam
uma enorme confusão. Porque o que é, em um,
não é, no outro; o que um proíbe, o outro exige;
o que num causa riso, no outro provoca choro. E
vivemos assim, todos nós, divididos entre estes
dois mundos, que nos atravessam tanto o corpo
quanto a alma. Na linguagem de Freud, um é o
mundo em que o princípio do prazer domina su­
premo, enquanto o outro se encontra sob o con­
trole do princípio da realidade. O princípio da
realidade tem a ver com as coisas que efetivamente
acontecem, estando sempre presente no mundo
da economia, da política, da guerra, das leis. O
princípio da realidade é aquilo que nos obriga,
do qual é impossível fugir. E é justamente daí que
ele deriva o seu nome: princípio da realidade. A-
contece que, por razões que não sabemos expli­
car, os homens não conseguem aceitar a realidade,
tal como ela é, seja a realidade das leis físicas, das
leis sociais, do nosso próprio corpo... E é por isto
que a nossa mente voa, nas asas da imaginação,
buscando a abolição daquilo que existe e sonhando
com outro mundo em que a felicidade e o prazer
reinariam, supremos... A imaginação é sempre sub­
versiva, porque as exigências do prazer impõem
a destruição das coisas que existem e o começo
das coisas que não existem ainda.

156
É por isto, porque a imaginação é subver-
.iva, que o princípio da realidade trata de domes-
licá-la. O princípio do prazer vive sob o império
da repressão. E esta é a razão por que o prazer é
incapaz de se articular como linguagem corrente
e diurna. Nos limites da realidade, as exigências
do prazer devem ser esquecidas, o corpo deve ser
mantido sob controle: criamos escolas e prisões.
Escolas, para domesticar os corpos ainda fracos,
convencendo-os a se esquecerem de si mesmos e a
se entregarem às exigências da realidade, sob a
ameaça de castigos presentes e a promessa de re­
compensas a se realizarem num futuro distante.
Prisões, para acorrentar os corpos fortes que não
foram domesticados e permaneceram selvagens.
Proibido de aparecer, o princípio do prazer
se esconde nos lugares escuros e se insinua nas
brechas. Somente depois de trancado o quarto, apa­
gada a luz, desligados os pensamentos do princí­
pio da realidade, é que ele irá aparecer, assumin­
do forma nos símbolos que dançam em nossos
sonhos. Por vezes ele se insinuará, sorrateiro, no
meio da nossa conversa, provocando trocas de pa­
lavras que nos deixam ruborizados, porque todo
mundo percebe que é justamente no equívoco que
se encontra a verdade. Foi ali que o desejo se ma­
nifestou. E assim vai ele, andando às escondidas,
atacando de repente, como se fosse um guerri­
lheiro, surpreendendo, assustando, pulando de den­
tro da caixa como o palhaço de mola, e é aí que
o riso estoura...
O riso é um aliado do desejo. E se ele estoura,
de repente, é porque, num certo momento, o de­

157
sejo vislumbrou a possibilidade de subversão do
princípio da realidade, seu inimigo final.
Por que é que gargalhamos ao final de uma
boa piada?
E há a estória do casal de velhinhos que foi
a um médico, geriatra, na esperança de hormônios
miraculosos e de geléias reais que fizessem renascer
o vigor do corpo... E o médico, depois de examiná-
-los cuidadosamente, escreveu a sua receita, e expli­
cou tudo, tintim por tintim, coisas para serem to­
madas, coisas para serem feitas, coisas para serem
evitadas... E mandou que os dois experimentassem
a receita mágica por um mês, e voltassem depois,
para ver como é que os corpos haviam reagido à
sabedoria de Hipócrates. E qual não foi sua sur­
presa ao ver, na data da nova consulta, uma velhi­
nha nova, faceira e sorridente, de rosto alegre e des­
contraído, até mais lépida e falante... E o velhinho,
como se tudo tivesse tido efeito contrário com ele,
pernas bambas, mãos trêmulas, olhar preocupado...
E o médico trata de descobrir o que aconteceu de
errado, pois não é possível que uma mesma causa
tenha produzido efeitos tão opostos. E pergunta de
cá, pergunta de lá, até que achou o equívoco.
“ Mas é isto que acontece com quem não sabe
ler direito! Mando o senhor comer aveia três vezes
por dia e o senhor come a véia três vezes por d ia?...”
Imagine qualquer piada. A estrutura é a mes­
ma. O riso nasce na surpresa. É necessário cons­
truir uma expectativa no ouvinte. E a expectativa
aumenta num crescendo constante. E a conclusão
é sempre algo inesperado, mas absolutamente ló­
gico... Na preparação o contador estende as redes

158
do princípio da realidade. Na conclusão ele frus­
tra aquilo que poderia ser esperado, e é como se
o plano da realidade fosse interrompido por outro
que o completa, subvertendo-o e dando-lhe um final
que vem dos subterrâneos do princípio do prazer.
Não é por acaso que os chistes prefiram colo­
car, no lugar do tombo que produz o riso, na maio­
ria das vezes, símbolos diretamente ligados aos sub­
terrâneos do inconsciente. Não é curioso isto, que
justamente aquilo que seja proibido seja o lugar
da gargalhada? E é assim que a piada lança mão
dos órgãos e funções sexuais, das partes vergonho­
sas do corpo, do grotesco de reis, presidentes, ge­
nerais, cardeais, em resumo, daquilo que não de­
veria ser, não deveria aparecer, não deveria ser
dito, como conclusões inesperadas e subversivas das
redes de expectativas tecidas pelo princípio da
realidade.
É como se disséssemos: “ Coisa que permite
finais tão cômicos não pode ser sagrada. ídolo não
pode ser. Brinquedo, talvez...”
É isto: o riso dos bufões transforma os ídolos
dos sacerdotes, as coroas dos reis, as espadas dos
generais...
... em brinquedos.
Nada de causar medo.
Coisas humanas, bem humanas.
Nem divinas, nem demoníacas.
O cômico se encontrava justamente nas más­
caras solenes que usavam. Tiradas as máscaras, vai-
-se o cheiro do sagrado... E é isto que torna bu­
fões e palhaços temidos. Eles sentem o suor de

159
gente por detrás das fantasias dos deuses, e os que
queriam fazer-se passar por deuses se descobrem,
repentinamente, pegos em sua farsa... E aí explode
o riso dos que eram atemorizados pela farsa, e o
ódio daqueles cuja farsa foi desmascarada. Não é
de causar espanto, portanto, que bufões e palhaços
freqüentemente sejam lançados nas prisões onde,
não raras vezes, compartilham as mesmas celas com
os profetas. É que o riso de uns e a denúncia dos
outros brota das mesmas fontes e realiza as mes­
mas coisas.
Já imaginaram a possibilidade estranha de que
o príncipe encantado, lá da estória da Branca de
Neve, viesse a se apaixonar perdidamente pela
bruxa malvada, casando-se com ela, tendo muitos
filhos e vivendo feliz para sempre? E se o lobo se
transformasse no defensor dos três porquinhos,
incansavelmente perseguidos por Chapeuzinho Ver­
melho e sua avó, que desejavam transformá-los em
presunto? E se o dragão de São Jorge se metamor-
fosear numa linda donzela? Que aconteceria com
o santo, treinado a vida toda para dar combate à
besta, frente à insinuante mulher, sem saber o que
fazer com lança e armadura?
Finais absurdos, é claro. Cômicos, ridículos,
inesperados. Tudo fica de cabeça para baixo, e já
não mais sabemos distinguir os heróis dos vilões.
A confusão é total. As leis da realidade são abo­
lidas. O mundo ficou louco. Entramos no mundo
de Lewis Carroll.
Talvez, mundo de Jesus Cristo.
Não era isto que ele fazia, ao contar aquelas
novelas-relâmpago chamadas parábolas? Curioso que

160
não percebamos o humor iconoclasta que elas con­
têm, e as leiamos com a entonação piedosa das
coisas sagradas.
Fariseu e publicano.
É como se Jesus dissesse:
“ — Vejam só a nudez daquele que pensa
estar vestido e o recato daquele que todos pensam
estar nu...”
O Bom Samaritano.
“ — Então os senhores pensavam que São
Jorge defenderia a donzela contra o ataque dos mal­
feitores... Mas ele preferiu poupar sua lança. Foi
o dragão, isto mesmo, o dragão, que os pôs a cor­
rer e conduziu a jovem indefesa até sua casa...”
O Filho Pródigo.
“ — E o filho mais velho, perfeito em todos
os sentidos, desejado como genro por todas as mães
de filhas casadoiras, não largava por nenhum mo­
mento, por breve que fosse, do enorme livro onde
fazia a honesta contabilidade dos seus créditos e
dos débitos alheios... E para não deixar cair o livro-
-caixa, não estendeu a sua mão... E a vara mágica,
que tudo transforma, passou adiante... Mas seu
irmão, sem eira e nem beira, mãos vazias, sem
nada ter para perder, por já haver perdido tudo,
ali ficou, mãos abertas, sem nada pedir ou esperar...
E aquilo que ele não buscou caiu-lhe nas mãos...”
Assim caminham os bufões, quebrando ídolos,
zombando das certezas, tornando-nos livres para
nos rir de nós mesmos, sem o que não é possível
brincar...

161
11. Variações...
“— A tradição e as boas maneiras mandam
lavar as mãos? Mas já vos esquecestes de por onde
passa e onde vai parar aquilo que entra pela boca
do homem? O caminho que importa não é o que
vai de fora para dentro mas o que vai de dentro
para fora...”
“ — De fato, é impressionante o vosso pedi­
gree espiritual. Filhos de Abraão, sem dúvida. Mas
as prostitutas (e quem sabe os seus filhos) vão entrar
no Reino de Deus antes de vós...”
E o povo se ria da cara espantada e indignada
dos maiorais.
“ — Como são grotescos os que põem as más­
caras da tristeza quando jejuam e as faces de pie­
dade quando oram...”
“ — Como será o Reino de Deus?
Tudo de cabeça para baixo. Os adultos viram
crianças, os que têm poder se põem a lavar os pés
dos mais fracos, os que estavam nos tronos são
depostos, os sábios ficam tolos e os tolos ficam
sábios, os que choravam começam a rir e os que
riam se põem a chorar...”
Quem poderia levar a sério absurdos como
estes?
Tudo o que é sólido,
tudo o que é aceito por todos,
tudo aquilo que está além das dúvidas,
tudo o que é certeza
se torna motivo de riso.
Antes de mais nada,
rir das certezas.

162
Elas freqüentam as fogueiras da inquisição.
Inquisidores, juizes e carrascos, são sempre sérios.
Claro. Se eles se rissem de si mesmos, não teriam
coragem para fazer outro, também merecedor do
riso, sofrer. O riso caminha de mãos dadas com a
tolerância. O que me faz suspeitar que o riso seja
a face alegre da confissão de pecados. Pois, o que
é o perdão? Não participa ele da estrutura do
chiste? Perdão: golpe inesperado que a graça aplica
sobre as expectativas que a vida construiu. Explode
a gargalhada e os demônios fogem, com seus livros-
-caixa...

Dizia Kolakowski que em toda sociedade en­


contramos pelo menos dois tipos de atores. De um
lado os sacerdotes. Do outro, os bufões. Os sacer­
dotes carregam turíbulos em suas mãos e por onde
passam espalham um cheiro sagrado que obriga as
pessoas a se ajoelharem. E eles lançam suas redes
de reverência e respeito sobre reis, bandeiras, ge­
nerais, instituições, costumes e tradições, crenças
e doutrinas. E até mesmo a teologia, sob seu en­
canto, se torna coisa sagrada. E foi por isto que
em seu nome se queimaram corpos e em seu nome
se fazem fechar as bocas dos que dizem palavras
novas. Os bufões, ao contrário, começam a espir­
rar com o cheiro do incenso e transformam em pia­
das aquilo que os sacerdotes sacralizam, exorci­
zando assim os demônios da seriedade e da reve­
rência. E quando a reverência se transforma em
riso, os ídolos são despedaçados e os seus adora­
dores, descobertos em sua farsa, se voltam contra
os bufões.

163
Você entende agora porque dissemos que o
teólogo e bufão? Quem sabe o segredo do nome
sagrado, nome que não pode ser pronunciado, o
nome de Deus, sabe que tudo o mais não pode
ser sagrado. Tudo o mais é dádiva, graça, brin­
quedo... E é por isto que a boca que balbucia uma
prece diante de Deus é a mesma boca que explode
em riso perante os sinais de honra com que os ho­
mens tentam esconder suas vergonhas. O palhaço
é a face alegre do mesmo que sacrifica, no altar...
O encontro com o sagrado...
O riso que despedaça os ídolos...
E o mundo, livre dos ídolos, se transforma em
jardins dos prazeres: tudo é permitido, desde que
o nome sagrado continue a ser invocado em silêncio
e o ruído do riso continue a exorcizar demônios...
E o trabalho, e o pão, e o vinho, e a dança, e as
canções, e as carícias, e o vento, e os pássaros, e os
lírios dos campos, e o cheiro dos romãs depois da
chuva e da bem-amada antes do amor, e o des­
canso, o sabado, a utopia do Reino de Deus, e viu
Deus que tudo era muito bom, e o seu coração se
alegrou vendo a alegria dos homens, a quem ele
amou e criou, para a felicidade, a liberdade...
Mundo que é brinquedo...

164
... e das crianças

Não faz muito tempo que eu me dei conta da


importância teológica do brinquedo. Que a tole­
rância e a generosidade sejam consideradas marcas
do Espírito, compreende-se com facilidade. Mas que
o brinquedo possa ser apresentado como uma vir­
tude teologal, parece insólito e ofensivo à grave
tradição do estilo teológico de viver e de pensar.
Tudo começou quando recebi uma consulta sur­
preendente. Uma congregação presbiteriana me con­
vidava para pregar. Surpreendente porque já havia
muito tempo ninguém tinha coragem para tanto, e
a minha solidão e o meu silêncio me assombravam
nas manhãs de domingo, outrora tão cheias^ de pa­
lavras. Aceitei. E me prometi o seguinte. Não diria
qualquer coisa chocante. Não bancaria o profeta.
Deixaria em casa fósforos e marretas. Não quebra­
ria ídolos e nem incendiaria casas. Pelo menos uma
vez queria que as pessoas sorrissem e não me de­
nunciassem como herege.
E me pus a procurar um texto. E lembrei-
-me de Jesus, doce e sorridente, dizendo “ a me­
nos que deixeis de ser como sois e vos torneis
como crianças, nunca entrareis no reino dos ceus .
E me decidi a pregar sobre crianças porque ima­
ginei que sobre elas seria impossível dizer qualquer
heresia. O resultado foi catastrófico e terminei sen-

165
do acusado de corruptor dos costumes. É que não
percebi, à primeira vista, que o texto não fala sobre
crianças. Ele fala é sobre os adultos. Maldição so­
bre os crescidos. Interdição de sua presença no
Reino. Jesus se ri dos adultos e os convida a brin­
car... E eles ficam sem saber o que fazer com suas
coisas sérias, tais como investimentos na bolsa de
valores, teses de doutoramento e insônias, coisas
que a criançada não conhece.
Convite para o brinquedo.
O que é uma criança?
Parece que o mito de sua inocência e pureza
morreu, faz muito tempo. Freud foi o coveiro. E-
xemplos de amor também não são. Seu narcisismo
é por demais evidente: só vêem a si mesmas. Se
existe algo que lhes é característico é sua capaci­
dade para brincar.
Mas o que é isto, brinquedo?
Brinquedo é uma atividade não produtiva.
Ele não tem por objetivo a produção de qualquer
objeto.
Mas qual é a razão por que as crianças brin­
cam, se ele não produz coisa alguma?
A resposta é simples. O brinquedo não pro­
duz objetos, mas ele produz prazer. Se a palavra
prazer parece por demais erótica e sensual pode­
mos muito bem usar uma outra, dotada de maior
respeitabilidade teológica: alegria. Talvez que a na­
tureza do brinquedo possa ser esclarecida se nos
lembrarmos da distinção que fez Agostinho entre
coisas que devem ser usadas e coisas que devem
ser desfrutadas. Quando eu uso algo, este algo é

166
sempre um meio para outro objetivo, não importa
que eu esteja usando coisas, pessoas ou palavras.
Mas quando eu desfruto alguma coisa, este desfru­
tar é sempre um fim em si mesmo. Brinquedo é
isto: um fim em si mesmo, para ser desfrutado,
algo que distribui o prazer.
Vocês sabem que o prazer é o princípio de­
terminante da vida da criança. Bergson comenta,
não sem uma pitada de nostalgia: “ Que infância
teríamos tido, se nos tivessem permitido fazer o
que dese já vamos! ” Com o que Freud concorda.
As crianças vivem num mundo dominado pelo prin­
cípio do prazer e somente o abandonam quando a
isto forçadas pelas pressões que lhes vêem do mun­
do adulto. Elas acreditam na onipotência do desejo
e transformam as fantasias que ele produz em coi­
sas e atividades, no mundo lúdico em que habi­
tam. O brinquedo, como atividade que é um fim
em si mesmo, é nada menos que uma expressão da
busca infindável de um mundo a ser amado, busca
que marca todas as operações do ego. No brin­
quedo encontramos os aperitivos, as presenças an­
tecipadas de um mundo por que se espera e se de­
seja. No brinquedo o amor abole as leis da reali­
dade e a reconstrói segundo os modelos que o de­
sejo sugere, através dos sonhos e das fantasias. E é
disto que advem a sua significação psicanalítica.
Não é por acaso que analistas que trabalham com
as crianças, ao invés de simplesmente pedir que
elas se ponham a falar, sugerem que elas se po­
nham a brincar. Eles sabem da densidade simbó­
lica e do caráter revelatório daquilo que se faz,
brincando. Se eles adotam com os adultos outra

167
técnica e os põem a falar é porque, sob o domínio
da repressão, já não temos coragem de fazer e dan­
çar os nossos desejos — a não ser em situações
em que isto é socialmente permitido, como no fu­
tebol, no carnaval, na liturgia. Em todas estas si­
tuações é no brinquedo que estamos metidos: o
corpo faz os seus desejos, ainda que para isto a
realidade tenha de ser abolida, por meio de um
artifício de faz de contas. O que, de novo, nos faz
cruzar o caminho com o mágico e revela nossa es­
tranheza em face do mundo das pessoas sérias como
banqueiros, generais e cientistas... O que está em
jogo é o lugar onde colocamos o desejo: “ onde es­
tiver o vosso tesouro, aí também estará o vosso
coração” — palavras de Jesus, se não me engano.
Se nosso corpo dança ao som de uma música que
poucos ouvem, que nos vem do futuro, nas asas
da imaginação e da esperança, ou se ele se deixa
engordar e domesticar pelas panelas de carne do
Egito e o medo da peregrinação pelo deserto... Há
os que se sentem em casa no mundo, tal como ele
é. Pessoas felizes, normais, sem problemas: sóli­
dos, sem insônias, ajustados, não gastarão seu tem­
po com angústias e nem o seu dinheiro com psica­
nalistas. Seus valores são os fatos. Desconhecem a
dor do desejo, a solidão da nostalgia, o vazio das
ausências. E perguntam:
“ Amor, que é isto? E criação, o que é? E
nostalgia? ”
Estas são as perguntas que Nietzsche coloca
na sua boca, este a quem ele dá o nome de último
homem, incapaz de dar à luz uma estrela. Mas há

168
também aqueles a quem Zaratustra comanda: “ Exi­
lados sereis em todas as terras...”
O que está em jogo é o lugar onde colocamos
o desejo, se nas presenças ou nas ausências, se nas
certezas ou nas esperanças. E todos aqueles que
colocaram o seu amor nas esperanças estão conde­
nados a trilhar o mesmo caminho que o mágico. Por
mais diferentes que sejam as coisas que seus cor­
pos fazem, em seus corações arde o desejo de que
a realidade seja abolida. E é exatamente a nostalgia
do exilado e o gesto do feiticeiro, que se anunciam
pela primeira vez no brinquedo, quando as crianças,
no jogo de faz de contas, transformam o que é no
que não é e o que não é naquilo que é...
O que leva a criança também muito próxima
do gesto sacerdotal que toma o pão e o vinho e diz,
repetindo o que a tradição nos legou, que eles são
o corpo e o sangue de Cristo... Brincadeira de faz
de contas? Transubstanciação, metamorfose do real,
pelo poder da imaginação e a intensidade do de­
sejo... E o pão e o vinho passam a trazer consigo
o gosto bom de um banquete que está para ser
servido...
No prazer, cessam as mediações.
O prazer não é um meio para uma outra coisa.
O contrário é o verdadeiro. Tudo é meio para que
a nostalgia do amor encontre o objeto desejado.
No prazer o desejo chegou ao seu destino. Não é
exatamente isto que dizemos, acerca do amor? Fa­
lamos em jogos amorosos — e o dizemos muito
bem. Nos jogos do amor os corpos alcançam sua
mais alta significação teológica, porque aí eles se
livram da maldição de serem meios, para se tor-

169
narem puramente fins em si mesmos. Cada corpo
é um brinquedo brincante, que usufrui e faz usu­
fruir... Pena que Agostinho, a quem amo e res­
peito profundamente como irmão mais velho, não
tivesse se permitido sorrir diante desta dádiva de
Deus, transformando o jogo sexual do amor em
simples meio para um fim demográfico: a reprodu­
ção e a população dos céus...
Usufruir sem produzir: negação radical de
tudo aquilo que consideramos normal e decente.
Com o que concordaria o filho mais velho da pa­
rábola, que oferecia como credenciais de sua iden­
tidade espiritual aquilo que ele havia produzido,
contabilizado agora como crédito seu e dívida do
pai... Não é de causar surpresa que ele justamente
se indignasse com a festa — brinquedo de muitos
— em que a graça do pai oferecia àquele que nada
havia produzido a alegria do prazer. Brinquedo e
prazer são companheiros permanentes do amor, da
mesma forma como no mundo marcado pela pro­
dução, o amor é caçado como subversivo.
Tudo, em nosso mundo, tem a maldição da
lógica do filho mais velho. O problema é muito
antigo e parece que o equívoco já se encontrava na
cabeça de Adão e Eva. Tiveram medo de se entre­
gar à vida, no total despojamento e na absoluta
falta de credenciais de sua nudez. Preferiram um
grande ato, ato que fosse uma conquista, um cré­
dito, uma justificativa... Acontece, entretanto, que
aquilo que em outras épocas foi ato de indivíduos
isolados, que tomaram a decisão, em nossa socie­
dade tomou forma objetiva, como exigência do fun­

170
cionamento de nossas instituições. Entre nós, tudo
se transformou em meio...
Parece que a grande metamorfose começou
com o triunfo da burguesia. Na Idade Média, a
identidade de cada um era dádiva dos deuses e não
tinha coisa alguma a ver com aquilo que as pessoas
faziam. Os nobres o eram por nascimento, e tam­
bém os miseráveis da terra, e nada podia alterar este
fato, decretado por Deus, a quem pertenciam os
corpos e as almas de todos. Mas aí apareceu um
grupo diferente de gente diligente, que não estava
nem em cima e nem em baixo, gente que trabalhava
com afinco, dia e noite, e lia, nas horas vagas, as
cartilhas calvinistas, onde aprenderam que a riqueza
era o sinal visível da graça invisível da salvação;
quanto mais rico mais salvo, quanto mais salvo
mais rico; e a identidade das pessoas deixou de ser
medida por seu nascimento, e passou a depender
do seu trabalho. Por nascimento ninguém sabe ain­
da quem é. Isto só vai se revelar na diligência do
trabalho e no sucesso dos negócios. E foi assim
que a identidade passou a ser coisa dependurada
nos ganchos da riqueza, porque diligência no tra­
balho e sucesso nos negócios são coisas que se me­
dem por meio dos lucros. E esta nova estirpe de
santos ricos aprendeu logo que o corpo é mau con­
selheiro em assuntos de riqueza e de trabalho, pois
que prefere gastar a ganhar, prefere o ócio ao suor,
prefere o prazer à disciplina.
Mas é necessário reconhecer que, entre nós,
o corpo nunca teve muitas chances. Os gregos sem­
pre o mantiveram sob suspeita e o venerável Pla­
tão o comparou mesmo a um cavalo fogoso e de­

171
senfreado que deve ter na boca os freios da razão,
sábia e repressora. E, a partir daí, o conflito terrí­
vel que nos racha passou a ser entendido não como
uma luta entre desejos de amor e desejos de ódio,
como acontecia entre os hebreus, mas antes como
luta entre os desejos em geral, perturbações do
corpo, de um lado, e, de outro, o tranqüilo não
desejar/contemplar da razão que, por ser destituída
de pele, de genitais, de ouvido e boca, não sabe o
que o Eros da carne significa.
Somos assombrados pelo medo do corpo.
Talvez porque saibamos que tudo, no corpo,
grita contra o domínio. Todo corpo grita por liber­
dade e prazer. E os maridos têm medo que, nas
suas mulheres, o corpo acorde. E as mulheres sen­
tem o mesmo em relação aos filhos. E ambos se
aliam para conspirar contra o corpo dos filhos que
um dia se aliarão para conspirar contra os corpos
dos pais. Duvidam? Por favor, que leiam a terrível
obra de Simone de Bouvoir, sobre a velhice. To­
dos amam os velhinhos mansos, sorridentes, pacien­
tes, que não mais se pertencem, perderam a vontade
e se entregaram à vontade dos outros. Mas ai da­
quele que, de repente, sentir o amor desabrochar
de novo em seu corpo, e o desejo de carícias e ar­
repios e cócegas eróticas... Dirão os jovens que não
passa de um sem-vergonha que perdeu o juízo.
E o corpo foi sendo levado, de humilhação em
humilhação.
O venerável Agostinho, propondo a domes­
ticação do desejo, por meio da razão.
O que levou o não menos respeitável Eras­
mo, séculos depois, a dizer que o corpo não pas­

172
sava de uma prostituta. E Lutero, movido por
justa indignação, retrucou que se havia prostitui­
ção, ela não estava no corpo, mas na razão.
E Kant irá contribuir para o sepultamento,
lançando também sua pá de terra sobre o corpo
agonizante.
Os exemplos podem ser multiplicados, sem
fim.
O Cristianismo foi cúmplice. Nunca nos sen­
timos à vontade com o corpo. O que explica o
silêncio dos pregadores sobre o livro do Cântico
dos Cânticos. Isto não deveria acontecer. Protes­
tantes, fundamentalistas, deveriam colocar no mes­
mo nível os poemas eróticos de Salomão e a abs­
trata cristologia/cosmologia de Paulo. Serão con­
servadores o bastante para afirmar que o livro foi
inspirado. Mas não o bastante para lê-lo perante
as congregações. E só o farão por meio dos arti­
fícios alegóricos que transformam os corpos de um
homem e de uma mulher em algo que nem é corpo,
nem é homem, nem é mulher... E foi desta humi­
lhação permanente imposta ao corpo, não só por
meio das palavras, mas por meio do medo da carí­
cia, das abstinências e flagelações, que surgiu aque­
le riso/choro de Nietzsche: “ O santo em que Deus
se deleita é o eunuco” . Os cristãos se enfurecem,
dizendo: “ Blasfemou contra D eus” . Mas eu lhes
pediria apenas um pouquinho mais de sutileza.
Quando Nietzsche fala sobre Deus, ele fala é sobre
o cristão e seu discurso teologal. Tranqüilizem-se.
Deus não se sentiu ofendido. O grito não foi diri­
gido contra ele.
“ Aqui estão os sacerdotes. E muito embora
eles sejam meus inimigos, passo por eles em
silêncio, com espadas adormecidas. Eles deram
o nome de igrejas às suas cavernas de cheiro
adocicado. Oh! Aquela luz falsificada... E, a
tudo aquilo que lhes era contrário e lhes pro­
duziu dor, deram o nome de Deus... O espí­
rito destes redentores era nada mais que um
agregado de buracos; e, em cada buraco, ali
colocaram o seu engodo, o seu tapa-buracos,
a que deram o nome de Deus. E lá ele está,
doente, miserável, malevolente contra si mes­
mo, cheio de ódio contra as fontes da vida,
cheio de suspeitas contra tudo o que ainda é
forte e feliz. Em resumo, um ‘cristão’...”
Se não gostaram, que voltem a Bonhoeffer,
porque tudo está lá, ainda que camuflado, mais ao
paladar sensível das gentes de igreja...
E o terrível é que esta humilhação do corpo
não é apenas algo que esteja presente nas palavras
de filósofos e teólogos. Se o problema fosse ape­
nas uma questão de palavras, poderia ser resolvido
com facilidade. Acontece que nunca existe isto
“ apenas uma questão de palavras” , porque as pa­
lavras estão coladas à realidade, da mesma forma
como a pele está colada ao corpo. E descobrimos
que a humilhação do corpo não é um assombro lin-
güístico mas um fato político. Segundo Weber é a
própria “ racionalidade ” do sistema de produção que
o exige. Reprime-se o corpo por amor à eficácia.
O corpo, por si, é ineficaz. Ele não está em busca
de objetos; só deseja o prazer. Esta é a razão por

174
que o corpo dos operários, numa fábrica, tem de
ser reprimido. Decreta-se o fim do tempo bioló­
gico: despertar quando não mais se tem sono, co­
mer quando se tem fome, brincar quando se quer,
descansar quando o cansaço... As fábricas instalam
apitos cujos silvos cortam a cidade, e o ritmo dos
corpos segue o ritmo das máquinas. E se fabricam
relógios, símbolos da derrota e da escravidão, que
as pessoas compram e usam, como símbolos de
status. E Marx sugeria, antes, a mesma coisa, mos­
trando que o capitalismo tem uma moralidade, que
é o imperativo da abstenção. Não é assim que o
capital se forma, por meio de constantes e disci­
plinadas abstenções, a que damos o nome de “ pou­
pança” ? E o corpo, como ser erótico brincante, se
reduz à condição de puro meio, entidade manipu-
ladora cujo objetivo é a produção de lucro. Desa­
parecem os sentidos ligados à vida e são substituí­
dos por um único sentido, o sentido do ter. E o
corpo, de fim supremo, da condição de Ens realis-
simum, a mais alta entidade sobre que se pode,
teologicamente, falar, sim, o corpo foi aviltado à
condição do meio...

E assim, por amor ao irmão mais velho da


parábola, os corpos foram domesticados. Perderam
a sua dignidade teológica e espiritual. Foram trans­
formados em ferramentas, acoplados às máquinas,
subordinados ao seu tempo. Surgiu então uma es­
piritualidade nova, de ascetismo e disciplina, em
que os prazeres eram proibidos. Tudo isto, não
pela salvação da alma, mas por amor ao lucro, esta
entidade matemática que passou a ser o critério

175
pelo qual as pessoas eram avaliadas. Dize-me quan­
to ganhas e eu te direi quem és...
De fato, o ganho é a representação formal,
matemática, daquilo que o corpo produziu. Pouco
importa que o corpo tenha sofrido. Pouco importa
que ele tenha sido reprimido. E isto porque sofri­
mento e repressão são coisas que se encontram no
processo de produção. Mas o que realmente conta
é aquilo que vem no fim, como produto, mercado­
ria, porque será isto somente que irá ser vendido
para produzir então aquilo que a vida pode ofere­
cer de mais alto: o lucro. E foi isto, o produto, o
sol em torno do qual se constituiu o universo
burguês-industrial. Acontece que esta lágica tem
um nome teológico: justificação pelas obras. O que
aconteceu com o corpo? Bem, não importa. Afi­
nal de contas, ele é apenas um meio; mais precisa­
mente, um meio de produção, ao lado de teares e
de perfuratrizes. O brinquedo e o prazer? Reduzi­
dos à condição de atividade necessária para que o
corpo se mantenha no seu nível ótimo de produti­
vidade. O direito do trabalhador às férias é, na
verdade, um nome agradável para a necessidade de
um meio de produção à manutenção, tal como acon­
tece com aviões, que de tempos em tempos param
de voar e são mandados para a revisão...

Justificação pelas obras: parece-me que esta


lógica está profundamente enraizada na crueldade
da nossa sociedade. Se a atividade é apenas um
meio para um determinado fim, o que ocorre na
ação não importa, desde que os fins sejam desejá­
veis. Tortura, ditadura, destruição dos rios, polui-

176
ção do ar, liquidação de nossos recursos naturais,
florestas transformadas em desertos, venda de ar­
mas, terror atômico: tudo se justifica se o obje­
tivo é o lucro e as condições políticas para a sua
obtenção.
Acontece que a vida e o corpo não são meios
para coisa alguma. Eles são fins em si mesmos. Esta
é a grande afirmação do brinquedo, seja empinar
papagaios, jogar xadrez, fazer poemas, escrever mú­
sica, fazer amor, celebrar a liturgia, sorrir no nosso
jogo de contas de vidro... E isto nos conduz, de
novo, ao campo das palavras teológicas, onde se
fala sobre justificação pela fé, que significa preci­
samente o abandono total do esforço para se en­
contrar o sentido para a vida em termos dos re­
sultados práticos de nossa atividade.
E foi aqui que os meus ouvintes, naquela pie­
dosa congregação, versada na austeridade e no
ascetismo dos catecismos calvinistas, começaram a
eriçar o pelo e a esbugalhar os olhos, justamente
quando começamos a dizer das conseqüências éti­
cas do brinquedo.
Sugestão estranha a de Jesus, que a presen­
te ordem tem de morrer, para que um novo mun­
do venha a nascer. E brincar significa precisamen­
te não levar a sério isto que está aí, e bem em
cima de sua carcaça agonizante começar um fazer
novo... Dançar, no presente, por meio de símbo­
los e sacramentos, a ressurreição do corpo, reali­
dade por que se espera, para onde se inclinam nos­
sas nostalgias. Corpo nosso, corpo de Cristo, a
natureza, o universo todo fruindo a realização do
amor, o encontro do desejo com aquilo com que

177
12. Variações -
ele sonhou prazer puro, completo, total, quando
se descobre que existe apenas um sentido possível
para a glória de Deus, que é precisamente a felici­
dade dos homens.
O mundo enfeitiçado pela produtividade deve
morrer. É isto que cantam as crianças. Subversão...
Já notaram como as crianças são sérias acerca
dos papéis que elas assumem em suas brincadei­
ras? Não obstante, elas não se esquecem nunca de
que tudo não passa de brincadeira, faz-de-conta...
O papel não é eterno. Não está inscrito na natu­
reza das coisas. Nosso mundo é nada mais que
um experimento. Deus nos pôs a brincar. Convi-
dou-nos a inventar nomes, a plantar jardins, a fa­
zer amor... E daí surgiram os mundos da cultura,
que poderíam ter sido totalmente diferentes do que
são. Mas nós temos memória curta. Esquecemo-nos
das origens. E transformamos aquilo que nós mes­
mos fizemos em ontologia. Assim nascem os abso­
lutos, assim se erigem os ídolos. Sempre um equí­
voco, quem sabe uma maldade... Óbvio, pois os
fortes não podem imaginar a sua própria pro-
visoriedade... É, bem pode ser que a memória fraca
ou memória torta nada tenha e ver com as virtu­
des e limitações de nossos aparatos neurológicos,
mas se derive dos interesses do poder. Tal como
aconteceu em 1984 e na Revolução dos Bichos,
ambos de Orwell. Mas aí vêm as crianças que
tomam os ídolos e os transformam em brinquedos.
“ — Vamos brincar de bandidos e polícia.
Hoje eu sou polícia. Amanhã serei o bandido...”
As crianças sabem que elas são, ao mesmo
tempo, aqueles que assumem os papéis e aquelas

178
que escrevem os “ scripts” . E é por isto que elas
são livres para inventar, modificar, trocar, jogar
tudo fora e começar de novo. Elas continuam donas
do pequeno mundo de brinquedo que sua imagi­
nação criou. E, por isto, nada há que as obrigue a
jogar hoje o jogo que começaram a jogar ontem.
Cada amanhã é um novo começo, uma nova reor­
ganização.
Diante disto a gente é tentado a pensar que
as coisas são assim no brinquedo porque, afinal de
contas, estamos no mundo do brinquedo, das crian­
ças, em que nada é sério e nada é para ser levado
a sério. Mas não é verdade que o conceito de papel,
em sociologia, coisa de grandes, nos introduz no
mundo do faz-de-contas? Fardas militares, unifor­
mes sacerdotais, cerimoniais acadêmicos e seus no­
mes pomposos, e todas as “ máscaras” que usamos
— mundo do teatro, dos papéis e “ scripts” pre­
determinados. E uma mesma pessoa brinca de pro­
fessor, de marido fiel, de pai carinhoso, de amante,
de filho, trocando de papéis como se troca de más­
caras, e podendo bem parar para se perguntar:
“ Afinal de contas, quem so u ?” E que dizer do
conceito de “ definição da situação” , de William
Thomas, que chama a nossa atenção para o fato
de que uma certa situação social se estabelece, em
última instância, da mesma forma como se defi­
nem as regras de um jogo, pelo consenso daqueles
que nele participam? E descobrimos que até Dur-
kheim vislumbrou o caráter lúdico da sociedade, e
localizou esta explosão de prazer precisamente onde
a sociedade atinge o seu ponto culminante, como
coisa sagrada e moral. E ele diz que a vida social

179
“ goza mesmo de uma independência tão gran­
de que, às vezes, se entrega a manifestações
sem nenhum propósito ou utilidade de qual­
quer tipo, pelo simples prazer de afirmar-se” .
O que poderia ser traduzido de maneira mais
simples: “ Às vezes a vida social é puro brin­
quedo ” .
E eu remeteria o leitor, finalmente, à linda
obra de Huizinga, Homo Ludens, em que ele sugere
que a cultura só pode ser compreendida como
brinquedo.
Se tanto as crianças quanto os adultos brin­
cam temos de procurar entender as suas diferen­
ças, porque se fosse tudo igual a admoestação de
Jesus não teria sentido algum.
As crianças sabem que elas são donas da si­
tuação. O brinquedo lhes pertence. Assim, a qual­
quer momento as coisas podem ser mudadas.
É o seu desejo que dita as regras.
Os adultos também assumem papéis. Com
uma diferença: eles se identificam com eles. Passam
a ser aquilo que fazem. Os generais, até nas suas
almas, usam suas insígnias e portam suas condeco­
rações. Os bancários trazem para a cama aquilo
que fizeram no escritório. Os professores universi­
tários chegam a acreditar em sua própria propa­
ganda, e se julgam realmente mais sábios que os
outros. Pastores protestantes e sacerdotes católi­
cos se imaginam mais sagrados que os demais... E
é assim que, de donos da situação eles se tornam
propriedade dos seus papéis, que assim possuem
os seus corpos e determinam as suas identidades.

180
E eles andam por aí, possuídos por demônios, mes­
mo quando tais demônios sabem as regras do decoro
e da respeitabilidade social. De fato, na maioria das
vezes os demônios se comportam muito bem, e ao
invés de jogar o corpo no chão, como acontecia
com aquele pobre diabo que Jesus exorcizou, fazem
o corpo subir na vida, o que faz com que ninguém
deseje a sua expulsão... E é assim que a vida, dá­
diva de Deus para ser brincada, pelo poder dos
demônios e seus ídolos, vira ontologia, coisa séria,
diante da qual os joelhos devem se dobrar, che­
gando mesmo a ser batizada com o nome de verda­
de e de bondade...
As coisas ficam mais claras por meio de
imagens.
As crianças estão brincando. Uma delas estica
o dedo para a outra e diz: “ — Bang. Te matei” .
E a outra cai no chão, nos estertores do faz-de
-contas.
Os adultos estão brincando. Um deles aponta
a arma para o outro e “ bang” . “ — Eu te matei” .
E o outro cai, morto.
O brinquedo das crianças termina com a res­
surreição universal dos mortos.
O brinquedo dos adultos termina com o se-
pultamento universal dos mortos.
A ressurreição é o paradigma do mundo das
crianças. Do mundo dos adultos surge a cruz, por­
que somente aqueles que se levam totalmente a
sério se transformam em carrascos.
No mundo do brinquedo as estruturas não se
transformam nunca em lei. Cada novo dia se apre­
senta como um espaço livre, que permite que tudo

181
comece de novo, como se nada tivesse acontecido.
Vocês já pensaram que as instituições, estas coisas
que fazem mediações entre o passado e o futuro
são meios pelos quais os mortos continuam a as­
sombrar e a dominar os vivos? Claro, porque elas
nasceram de pessoas já mortas. E, não obstante
isto, o seu imperativo continua a se impor, como
obrigação. O passado é a lei do presente e do fu­
turo. Mundo que não pode esquecer, que não pode
perdoar. Mas o brinquedo exorciza os maus espí­
ritos porque ele nos lembra que continuamos
senhores da organização social, e nos sugere da
possibilidade de um mundo baseado no esqueci­
mento e nos novos começos. Mundo em que os
livros-caixa foram queimados, parecidos com aque­
le prenunciado pelo ano do jubileu, onde tudo que
estava preso era libertado, tudo o que havia sido
comprado era devolvido. E os campos voltavam
aos seus antigos donos, e os escravos eram liber­
tados, e as dívidas eram perdoadas...
O brinquedo, assim, se constitui numa denún­
cia da lógica do mundo adulto. As crianças se re­
cusam a aceitar o veredito do “ princípio da reali­
dade” e separam um espaço e um tempo e tratam
de organizá-los segundo os princípios da onipo­
tência do desejo. E lá se move o grupinho de crian­
ças, bem no meio do mundo adulto, como um pro­
testo contra ele... Será algo semelhante a isto que
Jesus tinha em mente, ao falar da necessidade de
nos tornarmos como crianças? E começamos a sus­
peitar que o brinquedo está muito próximo da po­
lítica... E as crianças não se conformam com este
mundo, seguindo a admoestação de Paulo e, lá no

182
fundo, ficam repetindo que “ aquilo que é não pode
ser verdade” (Bloch). Não é possível que a serie­
dade e a crueldade adulta seja aquilo de mais alto
que a vida pode nos oferecer. E fazem o seu jogo
de contas de vidro, e compõem um mundo em
torno do prazer. Acreditam na imaginação e acei­
tam os seus oráculos. O mundo pode ser diferen­
te. E, no brinquedo, esta coisa nova se oferece
como aperitivo...
E agora damos um pulo para trás, para recor­
dar o mestre Wittgenstein, quando ele dizia que
os limites da minha linguagem denotam os limites
do meu mundo, e daí a gente conclui que, ao lado
de espadas e correntes, o corpo é também aviltado
pelas palavras que o amarram, e o obrigam a dan­
çar ao som de flautas encantadas tocadas por demô­
nios malvados, tal e qual aquela estória infantil... E
é preciso quebrar o feitiço. É por causa disto que
me atrevo a sugerir que a teologia, que se entende
como palavra que liberta, tem de ser companheira
da palavra que brinca.
Falar é constituir um mundo.
A conversação é um tênue fio que nos liga a
todos numa mesma teia: isto pode significar rede
em que descansar, ou rede que nos enrola, lar ou
cárcere...
Mas o brinquedo é fazer de contas...
... e a gente começa a falar, deixando para
trás as obsessões de verdade, reconhecendo que a
vida se constrói sobre um faz de contas chamado
fé, um faz de contas chamado esperança, ambos ava­
lizados por um não faz de contas chamado amor,

183
se é que leio corretamente o capítulo 13 da I Carta
de Paulo aos coríntios. Tudo acaba, menos o amor.
E chegamos à conclusão de que quem, de al­
guma forma, foi arranhado pelo Grande Mistério,
como Jacó, conhece o terror e o fascínio do sa­
grado, e descobre que tudo o mais não é sagrado,
mas brinquedo, faz-de-contas, sacramento, aperiti­
vo, nem divino e nem demoníaco — coisas do cor­
po, esta bolha de sabão tão frágil, mas que ama­
mos de todo o coração e por cuja eternidade con­
tinuamos a orar, “ Creio na ressurreição do corpo” .
Claro, um corpo que brinca merece viver eter­
namente.
Como bem entendeu o já nosso amigo Nietz-
sche, brincalhão, incapaz de lidar com os símbolos
sérios dos cristãos, e foi obrigado a cantar a eter­
nidade do corpo por meio de um outro símbolo,
o eterno retorno...
... ou um outro brincalhão, dançarino, toca­
i a dor de santuri,_Zobra, que no seu último instante
foi até a janela, olhou para este mundo que enche
os olhos, e gritou o “ credo” do seu corpo: “ Um
homem como eu teria de viver mil anos...”
E descobrimos esta coisa curiosa: que a lin­
guagem teológica, linguagem do corpo sobre si
mesmo, se ri dos currais acadêmicos em que os teó­
logos sérios a colocaram, arrebenta cercas, e vai
cantando pelo mundo afora, nos poemas dos poe­
tas, nas canções dos violeiros, nas confidências dos
amantes, nos contos dos literatos, nos chistes dos
humoristas e palhaços... brincando sempre e dizen­
do que, por causa do Grande Mistério, é possível
rir e amar...

184
A pêndice ao ... e das crianças

As três metamorfoses do espírito

Conta-nos Nietzsche que


"quando Zaratustra tinha trinta anos de ida­
de, deixou a sua casa e o lago de sua casa
e foi para as montanhas. Ali ele bebeu do seu
espírito e gozou a sua solidão, e por dez anos
não se cansou. Mas, por fim, algo aconteceu
com o seu coração, e numa manhã ele se le­
vantou de madrugada, colocou-se diante do sol,
e falou-lhe assim:
‘Tu, grande estrela, que seria de tua feli­
cidade se não houvesse aqueles para quem
brilhar?’
E Zaratustra resolveu descer para aquecer os
homens com o fogo que, durante dez anos,
surgira no seu corpo e na sua alma. E, entre
os amigos contava parábolas, porque sabia do
seu poder para fazer viver. E foi assim que
ele falou das três metamorfoses do espírito
humano.

"Conto-vos das três metamorfoses do espíri­


to: como o espírito se transforma em camelo;
e, de camelo em leão; e de leão, finalmente
numa criança” .
"Quero as coisas que são difíceis. Assim fala
o espírito, besta de carga, que se ajoelha,

185
como camelo, oferecendo o seu lombo às car­
gas que o curvarão” . E Zaratustra conta de
todo o sacrifício que faz o espírito/camelo,
por haver feito do curvar-se e do reveren­
ciar a sua vocação. Mas algo acontece e, na
solidão do deserto, o camelo se transforma em
leão. O leão deseja ser livre e, por isto, ele
se lança à caça do seu senhor. Ele quer travar
batalha com o seu último deus, o grande
dragão.
'Quem é o grande dragão, que o espírito não
mais deseja chamar como senhor e como deus?
Dever, eis o nome do grande dragão. Mas o
espírito do leão diz, ‘Eu quero’. O ‘Tu deves’
se encontra no seu caminho, reluzente como
ouro, animal coberto de escamas. Em cada
uma delas um ‘Tu deves’ faiscante.
Valores, com milhares de anos de idade, bri­
lham naquelas escamas. E assim fala o mais
poderoso de todos os dragões: ‘Todo o valor
de todas as coisas brilha em mim. Todo valor
já foi criado, faz muito tempo, e eu sou todo
o valor que se criou. Na verdade, o ‘Eu quero’
não mais existirá. Assim fala o dragão” .
“ Meus irmãos, por que existe, no espírito, a
necessidade do leão? Porque não basta per­
manecer como camelo, besta de carga que é
renúncia e reverência?
Criar valores novos — isto nem mesmo o
leão pode fazer; mas a criação da liberdade
para si mesmo, para que daí surja uma nova
criação — isto está dentro do poder do leão.
A criação da liberdade para si mesmo e um
‘Não’ sagrado, mesmo ao dever — para isto
o leão é necessário...”
E o leão mata o dragão. E ocorre então a
última metamorfose. Do leão nasce a criança,
E Zaratustra pergunta:
“ Por que deve o leão, animal de caça, trans-
formar-se numa criança? A criança é inocên­
cia e esquecimento, um novo começo, um jogo,
uma roda que se movimenta a si mesma, um
primeiro movimento, um Sim sagrado, ara
o brinquedo da criação, meus irmãos, um
‘Sim’ sagrado é necessário...”
No princípio o camelo e, com ele, a^reveren­
cia e a repressão. Domínio do dragão.
Depois, o leão que quebra as correntes e abre
espaços.
Finalmente, a criança que brinca...

187
Os desejos, os sonhos, as utopias, o Reino

Chegamos ao fim da viagem. Provocados por


este enigmático jogo de contas de vidro chamado
teologia falamos sobre o corpo, centro do univer­
so; olhamos para as entranhas dos sacrificados e
ouvimos dos futuros que delas crescem; conversa­
mos sobre as teias de linguagem que o corpo
constrói como extensões de si mesmo e como seu
mundo; meditamos sobre as ciladas da verdade e
os caminhos da bondade; descobrimo-nos solidários
com os derrotados, os hereges, os bufões, as crian­
ças; contamos chistes e brincamos...
Nosso companheiro sorri.
“ — Agora entendo melhor” , ele diz. “ Quan­
do me falarem sobre teologia lembrar-me-ei das
contas de vidro. Tão lindas. Pena que tudo seja
um jogo, nada mais...”
E me dou conta de que, ao falar sobre a teo­
logia, houve coisas que, sem terem sido ditas, esti­
veram sempre silenciosamente presentes. E elas fo­
ram ouvidas. Nosso companheiro entendeu o si­
lêncio. Sua compreensão se revelou na observação
final: “ — Pena que tudo seja um jogo, nada
m ais...” A teologia é bela. E a tristeza vem justa­
mente quando se descobre que, com freqüência, a
beleza é impotente. Lembrei-me de Berdjaev:

189
“ Os valores mais altos do mundo parecem
ser mais fracos que os inferiores; os valores
mais altos são crucificados, os inferiores tri­
unfam. O político e o sargento, o banqueiro
e o advogado, são mais fortes que o poeta e
o filósofo, o profeta e o santo. O Filho de
Deus foi crucificado. Sócrates foi envenena­
do. Os profetas foram apedrejados. Os inicia-
dores e criadores de um pensamento novo e
de uma nova maneira de viver têm sido sem­
pre perseguidos e oprimidos, e freqüentemente
mortos” (Nicolas Berdjaev, Slavery and free-
dom, p. 67).

Ecos de Zaratustra:
Os bons e os justos
“ são incapazes de criar; eles são sempre o
começo do fim; eles crucificam aquele que
escreve novos valores em novas tábuas; eles
sacrificam o futuro a si mesmos — crucificam
todos os futuros dos homens” (F. Nietzsche,
Thus spoke Zaratbustra, p. 325).

A teologia fala sobre um outro mundo. Esta


é a razão por que não pode ser levada a sério. Os
vitoriosos definem o que é a realidade. O seu dis­
curso é conhecimento. O seu comportamento é a
bondade e a justiça. Compreende-se que toda a fala
que se desvie deste padrão tenha de ser reduzida à
condição de ilusão. Claro que existe, em qualquer
ordem social, um lugar para as ilusões. Se assim
não fosse, como explicar a aliança entre falsos pro­
fetas e reis? A arte, a novela, o carnaval, os festi­

190
vais olímpicos, os rituais militares, a propaganda
— não será verdade que em todas estas celebra­
ções religiosas se distribuem os sacramentos da eu­
foria, da insensibilidade e da sonolência? A teolo­
gia pode muito bem se juntar a esta procissão. E
a gente compreende então as razões por que os
poderosos estão prontos a permitir o jogo teológi­
co, desde que ele não ultrapasse nunca os limites
do “ apenas jogo, nada m ais...” , discurso da imagi­
nação, sobre as coisas sobrenaturais, além da terra,
além do tempo, além do túmulo, nas profundezas
da alma. Tudo se permite à teologia, desde que ela
aceite as regras de um jogo maior e mais bruto,
o jogo do poder, que separou o universo em áreas
de influência, e entregou as terras, os mares, os
ares e os corpos dos homens àquelas instituições
que, nas palavras de Weber, detêm o monopólio do
uso legítimo da violência. E, com isto, condenou-
-se a teologia à impotência e à castração. E sua be­
leza então, como uma “ canção de amores” , comove
e consola, sem ameaçar.
O problema surge quando os visionários co­
meçam a invocar ausências, e os exilados, em se­
gredo, plantam suas nostalgias, e os místicos tratam
de trazer os céus à terra, e os derrotados se enca­
minham na direção do Paraíso, e os corpos dos
sacrificados se põem a derrubar as cidades dos
homens para construir a cidade de Deus...
Estranho jogo este, capaz de produzir már­
tires...
Que inexplicável fascínio este, de um dis­
curso de palavras, no qual se dependuram razões
para viver e razões para morrer?...

191
Que dos símbolos teológicos brote a vida e a
morte, e que da vida e da morte brotem os sím­
bolos teológicos, concluímos que este é um jogo
“ sui generis” ...
... porque para jogá-lo é necessário apostar a
própria vida.
Claro que a idéia de jogo pode sugerir algo
sem conseqüências, por oposição à verdade, que
seria então aquilo que realmente importa. Mas a
idéia de jogo implica também a impossibilidade de
caminhar com as certezas, o colapso dos olhos, a
inutilidade das evidências, a necessidade do risco,
da aposta...
Agir “ corno se” ...
Kierkegaard: escolher, com a infinita paixão
da subjetividade, a aventura do caminho que, obje­
tivamente, nada contém a não ser incertezas (Con -

cluding unscientific PostScript, p. 182).


Esta é a razão por que não se pode dizer deste
jogo de contas de vidro que ele é jogo apenas. É
jogo porque é coisa que nós fazemos. Mas é destino
porque é aposta de nossa vida e de nossa morte.
Cremos.
“ Sem risco não há fé. Fé é precisamente a
contradição entre a infinita paixão da subjetividade
do indivíduo e a incerteza objetiva. Se eu fosse
capaz de agarrar Deus, objetivamente, eu não pre­
cisaria crer; mas exatamente porque isto me é im­
possível, eu tenho de crer” (Idem, p. 182).
No mundo das presenças, constituído por meio
da visão, articulado através de evidências, a fé é
interditada. Não é necessário confiar no que nos
é dito: a palavra se subordina aos olhos. Mas no

192
mundo das ausências, quando os olhos são inúteis,
só dispomos da palavra e da imaginação, como ins­
trumentos para a construção do não ainda, para o
qual nossa nostalgia nos inclina. E é aqui que se
constitui o absurdo e o fascínio da teologia, porque
ela se inicia no salto de fé que toma o risco de
viver “ como se” o universo sentisse, falasse, pro­
metesse; como se o universo tivesse um destino,
irmão do nosso destino; como se criação e homens
gemessem em uníssono; como se, de suas profun­
dezas futuras nos viessem palavras de promessa; a
reconciliação do homem com a natureza; a huma-
nização da natureza e a naturalização do homem;
natureza com face humana, faces humanas com a
tranqüilidade das aves e a simplicidade dos lírios;
unificação de todas as coisas num só corpo, Corpo
de Cristo. Hóstia. Lutero: o corpo de Cristo em
todo lugar, das estrelas mais distantes até a folha
mais singela. “ Se o homem percebesse que o uni­
verso, como ele, pode amar e sofrer, ele estaria
reconciliado. Nostalgia pela unidade...” (Camus,
The myth of Sisyphus, p. 13).
É sobre isto que fala a teologia, qualquer
teologia que cresça das entranhas dos homens: o
sentido da vida e o sentido da morte. E esta é a
razão por que suas contas de vidro não são apenas
contas de vidro: elas são pão. Os símbolos são de­
vorados, prestam-se para comer, dão vida. Com­
preende-se que ela não seja, não queira ser, não
possa ser ciência. Ciência é jogo também, é ver­
dade. Mas é jogo dominado pelos olhos, controlado
pela contemplação, subordinado às e-vidências. Ali
não existe símbolo algum que seja bom para comer.

193
13. Variações...
Weber:
“ O destino de uma época que comeu do fruto
do conhecimento é saber que ela não pode
conhecer o sentido do universo a partir dos
resultados de sua análise, por mais perfeita
que seja...” (Max Weber, " Objectivity in So­
cial Science and Social Policy, em Maurice
Natanson (ed.), Philosophy of the social Scien­
ces: a reader, p. 363).
A teologia fala sobre o sentido da vida. Afir­
mação que pode ser invertida: sempre que os ho­
mens estiverem falando sobre o sentido da vida,
ainda que para isto não usem aquelas contas de
vidro que trazem as cores tradicionais do sagrado,
estarão construindo teologias: mundos de amor,
^ em que faz sentido viver e morrer. E quem não
será então que, de vez em quando, provavelmente
no silêncio das insônias ou naqueles momentos em
que a vida de um ente querido se dependura sobre
o abismo, quem não será, quem não terá sido, meio
teólogo, invocador de coisas divinas, mágico?...
w— Pena que tudo seja um jogo, nada m ais...”
Nosso companheiro compreendeu a beleza da
teologia.
Ele comprendeu também a sua fraqueza.
E que se diga com clareza: fraqueza que a
teologia nunca escondeu. Lembro-me de Bonhoef-
fer, no campo de concentração: “ O nosso é um
Deus fraco...” Confissão que qualquer um tem de
fazer na câmara de torturas, no campo de concen­
tração, nos arsenais atômicos, nas devastações eco­
lógicas, nos corpos magros daqueles que morrem

194
de fome, nos corpos gordos dos que se assentam
nos lugares donde escorre a opressão. O nosso não
é um mundo redimido. O Deus cristão é o Deus
crucificado, Deus que chora. É somente este Deus
que as entranhas dos sacrificados podem gerar:
um Deus que espera porque sofre.
Mas ele não entendeu uma coisa: que a vida
se de pendura nesta coisa bela e frágil. O discurso
teológico é o discurso da esperança. Que Malinow-
ski me perdoe pela apropriação indébita. Roubo-
-lhe coisa que ele disse da magia, e que desejo dizer
da teologia. Afinal, magia é quase teologia trans­
formada em gesto, em dança... Teologia: “ a subli­
me loucura da esperança...” Paulo:
“ Todo o universo criado espera,
com sedenta ex-pectativa,
sentimentos brotados no fundo do peito,
de junto do coração,
que se retire o véu que esconde os filhos de
Deus.
Vítima da frustração,
não por vontade mas por destino,
não abandonou nunca a esperança:
o universo inteiro será libertado das correntes
da mortalidade, e participará, com os filhos
de Deus, de sua luminosidade.
Mas, que é o que realmente conhecemos, até
agora?
O universo inteiro gemendo, em todas as suas
partes, como se estivesse em dores de parto.
E não somente ele mas principalmente nós —
— nós que já provamos do aperitivo do

195
Espírito,
os primeiros frutos,
as primeiras cores e perfumes,
os primeiros risos,
do mundo novo que amadurece.
Sim, nós também esperamos, no fundo do
peito, o momento em que Deus fará a magia de
nos transformar em seus filhos. E aí, então, nosso
corpo estará livre. Liberdade do corpo: salvação!
Acontece que, por agora, experimentamos esta
salvação apenas em esperança.
Nós não vemos coisa alguma.
Se víssemos não teríamos necessidade de
esperar.
Por que haveria alguém de sofrer e esperar
por aquilo que já se vê?
Mas, se esperamos por algo que não vemos
ainda, no próprio ato de esperar demonstramos a
nossa tenacidade interior” (Paráfrase de Romanos,
8,18-25).
Teologia é a fala que acontece nesta espera.
Esta é a razão por que não se pode dela dizer
‘ Pena que é um jogo, nada mais...” Aposta num
invisível, num ausente, num futuro. Que diferença
isto faz? Acontece que esta esperança transfigura
os corpos, fazendo-os amar, dançar, sorrir, dormir.
E eles ficam como pássaros, lírios, crianças... E ex­
perimentam então o amor de Deus, ou Deus, como
amor...
“ A sublime loucura da esperança...”
Aqui está o que nos separa dos animais.

196
Não se trata de uma superioridade que tenha­
mos em relação a eles. Acontece que os animais
não precisam da esperança para usufruir os seus
corpos. Enquanto nós, sem a esperança, perdemos
também os nossos corpos, porque eles são apro­
priados então por demônios.
“ As ações de um animal estão ligadas ao seu
futuro e ao futuro de suas crias, mas somen­
te o homem imagina o futuro. A represa de
um castor se estende num reino temporal, mas
a árvore que foi plantada vai fundo, com suas
raízes, no mundo do tempo, e aquele que
planta a primeira árvore é aquele que, um dia,
esperará pelo M essias” (Martin Buber, The
knowledge of man, p. 66).
Platão inventava mitos a fim de decifrar enig­
mas. Explicou que Eros era filho de Penia e Poros.
O Amor nasce da união entre pobreza e necessi­
dade, de um lado, e abundância e energia, do outro.
Assim as coisas ficam claras. Para se desejar é
necessário não ter. O desejo existe no lugar da
ausência e da privação. Não se pode sentir sauda­
des da mulher amada tendo-a nos braços. Não se
pode desejar ouvir a “ Appassionata” no momento
em que ela está sendo executada. Por outro lado
não se pode ter saudade de alguém cuja presença
não foi usufruída no passado. Não se pode desejar
ouvir a “ Appassionata” se, no passado, não se ex­
perimentou a sua beleza. Daí a origem de Eros,
filho de uma experiência de plenitude, nunca para
ser esquecida, e da experiência da perda do objeto
amado, a despeito da memória...

197
Vamos continuar daí, do lugar do desejo e da
privação, para entender a esperança. Porque é jus­
tamente neste ponto que nos separamos dos ani­
mais. A relação do homem com o mundo que o
cerca, seja natureza, seja cultura, traz as marcas da
insatisfação. O Ego não encontra, no seu mundo,
objetos que correspondam à sua nostalgia. Daí a
rebelião, o conflito, a inquietação, o desejo, a
busca sem fim, temas que marcaram Platão, Agos­
tinho, Freud, Camus, Nietzsche...
E desta busca sem fim do desejo surge a ima­
ginação: representação dos objetos de amor, per­
didos, ainda não encontrados, ausentes. Assim, aqui­
lo que não tenho, mas desejo, eu represento através
da imaginação para que, pelo menos no mundo dos
símbolos a posse se realize, seja de forma substitu­
tiva, seja como aperitivo da esperança... E é por
isto que a imaginação nos faz felizes.
E da imaginação surgem os sonhos...
E da imaginação surgem as utopias...
E da imaginação surgem as preces pela vinda
do Reino de Deus, realização de sonhos e de uto­
pias, objetivação das nostalgias geradas pelo cora­
ção humano. Objetivações do Espírito, no futuro.
Acontece que o desejo não nos basta.
Nada mais triste que o amor impotente.
Nada mais triste que a nostalgia do exilado.
Os pais de crianças leucêmicas não perguntam
nunca aos seus filhos: “ Que é que você vai ser,
quando crescer?” Dizem, ao contrário: “ Se tudo
correr bem, iremos ao jardim zoológico no próximo

198
domingo” . Será, por acaso, que faltam a estes pais
desejos suficientemente intensos? Não. O proble­
ma não se encontra na intensidade do desejo. O
problema se encontra na dura consciência da inu­
tilidade do desejo.
Milhões de judeus marcharam mansamente
para as câmaras de gás. Faltava-lhes desejo de viver?
Ou estavam antes dominados pelo senso da inuti­
lidade do desejo de viver?
O corpo não se movimenta apenas pelo fas­
cínio do desejo. É necessário desejar, sim. Mas é
necessário crer, também, na possibilidade dos ob­
jetos do desejo. É necessário crer que há um poder
disponível, seja no poder do corpo, seja no poder
de muitos corpos, de mãos dadas, seja no poder
do Universo...
E é assim que, sob a magia do desejo e o
sentimento de poder, os corpos se levantam da le­
targia, para se exprimirem no trabalho, na dança, no
amor, no brinquedo, na luta, nos altares...
Mas, que nome dar a esta combinação de amor
e poder? Quando os dois se encarnam num corpo
não receberão eles, porventura, o nome de espe­
rança? Esperar: que significa isto senão desejar, na
firme convicção de que é possível... E chegamos
então a uma conclusão surpreendente. Por que esta
combinação de desejo e poder, na sua intensidade
mágica, não é a própria divindade? Deus: o objeto
que mais se deseja, a promessa da libertação do
corpo, unida ao poder máximo, infinito, a favor dos
homens. E esta é a razão por que a teo-logia não
é ciência do divino, mas fala que acontece na me­
dida em que as contas de vidro saltam entre o

199
amor e o poder, dando assim nomes aos objetos do
desejo e ao senso de poder, invocando a esperança,
apontando para Deus. Invocar esperanças, enviar
preces a Deus: não será tudo a mesma coisa, com
nomes diferentes?
Mas os ídolos também falam de esperanças.
Suas promessas entram fundo em nossos desejos,
e é por isto que eles têm o poder de enganar e
destruir.
Tudo se divide então, de forma simples e
bruta, entre os que sorriem para o futuro e pasto­
reiam esperanças, e aqueles que têm medo do fu­
turo e desejam abortá-lo, esmigalhando sementes,
arrancando brotos...
Os ídolos anunciam o seu programa.
Preservar o passado, no futuro.
Impedir o advento do futuro.
É preferível engordar que engravidar: filhos
podem assassinar os seus pais.
Viver olhando para trás, como a mulher de Ló.
Crucificar os que inventam uma virtude nova.
Garantir que o amanhã será como ontem. Os
mortos devem continuar a mandar no mundo dos
vivos.
O passado é a lei.
Fatos são valores. O que é, é o que deve ser.
Ai dos que se rebelarem. Ai dos que se atre­
verem a ser diferentes. Ai daqueles que anunciarem
coisas novas.
É bem possível usar, também aqui, a palavra
esperança. Mas palavras são bisturis, que podem

200
curar ou matar. Tudo depende de quem as usa. As
esperanças construídas sobre o poder são muito
diferentes das esperanças que nascem da impotên­
cia. E os ídolos proclamam:
“ Quem não tem poder não pode ter esperanças.
Quanto maior o poder, maior a esperança.
Quando tivermos poder, então, teremos es­
perança.
Temos poder, por isso esperamos” .

Esperança: criatura da justificação pelas obras.


Movemo-nos no mundo da racionalidade po­
lítica, da ética do trabalho, da moralidade da efi­
cácia, das previsões da futurologia. O futuro se
constrói sobre o presente. Que o presente se pre­
serva, infinitamente aperfeiçoado, no futuro. E o
corpo se encolhe sob o imperativo da disciplina,
transformado em meio para o futuro. E assim, por
medo do futuro, que carrega a morte em seu colo,
o homem aceita morrer em vida, para exorcizar o
futuro. Vai-se o brinquedo, abole-se o “ sabath” .
Os que carregam nos ombros o seu futuro não têm
permissão para o sono. Carga pesada, mesmo para
gigantes. A ansiedade não descansa enquanto mas­
tiga a carne e os pensamentos daqueles que dese­
jam perpetuar-se no futuro.
Mas há uma outra esperança que só nasce
em mãos vazias, entre aqueles que nada invocam
e nada trazem consigo, como pontes para o futuro.
Futuro, evento de graça, que depende de um po­
der que não o nosso: futuro que vem ao nosso
encontro.

201
14. Variações...
E Abraão leva seu próprio filho para o sa­
crifício,
caminhando, de mãos vazias, para um futuro
que ele amou em seus sonhos...
E os profetas, a despeito de tudo, das pro­
fundezas da impotência do cativeiro, cantaram um
futuro que não poderia nascer deles, mas lhes seria
dado...
... e passaram a ver o futuro como Mistério
gracioso, possibilidade impossível, como se uma vir­
gem pudesse dar à luz, ou os universos pudessem
vir a ser pelo poder da Palavra, ou os mortos pudes­
sem ser ressuscitados.
E Jesus proclama que o futuro chegou.
Não, não ensina um novo caminho, não anun­
cia uma nova sabedoria, não prega uma nova mo­
ralidade, não apregoa uma nova ética social ou uma
nova opção política.
Ele grita que o Reino chegou, do futuro, inva­
dindo o presente... Coisa curiosa. Sempre pensa­
mos que o tempo fosse um rio fluindo sem parar
e nós, navegantes, indo do passado para o futuro.
E agora se diz que do futuro, do não ainda, vem
alguma coisa. Quebra-se a continuidade do passa­
do, rasgam-se as mortalhas herdadas, rompe-se o
domínio dos mortos. Surge um novo tempo, não
da história dos homens, mas da graça de Deus, do
inesperado do Mistério...
Sim.
“ Do futuro nos vêm ventos trazendo secre­
tas batidas de asas; e boas novas são procla­
madas aos ouvidos sensíveis bastante para

202
ouvir. Na verdade a terra ainda se transfor­
mará num lugar de recuperação. E mesmo
agora já a envolve uma nova fragrância, tra­
zendo salvação — e uma nova esperança” .
Compreendo que as almas piedosas terão tre­
mores de espanto ante a ousadia insólita de invo­
car Zaratustra como profeta do Messias. Tenho de
reconhecer que ele não usa os nomes que o pas­
sado nos legou. Mas, por vezes, não será necessá­
rio esquecer os nomes velhos para se ouvir as can­
ções do futuro? Como redescobrir o terror e o fas­
cínio das montanhas sagradas se os bezerros de
ouro continuam a ser adorados? Mesmo palavras
podem transformar-se em ídolos.
É surpreendente. Quão próximos e quão dis­
tantes se encontram os mundos da política e da fé.
A política vai até onde alcança o poder do
corpo.
Aqui se define um mundo secular, vazio de
mistério e de deuses. Malinowski observou que os
cerimoniais mágicos só aconteciam, na cultura que
estudou, quando os homens tinham de se aventu­
rar mar a dentro, no imprevisível das águas, no
imprevisível do vento. O corpo é muito fraco para
enfrentar o poder do mar. Por isso se invocavam
poderes de mais além. Ao contrário, quando a
pesca se fazia nas lagoas calmas, o corpo e as
mãos dadas eram suficientes. Não se celebravam
rituais de magia...
Parece que é assim que acontece, sempre.
Quando o homem se sente forte, ele se espa­
lha pela técnica e pela política, definindo um

203
mundo marcado pela afirmação confiante: “ Eu
posso” . E a realidade vem a ser como expansão e
afirmação de um corpo auto-suficiente.
Quando, porém, as forças faltam,
quando a morte se instaura, irredutível e fi­
nal, seja no próprio corpo, seja no corpo de quem
se ama,
quando o corpo se descobre doído e impo­
tente, nas garras do torturador, nas vésperas da
execução, no campo de batalha, no navio que
afunda,
quando o mundo inteiro começa a ruir ao
nosso redor,
aí já não mais se pode esperar um futuro, dá­
diva do corpo.
Qualquer futuro sorridente só poderá acon­
tecer
a despeito do corpo,
a despeito da impotência,
como surpresa,
como graça,
como dádiva de um Outro
que ama o nosso corpo:
o Messias.
Como se equivocou Freud, nosso irmão mais
velho. Afinal, todos têm o direito aos equívocos.
Assim aconteceu com Lutero, Calvino, Kant, Hegel,
Marx... É. Equivocou-se. Ele pensou que a reli­
gião era uma manifestação de ilusões que os ho­
mens têm acerca de sua própria onipotência. Acon­
tece, entretanto, que se os homens se julgassem
onipotentes eles não teriam necessidade de invocar

204
os deuses. Malinowski viu o outro lado da ques­
tão: os deuses são invocados dos lugares da fra­
queza. Os deuses começam quando termina o
braço...
E assim se definem dois mundos, dois futu­
ros, duas visões de esperança. Mas uma é a fala
dos ídolos; outra, a promessa do Messias.
O lugar do teólogo?
Só pode ser o lugar do desejo.
É ali que nascem as esperanças.
É do desejo que se fundem os ídolos, mas é
do desejo também que brota a nostalgia pelo
Messias.

Acontece, entretanto, que nos tornamos inca­


pazes de reconhecer o nosso desejo. Esta é a lição
número um da psicanálise. Nossos desejos se per­
deram num esquecimento imposto pela ordem do­
minante. Interditou-se dizer aquilo que amamos
pela simples razão de que não amamos aquilo que
a ordem dominante nos oferece. Dizer os nossos
desejos é reconhecer nossa condição de seres exi­
lados, fora de lugar, u/tópicos, encarcerados num
presente que reprime o corpo, seres que carre­
gam um projeto erótico/herético de libertação da
vida. Começando no corpo pequeno, limitado pela
pele, expandindo-se através dos espaços da socie­
dade, da natureza, até os confins do universo,
corpo grande, para se constituir no Corpo de Cris­
to, projeto utópico de transformação universal do
qual cada pequena transformação é um aperitivo,
uma celebração, um sacramento.

205
“ Sursum corda!
Erguei as almas!
Toda matéria é Espírito” . (Álvaro de Campos,
Poesias, p. 105).
Por malditos que são, nossos desejos pas­
saram a ser não ditos e assim, eles têm de se dizer
sob a máscara das metáforas e das metonímias, sob
a proteção das névoas e inversões dos símbolos
oníricos, aparecendo como criaturas secretas e no­
turnas, ou fantasiados nos carnavais da arte, da
poesia, das canções, do humor, das procissões, das
romarias, dos rituais mágicos, das religiões popu­
lares, das festas, das celebrações...
E o teólogo, pastor de esperanças, descobre
que, a fim de realizar seu destino, é necessário pri­
meiro freqüentar os desejos dos homens de mãos
vazias, irmãos do Cristo, local de revelação, co­
lhendo-os e recolhendo-os com olhos e ouvidos
extasiados, em busca das confissões de amor que
eles contêm. Porque é desta matéria-prima que sua
fala vai sair, apenas para dizer em voz alta aquilo
que as profundezas dos homens geraram sem po­
der dizer.
“ Não sabemos orar como devemos. Mas atra­
vés dos nossos gemidos, profundos demais
para palavras, o próprio Espírito está pedin­
do por nós. E Deus, que não ouve as pala­
vras que dizemos com a boca, mas escuta o
não dito que vem lá do fundo, sabe o que é
que o Espírito quer dizer, pois que ele inter­
cede pelo povo de Deus do jeito como Deus
quer” (Paráfrase de Romanos 8,26-27).

206
E o nosso jogo, a teologia, se manifesta como
um esforço para dizer em linguagem articulada
aquilo que foi sentido como desejo. E o desejo
reprimido, libertado da escravidão, se transforma
em projeto de vida: direção de caminhada, hori­
zonte utópico, prece, a esperança do Reino de
Deus.
Assim, através do desejo e do discurso que o
diz como esperança, aparece uma realidade social
nova, que recebe sua vida dos sacramentos que lhe
servem as entidades do futuro. E Zaratustra me
fala de novo e tenho de deixá-lo falar, porque ele
diz o meu desejo:
“ Na árvore Futuro construímos nossos ni­
nhos; em nossa solidão águias nos trarão
alimento em seus bicos” (Nietzsche, op. cit.,
p. 210).
Mas os caminhos se partem de novo.
Aqueles que dançam, trabalham, rezam e lu­
tam ao som da flauta encantada dos ídolos, os se­
nhores do presente,
e aqueles que se esquecem do presente, na
árvore Futuro, porque o que importa é dar à luz
uma criança que o futuro gerou.
E talvez seja por isto que ninguém entende
a loucura da ética de Jesus, porque tentamos ex­
purgá-la do seu absurdo, tornando-a uma doce e
tranqüila sabedoria para pessoas amantes da famí­
lia, da paz, e do bom nome: como gozar as bên­
çãos de Deus neste mundo que está aí. Quando o
que Jesus propõe é que ignoremos as exigências
deste mundo que está aí e nossos corpos sejam

207
possuídos pelas exigências do Reino de Deus que
se anuncia.
A questão é o lugar do corpo.
Donde vêm os estímulos que o fazem dançar?
Dos gestos do presente? Dos imperativos do
presente século mau? Concederemos ao inimigo a
iniciativa? Será o nosso gesto apenas a resposta,
ainda que nos seus contornos negativos, àquilo
que o presente nos propôs, seja como suborno,
seja como desafio? Aquele cujo comportamento se
restringe à negação do gesto opressor está conde­
nado a ser reacionário, não importa a radicalidade
de sua fala. Porque ambos têm suas raízes no
presente.
E é por isto que Jesus propõe um abandono
radical dos cálculos da prudência. As lealdades fa­
miliares, a bofetada do inimigo, os mortos, os cré­
ditos morais, a cuidadosa previdência em face do
futuro, o trabalho árduo: tudo isto se esvazia de
sua aura moral. O que se exige é que o momento
seja uma presença do futuro, o corpo uma encar­
nação do Reino, a vida uma expressão de li­
berdade...
A teologia é fala que faz parte desta obediên­
cia ao futuro. Se ela olha para o passado é porque
ali encontra sinais, paradigmas, precursores, com­
panheiros de mesma fala. E ela re-diz as memórias,
para invocar um novo futuro para os vivos.
E os corpos que dançam ao som de melodias
que lhes vem do futuro se dão as mãos, e eles
falam entre eles palavras com as quais se joga o
jogo das contas de vidro e se pode ver, em suas

208
celebrações, os sacramentos do futuro e os gestos
rotineiros e heróicos que anunciam que “ o Reino
de Deus já chegou” .
Claro. Tudo isto é uma esperança.
Mas sobre tal esperança se fazem apostas.
E as vidas ficam diferentes...
BIBLIOGRAFIA

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2 1\
.
ÍNDICE

pág.
7 Introdução
13 Teologia como “ Variações sobre um tema dado”
31 O tema: a ressurreição dos corpos
53 O corpo dos sacrificados
73 A magia da palavra
91 A heresia da verdade
111 A verdade da heresia
129 Estórias que despertam o amor
147 Na companhia dos bufões...
165 ... e das crianças
189 Os desejos, os sonhos, as utopias, o Reino
211 Bibliografia

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