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Gêneros

digitais:
muito além do hipertexto

Francisco Alves Filho


Linguística textual e ensino em Língua Portuguesa
Leonor Werneck dos Santos
Rohnny Lima
Paulo Ramos
Os gêneros digitais vêm desafiando linguistas e
professores: por um lado, os teóricos que se propõem a
aplicar aos textos que circulam na rede as teorias
utilizadas em gêneros orais e escritos tradicionais
veem-se diante de problemas de ordem
epistemológica e metodológica; por outro lado,
professores dos mais variados níveis constatam, nas
salas de aula, como os gêneros digitais seduzem os
alunos, mas nem sempre sabem como adaptar os
conteúdos ao novo formato e à nova dinâmica da web.

Nesse capítulo, os autores fizeram análises de


elementos textuais-discursivos em diversos gêneros
que circulam no meio digital, destacando aspectos
relacionados à coerência, multimodalidade,
referenciacão, leitura, hipertexto, suporte e inferência.
Relações entre significado
e hipertexto
A construção de sentidos é motivada por uma
multiplicidade de conceitos e imagens sugeridos
nos textos. Entendemos que palavras são
elementos caracteristicamente hipertextuais,
pois cada uma delas aponta e desperta
potencialmente variados sentidos, conceitos e
imagens. O fato de que não há palavra com um
único significado reforça a suposição de sua
hipertextualidade, e esse caráter hipertextual se
torna ainda mais vivo em termos de virtualidade.
Hipertextualidade dos sentidos
Segundo Levy (1993), os sentidos é que apontam uns para os
outros, ligando-se entre si, de tal modo que escutar uma palavra
ativa na mente do ouvinte uma rede de outras palavras, de
conceitos, de modelos, mas também de imagens, sons, odores,
sensações proprioceptivas, lembranças, afetos etc.
Notemos a relevância pragmática de jogos e brincadeiras com
palavras: vivificar uma rede semântica estimulada por uma única
palavra só é possível porque a nossa memória é formada por uma
grande rede heterogênea que, quando provocada pelos textos, é
capaz de “disparar a projeção de um espetáculo multimídia na tela
de sua imaginação” (Levy, 1993).
Essa ideia pode ser pensada como uma noção sugestiva
para trabalhar com leituras de texto em sala de aula, porque
induz a pensar o processo de leitura não como algo apenas
centralmente racional e verbal, mas também sensorial e
multimodal (ou multimidiático). A leitura pode ser uma ação
capaz de fazer com que, a partir de estímulos verbais,
pensemos em imagens, sons, movimentos e sensações
decorrentes das associações que criamos.
A construção de sentido de um texto depende de uma rede
hipertextual centrada na memória e se realiza de modo
hipertextual, reportando-se a outros textos, imagens e
memórias. Por isso entende-se que ler é um processo ativo
e criativo, mas sem esquecer sua natureza multissemiótica e
multissensorial.
Os hipertextos não são recursos radicalmente novos, surgiram há muito tempo, quando se inventou a
imprensa. Do ponto de vista cognitivo, todos os textos são hipertextuais, já que na nossa mente os textos
não se processam linearmente como no texto impresso ou oral.

Ao compreendermos textos, agimos de modo hipertextual, saltando informações e fazendo associações


com informações presentes em outros textos que não o que estamos a ler ou ouvir. Contudo, embora o
hipertexto não apresente um centro capaz de determiná-lo, nem uma unidade com fronteiras nítidas, ele “é
um feixe de possibilidades” possíveis, mas “não aleatórias”.

A novidade do caráter intertextual nos gêneros digitais é o fato de que, em função do conjunto de recursos
disponíveis para uso nesse ambiente, o autor de um texto pode sugerir uma quantidade potencialmente
maior de links entre textos.

Os textos digitais exibem uma quantidade importante de links em vários pontos da estrutura textual, o que
funciona como um convite para o leitor “ir beber em outras fontes”. A presença marcante de hipertextos
influencia a delimitação das próprias fronteiras textuais, dificultando reconhecer onde começa e termina
um texto.
Intertextualidade
estilística/multimodal

Disponível em: https://twitter.com/FilosofiaMderna/status/1290774366762995713. Acesso em: 21 set. 2023.


Disponível em: https://twitter.com/FilosofiaMderna/status/1290774366762995713. Acesso em: 21 set. 2023.
Gêneros digitais
Gêneros têm sido considerados ações sociais tipificadas, produzidos
coletivamente nas interações sociais (Miller, 2009; Devitt, 2004).
São caracterizados principalmente em função de seus propósitos retóricos
(finalidade a que devem atender em contextos semelhantes). Desse modo,
dizer que o e-mail é um gênero implica considerar que ele é usado em
situações recorrentes – por exemplo, na interação entre alunos e
professores –, para que estes sujeitos realizem ações previsíveis, como
auxiliar a gerenciar as atividades de sala de aula.
Uma análise de gênero adequada e culturalmente significativa não pode
desconsiderar as funções e ações que são pretendidas por aqueles que constroem
os textos de um dado gênero.
É muito comum que, ao falarmos de gêneros da internet, logo pensemos na
velocidade e na mudança, o que nos leva dizer um tanto apressadamente que nesse
espaço os gêneros são voláteis, dinâmicos e mudam muito rapidamente. De um
certo ponto de vista, isso é verdadeira, principalmente quanto aos recursos
tecnológicos e à agregação de múltiplas funções técnicas ligadas a diversas
semioses, como imagem, som e filme.
Entretanto, mesmo num ambiente de intensa mudança tecnológica, se prestarmos
atenção aos usos e propósitos comunicativos, veremos que também existem
recorrências e estabilidades nos textos do meio digital. Por exemplo, usamos os e-
mails para atender a propósitos que antes eram realizados por bilhetes, cartas,
faxes, o que indica nem sempre haver mudança funcional gêneros, embora o estilo e
a tecnológica apresentem novas características e facetas.
Transmutação de gêneros orais e escritos (Marcuschi,
2008)

Embora haja gêneros genuinamente digitais, como blogs e perfis em redes sociais, a maioria absoluta
dos gêneros presentes na internet resulta de uma adaptação a esse meio de gêneros que circulam em
outras mídias, como, por exemplo, notícias, artigos científicos, contos e tantos outros. Os gêneros na
internet favorecem um agir conjunto, que, por sua vez, favorece o surgimento de padrões de linguagem
e padrões genéricos.
Pensando novamente nos e-mails, não parece apropriado defender que exista apenas um único tipo de
e-mail já que, sendo usado por comunidades diferentes, é possível que subconjuntos de e-mails
atendam a objetivos diferentes, apresentem estilos e estrutura diferentes e versem sobre temáticas
bem diversas entre si.
Uma sugestão que o texto dá é que podemos nomear esse gênero acrescentando um adjetivo que
indique o contexto/comunidade discursiva atrelada a ele: E-mail profissional, e-mail institucional de
empresas, e-mail profissional de médicos, e-mail acadêmico de alunos e professores. Esse recorte
aumenta a probabilidade de recorrências e estabilidade relativas.
Um conceito importante para entender e ensinar gêneros digitais é o de Affordances (ou
propiciamento, na tradução de Paiva, 2010). Affordances são aquilo que está disponível num meio para
utilização pelas pessoas, algo com potencial para a ação e que emerge quando interagimos com o
mundo físico, social e virtual. Affordances tantos nos possibilitam fazer cosias como restringem aquilo
que pode ser feito; no caso específico de um aplicativo de e-mail, podemos considerar como
Affordances: definição do assunto da mensagem; anexação de outros textos à mensagem principal;
criação de assinatura padrão a ser usada automaticamente; busca por mensagens e conteúdos
anteriores; comunicação unilateral ou multilateral; ocultação de endereços eletrônicos, de modo que um
destinatário não tenha acesso aos endereços dos outros; reencaminhamento de um remetente a outro
etc.
Essa diversidade de affordances nos leva a pensar que aprender a se comunicar via e-mail não se
resume ao uso adequado da linguagem escrita para a criação do corpo da mensagem, mas inclui
habilidades para lidar com uma série de affordances que nos auxiliam a realizar ações, otimizar o tempo,
contatar pessoas diversas etc.
Gêneros digitais na
escola
Podemos constatar que há especificidades na organização
textual-discursiva dos gêneros digitais, e não há como
negar a importância de trabalhar na escola esses gêneros e
suportes digitais, mostrando aos alunos como eles se
estruturam, quais as suas características mais marcantes,
como lê-los e produzi-los. Alguns livros didáticos de ensino
fundamental e médio já incluem análise e produção de
gêneros digitais, o que mostra a necessidade de, cada vez
mais, articular ao ensino as pesquisas sobre hipertexto.
Porém, quando discutimos a inserção dos gêneros digitais
na escola, em qualquer nível de ensino, vários
questionamentos se impõem: o que considerar como
gênero e como suporte – aspecto material, por onde
circulam os textos em seus diferentes gêneros (e-mail é
gênero? Blog é suporte?), quais gêneros privilegiar e como
nomeá-los (post/postagem, e-mail/mensagem eletrônica...),
como formatá-los (cada retirada desses textos do seu
suporte de origem implica reconfiguração e mesmo
releitura), que aspectos linguísticos e textuais abordar.
Devemos ter claro o que podemos chamar de gêneros
digitais, como eles se organizam e onde circulam, e
podemos vislumbrar uma série de atividades para nossos
alunos, enfatizando a leitura, a percepção de affordances, a
observação das peculiaridades dos suportes.
Percebemos, assim, que, se no dia a dia já é difícil
Os gêneros que circulam na internet se delimitar diferenças entre fala e escrita, na internet
configuram de maneira bastante peculiar: ora esses limites ficam ainda mais fluidos. Comparando
estamos diante de um texto, como um editorial, textos variados, Marcuschi (2001) defende que o
que pode circular tanto na rede quanto em jornal importante é observarmos o continuum
impresso (portanto, um texto que não costuma oralidade/escrita, pois alguns textos são mais
ter marcas de oralidade); ora lemos textos prototipicamente escritos, outros mais orais, mas a
especialmente elaborados para a internet, maioria se encontra no meio-termo. Na internet,
misturando marcas de oralidade com elementos ocorre o mesmo, e essa é uma das características
típicos da rede, como hashtags (#), emoticons, linguísticas que constituem os gêneros digitais.
comunicação rápida e instantânea; ora Mostrar aos alunos como essas marcas específicas
deparamo-nos com textos que simulam uma da internet se ajustam a marcas que costumamos
conversa e, por esse motivo, mesclam chamar de oralidade para compor textos escritos
na rede é uma atividade que, além de mostrar
propositalmente marcas típicas da fala em
aspectos importantes para a leitura e a escrita dos
textos que, por estarem na internet,
gêneros digitais, colabora para desmitificar a
apresentam-se como escritos, como é o caso de
imagem de que o texto escrito é sério, formal,
conversas via MSN ou Facebook.
correto, normativo, enquanto textos marcados pela
oralidade são o oposto.
Outro tópico interessante a ser trabalhado na escola é a referenciação. Se pensarmos em mensagens
eletrônicas, um dos aspectos peculiares, e que se repete em outros gêneros, como postagens em
Facebook, por exemplo - é a pressuposição de que cada mensagem deve ser compreendida não
isoladamente, mas no conjunto da troca de mensagens precedentes e subsequentes. Essa interrelação
de textos assincrônicos também ocorre em outros gêneros interpessoais, como cartas, porém em
gêneros digitais isso fica mais explícito e, devido à agilidade da troca interativa, mais perceptível.
Assim, processos referenciais como anáfora e dêixis passam a ser percebidos sob uma ótica diferente
pelos interlocutores. Em linhas gerais, as anáforas recuperam objetos de discurso explicitados ou não no
cotexto: no primeiro caso, temos anáforas diretas; no segundo, indiretas. Caso tenhamos um termo que
atue como anáfora resumitiva de uma porção textual, estamos diante de um encapsulamento (ou
anáfora encapsuladora). Já a dêixis é tradicionalmente classificada como as referências textuais
associadas a coordenadas de tempo, espaço e pessoa.
Assim, podemos observar que, se é verdade que, diante de qualquer texto, sempre precisamos fazer
inferências, no caso de gêneros digitais interpessoais, como as mensagens trocadas via e-mail, a
sobreposição das mensagens interfere sobremaneira no acionamento de inferências, potencializando-as,
posicionamento defendido por Costa (2007).

Podemos encontrar outra abordagem de referenciação nos gêneros digitais, importante para o ensino, em
Xavier (2013). Segundo o autor, os hiperlinks comumente encontrados em sites também funcionam como
mecanismos do que se poderia chamar de "referenciação digital", que consiste no "encapsulamento de
significação", colaborando na coesão e na coerência do hipertexto. Como é necessário fazer inferências não
apenas para decidir em que link clicar-leve a um material verbal, não verbal, multimodal... -, mas também
para relacioná-lo ao resto do texto, constatamos a complexidade que é fazer uma leitura em ambiente
virtual.

Há vários caminhos para iniciar a abordagem de gêneros digitais em sala de aula. Seja mostrando aspectos
linguísticos que os caracterizam, seja revelando objetivos e peculiaridades desses gêneros e suportes, seja
destacando aspectos específicos de sua constituição - as affordances, uso de hashtags etc. -, ou ainda
sensibilizando os alunos para a multimodalidade tão presente na internet. Resta ao professor selecionar o
caminho mais adequado à sua turma, conforme o conteúdo programático e os objetivos que pretende
alcançar.
Considerações finais

Pretendemos mostrar, neste capítulo, as múltiplas possibilidades de


abordagem escolar de leitura, análise linguística e produção dos
gêneros digitais. A compreensão desses gêneros depende de
perceber mensagens assíncronas, acessar links e ícones, viajando
para páginas que não necessariamente estarão conectadas entre si,
ultrapassando os limites convencionalmente atrelados à leitura. Isso
faz com que o próprio conceito de coerência se dilua, pois cada leitor
fará um percurso diante das opções que estão à sua frente, o que
pode acabar por dispersá-lo.
Porém, outra maneira de interpretar essa "dispersão" é considerá-la constitutiva da leitura on-line, uma
nova possibilidade de compreender os materiais textuais, muitas vezes multimodais, que circulam na web.
A própria configuração desses gêneros, que ainda causa estranhamento a muitos usuários, precisa ser
observada com atenção, pois os alunos geralmente nativos digitais - navegam na rede, consomem e
produzem materiais on-line, mas nem sempre compreendem como adequar a linguagem e organizar
textos como e-mail, postagens em blogs, conversas via Facebook. Até mesmo a etiqueta on-line é
específica.
Mas, em vez de considerar a internet como inimigo ou temer a dificuldade de abordar os gêneros digitais,
os professores podem considerá-la uma aliada. Afinal, talvez o grande elemento democrático da internet
seja exatamente a liberdade que ela desencadeia, por proporcionar ao leitor a experiência única de criar
seu próprio percurso de leitura.
Muito obrigado!
ALVES Fo., Francisco; SANTOS, Leonor W. dos; RAMOS, Paulo. Gêneros

Referências digitais: muito além do hipertexto. In: MARQUESI, S.; PAULIUKONIS,


Ma. A.; ELIAS, V. (org.). Linguística textual e ensino. São Paulo: Contexto,
2017. p. 165-184. ISBN: 9788572449915.

AZEVEDO, Ana Claudia Oliveria; PEREIRA, Márcia Helena de Melo. A


intertextualidade em hipertextos: uma análise de tweets de cunho
didático. Revista Texto Livre, 2021. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/tl/a/dQBvz4rHjVXpnCzkHhMJJ3g/?
format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 21 set. 2023.

LÉVY, P. As Tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na


era da informática, Rio de Janeiro: Editora 34, (1ª ed 1990), 1993

DEVITT, A. Writing Genre. Carbondale: Southern Illinois University


Press, 2004.

MILLER, C. R. Estudos Sobre gênero textual, agência e tecnologia.


Recife: Ed. UFPE, 2009.

PAIVA, V. L. M. O. Propiciamento (affordance) e a autonomia na


aprendizagem de língua inglesa. In: LIMA, D. C. Aprendizagem de língua
inglesa: histórias refletidas. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010.
Disponível em: <http://www.veramenezes.com/affordance.pdf>. Acesso
em 5 maio 2014.

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