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Representações Da Loucura Feminina em A Mãe Da Mãe de Sua Mãe e Suas Filhas
Representações Da Loucura Feminina em A Mãe Da Mãe de Sua Mãe e Suas Filhas
loucura feminina
em
A mãe da mãe
de sua mãe
e suas filhas
Representations of female madness in The mother of the mother of her mother and her daughters
Foucault (1978, p.143) lembra que normalmente No que se refere à personagem Damiana, o seu
é a família, a vizinhança e o cura da paróquia que comportamento, considerado transgressor, ultrapassa a
são convidados a dar seus depoimentos a respeito sua condição de esposa, pois ela se envolve em atividades
do sujeito tomado como louco. Os parentes mais políticas a favor da República, fato que, por outro lado,
próximos têm maior autoridade para fazer valer suas também contraria o marido, que deseja castigá-la pela
queixas ou apreensões no memorial em que pedem o sua participação em reuniões republicanas, conforme se
internamento, daí a importância da denúncia do marido vê na passagem seguinte: “Não queria tornar pública a
na segregação da esposa. O que chama a atenção infâmia, mas queria castigar a adúltera que organizava
na denúncia de Belchior é que Damiana deveria ser reuniões políticas republicanas em sua casa, em sua
internada levando-se em conta implicações de natureza própria casa, casa de um súdito leal e honrado do rei.”
ética, pois ela é acusada de libertina, não praticante (SILVEIRA, 2002, p. 223).
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da religião, devassa e perdulária, devendo, portanto,
A narrativa deixa claro que a esposa também contraria o Para sequestrar bens, também se produz
marido do ponto de vista político, colocando-se em situa- o louco. O indivíduo que tudo teria para ser
ção oposta à dele ao defender a instauração da Repúbli- considerado normal, mas que por alguma
ca, enquanto ele se apresenta como um aliado do rei. Por intriga ou motivo escuso é declarado louco,
conta desses fatos, Belchior busca o apoio da Igreja para passa a ser submetido a tratamentos clínicos
conseguir internar a esposa Damiana em um convento: que deformarão seus comportamentos, suas
potencialidades de uso do corpo e da mente.
Procurou também o arcebispo e outros Acusar alguém de ser louco, e impor-lhe a
amigos de importância para fazer a denúncia internação, pode constituir estratégias para
e conseguir seu intento. [...] sem grandes se apoderar de seus bens e posições sociais.
dificuldades, e sem demora, consegue (BARROS, 2016, p. 59)
testemunhas falsas para comprovar o estado
calamitoso da mulher. O intendente, o Conforme destaca Barros (2016, p. 59), o louco, sob
arcebispo, o prelado acharam proveitoso essa perspectiva, é produzido do ponto de vista
concordar; é preciso que alguma coisa seja de uma moralidade e não diagnosticado por uma
feita com urgência. (SILVEIRA, 2002, p. 224). consciência médica. É o que ocorre com a personagem
da narrativa em análise, que acaba sendo declarada
Com o apoio institucional e de amigos influentes, o louca, irreligiosa, devassa e dissipadora, indigna da
homem consegue internar a esposa e passa a dizer sociedade, uma antissocial. Mas tudo não passa,
a todos que ela estava em tratamento de nervos. como vimos, de uma estratégia de Belchior para
Damiana acaba não tendo como se defender, já que foi internar a mulher e tomar posse dos seus bens. Assim
pega de surpresa, em um golpe armado pelo marido, Damiana não teria direito a nada:
que mentiu ao dizer que o padre queria vê-la e conversar
com ela. A mulher, mesmo desconfiada, foi ao convento Não pensem vocês que Damiana foi a
e, ao chegar lá, acabou sendo presa, sem condições de primeira ou a única esposa a ser presa em um
defesa. O que se observa, nesse caso, são as instituições convento. Essa maneira de se livrar da mulher
se unindo a fim de estabelecer um controle sobre era usada na época, quando o marido não
aquilo que consideram um perigo. Dessa maneira, o queria se divorciar da esposa para não dividir
Estado, a Igreja e a própria família somam forças para os bens, mas não se sentia com coragem
segregar Damiana, a quem denominam de subversiva. suficiente para matá-la de vez, ou queria
Na condição de indivíduo segregado, ela fica sem sua apenas, digamos assim, ministrar-lhe uma
identidade de sujeito ativo, tornando-se submissa aos lição. (SILVEIRA, 2002, p. 230).
preceitos da instituição em que foi aprisionada. Assim,
não oferece mais nenhum perigo à sociedade, como Como destaca a passagem supracitada, aquilo que
considerava o marido, que estava interessado também acomete Damiana é uma situação comum para a
nos bens da esposa e que, para tentar adquiri-los, julgou época, quando a mulher que transgredia as normas
ser necessário expatriá-la do convívio social, semelhante sociais, não se submetendo às vontades do marido, era
ao que observa o estudioso sobre as intenções de um acusada de louca. No caso de Damiana, o seu desejo
diagnóstico de loucura motivado por outros interesses: de separação aliado à sua militância política a remete
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a uma condição propícia para ser acusada de alienada,
fazendo-a perder a sua subjetividade para o estigma o que lhe acontecia. A luz translúcida que entra
da loucura. Isso porque ela não se deixa adestrar, pela pequena janela no alto começa a mudar
consoante ocorre com a maioria das mulheres ao longo de tom, a espalhar um amarelo mais denso,
da história: “Adestrar a mulher fazia parte do processo depois uma cor laranja-escura, quando ela
civilizatório” (DEL PRIORE,1995, p. 27), e a segregação ouve ao longe ruídos de ferrolhos se abrindo e,
acaba se tornando um componente desse processo. esperançada, grita mais forte: “Socorro, quem
está ai?...”, mas nenhuma voz lhe responde.
Quando finalmente é internada por conta de seu Só os sons de passos abafados no corredor de
comportamento transgressivo, Damiana é tratada de altíssimo pé-direito e a pequena portinhola da
forma desumana, como se fosse uma criminosa, já janela na porta de madeira maciça se abrindo
que a rotina do convento acaba se assemelhando em para deixar passar uma bandeja tosca com
muitos aspectos à de uma prisão: uma caneca de água, um pão, um prato de
sopa. (SILVEIRA, 2002, p.225).
Quando chega ao convento e é conduzida
por corredores sombrios e pedem que entre A situação de Damiana pode ser comparada à
em uma pequena cela e fecham a porta às condição de muitas mulheres que viveram presas,
suas costas e a trancafiam, ela fica atônita. A sem direito a nada, acorrentadas iguais a animais. É
princípio, não entende o que está acontecendo. possível estabelecer uma analogia entre o que aparece
Por alguns segundos, pensa na estranheza dos representado no romance e o que descreve Foucault a
hábitos da abadessa para receber suas visitas respeito do tratamento dados aos indivíduos segregados
no convento. [...] O tempo passa, no entanto, no período da grande internação, quando ele relata a
e aquela pequena ideia insinuada cada vez se forma como a comida era entregue as insanas:
demora um pouco mais, e quando ela decide
que efetivamente já se passara um tempo As loucas acometidas por um acesso de raiva
descabido, o pânico a invade de chofre e ela são acorrentadas como cachorros à porta
grita. Seus gritos aterrorizados ecoam no de suas celas e separadas das guardiãs e
longo corredor vazio. Nenhuma resposta. dos visitantes por um comprido corredor
(SILVEIRA, 2002, p. 224-225). defendido por uma grade de ferro; através
dessa grade é que lhes entregam comida e
A estrutura física do lugar em que a mulher é segregada palha, sobre a qual dormem; por meio de
tem semelhanças explícitas com a de uma prisão, ancinhos, retira-se parte das imundícies que
segundo relata o próprio texto literário: trata-se de uma as cercam. (FOUCAULT, 1978, p. 167).
cela pequena e sombria dentro da qual ela passa a viver
como se fosse um animal enjaulado. O internamento, Como podemos observar, as práticas usadas para
nesse caso, vai se transformando no modo de punição castigar as insanas, por não obedecerem às regras
para a esposa acusada de devassa, libertina e irreligiosa: institucionais, eram muito desumanas e cruéis. As
loucas mais furiosas eram expostas como animais e
Damiana não tem noção de quanto tempo essa humilhação conduz a punições exageradas. A
gritou, de quanto tempo passou ali entregue esse respeito, corroborando com o pensamento de
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ao terror de todos os terrores, o de não saber
Foucault, Goffman (2001, p.94) também comenta como De acordo com o narrador, isso só mudaria após a
os castigos eram desenvolvidos pelas instituições: independência do Brasil, quando ideias modernas
sobre a saúde e o aparecimento de leis específicas
Em muitas instituições totais, são aplicados determinaram que os cemitérios fossem feitos longe
castigos que não estão previstos nos das cidades. Nessas covas, com a decomposição dos
regulamentos. Tais castigos geralmente são cadáveres, eram produzidos gases que entravam pelas
aplicados numa cela fechada ou em algum janelas do convento e ajudavam na propagação de
outro local distante da atenção da maioria doenças, contribuindo ainda mais para a terapêutica
dos internados e da maioria da equipe da violência. Note-se como, no contexto da cena
dirigente. Embora tais ações possam não supracitada, o castigo vai se constituindo para Damiana
ser frequentes, tendem a ocorrer de maneira como uma prática à qual se atribui um aspecto
estruturada, como consequência sabida ou pedagógico, uma espécie de corretivo por meio do qual
suposta de alguns tipos de transgressão. se buscava o arrependimento, a conversão da mulher:
Nesse caso, A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas, por Os gritos de Damiana não param. Sua voz
meio da história de Damiana, acaba representando uma parece um jorro incessante de desespero,
terapêutica da violência que ao longo dos tempos acabou terror e indagação. Mais tarde ainda, quando
sendo designada para o sujeito insano. Em sua História da a escuridão começa a tomar conta da
loucura, Foucault destaca a violência empregada pelas pequena cela, ela escuta outra vez o barulho
instituições que tratavam os pacientes insanos como de ferrolhos se abrindo no fundo do corredor
animais. Esse modelo impõe-se nos asilos e lhes atribui e de novo sons de passos se aproximam.
seu aspecto de jaula e zoológico. No período estudado Abre-se a portinhola e é a boca cavernosa
pelo filósofo, mas também no contexto da personagem do arcebispo em pessoa que aparece na
em questão, colocada sob o signo de todos os desatinos pequena fenda para lhe explicar a situação.
menores, a loucura se vê ligada a uma experiência ética A pedido do marido e por decisão unânime
e a uma valorização moral da razão; mas, ligada ao das ordens civil e religiosa, ela estava ali para
mundo animal e a seu desatino maior, ela se demonstra se arrepender de sua vida dissoluta e de seus
desumana, como ocorre a Damiana conforme aparece hábitos devassos e corruptores. Seu tempo de
figurativizado na narrativa em análise: reclusão dependeria sobretudo dela, de seu
arrependimento e bom comportamento. Ele
Quando queriam castigar seu comportamento, esperava poder lhe dar a bênção para uma vida
no entanto, a transferiam para outra cela, a tranquila outra vez no seio de sua família, tão
pior cela do convento, a cela do horror cuja logo aceitasse seu papel e destino de esposa e
pequena janela não se abria para o mato, mas mãe segundo as leis da Igreja e da sociedade.
para um pequeno cemitério de indigentes (SILVEIRA, 2002, p. 225-226).
e escravos. Era seu inferno dos infernos.
(SILVEIRA, 2002, p.228). O discurso do arcebispo lembra o mundo correcional
dentro do qual as instituições se valiam da aplicação
No contexto em que se passa a história de Damiana, as de castigos a fim de corrigir os sujeitos considerados
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igrejas eram o lugar em que se enterravam os mortos. antissociais. Nesse sentido é que Damiana, segundo o
religioso, estava presa para se arrepender de hábitos perdeu nenhuma oportunidade de tentar fu-
considerados devassos, advertindo a ela que o seu gir. (SILVEIRA, 2002, p. 226).
tempo de reclusão dependeria de seu comportamento
em aceitar seu papel de esposa e mãe, como transmitia Ainda que sofra com a reclusão a que é submetida, Da-
a norma da Igreja e da sociedade. Refletindo sobre miana não demonstra arrependimento e não aceita a
contexto semelhante a esse, Foucault (1978, p. 163) situação que lhe é imposta, talvez porque desconhe-
observa que “a ordem de libertação é dada quando o cesse do que deveria fazer. Nesse sentido, a fuga apa-
perigo do escândalo está afastado e quando a honra rece como uma possibilidade sempre presente em seu
das famílias ou da Igreja não mais pode ser atingida.” pensamento, até morrer segregada, de tuberculose no
ano de 1822, dois dias após a Independência do Brasil.
A narrativa de Damiana revela, dessa forma, o poder Enquanto toda a cidade estava eufórica e em festa, a
do patriarcado e das instituições totais, demonstran- personagem é enterrada de forma simples, na presen-
do, por outro lado, a fragilidade da mulher frente às im- ça de alguns amigos, dos tios Mariano e Justino, de Iná-
posições sociais. Para que pudesse retomar ao convívio cio Belchior e da pequena Açucena Brasília.
familiar, social, se exigia da personagem o arrependi-
mento por algum erro que ela não cometeu. Exigia-se,
sobretudo, que ela não voltasse a se rebelar contra o 3. A loucura estigmatizada de Albertina
marido, solicitando dele o divórcio, colocando por es-
sa feita o patrimônio da família em perigo. Era preciso, No romance de Silveira, a personagem Albertina é a única
ao contrário, que ela adotasse uma identificação re- das mulheres que, de fato, recebe o diagnóstico de louca,
signada, por meio da qual não fosse acusada de macu- de um ponto de vista médico. Isso porque ela apresentava
lar a honra do esposo, dos familiares e da sociedade. características anormais, manifestando a total perda da
Dependia disso a sua volta progressiva ao mundo dos razão por meio de atitudes consideradas insanas. Esta
sujeitos considerados normais, o que no caso da perso- personagem aparece casada com Eudoro, personagem
nagem acaba não acontecendo: proveniente de uma família rica, sujeito preconceituoso e
que só pensava em gastar. A história se passa na época
Quando aceitasse sua situação, parasse com em que a greve geral dos operários em São Paulo se
os gritos e se comprometesse a adotar com estendia para o Rio de Janeiro; além disso, nesse contexto
tranquilidade esse período de repouso e refle- histórico, correspondente ao ano de 1930, observa-se
xão no convento, que era o que todos espera- que os tenentes já estavam se mobilizando nos quartéis
vam dela o mais rápido possível, poderia ser visando a um golpe de governo.
transferida para uma cela maior e ter a compa-
nhia de outras reclusas. Damiana, no entanto, Na representação da história de Albertina, observamos o
nunca aceitou a situação e nunca parou de gri- preconceito relacionado à doença mental, sobretudo no
tar. Quando ficou fraca demais, seus gritos sa- comportamento do esposo, que não queria que ninguém
íam entrecortados, roucos, mas ainda podiam soubesse da real condição da mulher, pois considerava
ser ouvidos nos longos corredores. E tampou- essa anormalidade uma mancha de vergonha:
co alguma vez, nem por um átimo de instante,
aceitou com resignação a vida do convento: Albertina, esposa de Eudoro, era doente
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por mais inútil, por mínima que fosse, nunca mental. Eudoro relutava em enviá-la para uma
clínica por não querer que ninguém soubesse da patriarcal em que o homem decide os destinos
doença da mulher, que considerava como uma da mulher. No caso de Albertina, essa situação de
mancha de vergonha. O próprio Gaspar não subserviência é agravada pela doença, que a silencia
sabia de nada. É bem verdade que frequentava ainda mais. A personagem é forçada a se ajustar aos
pouco a casa do irmão, mas sempre que o padrões estabelecidos pelo marido, que relutava contra
visitava via a cunhada, muito pálida, muito o internamento por não querer que ninguém soubesse
magra, de pouquíssimas palavras, ‘bom dia’, da doença da esposa. Nesse intento observamos que a
‘boa tarde’, ‘passe bem’. Parecia-lhe um visão da sociedade relacionada à loucura como doença
pouco doentia, mas acreditava que fosse coisa mental torna Albertina mais que um indivíduo anormal,
passageira. Não era. Tinha crises de violência, e uma incapaz social. Desse modo, a falta de apreço de
o esposo a trancava em um quarto isolado, de Eudoro, ao trancar a esposa em um quarto isolado,
onde tirava todos os objetos com que pudesse aponta para um espaço de exclusão, um lugar reservado
se ferir. (SILVEIRA, 2002, p. 306) para quando a personagem manifestasse suas crises.
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Referências bibliográficas SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise
Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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