You are on page 1of 8

A comédia de costumes

O consuetudinário e a sátira social em Molière

Josina Nunes Drumond


Pós-doutora em Literatura Comparada
pela Universidade Federal de Minas Gerais.

54 www.fatea.br/angulo
RESUMO:
A concepção do mundo como um grande teatro acontece
no reinado de Luís XIV. O soberano escolhe Molière como
comediógrafo oficial de sua corte. A Comédia, considerada
como espelho do mundo, reflete a atualidade da época. Partindo
do princípio de que o teatro é um instrumento educador da
sociedade, Molière se esforça em desvelar a ilusão cômica,
revelando as hipocrisias e as idiossincrasias de da sociedade.
Faremos uma incursão pela corte do Rei-sol, em torno da qual
gravitava a nobreza francesa e para a qual Molière produzia suas
comédias. Neste estudo faremos uma abordagem da comédia de
costumes e focalizaremos sucintamente a sátira social na peça O
burguês fidalgo. Por meio de personagens caricaturais, Molière
satiriza os vícios e os maus costumes da sociedade, provocando
o riso liberador (purificador).

PALAVRAS-CHAVE:
Molière comédia costumes sátira social

RÉSUMÉ:
La conception du monde comme un grand théâtre se passe dans
le royaume de Louis XIV. Celui-ci choisit Molière comme auteur
officiel des comédies, dans sa cour. La comédie, considérée
comme miroir du monde, réfléchit l’actualité de l’époque.
Croyant le théatre comme un instrument éducateur de la société,
Molière s’efforce à dévoiler l’illusion comique, en révélant les
hypocrisies et les idiosyncrasies de la société.
Nous ferons une incursion dans la cour du Roi-soleil, autour
duquel tournait la noblesse française, et pour laquelle Molière
créait sés comédies. Dans cette étude nous ferons un arbordage
de la comédie de mœurs et nous focaliserons rapidement la
satire sociale dans la pièce Le bourgeois gentilhomme. Par le
moyen des personnages caricaturaux, Molière satirise les vices
et les mauvaises habitudes de la société, en provocant le rire
libérateur (purificateur).

MOTS-CLÉ:
Molière comédie mœurs satire sociale
A C O M ÉD I A D E C O S T U M E S portanto intocável.
O C O N S U E T U D I N ÁR I O E A Na segunda metade do século XVII, na França,
S ÁT I R A S O C I A L E M M O L I ÈR E classicismo e barroco não se opõem radicalmente.
Eles se complementam como duas faces de uma
O consuetudinário medalha, como dois aspectos de uma realidade.
Molière viveu na França numa época em O classicismo, estado de espírito em sintonia
que a burguesia estava em plena ascensão, e a com o sistema ideológico dominante, impõe
aristocracia em decadência. Essa mudança era seus valores de absolutismo e ordem. O barroco,
provocada pela própria casa reinante, após o mais contestatório, introduz a diversidade e
marcante episódio da “Fronde” (revolução dos a fragmentação. A obra de Molière constitui
nobres 1648/1652). O Rei Luís XIV se empenhava um eloquente testemunho dessa síntese: ela se
em reduzir a atuação destes e abrir espaço aos manifesta dentro da sobriedade e da diversidade.
burgueses a fim evitar novo confronto. Ele fez Retrata uma sociedade calcada em moldes rígidos,
questão de atrair as grandes e poderosas famílias porém plena de contrastes. Isso se vê em peças
nobres das províncias para a corte, com o intuito como As preciosas ridículas e As sabichonas, em que
de cortar suas raízes feudais e diminuir sua ele ridiculariza a preciosismo, tão usual em sua
força. Construiu para eles, na corte, uma “prisão época. Em A escola de mulheres, mostra a absurda
dourada”, e os domesticou sob sua estreita rigidez na educação das moças; em Tartufo, a
vigilância. Para essa nobreza ociosa que gravitava hipocrisia, que, segundo ele, era o grande mal do
em volta do Rei Sol foram construídos os vastos século XVII. Em outras peças, como O Avarento, O
e magníficos jardins do palácio de Versailles. misantropo, O doente imaginário, os próprios títulos
Numa vida de prazer, intriga e subserviência ao indicam a caricatura de tipos sociais.
monarca, ela era contemplada com esplêndidas O mundo em que Molière viveu era
festas e espetáculos consecutivos. Era essa a extremamente hierarquizado. Por exemplo,
melhor maneira encontrada por Luís XIV para um duque tinha inteira liberdade de se vestir
mantê-la sob seu domínio. Para o entretenimento e de agir como um duque, mas não como um
dos nobres, contratou muitos artistas e entre os marquês. A concepção social de liberdade que
quais, Molière. A comédia encontrou um campo vigorava se resumia a: “somos livres porque
fértil naquela época. Segundo John Gassner, a somos subordinados”. Cada pessoa devia aceitar
única arte com possibilidade de êxito seria aquela sua função na sociedade, para que o “todo”
com o intuito de divertir. Para ele, “a grandeza funcionasse a contento. O bem comum e a
de caráter, a nobreza de espírito e os conflitos de estabilidade do Estado dependiam da harmonia
monta não estavam em consonância quer com o hierárquica.
princípio de subserviência ao Estado, quer com Os superiores não deveriam jamais se
o gosto escrupulosamente cultivado da corte.” envergonhar diante de seus subalternos, para
(GASSNER, s/d, p.315) não se igualarem a eles. Por exemplo, as cortesãs
Luís XIV via nas letras e nas artes os melhores banhavam-se nuas diante da criadagem; o rei
instrumentos de sua glória. Seu ministro Colbert fazia suas necessidades fisiológicas diante de seus
empenhou-se em fazer das artes e das letras um ministros, enquanto despachava, assentado em
tipo de serviço público destinado à celebração da um trono de fundo falso. Era motivo de honra,
grandeza da França e de seu soberano. O brilho para os nobres, o fato de serem convidados para
do Rei Sol foi tal que reduziu um século a 30 anos. enxugar o rei após o banho, para presenciar sua
Seu reinado, de cerca de três décadas, é ainda higiene íntima, ou para assistir ao seu despertar.
chamado de “o século de Luís XIV” . Dentro do princípio corporativista, o rei,
À medida que o rei continha o poder da chefe supremo, representaria a cabeça, à qual tudo
nobreza, agraciava com cargos públicos os estava subordinado. Cada um devia desempenhar
burgueses, detentores da economia. Por ironia o seu papel da melhor forma possível dentro da
do destino, foi justamente essa burguesia, sociedade, sem aspirar ao lugar de outrem. Era
impulsionada pela coroa, que detonou a revolução vedado aos pés (partes baixas) agir como peito ou
francesa, em nome da qual Luís VI e a rainha braços (partes nobres). Daí a punição ao burguês
Maria Antonieta foram presos e posteriormente que se fazia passar por fidalgo, na comédia O
guilhotinados em praça pública como reles burguês Fidalgo .”É verdade (diz o mestre de
mortais. Tal fato foi algo inusitado, pois, até então, música ao mestre de dança). Encontramos aqui
a figura do rei era considerada como divina, um homem como nos convém a ambos; renda fácil

56 www.fatea.br/angulo
nos proporciona o tal Sr. Jourdain, com as visões para mim emprestar dinheiro a um homem dessa
de nobreza e galantaria que meteu na cabeça. “ condição? Posso deixar de fazê-lo a um fidalgo
(MOLIÈRE, 1965, p.108) que me chama seu querido amigo?” (MOLIÈRE,
A vaidade, atributo da espécie humana, faz 1965, p.150)
com que burgueses queiram ser fidalgos, que O esperto fidalgo, ao pedir-lhe dinheiro
grandes senhores queiram ser príncipes, e que emprestado, alega: “Tenho muita gente que
príncipes queiram o título de reis. No mundo folgaria de emprestar-me; mas, como o senhor é o
barroco, a desigualdade era natural, e essa ideia meu melhor amigo cuidei que o agravaria se fosse
durou até a Revolução Francesa, que teve como pedi-lo a outrem”. (MOLIÈRE, 1965, p.156)
lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Sabe-se que muitos cortesãos arruinaram-se
No primeiro ato dessa peça, cena I, o Mestre no jogo e alguns deles tiveram que se exilar, para
de música continua: fugir de seus credores. Há seguras informações
(POUGEOISE, 1995, p.98) de que havia, naquela
Trata-se, com efeito, de um homem de poucas luzes, época, cerca de vinte mil nobres parisienses
que fala sem discernimento de todas as coisas, e só completamente sem recursos financeiros.
aplaude a contrassenso; mas o dinheiro lhe corrige os
O personagem Dorante representa, portanto,
julgamentos de espírito; há discernimento em sua bol-
sa; os seus aplausos são amoedados; e mais nos vale essa nobre classe arruinada; Jourdain representa
esse burguês ignorante, como o senhor está vendo, que o “nouveau-riche”, que aspira à ascensão social.
o grande fidalgo esclarecido que aqui nos trouxe (MO- Molière conhecia muito bem esses dois mundos;
LIÈRE, 1965, p.109) filho de um abastado burguês, com ótima
posição social, conviveu com a nobreza e com a
Entre os contemporâneos de Molière, burguesia ao mesmo tempo. Seu pai, encarregado
certamente havia muitos burgueses ricos e das tapeçarias reais, era um dos oito “valets de
poderosos que aspiravam à nobreza. Uma chambre tapissiers” do rei. Passava pelos menos
das maneiras mais usuais de se aproximar da três meses por ano no palácio real e tinha junto
aristocracia era por meio de enlaces matrimoniais dele seu filho, que o acompanhava para aprender
de ricos burgueses com nobres empobrecidos. Daí, o ofício. Molière estudou na melhor escola de Paris
o grande empenho de Jourdain em casar sua filha da época, o Collège de Clermont, onde padres
com um nobre. Esses matrimônios eram benéficos jesuítas descobriram nele a aptidão para o palco
para ambas as partes: representavam a ascensão e o estimularam para declamação de poemas
social para uma família e amparo financeiro para e representação de peças latinas, escritas pelos
a outra. professores. No momento de escolher uma carreira
A Sra. Jourdain demonstra seu desacordo profissional, duas opções se lhe apresentavam:
a respeito do casamento de sua filha com um seguir o ofício do pai ou a advocacia. Escolheu
fidalgo: uma terceira opção, para espanto de todos e
desgosto de sua família. Ator inato, fascinado
Pois é uma coisa em que não consentirei. As alianças pelo palco, entrou para uma companhia amadora
com pessoas mais altamente colocadas do que a gen- de teatro. Como essa atividade era malvista pela
te estão sempre sujeitas a desastrosos inconvenientes.
Não quero que um genro possa criticar-me a filha por
sociedade, Jean-Baptiste Poquelin decidiu mudar
causa dos pais, nem que os seus filhos se envergonhem de nome, para salvaguardar o status social da
de chamar-me de vovó [...] É próprio de um espírito família. Doravante passou a atender pelo cognome
mesquinho não querer erguer-se da baixeza (responde- de Molière.
-lhe seu marido). Não torne a replicar-me: minha filha Entusiasmado pela companhia teatral,
será marquesa a despeito de todo mundo; e, se me enfe-
zarem, fá-la-ei duquesa (MOLIÈRE, 1965, p.176)
investiu, endividou-se e acabou preso por uma
semana, acusado por seus credores. Depois disso,
criou uma “troupe” ambulante de teatro e durante
Outra maneira de se aproximar dos nobres
12 anos perambulou pelas províncias francesas. No
era a amizade “interessada”. Dorante, o nobre
sul, encontrou uma plateia habituada e afeiçoada
arruinado, extorquia vultosas somas do rico
à Commedia dell’Arte italiana. Adaptou-se a essa
Jourdain, pelo simples fato de eventualmente citar
realidade, criando farsas que primavam pela
seu nome junto ao rei ou às pessoas de sua estirpe.
rapidez do movimento, pela vivacidade da intriga
O burguês, por sua vez, se sentia extremamente
e pela improvisação dos atores. Eram desprovidas
lisonjeado por ser amigo de um homem de tal
de pretensões psicológicas, com truques e tipos
envergadura. Diante das reclamações de sua
caracteristicamente farsescos.
esposa, o burguês questiona: “E não é uma honra

Ângulo 135, out./dez., 2013. p. 054 - 061 57


Voltando em direção ao norte, estabeleceu- como se fossem seus. Além disso, sugere ao
se em Rouen, perto de Paris, onde conseguiu o burguês que ofereça à marquesa um belo banquete
patronato de um irmão do rei. Esse foi o trampolim em sua residência, com música e bailado, mas o
para a corte. Em pouco tempo, amparado pelo instrui a não mencionar os presentes enviados,
mecenato real, era o comediógrafo e o comediante pois seria de extremo mau gosto de sua parte, e a
preferido da corte. Os temas das peças eram marquesa ficaria aborrecida. Jourdain faz com que
muitas vezes solicitados pelo próprio rei. Nos sua mulher se ausente de casa no dia do jantar.
espetáculos teatrais exibiam-se a grandiosidade Porém, instruída pela criada Nicole, que havia
e o esplendor da monarquia. O mecenato real o ouvido a combinação dos dois amigos, ela volta
obrigava, às vezes, a improvisar suas obras em em má hora e ocasiona uma cena muito cômica.
prazos mínimos, em detrimento da qualidade Na cena II do ato IV, Sra. Jourdain surpreende
artística. Era o alto preço que pagava pela proteção seu esposo em pleno jantar, com música e dança,
do monarca. Críticos da época lamentavam que oferecido à marquesa, a quem faz a corte.
um gênio capaz de produzir excelentes obras tais
como O misantropo, Tartufo, Escola de mulheres, O SRA.JOURDAIN - Ah!Ah! que bela tropa encontro
avarento, entre outras, se desse ao trabalho de aqui,e, pelo que vejo, não me esperavam. Foi, então, por
fazer grosseiras imitações da comédia italiana. causa dessa linda festinha que o senhor meu marido fez
Molière deixou à posteridade um farto legado tamanha diligência para que eu fosse jantar em casa de
minha irmã? Acabo de encontrar um teatro lá embaixo,
que oscila entre excelentes comédias e farsas que
e topo aqui com essa patuscada. Assim gasta o senhor
deixam a desejar. o seu dinheiro, e assim banqueteia as damas em minha
ausência, e lhes oferece música e comédia, enquanto me
manda passear? (MOLIÈRE, 1965, p.186)
A S ÁT I R A S O C I A L
Esse tipo de cena (marido em companhia
A moralidade na comédia de Molière galante, surpreendido pela esposa), já clássica no
encontra-se mais em nível social e político do que teatro, termina geralmente em injúrias, brigas e
em nível de imoralidade ou licenciosidade dos pancadarias. Molière, ao contrário, criou uma cena
costumes. patética, em que o marido acaba sozinho em cena.
Molière ridicularizou tipos sociais da época A chegada brusca da Sra. Jourdain em pleno festim
em várias comédias e farsas, como em O avarento, ajuda ainda mais a conquista amorosa de Dorante.
A escola de mulheres, As artimanhas de Scapin, Tartufo, Mediante a acusação da Sra. Jourdain, de que
As preciosas ridículas, O misantropo, entre outras. seu marido esbanja seu dinheiro banqueteando
A sátira social em O burguês fidalgo é bem as damas em sua ausência, Dorante aproveita
conduzida graças aos personagens Dorante e o ensejo para mais uma mentira, afirmando que
Jourdain que encarnam práticas condenáveis aos quem está oferecendo o banquete à Dorimène é ele
olhos do autor. À crítica ao burguês que quer se e que o Sr. Jourdain apenas emprestou-lhe a casa.
tornar fidalgo a qualquer preço acrescenta-se a O dono da casa confirma a mentira, e Dorante
crítica ao fidalgo arruinado, capaz de tudo por uns vai ganhando cada vez mais espaço no coração
ducados. Por um lado, Dorante revela seu cinismo de Dorimène. A Sra Jourdain demonstra grande
demonstrando o pouco caso que dedica aos nobres equilíbrio defendendo os direitos de esposa e
sentimentos. Ele une a hipocrisia à mentira, e o mãe de família. Como porta-voz do autor, ela
cinismo à avidez. Além de extorquir dinheiro do denuncia a falta de honestidade da nobreza,
Sr. Jourdain, deve ao alfaiate, ao vendedor de cuja falsa respeitabilidade é usada para abusar
tecidos, ao plumista e ao seleiro. Por outro lado, o da confiança de pessoas ingênuas como o Sr.
Sr. Jourdain, como já foi dito, encarna o novo-rico, Jourdain. Dorante, além de pedir muito dinheiro
ávido por títulos e honrarias. Acredita que tudo emprestado ao burguês, acaba se casando de fato
pode ser comprado, inclusive o amor. Ser amante com a marquesa durante a festa organizada por
de uma marquesa seria um trampolim para sua Covielle, na presença de um tabelião, numa cena
ascensão social. Resolve fazer a corte a uma delas, combinada de antemão. O Sr. Jourdain acredita
indiretamente por meio de Dorante. Envia-lhe que se trata de uma brincadeirinha e apoia o
vários presentes, inclusive um caríssimo anel de casamento.
diamantes. Dorante finge ser intermediário nessa Na época em que Molière viveu, o chefe
história de amor, mas faz a corte à marquesa e de família era soberano em seu lar e escolhia
entrega-lhe todos os presentes do Sr. Jourdain os cônjuges para seus filhos. Esse é um tema

58 www.fatea.br/angulo
recorrente em muitas de suas peças, nas quais ele sempre em tom imperativo, usando esta forma
satiriza tal prática. Em O burguês fidalgo, Cléonte, verbal, e não aceita contradição à tirânica vontade
rapaz honesto e de boa família, pretende a mão paterna.
de Lucile, filha do Sr. Jourdain. Este, no entanto,
impõe uma única condição para a escolha de O Sr. Jourdain
seu futuro genro: que seja um fidalgo. Não se ...Aí está o marido que lhe dou.
preocupa em momento algum com os sentimentos Lucile
do candidato com relação a sua filha. Tampouco se A mim, meu pai!
preocupa com educação, moral, méritos pessoais, O Sr. Jourdain
família ou fortuna de seu futuro genro. Sim, a você; vamos, pegue a mão dele, e agradeça aos
Na cena XII do ato III, após um longo Céus sua felicidade.
discurso, no qual Cléonte pede a mão de Lucile Lucile
em casamento, Sr. Jourdain replica: Eu não quero casar
Sr. Jourdain
O Sr. Jourdain
Mas quero-o eu, eu que sou seu pai. (MOLIÈRE, 1965,
Aprovado. Aperte a minha mão, senhor, mas minha fi- p.204)
lha não é para seu bico.
Cléonte
Em O burguês fidalgo, a esposa é tratada pelo
Como?
marido com pouca consideração, sendo chamada
O Sr.Jourdain de ignorante, mas ela demonstra ser mais lúcida e
O senhor não é fidalgo, não terá a minha filha. mais perspicaz que ele. Tanto é que, no desfecho,
A Sra. Jourdain ela mantém inabalado o papel de mãe de família
Que significa essa história de fidalgo? Acaso descen- íntegra, enquanto que ele se vê totalmente
demos nós da costela de São Luís? (MOLIÈRE, 1965, ridicularizado, enganado por todos que o cercam.
p.174)
É a punição que sofre pela intolerância e pelo
endurecimento de caráter, tornando-se simples
Molière aproveita essa e outras peças teatrais, joguete à mercê do escárnio geral.
para condenar a tirania paterna. Jourdain, como Molière critica também a ignorância dos
muitos outros pais autoritários, dirige-se à filha burgueses de sua época retratados no personagem

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/38/Jean-L%C3%A9on_G%C3%A9r%C3%B4me_-_Louis_XIV_and_Moliere.jpg

Ângulo 135, out./dez., 2013. p. 59


principal. A total ignorância do aprendiz impede Puxa vida! Há mais de quarenta anos que faço prosa
os mestres de fazer seu trabalho, minuciosamente sem o saber! ... (MOLIÈRE, 1965, p.109)

preparado de antemão. Vejamos uma cena da aula


de filosofia: Molière satiriza também os filósofos, na pessoa
do mestre de filosofia. Ele aparece primeiramente
O Mestre da Filosofia como um pedante moralista imbuído de ciência.
... que deseja aprender Vossa Excelência? Sua linguagem é dogmática e enfática. Ele domina
O Sr. Jourdain a arte da oratória e se faz respeitar pelos demais.
Tudo o que puder, pois ando morto por ser sábio; e fico
Tenta apaziguar a querela entre os demais mestres.
fulo da vida porque minha mãe e meu pai não me fi-
zeram estudar todas as ciências, quando eu era moço. - Ora, essa! E será preciso exaltar-se dessa maneira?
O Mestre da Filosofia Não leram os senhores o douto tratado de Sêneca sobre
a cólera? Haverá porventura, algo mais baixo e vergo-
É razoado o sentimento: Nam sine doctrina vita est quasi
nhoso do que essa paixão, que faz de um homem uma
mortis imago. Vossa excelência compreende o que digo,
besta-fera? E não deve ser a razão a soberana de todos
e sabe latim, com certeza.
os nossos movimentos? [...] O sábio está acima de todas
O Sr. Jourdain as injúrias que se lhe podem assacar; e a grande res-
Sei, sei, mas faça de conta que não sei: explique-me o posta que se há de dar aos agravos é a moderação e a
que quer dizer isso. paciência.” (MOLIÈRE, 1965, p.126)
O Mestre da Filosofia
Isso quer dizer que Sem a ciência, a vida é quase uma ima- Os outros mestres tentam a princípio se
gem da morte. justificar e se fazer passar por vítimas até o
O Sr. Jourdain momento em que o mestre de filosofia lhes diz
Esse latim tem razão. (MOLIÈRE, 1965, p.129) que os três são muito arrogantes em considerar
a dança, a esgrima e a música como ciência, pois
O Sr. Jourdain aproveita a presença do mestre nem sequer podem ser consideradas como arte.
de filosofia para que este o ajude a escrever um Além disso acrescenta que seus miseráveis ofícios
bilhetinho apaixonado para uma pessoa de alta não passam de bufão, gladiador e cantor. A partir
estirpe, a marquesa pela qual ele se interessa. desse momento, os quatro partem para agressões
Questionado sobre se prefere o bilhete em verso verbais cada vez mais intensas e, em seguida, para
ou prosa, ele responde que não prefere nem uma as agressões físicas. O mestre de filosofia entra
coisa nem outra. em total contradição com a teoria que defende e
demonstra, pelo comportamento, a hipocrisia de
O Mestre de Filosofia querer ser superior aos demais.
Há de ser uma coisa ou outra. O rei pediu a Molière que incluísse na peça
O Sr. Jourdain
algo que ridicularizasse os turcos, para se vingar
do desdém do embaixador turco em visita à corte
Por que?
francesa. Molière aproveita-se da circunstância
O Mestre de Filosofia
para fazer uma leve caricatura das esplêndidas e
Pela simples razão de que só podemos exprimir-nos em
faustosas festas da corte do Rei Sol.
prosa ou versos.
Segue-se um levantamento da sátira social em
O Sr. Jourdain
algumas peças de Molière:
E só existem a prosa e os versos?
Escola de mulheres: A condição da mulher
O Mestre e de Filosofia
na sociedade; total obediência aos pais antes do
Só; tudo que não é prosa é verso; e tudo que não é verso
casamento, e total obediência ao marido, após. /
é prosa.
Educação antiquada, baseada na moral e religião
O Sr. Jourdain
/ burguesia satirizada na pessoa de Arnolphe:
E assim como a gente fala, o que é?
pretensioso, mesquinho, covarde, pusilânime, de
Mestre de Filosofia instinto dominador e possessivo.
É prosa. O avaro: burguesia / avareza / tirania paterna
O Sr. Jourdain / casamento de conveniência
Como? Então quando digo: “Nicole, traga-me os chi- Dom Juan: burguesia / religião / Médicos /
nelo e dê-me o gorro de dormir”, estou fazendo prosa? hipocrisia / gosto pela ostentação / moral cristã
O Mestre de Filosofia / superstição / caráter indissolúvel do casamento.
Está, sim senhor O misantropo: falta de sinceridade nas relações
O Sr. Jourdain sociais e afetivas / hipocrisia.

60 www.fatea.br/angulo
As preciosas ridículas: preciosismo (linguagem, se um homem sem escrúpulos, com o intuito de
esnobismo, orgulho, e simulação) burguesia / dourar novamente seu brasão. A concepção de
pedantismo / hipocrisia / nobreza / excentricidade amor e a imagem que Dorante tem das mulheres
da moda da época. revelam seu cinismo e seu pouco caso com relação
Tartufo: hipocrisia moral e religiosa / aos belos sentimentos, tal qual Dom Juan.
ingenuidade dos devotos / falsa devoção /
ambiguidade do cristianismo / tirania paterna.
As sabichonas: Preciosismo / autoritarismo / R E F E R ÊN C I A S
alta burguesia / escritores mundanos / pedantismo
BRAY, René. Molière; homme de théâtre. Mayenne: Mercure
intelectual. de France, 1992. 316p.
O doente imaginário. Burguesia / medicina / CORVIN, Michel. Lire la comédie. Paris: Dunod, 1994. 274p.
tirania paterna / egoísmo. GASSNER, John. Mestres do teatro I. 2 ed. São Paulo:
Como já foi dito, Molière faz uma caricatura do Perspectiva s/d. col. estudos 480p
GUICHEMERRE, Roger. La comédie classique en France.
fidalgo de sua época e ao mesmo tempo denuncia Paris: PUF, 1978. 127p.
a falta de honestidade de uma classe social que MOLIÈRE. O burguês fidalgo. São Paulo: Difusão européia do
tem a pretensão de servir de exemplo para as livro, 1965. Teatro escolhido. V.2, p. 99-127
demais e que se serve da falsa respeitabilidade PIGNARRE, Robert. Histoire du théâtre.Paris: PUF, 1995.
127p.
para abusar da confiança de pessoas ingênuas. POUGEOISE, Michel. Le bourgeois gentilhomme: Molière.
Critica a nobreza aqui representada pelo cínico Paris: Nathan, 1995.Collection Balises nº103
Dorante, hábil parasita que vive a expensas do SIMON, Alfred. Molière. Paris: Seuil, 1996. 218p.
pretenso amigo. Um nobre sem dinheiro torna-

Ângulo 135, out./dez., 2013. p. 054 - 061 61

You might also like