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Introducao e saudacao Ideia central Paulo se apresenta como seguidor de Cristo, semelhante a seus amigos corintios, e lembra-os de que chamar Cristo de Senhor deve gerar atitudes de vida que reflitam esse relacionamento com Cristo. Para entender o texto Texto em contexto Se ha algo que chama a atengao de quem comega a ler 1Corintios é quanto cada pa- lavra de Paulo esta carregada de contetido desde o inicio da carta. Quando nos damos conta de quao bem ele conhece a igreja em Corinto, até mesmo a nivel pessoal,e de que esta é pelo menos sua segunda carta a igreja (5.9), € realmente notdvel que até mesmo sua saudago de abertura seja uma reflexio teolégica ponderada. Ele nao apenas segue as convengies gerais para a introducao tradicional em cartas greco-romanas,' mas também apresenta de modo sutil os princi- pais conceitos que nortearao sua discussao nas sees posteriores da carta. Consideragées interpretativas 1.1 Paulo [...] apéstolo. Paulo comega iden- tificando-se como “apéstolo”. De modo di- ferente de sua Carta aos Galatas, em que a referéncia ao apostolado é um argumento em favor de sua autoridade (Gl 1.1), aqui ele parece mais interessado em anunciar sua lealdade a Cristo Ele se importa com 08 corintios porque Deus 0 chamou a isso. Nao é motivado por seu prdprio desejo de ACorintios 1.4-3 40 ter influéncia em Corinto, mas por ser diri- gido pelo chamado e pela vontade divinos de exercer influéncia em favor do reino de Deus. Segue-se que seu tinico desejo ao es- crever a carta € que os cristaos corintios reconhecam o que significa chamar Cristo Senhor e adorar 0 tinico verdadeiro Deus (10.14,15). Os crist@os nao téma liberdade de definir 0 certo ¢ 0 errado com base na~ quilo que os beneficia; antes, devem ser moldados por Cristo, que abriu mao de seu préprio desejo a fim de aceitar a vontade de Deus na cruz (1.17,18). pela vontade de Deus. A estrutura do texto grego, em que a vontade de Deus € tanto 0 meio quanto o modo de ser do apéstolo de Jesus (aquele que foi enviado por Cristo), indica que Paulo entende o cha- mado cristéo com base em um conceitos trinitdrios. A vontade do Pai é reconhecida somente na vida do Filho. As origens judai- cas de Paulo resultam em um entendimento de apostolado arraigado no conceito he- braico de shaliah, 0 representante pessoal de outrem que realiza uma tarefa especifica em nome de quem o enviou ¢ de um modo que represente quem o enviou.? A introdugio paulina serve de lem- brete tanto para os que © conhecem pessoalmente quanto para os novos mem- bros da igreja que o conhecem apenas pelo testemunho de outros membros. Paulo se interessa pelos corintios ndo apenas como um filésofo itinerante que compartilha ideias, mas como testemunha da ressurei- go de Cristo que compartilha vida (1.30; 15.45). Embora Paulo seja indigno, sua experiéncia com Senhor ressurreto 0 tornou apéstolo (15.3-11). Esse fato, e nada mais, é a base de seu chamado missiondrio para Corinto e para outros lugares (Gl 1.15,16; Rm 11.13; Ef3.1,2). ¢ [...] Séstenes, Quando Paulo apresenta Séstenes (que envia a carta junto com ele), como “irmao” (adelpbos), € mais que uma forma simplificada de dizer “companheiro cristo”. E um termo afetuoso referente a uma relago de parentesco que inchui com- promisso pessoal sério; eles vem do mesmo ventre (delphus) espiritual, por assim dizer (p. ex., Cl 4.7}. Além disso, pode ser que, como Thiselton sugere, a incluso de Sés- tenes na abertura da carta* seja a forma paulina de mostrar que ele nao se considera um lider isolado ou “superior”, que nao precisa da colaboragao de outros lideres cristos.’ Em outras palavras, Paulo trabalha em equipe. Séstenes era um nome bas- tante comum, de modo que ele poderia ser qualquer pessoacom — aqualaigrejaem Corinto estava * familiarizada. O uso do artigo definido no grego (0 irmao) in- dica, porém, que Paulo se refere —* a uma pessoa especifica que os corintios j4 reconhecem como colaborador dele. Diante disso, € pelo menos possivel que ele seja 0 ex-chefe da sinagoga em Corinto mencionado em Atos 18.17. Actedita-se que Paulo escreveu essa carta 0s corintios enquanto esteve em Efeso durante sua terceira viagern missionétia incipais temas de 1Corintios 1.1-3 = Paulo se apresenta como apéstolo de Cristo, cha- mado por Deus. = Paulo reconhece que os corintios sao santificados. = Paulo identifica os corintios como pessoas chama- das a santidade. = Paulo inclui os corintios entre aqueles que chamam Jesus Senhor. S6stenes se converteu ao cristianismo de- pois de ouvir Paulo pregar em Corinto e, como consequéncia, foi espancado pela multidao quando Galio recusow a acusacéo apresentada pelos judeus contra Paulo. E provavel que um forte vinculo tenha se for- mado entre os dois depois desse aconteci- mento. Caso a pessoa que escreve essa carta junto com Paulo seja, de fato, 0 ex-chefe da sinagoga, ele serve de lembrete para os ctistios corintios do poder do evangelho de superar qualquer presso que sintam para transigir na fé. Logo, ndo é por acaso que Paulo inclui o nome de Séstenes. NTO 90 are a Bi GaALAciAa s o onera Ga'sina cure <= caminho pero por Paulo cos por PALESTINA Bserusatém 1.2.4 igreja de Deus. Ainda seguindo a forma habitual de redigir cartas, Paulo passa da apresentacdo do remetente 4 iden- tificacio do recipiente. Embora a igreja de Corinto provavelmente consistisse de varios grupos menores que se reuniam nas casas, 0 apéstolo se dirige a eles com o substantivo na forma singular, “assembleia” (ekklésia). Os primeiros leitores nao conheciam a equiparacéo contemporanea de ekklésiacom “igreja” (que traz 4 mente prédios, liturgias, programas e afins). Ekklesia era um termo geral para varios tipos de assembleia, como as de fins politicos e outros. Ademais, muitas dessas assembleias pertenciam a benfeitores ricos que podiam contar coma lealdade de seus membros que, por sua vez, desfrutavam direitos, proeminéncia e influéncia decor- rentes de serem associados a esse benfeitor. A ekklesia em Corinto, porém, pertencia a Deus, e nao aos benfeitores em cujas casas. ela se reunia, nem aos pregadores itinerantes que passavam por ali (1.12). em Corinto. Paulo qualifica a ekklésia qual ele se ditige como “a assembleia de Deus” (NIV: “a igreja de Deus”). Ela nao se reunia para honrar um individuo rico nem para obter proeminéncia social ou es- pititual especiais por meio da participagao nesse grupo. Nem benfeitores ricos, nem lideres espirituais capacitados, nem o pré- prio Paulo podiam se dizer donos dessa assembleia. O grupo ao qual Paulo se dirige foi chamado e reunido por Deus € pertence a ele como sua comunidade. Se- gue-se que sua localizago em Corinto é apenas uma questo geogréfica. Paulo nao gasta tempo algum nem profere um elogio sequer “grande cidade de Corinto” — uma prdtica comum na cidade que muitos consideravam uma das mais privilegiadas do Império Romano. A igreja esté ali para dar testemunho acerca de Cristo, e nao para se deleitar em seu prestigio como cidadaos de Corinto. santificados. Os membros da ekklésia corintia sao descritos também como “san- tificados em Cristo Jesus”. Seu crescimento espiritual vem de Cristo, que é a causa, a razo e o poder por tras de sua santifica- do. Uma vez que pertencem a Deus, sua Paulo se dirige aos membros da igreja em ‘Corinto como aqueles que foram ‘chamados | para ser seu povo santo”(7.2). Uma vez que eles pertenciam a Deus, 05 crist8os corintios tinham de separar-se do culto a outros deuses. O templo de Afrodite no alto do Acrocorinto (monte 20 undo), em ruinas jé no tempo de Paulo, e 0 templo de Apolo (ruinas em primeira plano.8 | | direita) foram dois importantes centios pagios de adoragao durante a histéria de Corinto, j Paulo se vale deliberadamente da rela- do entre propésito pretendido (presente) € resultado esperado (futuro) para ressaltar a tensdo inerente a vida ¢ & missio da igreja. Deus capacita sua igreja no presente (1.5,6), de modo que ela produza frutos escatolé- gicos (1.7,8). Assim como a revelagio do Senhor sera visivel e publica (Rm 8.19), a capacitacao presente da igreja por Deus Ihe permite fornecer evidéncias visiveis e pliblicas da graca divina e testemunhar acerca dela. 1.8 Ele também os manterd firmes até 0 fim |...] irrepreensiveis. O termo grego tra- duzido como “itrepreensiveis” (anenklétos) significa “livre de qualquer acusagio”; a comunidade de Deus ndo seré incriminada. Esse fato deve mudar as regras para a vida ¢ para a comunhao e eliminar a necessidade de autopromogao divisiva tao preponde- rante na sociedade corintia. f possivel que haja um grande ntimero de acusacées legais de toda espécie sendo feitas em Corinto, mas aqueles que vivem na comunidade escatolégica de Deus esto protegidos de qualquer acusacio final. 1.9 Deus é fiel. A protecio da igreja nao procede de sua capacidade de provar seu proprio valor. Antes, o Deus que, com amor e graca, chamou seus membros para a comunhio de Cristo, sem exigir que fi- zessem algo para merecer o direito a seus beneficios, os guardaré ali fielmente. Sua fé (veja “Graca e clientelismo” na Intro- dugao) € uma resposta a essa graca fiel. ‘A fidelidade é uma das caracteristicas que identificam yawn (Dt 7.9).6 Seu povo pode ter a certeza de que seu amor pactual é constante (Rm 8.38,39); sua palavra e suas promessas nao falhardo (Rm 9.6). ConsideragGes teoldgicas A grandeza da igreja nao depende de seu proprio poder nem de sua proeminéncia, mas da capacitagdo divina. A visdo trini- taria de Paulo acerca da igreja é clara: ele agradece a Deus pela graca concedida por intermédio de Jesus ¢ evidenciada por meio dos dons do Espirito. Para ensinar o texto 49 Em comparagio com secoes de aco de gracas greco-romanas tradicionais e com secées paralelas de outras cartas paulinas, as omissdes do apéstolo em 1Corintios talvez sejam to marcantes quanto suas palavras (veja “Texto em contexto”). Seus agradecimentos so voltados diretamente para Deus por sua fidelidade, e nao aos corintios por seu compromisso com Cristo. 1, A acdo de gracas é o félego de uma fé viva. A aco de gracas repele 0 egocen- trismo; 0 egocentrismo elimina a agao de gracas. O foco da fé crista verdadeira esta sobre Deus esua obra. Embora Paulo esteja ciente de varias questdes problematicas na igreja de Corinto, seu coracdo esté mara- vilhado por tudo o que Deus fez no meio deles. As béngios de Deus sio evidentes para aqueles que no se encontram iludidos com suas préprias realizacées. Para os lide- res da igreja, essa é uma licdo para que se lembrem de sua dependéncia de Deus e de sua divida para com cle. Paulo pode dar gra- gas porque tem consciéncia de que a igreja no é resultado de seu proprio esforco, mas da graca de Deus. Para os membros da igreja, é uma ligdo para que se lembrem de que todas as coisas vém de Deus e de que a gratidao deve ser a reagio natural até mesmo quando as béncios parecem fluir para outros, e no para eles préprios. Quando a aco de gracas cessa, é sinal de que a vida deixou de ser entendida como experiéncia da graca de Deus. 2. A vida crista é vida em comunidade. A igreja é uma alternativa para a cultura da sociedade secular. As regras so viradas ACorintios 1.4-9 de cabega para baixo. A proeminéncia vem. do servico. Os fracos sio dignos de maior honra (12.22-24). Os dons que parecem permitir a seus recipientes mostrar-se “mais espirituais que outros” (p. ex.,certas manei- ras de expresso) so os menos importantes. Deus enriquece a igreja, a comunidade dos que creem. O individualismo € contré- tio aos propésitos do reino de Deus. Na comunidade de Deus, as pessoas descobrem sua relevancia como membros do corpo (12.12-26). O todo é mais que a soma das pessoas; alis, as pessoas encontram signi- ficado e relevancia em seu relacionamento com 0 todo. Os cristaos foram transferidos da existéncia “em Addo”, em que o pecado destruit a comunidade, para a comunidade “em Cristo”, na qual a vida € dirigida e de- terminada pelo compromisso dos membros com o senhorio de Cristo (Gl 2.20). Ela é ‘um antegosto da vida no reino escatolégico. 3. Os dons da graca concedidos por Deus tém o propésito de levar a igreja a manifestar a presenca de Cristo enquanto aguardam sua volta. Deus ja derramou seu Espirito e permitiu que a comunidade “em Cristo” experimentasse a presenca ¢ os dons que pertencem ao reino. O fim ja se iniciou, embora ainda nao tenha che- gado plenamente. Como Paulo explica ACorintios 1.4-9 Desde a vinda do Espirito, 2 manifestacao dos dons espirtuals é a evidéncia da presenca de | Cristo entre os cristaos. Paulo reconhece essa realidade na igreja em Corinto quando afirma, em 1.7:*Nao Ihes falta dom espiritual algun" Essa pintura de Duccio di Buoninsegna, de Siena (século 14 d.C), mostra o Espirito Santo sendo derramado no dia de Pentecostes. adiante (13.9,10), a experiéncia atual da igreja pode ser parcial em comparacdo com aquilo que acontecerd quando Cristo voltar para preencher tudo em todos (15.28), mas os dons que ela recebe so suficientes para mostrar a presenca de Cristo entre todos. Seguir a Cristo no presente pode envolver dificuldades, mas elas nao se devem a uma falta de capacitagao divina. A medida que os cristdos anseiam ver Cristo e aguardam com grande expectativa o dia em que todo joelho se dobraré e toda lingua o chamara Senhor (Fp 2.10), eles devem continuar a imitar aquele que os chamou em amor. O amor de Deus edifica; o conhecimento humano envaidece (1Co 8.1). 4. Deus é fiel. A acdo de gracas, assim como a fé, inicia e finaliza com uma afirma- cao de que Deus éfiel e digno de confianca. Ele cumpre suas promessas. O destino de sua igreja jd esta determinado. Aqueles que chamam Cristo Senhor serao irrepreensi- veis no dia do julgamento. A fé deve ter a ousadia de confiar inteiramente na graca de Deus. A diivida levard os seres humanos a seguir seus préprios caminhos e provoca contenda e divisio (1.10). Para ilustrar o texto Agao de gragas e gratidao sao coerentes com a vida crista. Experiéncias cotidianas: Uma ver que a arte de dizer “muito obrigado” esta desapare- cendo, a gratidao pode se tornar uma virtude perdida. Um cartdo de agradecimento é 0 iltimo baluarte no que Mary Killen chama de“epidemia de descortesia”. Mesmo com a facilidade de comunicago por e-mail ou mensagens de texto eletrOnicas, cada vez menos pessoas parecem dar-se o trabalho de agradecer a outros. E essa descortesia talvez seja intensificada pelo uso cada vez menos frequente do toque pessoal das cartas escritas & mao. A préxima geragio parece contentar-se em viver em um mundo sem cartas ¢ restringir-se as diversas formas de mensagens eletrénicas, que raramente podem ser descritas como articuladas, me- moraveis ou ponderadas. De acordo com uma pesquisa, um tergo dos individuos com menos de 35 anos nunca enviow uma carta pessoal a um ente querido, uma estatistica surpreendente para muitos que esto mais avangados em idade. Para a geracio mais nova, correspondéncias so sinénimo de extratos bancdrios, multas de transito, aniincios publicitarios e ofertas de cartées de crédito.’ Em meio a essas tendéncias, agradecimentos atenciosos podem moldar nosso coragao ¢ exercer forte impacto sobre outros. A gratidao devidamente expressada promove uma vida repleta de graca, que é de grande importancia para conter 0 ego- centrismo. Além disso, é parte inseparavel de ser cristo: “Deem gracas em todas as circunstancias” (1Ts 5.18). O egocentrismo individualista deve ser substituido pela abnegacaéo em prol da comunidade. Citagao: A. W. Tozer. Nio é dificil entender por que a atitude do cristao em relacao a si mesmo é uma pi excelente forma de testar quao validas so suas experiéncias religiosas. A maioria dos grandes mestres da vida mais pro- funda, como Fénelon, Molinos, Sao Joao: da Cruz, Madame Guyone muitos outros, advertiu acerca de experiéncias pseudor- religiosas que proporcionam muito prazer mundano, mas que satisfazem a carne € envaidecem 0 coragao com amor proprio. Eis uma boa regra: Nada que vem de Deus ministra a meu orgulho ou louvor préprios. Se sou tentado a soberba ou a0 sentimento de superioridade em razio de uma experiéncia espiritual avancada, devo colocar-me imediatamente de joe- Ihos e arrepender-me de toda essa expe- riéncia. Tornei-me vitima do inimigo!® Biografia: Vincent Van Gogh. O grande pintor Van Gogh (1853-1890), primeiro filho de um pastor holandés, nao é asso- ciado com frequéncia, como diz 0 escritor Kristopher Kowal, “A conviegao cristae, muito menos, a aspiragdes missiondrias € evangelisticas”. Com maior frequéncia, os bidgrafos se concentram nos aspectos incriveis de sua personalidade. Contudo, em certo periodo de sua vida, Van Gogh tornou-se conhecido entre mineiros extre- mamente pobres “por participar abnegada- mente de suas dificuldades e por amar os desamaveis. Relatos desse perfodo ilustram © quanto ele se esforcava para praticar 0 amor de Cristo”. Como exemplo, depois de uma explosdo grave em uma mina, “ele rasgou suas préprias roupas ¢ lencéis e embebeu os pedacos de tecido em cera e azeite de oliva para que fossem usados como bandagens”? ‘WHorintios 1.49 ae} Lileks! Divis6es e partidarismo na igreja Ideia central Divisdes e facgdes nao tém lugar na comunidade de Deus. Paulo afirma: “Esquecam 0 que aprenderam com 0 mundo ao seu redor. Os cristéos ndo seguem os varios benfeitores e lideres humanos, s6 a Cristo”. _Para entender o texto _ Texto em contexto Paulo da continuidade a introdugo. No versiculo 10, ele resume a tese do restante da carta, proposigio 4 qual ele voltard repetidamente (p. ex., 3.1-15). Nao faz muita diferenga para as questdes que a igreja corintia enfrenta se Paulo considera 0 versiculo 10 como uma propositio' ou simplesmente como um lembrete veemente para seus amigos cristaos que perderam o rumo.? Paulo nao procura impor sua autori- dade como apéstolo ao qual devem obede- cer; antes, sua intengdo é trazer 4 memoria de seus irmAos em Cristo 0 ensino da cruz.* A declaragao da tese no versiculo 10 € uma resposta direta 4 informago rece- bida por Paulo de pessoas da casa de Cloe. E provavel que Cloe fosse uma benfeitora em cuja casa um grupo da igreja se reunia. Outra possibilidade é que ela fosse uma abastada mulher de negécios em Corinto cujos parceiros no empreendimento eram cristaos.* Paulo menciona o nome dela sim- plesmente para dizer a igreja que nao esta respondendo a boatos e falatérios, mas a um relato direto de membros id6neos. da igreja. Consideragées interpretativas 1.10 Suplico a vocés, irmaos e irmas. Em- bora haja varios argumentos em favor do uso de parakal5 (“suplico”) como artificio ret6rico formal, que visa a colocar 0 orador em uma posi¢ao de autoridade, 0 propé- sito de Paulo aqui nao é reivindicar sua autoridade, mas falar com urgéncia aos “irméos e irmas”$ a respeito de como 0 senhorio de Cristo deve criar unidade entre seus seguidores. em nome de nosso Senor Jesus Cristo. E improvavel que Paulo considere essa ex- pressdo uma espécie de formula curativa que repararia as divisdes.* Antes, jé que essa éa décima vez que ele usa o nome de Cristo nos dez primeiros versiculos, Paulo em- prega a expresso para voltar a incutir na mente dos corintios que eles fazem parte da comunidade de Cristo e, portanto, devem demonstrar o caréter dele. Seu comporta- mento afeta a imagem piblica e a reputa- Go de Cristo. Eles so a comunidade de Cristo em Corinto e, portanto, “beneficid- rios” dele. Sua conduta atual parece imitar algo inteiramente distinto. Eles deixaram de representar seu verdadeiro benfeitor. que todos vocés concordem. Paulo es- trutura a explicacdo dessa siplica urgente como uma declaracao de propésito.’ O chamado & harmonia (lit., “falar 0 mesmo”) nao se refere 4 concordancia doutrinaria, mas ao testemunho comum dos beneficidrios acerca de Cristo. As schis- mata (“divis6es”) nao eram causadas em primeiro lugar por desentendimentos entre ‘0s membros, mas por um foco equivocado. Fles haviam permitido que as normas da Corinto secular influenciassem o modo de pensar da igreja. que estejam perfeitamente unidos. O termo katértismenoi (“estar perfeita- mente unido”) traz. ao contexto o sentido de restauracio — restabelecer a ordem ten- cionada (cf. Mc 1.19). E possivel até que contenha uma referéncia sutil ao plano ori- ginal de Deus para sua criacao (Hb 11.3). O que Deus pretendia desde o inicio, e 0 que Cristo realizou no meio dos corintios quando receberam o evangelho deve voltar a ser realidade em seu meio. na mente e no pensamento. Ter “a mesma mente” (NRSV; ou “o mesmo en- tendimento”; NIV: “unidos na mente”) re- fere-se 4 unidade em torno da mensagem crist. A comunidade que veio a existir pela proclamacio do evangelho é sustentada por um entendimento diferente, uma dispo ao mental diferente do modo de pensar da comunidade corintia em geral, Uma mentalidade comum é acompanhada de um propésito comum, Na comunidade de Cristo, um foco unificado sobre a restaura- do a norma pretendida por Deus para sua criagao deve dirigir seu Na antiga Corinto, os alunos eram incentivados a mostrar lealdade seu mestre ao promové lo e defende-1o em publico. Essa mentalidade talvez tenha sido transferida aos membros da lgreja corintia que anunciavam a qual lider da igteja seguiriam. Infelizmente, essa pratica provocou divisdes na comunicade cris’, Essa xicara grega do quinto século aC. mostra um aluno e seu mestre B incipais temas de 1Corintios 1.10-17 © Divisdes e facgdes destroem 0 testemunho da igreja. © Os ofistdos ndo devem ser separados por divisdes politicas, sociais nem raciais. © O foco da igreja ndo deve estarem lideres espirituais de destaque nem em pregadores eloquentes, mas em Cristo e em seu evangelho. penssamento, nortear seu propésito ¢ ins- pirar suas decisdes. 1.12 En sigo Paulo [..] Apolo [...] Cefas [..] Cristo. O uso grego de genitivos para expressar relacionamentos (p.ex., “Eu sou de Paulo”) ndo deve ser entendido equivo- cadamente como uma indicagao de posse. O genitivo possessivo nunca é usado para pessoas, exceto no caso de escravos e, em algumas situagdes, para criancas. Logo, nao estd totalmente certo traduzir essa passa- gem como “eu pertengo a...”. Paulo ndo se refere a divisOes entre escravos de diferentes senhores, mas a desavencas causadas por aliangas que causavam divisbes. O texto no permite determinar com certeza se essas aliangas exam de origem politica, social, 6tnica/racial, pessoal ou alguma combina- ao delas.® Qualquer que seja a causa exata, foi algo que envolveu todos os membros. Em vez de dirigir-se a igreja como grupo, como era seu costume, aqui Paulo afirma deliberadamente: “Esse assunto diz respeito a cada individuo”,’ ACorintios 110-47 As “panelinhas” de Corinto Varias sugestées tém sido apresentadas para explicar €@ presenca de panelinhas dentro da igreja em Corinto. E provavel que a interpretagao mais amplamente aceita seja de que as divisdes se deviam a associacdo com diferentes lideres cristéos, & predilegao por certos pre- gadores e mestres que ensinavam a Palavra. Desde que F.C. Baur sugeriu em 1831 que convicedes teoldgicas conflitantes deram origem as divis6es, muitos estudiosos afirmaram que as facgdes nasceram de desentendimen- tos doutrindrios. Os partidos de Paulo e Apolo defen- diam um cristianismo paulino, que enfatizava a graga e a liberdade da lei, enquanto os partidos de Cefas e de Cristo enfatizavam que a lei continuava a ser valida. Em outras palavras, na verdade a assembleia em Atos 15 nao resolveu coisa alguma, Estudiosos escandinavos como Johannes Munck e N. A, Dahl mostraram, posteriormente, que essa divis’o doutrindria 6 improvavel. De acordo com eles, as faccdes eram associadas de modo mais préximo a “celebrida- des” que granjeavam seguidores. Paulo parece nao ter interesse algum em defender o grupo associado a seu nome (1.12,13), 0 que causaria estranheza caso se tratasse de uma questo doutringria. Em tempos mais recentes, estudiosos como L. L. Welborn revisaram as propostas mais antigas e afirmaram que os grupos eram de natureza politica. As lutas por poder e as competi- es por prestigio tao comuns em todas as principais cidades greco-romanas, e particularmente em Corinto, se infiltraram na igreja. Oradores corintios eram famosos Por seus egos inflados e pelas tentativas constantes de difamar seus concorrentes.” Aideia de que os cismas (schismata) em Corinto foram causados por desentendimentos entre grupos da igrejae Paulo se originou no método dialético de interpretacao, no qual os intérpretes se concentram na idela de que toda tese precisa ter uma antitese. De acordo com essa proposta, o que Paulo disse deve ter sido uma resposta @ alguém que afirmava 0 contrério. No entanto, nada no texto indica essa situacgo. Antes, os diversos grupos dentro da igreja discutiam entre si, e néo com Paulo. Sua resposta nao é uma autodefesa (cf. GI 4 e 2), mas uma dectaracdo cristolégica com o propésito de revelar ue essas panelinhas s40 contrérias ao senhorio indiviso de Jesus Cristo (1Co 1.10), ‘Para uma discuss8o mais detalhada sobre a populeridade dos oradores sofistas, seus seguidores e sua participagso na assemnblela secular (ekKiésia) em Corinto, vola Winter, After Paul, cap. 2. ACorintios 110-17 ors Nao se sabe ao certo se Paulo rela- ciona todas as “panelinhas” na igreja em Corinto, se seleciona apenas alguns exem- plos, ou mesmo se criou a lista como hi- pérbole para fortalecer seu argumento.!? Qualquer tentativa de esbocar os pontos de vista especificos de cada uma dessas panelinhas é especulativa (veja quadro lateral). A preocupacio de Paulo é a rea~ lidade perturbadora das divisées, e nao 0 conteiido exato de cada grupo. Alids, ele parece fazer questio de destacar que ele e Apolo sao colaboradores. Paulo plantou, Apolo regou (3.6). Com respeito a Pedro, no se sabe se ele sequer chegou a visitar Corinto, embora, sem diivida, a congrega- do reconhecesse seu nome." Quanto ao contetido, os intérpretes cos- tumam concordar que “sabedoria” havia se tornado um jargao que dava o direito de vangloriar-se e levava certos grupos a afirmar que sua sabedoria especifica lhes conferia proeminéncia espiritual. £ bem provavel que as referéncias de Paulo ao longo de toda carta a respeito de sabedoria, vangloria e sobre ‘ser espiritual’ estejam diretamente relacionadas a esses grupos (p. ex., 1.19,29; 3.1-3), 1.13 Acaso Cristo estd dividido? A resposta Sbvia a essa pergunta é “nol”. O comporta- mento dos corintios, porém, dé a impressio de que a resposta é “sim!”. Ao permitir as divisdes e a formacao de panelinhas dentro do corpo de Cristo, eles criaram uma situa- céio que testifica contra a propria natureza de Cristo, Paulo fica tio horrorizado que usa seu proprio nome para mostrar quio absurda é a situag%o, “Por certo, ndo pensam que Paulo foi crucificado em favor de vocés? Ou que foram batizados em nome de Paulo?” 1.17 Cristo nao me enviou para batizar. Tendo em vista o ambiente competitivo de Corinto, é bem possivel que os varios ben- feitores em cujas casas a igreja se reunia se mostrassem particularmente leais aqueles que os haviam conduzido & fé em Cristo e batizado. “Seu pregador” era melhor e mais importante que 0 pregador de outros ben- feitores. Afirmar que se tinha um relaciona- mento especial com Paulo (ou com Apolo, ou Cefas) havia se tornado uma questo de competigao e de orgulho, uma forma de obter proeminéncia pessoal e suplantar outros convertidos cristdos.!? Em outras palavras, 0 comentério de Paulo sobre o ba- tismo nao significa de maneira alguma que batismo ¢ irrelevante, desnecessario, ou mesmo menos importante em comparago coma pregagao." Antes, é uma repreensiio Aqueles que causam confusdes por dar mais honra a quem realiza o batismo que a Jesus Cristo, aquele en cujo nome sao batizados. nao com sabedoria e eloquéncia. O obje- tivo de Paulo nesse contexto é ressaltar que as panelinhas e as divisées tinham um efeito destrutivo sobre 0 evangelho. Portanto, quando ele chama a atenco para o fato de que foi enviado para proclamar evan- gelho, mas néo com sabedoria eloquente, no procura criar uma dicotomia entre E possivel que a competigao entre os membros da igreja em Corinto estivesse relacionada com grupos formados em tomo daqueles queos haviam conduzido & fé em Cristo e batizado, A fotografia mostra as ruinas de um batistério do quinto século d.. na igreja de Sao Jo50, em Efeso, Um boatistério semelhante foi escavado em Lequeu, porto ocidental de Corinto. Esta ligado a uma basilica do quinto ao sexto século dC, embora o sentido da construggo em relacdo 20s pontos cardeais sugira a possibilidade de que a construgio seja mais antiga, proclamagio e sabedoria (lit., “sabedoria de discurso”); antes, busca minimizar o papel do ministro. Argumenta que os ministros que exaltam a si mesmos — ainda que em nome da fé — nao proclamam o evange- Iho. © objetivo de Paulo nao é granjear seguidores para si mesmo, mas estabelecer uma comunidade capacitada por Cristo. Consideracoes teolégicas © problema com panelinhas ¢ faccdes nao E que estejam “erradas”, sejam inapropria- das ou que violam um mandamento. O ACorintios 1.1047 | | | | ACorintios 11047 problema é que maculam o proprio caréter de Deus. Quando uma igreja se divide, deixa de retratar o Deus tritino. Para ensinar 0 texto Paulo nao via com bons olhos as pane- linhas em Corinto. Eram decorrentes da influéncia da cultura mais ampla que havia rebaixado a fé & condigao de apenas mais uma expresso religiosa em Corinto. Em vez de permitir que Cristo mudasse Corinto, aigreja estava permitindo que Corinto mu- dasse Cristo. 1. Cristo nao esta dividido. Muitas igre- jas passam por dificuldades relacionadas a comportamentos que geram divisdes. Quer essas divisdes sejam causadas por personalidades fortes, convicgdes politi- cas, preferéncias por certos tipos de miisica ou de programacao, jargées teolégicos ou alguma outra coisa, acabam solapando o poder do evangelho. Se Cristo, que veio para derrubar o muro que separa (EF2.14), nao é capaz de remover nem mesmo as panelinhas dentro de seu préprio corpo, a cruz perdeu seu poder (1Co 1.17) ea igreja fica desprovida de testemunho. 2. Unidade e concordancia. “Falar a mesma coisa” e ter 0 “mesmo propésito” nao so sinénimos de concordéncia abso- Jura em todas as questdes da igreja. Elimi- nam, porém, qualquer ideia de que “s6 eu estou certo”. Interesses egoistas nao tém espaco na igreja e devem dar lugar ao pro- pésito maior de criar uma comunidade que imita Cristo e existe para the dar gloria. 3. O poder transformador de Cristo. A igreja sempre corre o risco de rebaixar-se a mera expressio religiosa da cultura ao seu redor. Ainda que 0 propésito possa ser nobre (levar mais pessoas a Cristo) e se encontre argumentos biblicos (p. ex., 1Co 9.20-22), a igreja deixa de ser igreja em seu sentido verdadeiro quando a cultura Martinho Lutero se exasperou quando seus seguidores foram chamados luteranos: Nao desejava que as pessoas fosser devotas 20 ‘regador, mas, sim, que sequissem a Cristo. Essa || gravura de Martinho Lutero feita pelo frei Muller ébaseada numa pintura de Lucas Cranach, mais ampla ao seu redor determina suas prioridades e seus métodos. Como comu- nidade de Cristo, a igreja deve dar teste~ munho de uma reforma de valores e de uma reconstrugio de prioridades a fim de cumprit 0 propésito para 0 qual Cristo a capacitou. Em outras palavras, a igreja é uma comunidade escatolégica alternativa na qual 0 poder transformador de Cristo torna o reino visivel. 4, Aplauso e lideranca espiritual. Con- ta-se que quando o reformador Martinho Lutero soube que seus seguidores eram chamados luteranos se enfureceu e disse: “Que é Lutero? O ensino nao é meu [...] Como foi que eu, pobre e fétido saco de vermes, cheguei ao ponto em que as pessoas chamam os filhos de Cristo por meu nome perverso?”. Aborrecido com a vangloria de alguns pastores, prosseguiu: “Que Deus nos proteja dos pregadores que agradam a todos e recebem um bom testemunho de todos [...] Os ouvintes deveriam dizer: ‘Nao creio em meu pas- tor, mas ele me fala de outro Senhor cujo nome é Cristo””."* Hoje, como na antiga Corinto, a competigio por fama, honra e um grande niimero de seguidores domina nosso cendrio. Em nosso tempo, como na- quela época, facilmente pastores ¢ lideres espitrituais se envolvem (de modo subcons- ciente?) nessa mesma busca. Esse texto lembra que, na comunidade de Cristo, qualquer um que no seja Cristo é um simples servo indigno. Para ilustrar o texto Interesses egoistas e panelinhas devem dar lugar a uma comunidade centrada em Cristo. Literatura: “Revelation” [Revelacao], de Flannery O'Connor. Nesse conto publicado postumamente, a grande escritora ameri- cana O’Connor (1925-1964) destaca com humor negro ¢ irénico o problema da di- visio em grupos. A preocupacio central de O'Connor era o orgulho, Seus contos breves, que alguns leitores consideram bizarros, examinam de forma perspicaz nossa neces- sidade de sermos importantes e de nos tor- narmos deuses em nossos préprios mundos. Em “Revelation”, sua personagem prin- cipal, Ruby Turpin, entra em um consul- tério médico no sul dos BUA e pensa nas melhorias que poderia fazer no consultério até mesmo nas pessoas. Comeca a analisar a7 0 outros na sala de espera com base na cor da pele ou pela roupa que vestem. Reflete até mesmo sobre o que calcam. Disfarcadamente, a sra. Turpin sempre reparava nos pés das pessoas. A senhora clegante calgava sapatos de camurca ver- melha e cinza para combinar com © ves- tido. A sra. Turpin calcava seu escarpim de verniz preto de boa qualidade. A menina feia calcava sapatos de escoteira com meias ‘grossas. A senhora idosa calgava ténis e a mae branca e pobretona, um par de chine- Jos de palha preta com detalhes dourados, que aparentavam ser chinelos para usar no interior da casa — exatamente 0 que se esperaria que ela calgasse."* Aqui, O’Connor oferece uma metafora ni- tida de como, por vezes, rapidamente se~ paramos as pessoas em grupos sem sequer conhecé-las, um sinal de orgulho. A igreja nao deve, jamais, se tornar mera expressao religiosa da cultura ao seu redor. Citagdo: Prophetic untimeliness [Extem- poraneidade profética], de Os Guinness. Nossa busca irrefletida por relevancia nos levou,na verdade a cortejar a irrelevncias em nossa corrida desenfreada por rele- vancia sem um compromisso igualmente dedicado a fidelidade, nos tornamos nao apenas infigis, mas também irrelevantes; em nossos esforcos determinados por nos redefinirmos de maneiras mais atraentes a0 mundo contemporaneo do que figis a Cristo, perdemos nao apenas nossa iden- tidade, mas também nossa autoridade ¢ relevancia, Precisamos encarecidamente ser figis bem como relevantes.'* AGorintios 1.10-17 1Corintios 1.18-31 Sabedoria e loucura Ideia central 0s cristaos nao podem usar a sabedoria comumente aceita que estabelece a cultura ao redor como modelo para seu modo de pensar e de viver. Para entender o texto Texto em contexto No mundo antigo, “sabedoria” nao era um conceito abstrato desvinculado da vida di- ria, Pelo contrério, era um modo de viver baseado em determinado entendimento do propésito da vida e de quais agées cumpri- riam, de modo satisfatério, esse propésito. Diversos fil6sofos (lit. “amantes da sabedo- ria”) competiam para granjear seguidores para sua proposta especifica de como viver. Uma competigdo semelhante e uma busca por proeminéncia se encontra no cerne das “panelinhas” em Corinto. Encantadas com a “sabedoria” e o éxito dos oradores pro- fissionais da cidade, varias das igrejas nas casas estavam usando uma abordagem semelhante para alcangar proeminéncia sobre outros grupos da igreja. Esse com- portamento deixava claro para o apéstolo que eles se fiavam na sabedoria humana, € nao na sabedoria de Deus. A rejeigio firme e intransigente de Paulo a essa con- duta mostra 0 quanto 0 apéstolo considera essa situacio um ataque direto ao préprio evangelho. Haviam eles pasado a se apoiar em sua prépria “esperteza”, e ndo na graca de Deus, em sua prépria sabedoria, e nao na sabedoria de Deus? Era o que parecia! ACorintios 148-31 Eles passaram a confiar no modo de agir de Corinto, endo no da cruz. Os versiculos 18-31 so um resumo final culminante dos versiculos 10-17,uma expan- so do motivo principal pelo qual Paulo foi visitar Corinto (“para evangelizat” [y. 17) € uma transi¢ao para 0 que se segue no ca- pitulo 2. A seco se divide naturalmente em dois pardgrafos: versiculos 18-25 e 26-31. Consideragées interpretativas 1.18 a mensagem da cruz. Paulo retoma a ligagdo entre o “evangelismo” e a cruz de Cristo no yersiculo 17 € resume o evan- gelho como a “mensagem [lit,, ‘palavra’] da cruz”. Nesse contexto, “palavra” é si- nénimo de pregacao, e “cruz” identifica a origem da mensagem. O objetivo de Paulo aqui é mostrar como a cruz de Cristo devia ter efeito transformador sobre os cristaos. A proclamaciio de Paulo revela uma sabe- doria diametralmente oposta da sabedoria humana, pois é gerada pela obra de Cristo na cruz, loucura para os que estéo perecendo, mas para nds, que estamos sendo salvos, 6 0 poder de Deus. £ facil perder na tradu- ¢4o 0 jogo intencional que Paulo faz com a gramatica. E bem provavel que a tonica da voz média no participio descritivo “pe- recendo” seja reflexiva e, portanto, des- taque 0 efeito de suas prdprias ages (os que esto destruindo a si mesmos).’ Em um contraste claro com isso, o participio passivo descreve aqueles que esto “sendo salvos”. A voz passiva destaca que a sal- vagdo nao € causada pelo proprio sujeito, mas concedida a ele.’ Em outras palavras, caso Paulo use deliberadamente o reflexivo médio, a construcaio gramatical fornece 0 contraste mais nitido possivel. O oposto de loucura nao éa sabedoria humana, mas o poder de Deus. © contraste é entre 0 orgulho autodestrutivo e a transformacao tornada possivel por Deus. 1.19 a sabedoria dos sabios, Paulo usa como transigao uma citagao de Isafas 29.14 eargumenta de modo sutil que Deus sempre revelou sua sabedoria de maneiras que estu- pidificam a sabedoria humana.‘ A sabedoria humana tropeca justamente porque busca dire¢o em si mesma, em vez de voltar-se para Deus. 1.20 Onde esta o sdbio |...] 0 mestre da [ei [...] 0 filésofo desta era? A mencao por Paulo desses trés grupos talvez nao tenha ligacdo direta com grupos especificos na igreja de Corinto. E provavel, contudo, que ele destaque trés fontes principais de influéncia direta sobre as divisdes na igreja. O sabio exemplifica aqueles que eram con- siderados as mentes brilhantes, o escriba (mestre da lei) exemplifica o especialista na Tora judaica, 0 filésofo (ou debatedor) desta era, 0 sofista.’ Juntos, eles constituem a elite intelectual. Ainda assim, & luz da sabedoria de Deus, nao so nada. As per- guntas retéricas de Paulo (“Onde estd...”) ressaltam a impoténcia desses individuos (cf. Is 19.125 33.18). Acaso niio tornou Deus louca a sabe- doria do mundo? Paulo tem o cuidado de nao rejeitar,em momento algum, a sabedoria emi. Antes, seu propésito € fazer distincao 29 Principais temas de 1Corintios 1.18-31 ‘A sabedoria humana é loucura. A “loucura” de Deus é sabedoria, = Asabedoria de Deus tem o propésito de transformar. = Somente Cristo traz a sabedoria de Deus. clara entre os resultados da sabedoria do mundo, desencaminhada pelo pensamento humano depravado e egoista, e sabedoria crista, dirigida pela autorrevelacao de Deus exemplificada em Cristo (1Co 2.6,7). Mais cedo ou mais tarde, se vera que a primeira é absoluta loucura. Alids, Deus j mostrou que € 0 caso. 1.214 sabedoria de Deus, o mundo nao a conheceu por meio de sua sabedoria. Paulo amplia o contraste entre a sabedoria hu- mana ¢ a sabedoria divina,* Os seres hu- manos viraram os propésitos originais de Deus de ponta-cabeca. Por isso, Deus prova sua sabedoria ao fazer com que a sabedoria humana nao seja o caminho de acesso para o conhecimento de Deus ¢ a salvacdo. A loucura da sabedoria humana é revelada na segregacao das pessoas. A sabedoria de Deus, em contrapartida, é 0 maior elemento igualador da humanidade. Confere a cada pessoa 0 mesmo acesso a salvacdo. A cruz nao apenas anula a di- ferenca entre judeus e gentios, escravos € livres, homens ¢ mulheres (GI 3.28), mas também acaba com qualquer distineo que 60s seres humanos venham a criar entre 0 culto e 0 inculto,o eloquente e o tagarela,o filésofo eo ignorante.” Pode parecer loucura para os s4bios, mas Deus concede salvagio Aqueles que apostam sua vida no fato de que o evangelho revela a verdade. ‘Assim como os antigos no consideravam a sabedoria uma questo etérea desvinculada da vida didria, também nao viam a salvacio dessa forma, Antes,a sabedoria se mostrava verdadeira quando sua mensagem promovia ‘iGorintios 148-34 transformacao salvadora na vida da pessoa. Em outras palavras, a promessa de benefi- cios eternos nao tornava insignificantes os beneficios temporais.* Quando Paulo fala do conhecimento de Deus e da salvacao que ele concede, refere-se a transformacao de vida que flui desse conhecimento. Deus se revela na histéria humana; os “sabios” so loucos justamente porque nao reconhecem 08 feitos divinos, Os cristios sao salvos por ‘que os reconhecem, 1.22 0s judeus exigem sinais, ¢ os gregos procuram sabedoria, Para aqueles que nio creem, a cruz permanece uma afronta. Os judeus nao a reconhecem como sinal de Deus, os gregos nao entendem sua sa- bedoria.” A pregacio de Paulo, contudo, revela que a cruz é ambas as coisas. 1.23 pregamos a Cristo crucificado. Kéryss0 (“pregar”, “proclamar”) éum termo relativamente incomum para os oradores antigos. Paulo nao se envolve em uma dis- cusso ret6rica na tentativa de mostrar que sua sabedoria é melhor que a dos gregos. Antes, preocupa- -se com 0 contetido. O lugar 0 modo da proclamacio so insignificantes. Embora kéryssd seja traduzido com frequéncia como “eu prego”, nao se refere a um sermao de puilpito, mas a qualquer ex- plicagao da obra de Cristo na cruz, transmitida de diversas formas e por diversos meios. © contetido da proclamagio é que Cristo “foi crucificado”. ‘O uso do tempo passivo perfeito é intencio- nal, Em grego, o tempo perfeito expressa uma ago concluida cujos efeitos perduram. A cruz de Cristo pode ser um acontecimento passado, mas continua a revelar o poder ea sabedoria de Deus no presente (1.24). 1.25 a loucura de Deus |...] a fraqueza de Deus. Aqui, Paulo completa seu argumento. Por certo, ele nao sugere que qualquer aco de Deus é louca ou fraca; antes, apresenta uma declaracao comparativa culminante entre Deus € os seres humanos. O palco esté agora montado para a aplicacio direta desse argumento aos membros individuais da igreja. 1.26-29 Deus escolheu as coisas insignifi- cantes. A fim de reconhecer a veracidade do argumento de Paulo os membros da igreja 86 precisavam olhar para si mesmos. Que motivo Deus teria para chamd-los? Pelos padrdes humanos, nada em sua situacio pré-cristd os qualificava para o relacio- namento que agora desfrutam com Deus. Paulo afirma:*Nés, porém, pregamos a Cristo crucficado: pedra de trapeco para 05 judeus e loucura para os gentios"(1.23). Até 0 sexto século dC, imagens de Cristo fra cruz eram muito raras. Essa placa de marfim de cerca de 425 dC. um dos retratos mais antigos da crucificacéo. ACorintios 118-31 30 Salvo raras excegdes, eles estavam entre aqueles que costumavam ser considerados loucos, fracos ou desprezados."® A sinica razao pela qual algo mudou: a sabedoria de Deus acaba coma sabedoria humana. Logo, 0s conflitos atuais entre as panelinhas na igreja nfo fazem sentido algum—sao uma refutacao de sua propria realidade. Poucos tém de que se vangloriar. Se fosse possivel obter sabedoria ¢ poder verdadeiros por meio da autopromocao, eles nao estariam entre os eleitos. A posicao que agora des- frutam é uma dadiva de Deus. Alids, Deus os escolheu para envergonhar aqueles que © mundo considerava poderosos e sabios. Eles mesmos so exemplos de como a sa- bedoria de Deus opera de modo contrario propria “sabedoria” que agora parecem to ansiosos para seguir. 1,30 justica, santidade e redencdo. Uma ver que a igreja existe “em Cristo”, deve- -se considerar apenas a sabedoria de Deus. Ao contrario da sabedoria que alimentava a cultura de Corinto, com sua busca por prestigio e honra, Deus redefine a sabedoria como justica, santidade e redengao. Essas slo dédivas de Deus que produzem grati- dao; nao so realizagbes nem virtudes que dio direito de as pessoas se vangloriarem. Consideragées teolégicas Em geral, a sabedoria do mundo se dedica de modo pratico a dar conselhos sobre como prosperat (ou adquirir proeminéncia) em determinada cultura. A sabedoria de Deus, em contrapartida, é voltada para os propo sitos divinos para sua criacéo. Com frequ- éncia, portanto, é contréria as atividades comuns associadas & sabedoria do mundo. Para ensinar o texto O desejo de ser amavel e acolhedor aos de fora da igreja e desse modo tornar o texto a biblico relevante & cultura ao redor nos faz corter o risco de assimilar os conceitos € as formas de pensar da cultura corrente. A sabedoria nacional, por assim dizer, passa ater mais impacto sobre o comportamento, oensino eo processo de decisao dos cristaos que a sabedoria divina, Foi exatamente 0 que aconteceu em Corinto. 1. O pensamento cristo deve estar ar- raigado na cruz. Por mais que apreciemos livros de autoajuda e precisemos ajudar os cristos a aplicar a f€ vida diaria, devemos estar sempre cientes da disparidade entre a sabedoria secular e a sabedoria crista. O livto Os 7 habitos das pessoas altamente eficazes," por exemplo, nao se torna um bom manual de discipulado cristao pelo simples acréscimo de um provérbio das Es- crituras.a cada um dos hébitos. O problema com 08 corintios nfo era que nao “soavam cristios” em seu modo de falar nem que Ihes faltava aptidao para reinterpretar seus desejos e encontrar aplicagées “espirituais”. Antes, o problema era que, apesar de sua cloguéncia e énfase espiritual, sua conduta mostrava que seu modo de pensar nao pas- sava de uma versdo cristianizada da sabe~ doria secular. As regras fundamentais de seu modo de pensar nao haviam mudado. 2. Sabedoria e loucura. Ninguém gosta de ser envergonhado ou considerado louco. Eextremamente dificil chamar de sabio algo que outros consideram louco, ¢ vice-versa. Hoje em dia, esse conflito leva os cristaos a aceitar, por exemplo, a ideia secular de que “prover para a familia” diz respeito somente & parte financeira, uma ideia que pode parecer sabia, mas que, na verdade, é desastrosa para os propésitos de Deus. Quando a riqueza material se torna mais importante que riqueza espiritual, o tempo necessério para ensinar aos filhos a sabe- doria de Deus pode ser relegado a segundo plano (2Tm 1.5). Como consequéncia, em vez de criangas de lares crist’ios estarem ACorintios 148-34 ——— hee conscientes de suas raizes e terem uma iden- tidade definida, muitas vezes elas se sentem desprovidas de raizes e saem em busca de significado e de identidade. De modo seme- Ihante, quando empresarios cristios con- fundem sabedoria humana com sabedoria divina, eles se consideram em condigdes de separar seu “comportamento empresarial” de seu “comportamento usual”. Para o apéstolo, exemplos como esses so resultado da sabedoria humana. A sabedoria de Deus, expressa na cruz, muda tudo e no admite ser reduzida a uma simples decla- racdo doutrinéria ou ser relegada a uma questo meramente escatol6gica. Para Deus, a sabedoria humana é loucura. A sabedoria de Deus requer uma nova comunidade, em que as regras basicas para o comportamento em todasas éreas foram transformadas. Para 0s nao cristaos, isso é loucura total, 3. Confiar no esforgo préprio. O esforco proprio leva ao orgulho e dé ocasiao vangl6ria. Como Paulo mostra tio abun- dantemente em 1Corintios, os cristaos nao so imunes a esse problema, nem mesmo no Ambito espiritual. Conhecer a Biblia melhor que outra pessoa, ter maior capa- citacao espiritual que outros, ser membro ACorintios 4.1881 | pou faz um contrast entre Crist,’o poder de | Deus ea sabedoria de Deus'(1.24) ea’sebedoria dos sabios"(1.19), 2"Sabedoria deste mundo" (1.20) €a°sabedoria humana (1.25) A sabedoria do mundo era ensinada pelos fldsofos. Nesse televo de um sarcéfego vé-se a mulher que faleceu em pé com uma crianga no nicho central,ladeada por flésofos nos paingisda | | direta e da esquerda, Os personagens seguram | | roles, uma incicagdo de que se trtadeum | | grupo intelectual (230-240 dC). de determinada igreja, seguir determinado lider crist&o, servir fielmente em um mi- nistério da igreja, participar como volun- tario num projeto social evangelistico, e assim por diante, sao coisas que podem dar lugar ao orgulho. Embora a vangléria explicita seja considerada falta de etiqueta nas sociedades ocidentais contemporaneas (a0 contrario do mundo greco-romano), nao faltam maneiras sutis de expressé-la. orgulho vem atrelado a competicio e, como ocidentais, consideramos a compe- ticZo um incentivo a aprimorar-nos ¢ a alcangar éxito. No ensino de Paulo, con- tudo, nao ha tensdo entre almejar os me- Ihores dons (12.31; 14.1) ereconhecer que, no reino de Deus, os dons so concedidos gratuitamente e conferem responsabili- dade, e nao prestigio (12.7). Para ilustrar 0 texto Existem diferencas profundas entre a sabedoria de Deus e a sabedoria humana e nao se deve fazer confusdo entre as duas. ‘Testemunho pessoal: Quando jovem, eu (Preben) participei de um retiro de vero voltado ao discipulado que foi organizado ara 0s jovens cristiios mais dedicados — os que verdadeiramente levavam a sério sua caminhada com Cristo. Levantavamos cedo para o momento devocional, passavamos grande parte do dia estudando a Biblia e realizavamos trabalhos evangelisticos e assistenciais no final da tarde e a noite. Tudo isso era bom, mas fiquei aténito com algumas coisas que 0s lideres consideravam “bom ensinamento biblico cristo”. Eles passaram um dia inteiro, por exemplo, ensinando sobre a maneira de nos vestir- mos para sermos bem-sucedidos. E claro que no hé nada de errado em saber como vestir-se de modo apropriado. No entanto, € um mistério para mim de que forma as normas culturais de hoje sobre combina- Ao de cores, nés de gravata ¢ largura de 33 into esto relacionadas com o discipulado cristo, a menos, é claro, que a sabedoria cultural seja o guia para 0 éxito. Se fosse o caso (e nao é), precisariamos apenas “cri tianizar” os livros seculares de autoajuda e actescentar alguns versiculos biblicos para corroborar nossas asserges. Nio ficcio cristé: Come before Winter and share my hope (Nenha antes do inverno ¢ compartilhe de minha esperancal, de Chuck Swindoll, Nessa obra, Swindoll descreve a natureza das Aguias em referéncia aos humanos. “Sao movidas por um impeto interior de procurar, descobrir, aprender [..1] Sao valentes, determinadas, dispostas a fazer perguntas dificeis; deixam a rotina de lado na busca resoluta pela verdade”. Ele observa que elas niio so como os papagaios que “ficam na mesma gaiola, ciscando na mesma vasilha cheia de sementes ¢ owvindo as mesmas palavras |...] até conseguir repeti- -las com facilidade”.” A analogia aqui é a de que pessoas que se atém a sabedoria hu- mana ou que aceitam qualquer ensino como sendo inspirado por Deus sao semelhantes aos papagaios. Ja as “4guias” sao aqueles que sabem identificar com mais clareza as diferencas entre a loucura de Deus e a sa- bedoria humana (1.25). Corintios 1.18-31 aS eYa tahiti a} A sabedoria de Deus aplicada as quest6es da vida Espir _Para entender o texto Texto em contexto A realidade da inclusao dos membros da igreja na comunidade de Cristo nao apenas comprovava claramente que a sabedoria de Deus era extraordindria (1.26-31), mas que a prépria vida e a pregacao de Paulo também eram provas inequivocas de que a sabedoria divina superava com facilidade qualquer sabedoria humana oferecida em Corinto, Embora Paulo evite chamar a si mesmo de ididtés, termo usado para des- crever o homem comum que nao era filé- sofo (amante da sabedoria),' ele fala, sim, de sua entrada no cenério corintio para ilustrar como Deus usa as coisas comuns. Assim como os corintios quando foram chamados, Paulo nao era nada aos olhos do mundo.’ Ao contrario dos corintios, porém, Paulo no tinha desejo algum de exibir suas préprias realizagdes. Tinha ido até I com 0 propésito tinico de proclamar a Cristo. Depois desses lembretes a respeito do inicio da igreja, Paulo amplia a discussio ACorintios 2.4.46 34 central A sabedoria de Deus 6 compreendida apenas por meio da revelacao do ‘0. Maturiade espiritual resulta de aplicar a sabedoria de Deus a todos os aspectos da vida. ¢ inclui palavras-chave que as panelinhas em Corinto gostam de usar. Os cristios corintios empregam indevidamente termos como “maturidade”, “sabedoria”, “conhe- cimento” e “espiritualidade”. Os termos em si ndo sao errados, mas precisam ser reinterpretados & luz da sabedoria de Deus. Consideragées interpretativas 2.1 0 testemunho acerca de Deus. Varios manuscritos biblicos importantes trazem “mistério” (mystérion) em vez de “testemu- nho” (martyrion) de Deus.> Nesse contexto, porém, a diferenca de significado entre as. duas variantes parece ser pequena. Paulo argumenta claramente que 0 contetido de sua proclamagao Ihe foi dado como reve- lagdo de Deus ¢ nao se originou em pen- samento humano. O testemunho de Deus a0 mundo, a salvagao que ele oferece por meio de Cristo, continua a ser um mistério para a sabedoria humana (2.7) que excede a compreensio dos nao espirituais (2.8,13). 2.2 nada enquanto estava com vocés, a nio ser Jesus Cristo, e este crucificado. Como o restante da carta mostra com cla- reza, essa declaracio nao é absoluta nem doutrindria — como se Paulo nao falasse de outra coisa nem explicasse outra doutrina sendo a morte de Cristo, Antes, a inten¢io de Paulo é destacar a distingao entre sua mensagem “modesta” e a mensagem “ele- vada” (hyperochén [2.1]; NIV: “eloquéncia”) dos filésofos. 2.3 com fraqueza, grande temor e tre- ‘mor. A aceitagio da mensagem de Paulo pelos corintios nao se deveu a sua forca e convicedo pessoal. Antes, Deus demons- trou 0 contetido de sua mensagem ao usar uma pessoa fisicamente fraca como Paulo (GI 4.14; 2Co 10.10). A aparéncia de Paulo demonstrou a vitéria de Cristo por meio da fraqueza (1Co 4.16; 11.1). Seu. temor e tremor nao eram decorrentes de ‘um sentimento de inferioridade em relagio aos “eloquentes”, mas da preocupagao de que tanto sua mensagem quanto sua vida fossem um retrato fiel de Cristo. 2.4 nao com palavras sdbias e persuasi- vas. Essa afirmagdo nao deve ser interpre- tada equivocadamente como se Paulo favorecesse a pregacio inepta ouos | discursos apresentados de modo defi- ciente. Antes, sua intengao éenfatizar que ele nao se fia nos artificios retéri- cos astuciosos usados pelos oradores cujo objetivo é alcancar a fama. uma demonstragao do poder do Espirito. Paulo foi a Corinto para mostrar nao sua propria forga, mas © poder do Espirito de Deus na fraqueza humana. A dispari- dade é apresentada aqui do modo mais enfé- tico possivel. Em contraste com a astticia humana ea habilidade de per- suadir encontra-se a demonstracio da Principais temas de 1Corintios 2.1-16 * A sabedoria de Deus € revelada na cruz e nao diz respeito a sabedoria humana. * Somente o Espirito de Deus pode interpretar a sa- bedoria de Deus para os cristaos. = O Espirito de Deus concede poder aos cristaos para que demonstrem a sabedoria de Deus. * Maturidade espiritual significa manifestar @ mente de Cristo em todas as questées da vida. presenca e do poder de Deus (4.19,20). ‘A linguagem de Paulo é intencional. Langa mao do vocabulario das escolas de reté- rica (persuasio, demonstragio, poder) elimina qualquer ideia de que a demons- tracdo de Deus é, de algum modo, menos persuasiva que os discursos pronunciados por oradores humanos. Como Aristételes ensinou quatrocentos anos antes, persuasio (pistis) “é, sem dtivida, uma espécie de de- monstracao, uma vez que somos mais ple- namente persuadidos quando consideramos que algo foi demonstrado”.* 2.5 para que a fé de vocés nao se baseasse na sabedoria hu- ‘mana, mas no poder de Deus. O que con- duz.a fé (pistis) nao éa sabedoria humana, mas ‘A mensagem de Paulo dependia do poder do Espitito Santo, e nao de'palavras sibias e persuasivas’ (2.4), em Contraste com os sofstas da época que usavam oratéria | elegante e palavras astutas para atralr sequidores Herodes Atica, cujo busto aparece na fotografia, era um sofista rico e lustre do segundo século dC. ACorintios 2.1.16 © poder de Deus. Caso Paulo use pistis com seu significado retorico técnico, referente a “prova demonstrada” (em contraste com seu uso teolégico referente a0 compromisso do cristo com Deus), sua argumentacio é aainda mais forte. A prova que os corintios buscam se encontra no poder de Deus, e nao em argumentos humanos. Tendo em vista 0 contexto, é até possivel que Paulo esteja fazendo um jogo intencional com 0 sentido duplo de pistis. 2.6 sabedoria entre os maduros. Entre duas segdes importantes apresentadas na primeira pessoa do singular, Paulo muda agora para a primeira pessoa do plural a fim de fazer uma afirmacao mais ampla acerca de seu ensino de modo geral (2.6-16). A sabedoria que Paulo ensina por onde passa é entendida pelos cristios maduros. Aigreja em Corinto deveria ter conseguido compreendé-la, mas suas ages mostram que isso nao ocorreu. Seus membros nao passam de bebés que ainda precisam de papinha (3.2). Ao contrario do que os corintios pareciam imaginar, a “maturi- dade” nao divide a igreja em cristéos de “primeira classe” e de “segunda classe”. Nada é dito a respeito do nivel espiritual alcancado; apenas a aplicacao da sabedoria de Deus. Os maduros so aqueles cujo en- tendimento e ages sio transformados pela cruz de Cristo. Os imaturos sao aqueles que continuam a viver com base na sabedoria humana e somente acrescentam experién- cias extraordinarias e pontos tedricos de ensino a sua forma de pensar. Suas agdes nao mudaram; eles sio semelhantes aos que rejeitam a cruz. 2.7 da sabedoria de Deus, 0 mistério que tem estado oculto. © participio perfeito passivo em “tem estado oculto” explica a sabedoria de Deus como uma sabedoria que tem estado oculta ao longo das eras ¢, até certo ponto, ainda permanece assim no presente.’ Nao é uma sabedoria nova, ACorintios 2.4.46 passageira, mas uma sabedoria verdadeira desde antes da existéncia do tempo. Até mesmo nessa época, Deus tencionava que ela fosse revelada em Cristo. 2.9 O que olho nenhum viu, 0 que ou- vido nenhum ouviu.§ Os sentidos do ser humano podem influenciar suas conside- rages, mas, por si s6s, nao sio confidveis ‘como meios para entender 0 coracdo e a vontade de Deus. 2.10 coisas que Deus revelou a nds por meio de seu Espirito. Para o apéstolo,como para todos os cristaos, a diregao para a vida provém do Espirito de Deus, e nao de ora- dores humanos. Somente 0 Espirito de Deus pode conceder o poder necessario para a pessoa viver com 0 objetivo de manifestar a sabedoria de Deus (2.4). 0 Espirito sonda todas as coisas, até mesmo as coisas profundas de Deus. substantivo neutro “coisas profundas” pode ser traduzido como “profundezas”, “Areas”, “pensamentos” ou “preocupa- ges”. Os seres humanos podem buscar sabedoria em muitas dreas, mas somente 0 Espirito é capaz de sondar as profundezas do coracao de Deus e revelé-las aos seres hu- manos. Esse fato no deve causar surpresa; o mesmo se aplica ao espirito de uma pessoa (2.11). Ninguém, exceto a prépria pessoa, conhece seus pensamentos mais recénditos. 2.12 o Espirito que procede de Deus [..] as coisas que Deus tem nos dado gra- tuitamente. Deus agiu de modo deliberado ao conceder seu Espirito. Embora a igreja usasse a linguagem do Espirito, parecia ter perdido de vista o motivo pelo qual Deus tinha enviado seu Espirito. Deus conce- deu seu Espirito nao como recompensa aos “sdbios”, mas para capacitar todos os cristdios a compreender a magnitude da da- diva divina por meio de Cristo. As pessoas verdadeiramente espirituais sio aquelas cuja vida mostra que compreenderam a sabedoria de Deus. 2.13 explicando realidades espirituais com palavras ensinadas pelo Espirito. Por meio da mudanca de género entre duas palavras de outro modo idénticas,’ Paulo reafirma que 0 propésito do ensino do Espirito é ajudar a igreja a reconhecer entender a natureza espiritual da realidade. O Espirito de Deus é 0 intérprete da sa- bedoria de Deus. Aqueles que nao tém o Espirito, os nao espirituais (psychikoi), nao conseguem sondar os propésitos de Deus ‘compreendem de modo equivocado a ago de Deus (2.14). 2.15 A pessoa que tem o Espirito faz julgamentos a respeito de todas as coisas. Paulo nao argumenta que a pessoa que recebeu o Espirito esta isenta de censura em todas as coisas. Antes, conduz seu ar- gumento retérico a sua conclusio plena. Se alguém tem verdadeira maturidade es- piritual, a sabedoria da cruz guiaré todas as suas decis6es ¢ influenciard todas as suas atitudes. Nenhum critério superior a esse é oferecido, e nenhuma sabedoria humana Paull falou aos corintios ‘ndo com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas com | palavras ensinadas pelo Espirito” (2.13). As palavras de Paulo eram diferentes das palavras dos oradores do primeiro século dC. Para esses retdricos, o objetivo principal era apresentar iscursos eloquentes, persuasivos e engenhosos ‘O contetido se tornou secundério.A fotografia ‘mostra 0 dideion na antiga Corinto, um local para eventos de oratdria, musica e poesia 6 capaz de ultrapassé-lo. Os individuos es- piritualmente maduros sio guiados pelo Espftito, que sonda as profundezas de Deus e revela a mente de Cristo (2.16). Consideragoes teolégicas Assim comoa sabedoria divina tem um alvo diferente da sabedoria humana,a natureza humana pecaminosa é incapaz de entendé- cla e se recusa a aceitd-la. Ela precisa ser revelada ao cristio pelo Espirito de Deus. Somente o Espirito de Deus pode abrir os olhos do cristo para a sabedoria ¢ para 08 caminhos de Deus. Para ensinar o texto Ao permitir que a cultura ao redor influen- ciasse seu modo de pensar, os cristdos em Corinto haviam passado a reinterpretar a prdpria mensagem do evangelho de ma- neiras que a faziam parecer mais proxima da sabedoria humana que da sabedoria divina. Até mesmo seu entendimento da espiritualidade e da maturidade crist havia se tornado distorcido. 1. Os crist@os devem se preocupar mais coma fidelidade & mensagem da cruz do que com o carisma do pregador. Nao é de hoje que personalidades carisméticas atraem I eH grandes multidées com mais facilidade que individuos menos inspiradores. O encanto atual com preletores capazes de mexer com seu piiblico além do comum é ilustrado apropriadamente pelo velho ditado “sua pregacdo é capaz de vender geladei- ras a esquimds”. Essa expres- so faria bastante sentido em Corinto. Expositores eloquentes de sabedoria eram avaliados con- forme sua capacidade de“convencer esquimés a comprar geladeiras”. Nesse contexto, Paulo lembra os cristaos de que eles devem ter cuidado para nao con- fundir 0 contetido do evangelho com © ca- risma e a popularidade do pregador. Aqueles que apenas acrescentam rou- pagem crista a sabedoria humana nio estado pre- gando o evangelho. Sua fé se baseia, em tiltima anilise,na sabedoria dos homens, e nao no poder de Deus. 2. A espiritualidade cristé nao pode ser reduzida a reflexio bu- mana sobre a vida. Tornou-se comum usar © termo mais amplo “espiritualidade” em lugar de palavras como “cristianismo”,“fé”, “discipulado” e assim por diante. Depois de reconhecer a faléncia do materialismo secular, as geracées mais jovens agora teco- nhecem que precisam de espiritualidade. De modo semelhante 4 situagao na antiga Co- rinto, agora é moda ter interesse em questées espitituais e praticar disciplinas espirituais. Sem diivida, é bom que as pessoas parem para refletir acerca do significado e do pro- pésito de sua vida, mas como Paulo adverte ACorintios 2.1.16 Espirito capacita os cristaos a seguir a sabedoria de Deus. Na arte ena arquitetura cristis, a presenca € 2 atividade do spirito Santo sio retratadas, com frequéncia, por uma pomba. A fotografia mostra um vitral de alabastro acima do Altar da Catedra de S30 Pedro, na Basiica de So Pedro, em Roma, projetado por Gian Lorenzo Bernini, culo 17 dC. 38 os corintios, essa reflexdo nao é sinénimo de fé crista auténtica. Paulo insiste de modo categérico que, embora muitas espiritualida- des (sabedorias humanas) sejam oferecidas e seguidas, somente a sabedoria de Deus revelada na cruz tem 0 poder de salvar vidas aqui e de modo eterno. 3. A maturidade cristé é demonstrada por meio da aplicagao da sabe- doria de Deus 4 vida. Hoje,comono passado, as pessoas confundem capacitago com ma- turidade. Nesse texto, Paulo deseja deixar claro para os cristios que eles enganam a si mesmos se pensam que sao madu- ros porque tiveram certas experiéncias espirituais, tém certos conhecimen- tos ou sao capazes de falar com eloquéncia ¢ conviccao. Essas coisas tém pouca relagio com a maturidade crista. Pelo contrario, os cristaos demonstram sua matu- ridade quando manifes- tama mente de Cristo, ou seja, quando seu modo integral de ver a vida é norteado de tal forma pela mensagem da cruz a ponto de transformar suas atitudes e acdes. Ser cristo é ser cheio do Espirito de Deus, 0 Espirito que revela ¢ interpreta 0 coracdoe © propésito de Deus para seu povo. 4. O Espirito capacita a vencer a ten- tagao de agir conforme a sabedoria hu- mana. £ dificil romper com habitos. Nao é facil nadar contra a correnteza. Pode ser perigoso destacar-se da multidao. Essas expressdes ilustram a dificuldade de levar uma vida conforme a sabedoria de Deus. A tentacao de mudar pouco ou nada em seu estilo de vida depois de tornar-se cristo é enorme. A luz das pressdes culturais do mundo ao redor e de outros membros da igreja, é mais facil seguir a maioriae reduzir a f€ a um aditivo, algo que acrescenta & vida uma nuance ou um sabor diferente. Agir como Cristo, considerar outros maio- res que nés mesmos, abrir mao de direitos pessoais, aceitar 0 sofrimento quando po- deria ou deveria haver elogios nao ¢ facil. Mas, como Paulo argumenta nesse texto, 0 Espirito de Deus capacita os cristios a vencer esses medos e essas dificuldades. O Espirito capacita os cristios a seguirem a sabedoria de Deus. _Para ilustrar 0 texto A vida crista é organica: 0 que se cré e como se vive sao inseparavels. Gitagéio: “Religion and literature” [Reli gio e literatura], deTT. S. Eliot. Para Eliot (1888-1965), tudo o que fazemos nos afeta, especialmente aquilo que fazemos nos mo- mentos de lazer. Como ele afirma a respeito da literatura nesse ensaio repleto de sa- bedoria, “aquilo que fazemos ‘puramente por prazer’ pode exercer a maior e mais insuspeita influéncia sobre nds. O [que fa- zemos] com 0 menor esforco pode exercer a influéncia mais simples ¢ insidiosa sobre 16s”. Ele prossegue observando que precisamos estar plenamente cientes de duas coisas ao mesmo tempo: daquilo que “gostamos” e daquilo que “devemos gostar”. Poucas pessoas sio honestas 0 suficiente para ter consciéncia de ambas Cabe a nés, como cristaos ¢ tam- bém como leitores de literatura, saber do que deveriamos gostar. Cabe a nés, como homens fe mulheres] honestos, no pressupor que devemos gostar de tudo de que gostamos; e cabe a nds, como cristios 39 honestos, nao supor que gostamos do que devemos gostar? Estude as Escrituras visando sua vida, e nao apenas o estudo biblico como fim em si mesmo. Gitacio: Recomendagdes aos jovens ted- logos e pastores, de Helmut Thielicke."” Convém ao individuo que estuda teolo- gia, e especialmente ao que estuda teo- logia dogmatica, observar atentamente se nao pensa cada vez mais na terceira pessoa, em ver da segunda. Vocé sabe a que me refiro. Essa transicao de um nivel de pensamento para outro, do re- Jacionamento pessoal com Deus para a mera referéncia técnica é em geral, sincronizada de modo exato com 0 mo- mento em que deixo de ler a palavra das Escrituras Sagradas como palavra para mim, e passo a vé-la somente como objeto de esforcos exegéticos, A espiritualidade cristé néo pode ser reduzida a reflexao humana sobre a vida. Citagio: Dorothy Sayers. A erudita e escri- tora inglesa Sayers (1893-1957) tinha uma preocupacio especial com a linguagem ¢ considerava que o ensino da teologia nao devia ser colocado nas méos de amadores, pois temia que as pessoas fossem desenca- minhadas. Em 1939, escreveu a um membro do clero a respeito de “livros publicados com titulos devotos”: Em primeiro lugar, a maioria deles nao é esctita com o devido esmero; muitas vezes as ideias sao aceitéveis, mas se encontram permeadas com palavras enfadonhas. Se querem dizer “raca de viboras”, por que calhas d’4gua nao dizem “raca de viboras”? Cristo néo disse “uma comu- nidade inteira infectada por uma ideologia doentia”. Falou de “viboras” e era isso que queria dizer. Se pretendem dizer que a igreja tera de ser crucificada pois, do contrario, desaparecers, por que nao o dizem? De nada adianta afirmar: “E pro- vvel que um tempo de provacao esteja diante de nés”."! ACorintios 24-46

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