You are on page 1of 15

Michael Vincent Miller*

Quando iniciamos a preparação da nova edição do The Gestalt Journal


do Gestalt Tlierapy Verkatirn de Frederick Perls, decidimos que o livro
merecia uma introdução nova - unta que situasse semelhante
contribuição sign ficativa para a lite?-aturade Gestalt numa perspectiva
histórica e teórica adequada. Pedimos a Michael Vincent Miller -
rnemhro de nosso conselho editorial e critico contribuilzte do The New
York Tiines Book Review - que escrevesse u m a introdução. Ele
concordou. O resulkado,foi esplêndido, e acreditamos que ela deveria ser
lida por todos na comunidade da Gestalt. Como muitos de nossos
assinante.s ia possuem exenzplares de edições anteriores do Gestalt Tliera-
py Verbatim (Gestalt Te?-apiaEcplicada), pai-eceu-nos injusto,forçÚ-10 a
pagar US$ 16poi- u m exenzplar da nova edição, somente para ter acesso
a introduçüo de Miller. Assim, esta épublicada aqui da mesma maneira
que na edição deTlie Gestalt Jouriial do Gestalt Tlierapy Verbati111 de
Frederick Perls.**

Joe Wysong

A prinieira vez que vi Freclerick "Fritz" Perls demonstrar a Gestalt terapia - foi em
1966, e ele já estava na faixa elos setenta anos estava vesticlo com calças largas e
-
clescoloricl;~s,e un3 dashiki africano bordado. Parecia luais uiil velho pintor boêinio do
que uiu psiquiatr;~europeu. Estávariios sentados em círculo e, de vez etn quando, uin
cle nós coi-ria par:\ 11111par cle cadeiras vazias perto ele Perls, para "trabalhar" um sonho
ou apresentar alguiii outi-o peclacinho de nós, para que ele o examinasse. Fumava uin
cigarro atrás do outro, durante todo o trabalho. Eni lugar das interpretações clo
psicai-ialista, ele bradava orclens como uin treinador de ballet ou L I I ~clii-etor teatral, com
uin sotaque aleii~Xogutural teniperado com a linguagem Iiippie da costa oeste. Quando
alguéiii clesempenhava um "papel . falso" (uni cle seus termos pejorativos favoritos),
-

m o s t ~ ~ v a - senfaclado
e ou irritado, revirando os olhos de frustração ou descrença

* The Gestalt Journal Vol XII, n", Spring 1989.


" Por isso apresentamos: para que os leitores brasileiros que ja possuem o "Gestalt Terapia Explicada" tenham
acesso a ela. (tradução de Luis Fernando F. da R. Ribeiro) Texto gentilmente cedido por Walter Ferreira da Rosa
Ribeiro. para publicação nesta revista. Agradecemos a Joe Wysong pela autoriozação para publicaçáo.
siinu1acl.a~.Muitas vezes, contava piadas sarcásticas i s custas dos "pacientes" voluntários,
coino uin daqueles cô~nicosde clube noturno que passeia de mesa em inesa com seu
inicrofone provocanclo os clientes, einbora geralineilte acontecesse de liaver propósitos
terapêuticas astutos incorporados nas piadas cle Perls. De ve7 em quanclo, ele irradiava
a@fovaçâo quando alguéin se aniinava e expressava uina einocão convincente. Ele era
malicioso, vulgar, íntimo, intiiniclaclor, brilhante, sedutor, rabugento e temo. Eni todos os
aspectos, seu corriportainerito diferia extremariiente da neutralidade iinpassível
considerada necessária para a prática da psicanálise, que iiaque1:i época ainda dominava
o inundo clínico.
Eu tinha siclo atraído por u m boin ainigo, um assistente social que estava sob
ti-einainento coin Pei-ls, para uin workshop de fim de seinana para psicoterapeutas. Perls
conduzia esses workshops uina vez por mês ein diversos locais na ái-ea da Baía de São
Francisco - este teve lugar na sala de estar de uin apartaineiito labiríntico que dava
vista para a baía, de cima d e uiii cios inorros singulariiier~teíngreiiies de São Francisco.
Einpoleirado ali em cima, entre uina turina de terapeutas, cercado pelo oceano, senti-me
uiil tanto atordoaclo e desorientado, uin estado iiiental coinuin ein São Francisco durante
os anos sessenta, já que tropeç,ávaliios d e experiência nova em experiência nova, quase
diariamente. A disposição de ânimo na sala era de conceiitraçiio intensa inisturada a uina
ansieclacle ou excitaiiiento contidos - era difícil dizer qual clas duas estava inais
presente. Realizar o "crescimento pessoal" tinha-se tornado um clos novos lieroísriios dos
anos sessenta. Havia até uina espécie d e zuniclo sexual no ai-, coino se a proriiessa cle
tanta auto-irevela@o fosse uin rito orgiástico. Leinl~ro-iiiede uma garota d e sandrílias
com G ~ l ~ e l negros
os que cliegavaiii até a cintura, uma espécie de prostituta de cainpanha
de Perls, que flertou coinigo até cl-iegar a ininha \.ez na cadeira v;lzia. É possível que
essa fosse sua inaneira cle participar no processo lerapêutico. Devo ter dito algo tolo, ou
talvez apenas deixei de clrainatizar suficienteiliente ininha personaliclade, porque ela
perdeu o interesse iiiiecliataiuetite. Senti-iiie coino uiii centsoinédio principiante que
tinha-se atrapalhacio coili a bola e perdido ininlias esperansas com a líder cla torcida.
I'ensá\iaiilos estar testemunhando o nasciniento de uina tei-apia nova, urna opiniâo que
Perls cultivava, einboi-a a Gestalt terapia tivesse quase vinte anos de idade. Mas aincla
não era inuito coiiliecida, e ele estava cheio de energia e iiiipaciência, corno a l g u é i ~ ~
com pressa de tirinsiuitir sua iiiensagem antes que fosse tarde demais. De Fato, ele tinlia
soinente mais quatro anos de vida.
Tainbém me leiiibro de meu espanto enquanto obsel-vava uma mulher q u e
trabalhava coin saúde mental, enorinemente obesa, prorromper ein soluços de mágoa
prof~~ilda, instantes apds Perls ter-lhe peclido que imaginasse que era uina baleia
encalhada na praia. A baleia tinlia surgido nuin sonho sobre a vida maririlia que ela
tinha acabado d e relatar. Incitada por Perls, parecia que tinha-se dissolvido diante dos
nossos olhos, transfor~nando-senuma criança negligenciada, sozinha no seu quarto,
larnentanclo ainargamente o vazio de sua existência. Geralmente esse tipo de epifania
acontecia - se é que acontecia - soinente após um longo período de terapia. Quando
Perls Ilie disse, à inedida que suas lágrimas secavam, que se tornasse o mar ein seu

. ~. _L ._ , ~.. . ~ TI-. ~ ~.
~ ~~ .,, .~ ----. &.
sonho, sua figura enoinle pai-eceu ser por um instante não somente o fardo visível de
seu ódio ele si inesnla, inas uin indício de que poderia ter vida eiil abundância.
Quando deixou a cadeira - Perls a chamava de "cadeira quente" (hot seat)', e
. parecia sê-lo - foi substituída por uin psiquiatra, cuja conduta arrogante deixava claro
que ele já sabia tudo o que queria saber a respeito de si inesmo. Expôs utn sonho para
Perls, no qual estava dii-igindopor uin trecho longo de uina estrada que passava por
uinu zona agrícola abanelonada. Após dizer alguns gracejos sobre sua pomposidade e
seu auto-controle rígido, talvez para amaciá-lo, Perls retirou-o do assento do motorista,
e iiiandou-o trocar de cadeira e falar como sendo a estrada. A arrogância do psiquiatra
desinoi-onou e no inoinento raivoso de utn garotinho, disse: "todos passam por cima ele
nlim". Fiquei iinpressioi~adomais urna vez pela velocicktde inexplicável cotn que esse
tiiétoclo imergia as pessoas ern áreas da infância há muito esquecidas, ou trazia a luz,
clrainaticainente, contraclições ocultas eni suas personaliclades. Não havia desvios via
inconsciente. A experiência da infância estava repentinainente acessível ele inaneira
siinples, e a pessoa estava dentro dela.
Pei-1s estava especificaiilente preoc~ipadoem clescobrii- e suscitar oposições. Muitas
vezes criava uil-ia espécie ele cliálogo entre polaridades - adulto e criança, ou
contrasvanclo as iinagens nuin sonho ou os aspectos incongiuentes da aparência ele uina
pessoa - einpreganclo as duas cacieiras. Ele explicava que uina vez que esses lados
diferentes de urna pessoa desabafassern, expressanclo suas clivergências, podei-ia ocorrer
uin encontro. Então o adulto "inautêntico" (outro ele seus diagnósticos favoritos),
ocupado coin o encobriinento das vulnerabilidades ou coin a sua eliininação, poderia
clai- um passo erii clii-eçào a uma maturiclade mais genuína.
As pessoas nesse grupo - profissionais da saúde inental altamente qualificados cle
hospitais, clínicas e consultórios particulares locais - sucessivainente choraram,
esbi~avejaraiiie clei-a111risaclinlias nervosas ã rneclida em que subiain a bordo da cadeira
quente. Meu assombro ti.ansfortnou-se em consternação, quando u n a mulher inagra,
vesticln ele nx~neimelegante - uma psicóloga - subiu ao assento e confessou sua ânsia
cle peiclai-. Perls clisse "vá ein fi-ente", e então ela foi. Eis uina oposição que
possivelniente pocle ter sido terapêutica, tnas que ultrapassou as categorias l~aabituaisde
cliagnóstico. Talvez o objeto fosse fazer o self reentrar em contato coin sua natureza
anitnal priinorclial, ou transmitir utna inensagem para o grupo, de que inesmo portadores
ele doutoracio bcni vesticlos soltain pum. Mas uina coisa ine parecia evidente: claclos
psicológicos iinportantes, que tinham sido reprimidos, descartados ou repudiados de
alguma rnaneisa, estavam sendo revelados quase instantaneamente, corno por exernplo
a inenininha triste, inagra e carente que surgiu da baleia encalliada ela profissional de
mude mental obesa, ou o aluno de terceiro ano priinário submisso e ressentido que
clespontou ela supei-ioriclade altiva do psiquiatra. Foi soinente algum tetnpo depois que
passei a perceber que essas inetainorfoses surpreendentes poderiam abrir as portas para
explorações terapêuticas ulteriores, mas que não eram a terapia propriamente dita. O
auto-desvelainento dificiltnente pode ser assimilado de inaneira tão apocalíptica.
Estes erain os anos sessenta, e esta era a versão de Gestalt terapia (ele tinha

' E também o apelido popular da cadeira elétrica (N. do T.).


passacio por várias) que Perls desenvolveu para adequar à época. Era uina época de
sonhos anarquistas utópicos, de experinientos botânicos e quíinicos coin a realidade, de
ataques grotescos contra a b~irocracia,de caminhadas iradas contra a guerra e a
opressão cle minorias. Os jovens estavam estericlendo os ideais de~iiocráticosao extremo,
"insistindo na liberclacle de cada uin de expandir os horizontes da experiência e ele
exercer a auto-express3o plena sexual e einocionaltnente, assiin coino politicainenre.
Vesticlo com suas calças largas e seu dashiki amari-otado, zombando ela presunçào de
autoriclacle entre os profissionais ele saúde mental em seus grupos, sopranclo fuin:~ça
clestleilhosaiiiente para o teto, ou olhanclo clistraidainente pela janela quando as pessoas
confessavam sua aflição ein tons de auto-comiseragào ou ocultavain sua hostiliclacle por
trás cio respeito e c h cortesia, Perls parecia inuito a vontacle etn ilieio a uina gera!;ão
iebelcle. O pi-óprio fiiil de seinana foi cheio de aconteciinentos clesconcertantes. Alguiiias
personalidades parecian-i ser transformadas na hora, alguns sintoinas ciesapareciatn em
pleno ar - eu não tinha a ineilor idéia, na época, se isto era inoiilentâneo ou definitivo.
Eu era u111 estudante de pós-gracluação em literatura na University of California naquela
época e, enquanto Perls convencia psiquiatras de aparência eminente a falar e
con-iportar-se coino animais de circo, elevaclores, chafarizes e guarcla-chuvas, em sua
maior parte iiix~geilsclerivaclas de seus sonhos, pensava coinigo iiiesnio: "seri que a
metáfora pocle chegar realmente a esse ponto?". De q~ialquermaneira, seu efeito sol~re
iiiiin foi cluraclo~~ro: clesen~icleouminha inudança subsequente, quando deixei de
oferecer aos estuclantcs exegeses de "Tlie Rape of the Look" e cle Moby Bick, e passei
a pelejar com as iurrativas elas pessoas a respeito delas próprias.

Gest~tltTerapia Explicada é puro Perls, uina serie de atu:~çõesao vivo no final clos
anos sessenta no Esilem Institute, aquela cidadela de auto-realização d:i costa oeste. Eis
o f~inclaclorcarismático ela Gestalt terapia exibindo sua engenliosiclacle e inventiviclacle,
sua farfaronice, seu eiiipenho de proinover, e a tendência a recorrer a slogans de
vanguarda, assini coino sua perspicacia clínica foca cio coinuiii. Estamos presentes
quanclo ele iinprovisa palestras, escutamos suas opiniões sobre a natureza liutnana e ,a
culturn conteiiipoiânea, dadas nuina atitude inforiiial de autoriclacle últiiiia, e, sobretuclo,
teste~iiunhamosseu estilo teatral ele fazer com que as pessoas representem de novo sc:us
sonhos ou interpretem seus personagens sob a forma de diálogos e paródias. A melhor
maneira de descrever o livro é dizer que foi falado, rin lugar cIe escrito, já que foi feito
quase inteirarilente de fitas ti-anscritas dos últiinos workshops e seminários ele Perls. Hoje
pode-se encontrar grande núinero ele tei-apeutas bein conheciclos que vencleni seu peixe
em livros transcritos ou ein fitas e filmes. Mas, quanclo Perls o fez, o gênero era
relativaiileilte recente, e dificilinente obteinos uin retrato rão perfeito e íntiino quanto o
foineciclo por Verbatim (Explicada). Perls não ocultava sua personalidade por trás de
suas técnicas.
Há tanta boa vontacle e tanta energia auspiciosa provenientes dos grupos
niencionaclos neste livro, que você poderia pensar que suas páginas estivessein
infiltraclas pelo sol californiano. Mas Gestalt Therapy Verbatim (Gestalt Terapia
Explicada) está inscrito firmemente no estado de ânimo dos anos sessenta, e clesta
clistância, quase vinte anos depois, suas cores estão uin pouco clesbotadas e são uin
pouco berrantes, coino uni velho cartio postal de uin lugar exótico. Não tem nenhuma
pretensão de expor uma teoria ou prática ele maneira abrangente. Animado, ad hoc,
inspii-ativo,tornou-se inevitaveltnetlte o livro mais popular de Perls, uin fato que teve
um resultado des:istroso. Foi acolhido por muitas pessoas como se contivesse tuclo que
se precisava çaber para aprender Gestalt terapia, urna icléia que é patenteine~itefalsa.
Muitos de nós que Ienios Gestalt Terapia Expli~udaquando foi publicado pela
prinleira vez, o consideramos urn manifesto para urna revolução terapêutica nuina era
clieia de manifestos. Sentimos tanto prazer quanto desconforto quando Perls ainaldiçoou
o escolasticismo da teoria psicanalítica, e nos indicou, por meio de exeinplos, de que
~iianeiranos liberanios cio coinportamento liriiitado e ritualista de seus pi-aticantes.
Talvez suas objeções parecessem ainda mais convincentes em virtude de suas próprias
origens psicanalíticas sob orientaçâo de vários freuclianos importantes dos primeiros tem-
pos, tanto seguiclores quanto clissiclentes. Seus analistas e supeivisores incluíam Wilhelm
Ileicli, Icaren Horney, Otto Fenicliel e Helene Deutsch, entre outi-os. Agora ele estava
virando do avesso a :iusteridade cla psicanálise, conlo se sua inissão fosse inti-oduzir no
trai:lrnento tias alii-ias a arle ele organizar espetáculos. Imaginem, ele tornou a tei-apia
divertiela! A versão ele Perls cla Gestalt terapia em Verbatiin (Explicada) surge como uina
apostasia ousada enceriada como uin sliow ele mágica. Poderíamos iinaginá-10 coino urn
herético c1uc: seri-:i uma mulher ao tneio.
Dacla a iconoclastia clos anos sessenta, esta foi unl:~posição extreinaiiiente atrativa.
Isto explica porque Gestalt Therapy Verbatiin ulti~~passou bastai~~e(e é provável que ein
grancle parte tenha passaclo de lado) os círculos profissionais, para adquirir até certo
ponto uin status tle venei.a@o entre os novidacleiros do crescimento pessoal, terapeutas
incliscip1in;iclos e mai-giiiais e o público universitário ein Berlteley e C.ariibriclge. As açòes
iritrépiclas ein Explicada poodetn nos levar a esquecer que Perls nessa época estava
cleiiionstsanclo :i Gestalt terapia, e não a praticando. Como conseqüência, o livro
estiniulou alg~imasconcepções eri-ôneas bastante clifunclidas: clue a Gestalt terapia era
uin corijunto de técnicas, baseado no eniprego de duas cadeiras para o paciente, etn
lugar ele unia; que era uni ineio rápido e fácil de dinaniitar clefesas neui-óticas; e, ein
geral, que o estilo pessoal tle Perls era idêntico à própria Gestalt terapia.
Semelliantes idéias conf~indernuma Fase icliossincrática no desenvolvimento da
Gestalt tei-,~piacoiii a totalidaele clesta, e passam por ciiiia do que foi genuinaniente radi-
cal e inovador, notadarilente, seus pressupostos lúcidos, novos e do sentido comuni a
respeito do funcionainento humano. Elaborados por I'erls inuito antes ele seus anos ein
Esalein, etii colaboração com outros, esses ps.essupostos e suas conseqüências
representa111 unia contribuição duraclooura à arte esquiva da psicoterapia. Eles estão lá no
Ge.stalt Therap-y Verbatim, iras você tem de arrancá-los do anclaiine que Perls erigiu para
fins demonstrativos. O melhor é ler o livro junto com seus clois voluines anteriores, Ego,
Hzinger, nnd Agression e o voluine I1 de Gestalt nerapy: Excitement a n d Growth in tbe
Hziman Per.sonality. Ambas as obras anteriores foram einpreenclimentos conjuntos - a
primeira com sua esposa haura, que permaneceu uma co-autora invisível; a segunda com
paul Gooclman, que elaborou uin inanuscrito de Perls, tran~f~rinando-o ein algo
próximo a uma exposição teórica madura da Gestalt terapia.
Os mal-entendidos não são inteiramente culpa ele Perls, inas tainpouco ele se livra
inteiramente da responsabilidade. Muitos clínicos e inovadores noráveis da psicoterapia,
ele l%eud ein diante - Reich, Jung, Mílton Ericltson, R. D. Laing, para mencionar alguns
exemplos admiráveis - lançaram soiilbras ambíguas sobi-e as fileiras de seus seguidol-es.
Surgem ante nós etn meio a uma indistinção de papéis: eles são cientistas que penetram
nos segreclos da natureza humana ou curandeiros religiosos? Mesineristas, especialistas
ein prestidigitação? Charlatães? Gênios ilncoinpreenclidos, inaníacos ou até loucos? Sua
linhagein remonta ãs tradições primitivas - xamanisino e magia - ou eles provêm do
inuncio pós-newtoniano da lógica dedutiva aplicada ao ambiente natural? Talvez tenham
ele apresentar-se c01110 autoridades incontestáveis ou místicas para induzir os pacientes
a abariclonarein suas defesas e persuadir os alunos a se tornarem defensores. Diz-se,
coin frequência, que os poetas e os artistas têin ele criar seus públicos. Talvez os
fiincladores de escolas terapêuticas tenham cle criar tanto os pacientes quanto os
discípulos. Mas ao tornar-se uina figura extremamente influente' e carisinática, corre-se
risco ele produzir seguidores submissos e críticos tendenciosos. Ao apressar-se em
propagar o ev:iilgellio e cada vez mais indiferente ao pensainento sisteinático, I'erls
cleixou em seus últiinos anos uin legacio de vantagens ambíguas.
Apesar elas limitaçòes que sua forina irnpòe - e estas refletiaili ein sua maior parte
as limitações de Perls - Explicada ainda tein iiiuito a oferecer além de seu interesse
histórico. Perls trata a neurose cotno se fosse utim espécie ele estado de transe, unia
preocupação íntima com restos desconexos e inquietantes ela infância que afasta as
pessoas elo contato vital c0111 suas c i r c ~ ~ n s t â n presentes.
c~s Declara que a tarefa central
da terapia não é convencer os pacientes a aceitarem interpretaçòes arcanas ele sua
história remota, 1x1s ajuciá-10s a tornarern-se cônscios de sua experiência iinecliata no
momento presente. Esse objetivo não é realizado nem ela subsrituiçião da fiação dos
circuitos comportainentais; tnas tainpouco é efetuado pela mera liberação de einocão
(coino Perls parece estar sugerindo às vezes). Trata-e de algo mais parecido coni a
tomucla cle consciência da proxiiniclacle e da siinplicidacle elo i-eal descrita nestas linhas
de urn poeina curto ele Wallace Stevens:

In my rooin tlie worlcl is beyoncl rny understanding;


But when I walk I see that it consists of three 01- four hills
ancl a cloucl.

(No ineu quarto o inundo está aciina da minha compreensão;


Mas quando caininho vejo que consiste ein três ou quatro morros
e urna nuvem.)

Do ponto cle vista de Perls, o sarcasino, o humor, o drama e a comoção poderiam


ser todos empregados para incitar os pacientes a saírein ilos quartos corriqueiros cle suas
neuroses para o céu aberto. Ein princípio, seus inétodos teatrais asseinelhain-se aos ardis
de u111 inestre zen, como por exemplo golpear cliscíp~ilosque meditam com uina espada
ele rimdeira para rele~nbrá-10scla tangibiliclade do presente.
A espada de iuadeira não dispensa a necessidaclc ele longas horas de disciplina
gastas sentando em meditação. Tampouco existe algutn método ou técnica que elimine
o avanço lento e gradativo efetuado na terapia, investigando e desmantelando nossos
moclos costurileiros de organizar a realidade, que causam o nosso próprio fracasso. As
: iiloiltagens ligeiras que caracterizam as demonstrações de Perls em Gestalt Terapia
Explicada não se traduzem diretaniente nos ritmos da psicoterapia progressiva. Mas o
princípio f~indainental- sua ênfase na awareness e no contato no momento presente,
que clenoiuina de "aqui e agora" - pode ser extremamente útil. Modifica radicalmente
aquilo que o terapeuta e o paciente prestam atenyào ao possibilitar o início ern qualquer
riioiiiento, com qualquer coisa que o paciente ponha à clisposição - um sintoma, um
sonlio, uin suspiro, uma expressão facial, uina maneira ele sentar ou um tom d e voz, um
pensamento, uina ânsia ou uina sensação, o cerrar e descerrar de um punho, encarar ou
olhar para o outro lado, um retesamento físico, uin gaguejo, um silenciamento, uma
torrente repentina ele palavras ou um desvio para uma linguagem vaga e abstrata, e
clichês. N a Gestalt terapia, esses elementos não são tratados como m~irinúriose
sussurros que acompanham ulna sucessão ele associações, mas coino o cerne da
questão. O meio e a mensagem, a forma e conteúdo têm uma relagão quase contrária
à rela@o psicanalítica traclicional, onde os relatos do paciente e as interpretações do
tel-apeuta são priiiiordiais, enquanto que a maneira do paciente se apresentar permanece
periférica.
Einhora seja possível que essa inversão vire a análise de ponta-cabeça, iIão joga
tudo pela janela junto corri o divã. A significação revolucionária do tempo presente para
a psicoterapia tem cle ser coinpreendida eiii tertuos do que esta toiiiou emprestado dos
freuclianos assili1 coino do que descartou. Por exemplo, concentrar-se no que está
acontecendo no mon-ieiito na terapia é a elabora~ãoinais explícita da "transferência",um
fenô~nenoque os analista sempre trataram como um evento presente. Em seu ensaio
"Relembranclo,I<eepetindo,e Acabando", Freud vinculou a transferência 2 cotnpuisão de
repetigo. Afirinou que elementos do passaclo que escorregaraili por Fisssuras na
consciêiicia cio paciente se manifestaiii "não nu sua ~iieinória, mas no seu
coriiportaiiiento, ele os I-cpete,seni saber, naturalmentv, que os está repetindo." Em es-
pecial, e ele maneira iilais importante para a terapia, ele os repete no modo pelo qual
responcle ao terapeuta.
Tanto o analista quanto o Gestalt terapeuta pocleriain consiclei-ar essa repetisão
inconsciente como evidência de uma solução falha, que sobreviveu, de um problema
passaclo. IvIas onde o analista tenderia a erilpregar a ti-ansferênciapriinordialmente coino
uma pista de suas origens no passado, e explicá-las como tal para o paciente, o Gestalt
terapeuta se concentraria em ajudar o paciente a inventar urila solução nova na hora,
fazendo experimentos com o contato entre eles. Por exeinplo, utn paciente
excessivamente submisso (e prova\ieIinente obsessivo) que inibe sua crítica por causa do
clesejo de agradar, poderia ter ele descobrir como se clur suporte para ser crítico e
expressá-lo quando for necessário enfrentar algo desagraclável em sua vida atual. Ele
poderia coineçar por sua crítica do terapeuta. Essa diferenp I-epresentauma modiica~ão
iiiiportante na estrutura ela psicoterapia. A procura ele urna solução viável no presente
fornece à Gestalt terapia seu estíinulo para improvisar e experimentar em lugar de
explicar. A maioria elas animadas intervenções ele Perls ein Verbatiin se baseia nesse
pt-incípio. Na vida nioderna, sofreinos por causa de explicações eiil demasia. Isto pocle
ser uin reinanescente do passado, como a Icladeda Razão que persiste durante a Era da
Iilforinática. Precisanlos progreciir para alguma outra coisa - então, por que apegar-se
a explicações na terapia? A Gestalt terapia de Perls desistiu das explicaçõess; tornou-se
impaciente, clesejando que algo acontecesse. Afinal de contas, o acontecer é a ~nellior
explicaçào. Nesse sentido, ela tem alguma sen~ellianpcoin a arte e a literatilra
11-ioclernas,que tambéiii abandonaram a explicação e começaram a interessar-se pelo
inero clinainisino cio evento. No coineço do século, o poeta Ezra Pound caracterizou a
iiiuclança ria arte e na literatura: m e age dernanded a n irnagelof its accelerated grirnace
("A época exigia uizia i.epresentação/De seu esgar aceleraclo"). Os inoclos mais antigos,
?be obscure reveries/Of the inward gaze (Os devaneios soinbrios/Da conteinpla-ão
íntiina") não são nlais adequados à época. Suas palavras pocleriatn referir-se igualniente
com acerto às controvérsias sobre a psicoterapia em nossos tempos. A ineclicla que a
cultura e a sociedacle inudam, igualmente inudaiil as formas ele sofrimento inental. Os
tratamentos para mitigar a afliç5o psicológica nulna época podein ser inadequados ern
outra. Por exemplo, o "tratamento falante" de Freucl funcionava bern nas neuroses
vitorianas, porque os sintoinas floreaclos clestas refletiam as tensões sexuais que se
ocultavaiil na failiília clo século XIX. O tratamento psicanalítico antigo aliviava as
pessoas de seus ataques ele desmaio liistéricos ou suas fantasias obsessivas
atorinentacloras, trazendo 2 luz o sexo, carregado coni seus farclos cle culpa e negaçào,
onde poderia ser explicado. Foi uina jogada brilhante, essa conversão de segreclos ele
família e cle estado a respeito clos iinpulsos huinanos ein fofoca sa~iclável,sob o clisfarce
ela interpretação científica.
I-Ioje a maioria clos psicoterapeutas concordaria ern que as neuroses clássicas -
fixadas em poses I-ígiclasou Iânguiclas como estátuas cle inárinore para uni vestíbulo -
tornarain-se escassas. Dificilmente pocleríainos depencler clelas para encher iiin
consultório particular. As pessoas não fazein terapia tanto por causa cle sintoiiias
circunscritos coiuo poi- causa de uin rnal-estar inais gei-ai, uin clistanciamento ele siias
próprias viclas. Se muitas clelas ainda estão atormentadas com relação ao sexo, muitas
vezes estão e111 conflito com tudo o mais tainbéin - coin a intiinitlade nutil sentido
geral, coiii todo contato com os outros, com seu trabalho, seu próprio senso cle
iclenticlade e seu lugar no arranjo das coisas. Tornou-se cada vez mais cl~ividoso,para
tomar emprestadas as palavras ele Pound, que os devaneios sombrios e a contemplação
íntiiila da psicanálise pocleriain acompanhar o esgar acelerado das neuroses inocleri~as.
Coino conseq~iêilcia,as profissòes de saúcle inental vêrn lutanclo para inventar terapias
novas e revisar as antigas. A própria análise passou do sintoinático para o
caracterológico. Deslocando o locus da descoberta e da mudanca elo passado pai-:I o
presente e ela lógica das causas para o draina dos efeitos, Perls foi capaz ele ir iilais
longe: possibilitou ao paciente sob terapia iluminar e reexaminar a configuração total de
siia existência a partir da perspectiva do momento, como o cnunclo de Blake num grão
de areia. Desse modo, a constnição da própria vida pelo paciente poderia tranformar-se
mais numa opção e inenos numa suposta obra do destino.
Devido à sua iiilpaciência coin as explicações, a maneira pela qual Perls aborcl;iva
a teoria tendia a ser pragmática e eclética - alguns diriam oportunista. Em Fxplicada,
encontramos uina colcha de retalhos de conceitos einpi-estados e alinhavaclos de várias
tracliçòes. De Reich, que tinha sido um de seus analistas, Perls apropriou a noçâo de
couraça do caráter, que acrescenta às tensões psicológicas as tensòes físicas no caráter
neurótico. De Horney, que o tinha analisado e supenrisionaclo, apropriou a idéia de que
o cotnportainento neurótico se baseia na manipulação clestinacla a obter amor. Do
existencialisino sartreano, obteve sua insistência na responsabilidade indiviclual quanto
a moldar nossa própria vida. Da psicologia experimental cla Gestalt, utilizou os conceitos
de figura/'funclo e de situação inacabada para explicar a experiência distintz da realidade
que as pessoas tinhain, e de sua tendência a ficarem presas ein suas próp~iashistórias.
O que proporcioriou a tudo isso uma espécie de coei-ência foi a atenção profunda
de Perls à qualidade da vida no presente. Empregava os conceitos teóricos como lentes
através das quais examinava os fracassos das pessoas ein contatar suas circunstâncias
imediatas. Ein íiltitna instância, para Perls, o padrão de saúde é a habilidade de
experienciar o que é novo coino novo. Isto exige uma relação siinples, direta e
esrreinaixiente pessoal coin o inundo de cada um. Eiu contraste com a psicanálise, que
pressupoe que a natureza humana é urn enigma tnisterioso, Perls gostava de chamar a
Gestalt terapia cle "filosofia do óbvio", e de afirmar que não a tinha inventado, apenas
a tinha sedescoberto. Proclanlava que nossa cuit~irae nossos métocios cíe criação infantil
conspiravam para nos impedir de apreender o óbvio, iiiesino sendo nosso direito de
nascença reconhecer o óbvio espontaneainente. Perls clotou a Gestalt terapia cle uma
aura roinântica que a vinculada à noção wol-dsworthiana de que a criança é o mellior
filósofo, à ênfase de determinadas tradições espirituais orientais elii esvaziar a mente
para conhecer o inundo sein pré-concepções e aos esforços cla fenoineriologia e do
existencialisino pasa livrar nosso pensamento de clualisinos artificiais, tais coino causa e
efeito, sujeito e objeto, aparência e realidade, essência e existencia, consciente e
inconsciente. Da mneii-a como Perls a concebeu, a Gestalt terapia buscava recuperar
nossa inocência perdicka.

Os porta-vozes de terapias novas são muitas vezes induziclos a voos grandiosos


para além clas parecles da clínica ou do cons~iltório,e Perls não foi nenhuma exceção.
Às vezes se expressava ein tons proféticos e terríveis, cotno se a Gestalt terapia fosse a
últiii~aoportunidade de salvar o inunclo dus garras cla coriupfião neurótica. E111 In and
Out the Garbage PailL,sua autobiografia, escreveu que ele era o "possível criador de um
~nétodo'novo' de tratamento e o intérprete de urna filosofia vi5vel que poderia fazer
alguina coisa pela huinaniclacle." A pritneira parte clessa declaração é .inq~i.estionável;
ii~as
a segunda revela uma série de questões inuito diferentes daquelas colocadas por razòes
estritas do métoclo terapêutico. Transformada numa visão da boa vida ou da redenqão
do i~ial,a psicoterapia penetra numa zona nebulosa onde fica emaranhada em
iinperativos morais e ideologias culturais. (Nào estou certo de que alguma psicoterapia

PERLS. Frederick - "Escarafunchando Fritz - dentro e fora da Iata de lixo" - Surnmus, SP.1979
importante esteja tão clisposta a limitar-se às suas tarefas especializaclas que se abstenha
inteiramente ele especulaçòes cósmicas; nem a psicanálise nem o behaviorisino
esforçarain-se para evitá-las.)
A noção de que a saúde é uina espécie de volta ã inocência, na obra de Perls da
cléca2la de sessenta, sugere uma resposta a uma pergunta intrigante: de que maneira um
psiquiatra e psicarialista ref~igiadojudeu-alemão - uni procluto cla República cle Weimar
e cie sua cultura complexa - terminou como guiu reinante no Esalein Institute? No fi-
nal ela vida, cercacio pelas sequóias nativas e pelos penhascos pel-feitos que
iiiergulliavam no Oceano Pacífico sem transição, Perls epitomou um venerável tema
aiiiericano - o self redefinido, renovado, responsável somente ante si próprio 5
iinponência pastorai ela iinensiclão americana. Chegou até a parecer-se com o T1iort:au
ou o Whitman cla psicoterapia. A evoluçâo da Gestalt terapia não pode ser
compreendida cle modo totaltilente separado da americanização ele Frederick Perls.
Poder-se-ia descrever tanto sua vida como suas opiniões cambiantes coirio utna
passagem da histói-ia eui-opéia para a inocência americana.
Nasciclo num setor judeu de Berlin~ein 1893, Perls tinlia ter~l~inado a escola ele
rnedicina em 1921, e fez o treinamento em psicariálise durante o final dos anos virite e
o começo dos trinta. Fugiu cla Alemanha em 1933 coiii sua esposa Laura e sua fillia., a
primeira ele seus clois Fillios, visto que a subida dos nazistas ao poder começava a
aclquirir dimens6es graves. Com o auxílio de Ernest Jones, Pel-1s cliegou a Joanesburgo,
onde passou os próxiinos doze anos. Dui-ante esse período, ele e Latira escreveram Ego,
Ifz~nger.a n d Agwssion, uiii livro que api-esentava alguinas das idéias principais, aincla na
i ~ a i o rparte presris a um arcabo~içopsicanalítico, que posterioriuente Forarii incorporadas
ao clese~-ivolviineiltoda Gestalt terapia. Saiu da África elo Sul para seiupre eni 1946, para
fixar-se em Nova York, embora alguns anos nmis tarclc começasse as pera1iilx1kilaç6escluc
o levarain finalmente SI Califórnia.
A ri1igr:~çiogeog~.ál'icae cultural de Perls seguiu u m caininho baticlo. Desd(: a
época clas origens coloniais dos Estaclos Unidos, a busca da inocência Leiu siclo unia
paixão nacional I-ecorrente.As primeiras famílias que zarparam cia Europa para fugir à
perwegivâo religiosa, esperavam não somente construir ~111x1 vicla i~iellior,mas uma vida
in~eii;iiiiente nova no Novo Munclo. Quanclo pai-tiram cla Europa, cierarn as costas para
a história, e até para a própria idéia cle liistória. Esta era uina atit~ideinusitacla, pois os
europeus se acoiicliegarain sempre nos braços de seu passado, como se este o
eilvolvesse eiii segusança. A história perineia tudo na Europa, clas paisagens e cidacles,
cla arte e do pensaiiiento à política e 5 psicoterapia. Contudo, os americanos tendeiii a
considerar o passado, particularrnen~eo passaclo recente, coino unia fonte ele opressão
e cor~~ipçáo, e rejeitaiii-rio periodicamente ou rebelam-se contra ele na convic~âode clue
poclem esquecê-lo e coniepr de novo, co111o uma segunda oportunidade no Éclen. De
um ponto cle vista, a história não se inicia até depois do pecaclo original; sua tarefa é
pôr em prática as conseqüências desse pecado. Sob esse aspecto, a psicanáIis<t é
histórica até a ineclula. A visão cle Freud da natureza huinana nunca renunciou
realmente ao pecaclo original, que está por trás de sua tolerância da limitação e do
sofririlento, coino quando observou que a psicanálise libera os pacientes elo "sofririieiito
Iiistérico e os concluz à infeliciclade cliária". Contuclo, nos Estados Uniclos poderíamos ter
presuilii\relmente - ele imneira coino Ernerson o expressou - "uiiia relaçào 01-iginal
coin o universo", uma concepção perfeccionista, mística e enorineinente nostálgica clue
se reporta a um paraíso inteniporal antes da história.
Quando Perls chegou à Califórnia, as ruas estavam cheias da última efiisão da
inocência americana, a inocência impressionante e febril dos anos sessenta. Coino um
"
rio na maré enchente, ela entalliava novos tributários na cultura. Quase nada ficou
iiitoaclo pela força de sua corrente - o amor, o sexo, as escolas, o trabalho, a música,
a roupa, formas de divertimento e intoxicação, a co~nuniclacle,o governo. A nação não
podia mais fugir tão facilmente para guerras civis distantes, sob o disfarce do
anti-coiiiunis~no,nem praticar o racismo com iinpunidade. .Desencantados com o liberal
welfare state e com a vida nos subúrbios, os jovens lançaram um amplo ataque frontal
contra a clupliciclade e a inibição na sociedade americana. Vestidos como pioneiros, os
garotos que tinham ganho seus cliploinas em universidades urbanas se retiraram do
inei-cado de trabalho, e clirigiraiu-se a 51-easrurais remotas para viver da tema. Havia iiin
nilirnero crescente de terapias de workshop de fim de semana dedicadas à abertur:t e
autenticidade emocionais. Esta era urna geraçião que confiava eni seus próprios iinpulsos
acima cle tucio, e preferia o jovem Marx e o cristianismo priinitivo. Às vezes sua
inocência coin relação .:i história transforinava-se em ignorância oii negação, fazendo
com que alguns raclicais políticos esquecessem ele novo os horrores stalinistas na Rússia
ou tlesc~ilpasseinos expurgos inaoístas na China. Nunia era de desilusão, talvez a
inocência surja como a alternativa otitnista ao seu parente mais lúgubre, o niilisiiio.
Afi-ontosainente alegre, promíscuo, utópico e rebelde, o estado de âninio clos anos
sessenta Foi alternaclamente bem Ii~imoradoe irado e, de algum inoclo, conseguia ser, ao
inesino tempo sofisticado e ingênuo.
Sob uin aspecto, a Gestalt terapia de Perls assenielhava-se tanto aos raclicais
inilitantes quanto às flower children desluiiibraclas: ela dava preferência a uma
auto-expressão agressiva, que chegava As raias do que Saiti-e caracterizou como "aq~iela
violência diligente e quase saclista que chamo de uso pleno de nós rnestnos". PCI-ls
insistia em que, para viver no aqui e agora, tínliatnos de nos liberar das garras da
depenclência dos outros, que igualava muitas vezes com ser controlado pelos outros.
Nào que ele fosse uni solitário. Adorava platéias, festas, discípulos e encontros sexuais
efêinei-os. Próxiiiio ao fim da vida, coineçou a formar uma comunidacle utópica cle Ges-
ralt em Vancouvei-, onde os terapeutas se misturavam aos treinandos e aos pacientes
resiclcntes, uma serie de Brook Farm terapêutica. Contudo, tinha-se tornado cada vez
nmis inquieto coni os comproiiiissos que mantêm unidos os casamentos e as famílias.
Assim que se estabeleceu1 e111 Nova York, abandonou lá sua inulher e filhos e
perarnbulou para o oeste, como um daqueles cowboys, heróis ele Filmes clos anos
quarenta e cinquenta, que estava à vontade numa briga com tiros, nuin saloom ou niim
bordel, mas que se punlia a caminho das montanhas, quando a professora local inickiva
uma perseguição doinéstica séria. Eis outro tema, derivado do caráter de Pei-ls, que
floresceu quando chegou aos Estados Unidos, infiltrando sua terapia e aumentando seu
sabor distintamente americano. Há uma coisa sobre a satisfação do potencial individual
e muito pouca coisa sobre a intimidade no Gestalt Terapia Explicada. Como Einerson,
Perls tornou-se um apóstolo cla separaçáo, de espírito semelhante ao individualismo
etnersoniano I-aclical,o evangelho da auto-confiança: Tal era a mensagem da "Prece da
Gestalt", com a qual Perls rematava a introdução do Gestalt Terapia Explicada: "Eu faço
ininhas coisas, você faz as suas./ Não estou neste mundo para viver de acordo com suas
expectativas/ E você não está neste inundo para viver cle acordo coin as ininhas..." (:de
acordo coin a tracluçáo da Summus). Esta é uma aclvertência valiosa para adolescentes
que èstâo lutando para separar-se dos pais, mas é urn conselho cle utiliclacle Iiinitada
para pessoas que estejam tentando construir uni casamento bem sucedido ou viver ein
família.
O ajustanlento perfeito entre a vida americana nos anos sessenta e a Gestalt terapia
de Perls é ilustrado pelo fato de que a "Prece da Gestalt" apareceu nuin postes popu-
lar, que naquela época podia ser encontrado nas paredes das livrarias, ao longo da 'I'el-
egrapli Avenue ein Berkeley, colocados entre os reti-atos,não de Freud ou cle Reicli, mas
de Fidel Castro e clo Morto Agradecido (Grateful Bead). Perls se afundou tanto no aqui
agora de sua época que deixou para a Gestalt terapia a tarefa desconcertante de coino
sair do buraco e prosseguir.

Às vezes nos perguntainos se o teinpo não voa inais rápido nos Estados Unidos do
que em outros lu::ares. Menos de vinte e cinco anos se passarain, desde que aconte(:eu
o worksbop que clescrevi, e dezoito anos clescle a morte cle I'erls. Nesse ínterim, a Ges-
talt terapia sofreu uni destino seinelhante ao de inuitos outros clesvios radicais ou
vanguardistas dos estilos doininantes cla vida profissional e artística aiiiericana.
Enfi-aquece~i-se,iiias gatiho~iurna aceitação parcial, uma espécie cle êxito e li-ric;i:jso
siin~iltâneos.A Gestalt terapia pesnianece às margens do establishmcnt terapêutico, oncle
ni~ogera n~aismuita paixão ou controvérsia; a maioria cios psicoter:ipeutas oiiviraiii Lilar
clela, iiias relativaiiiente poucos sabem muito a seu respeito. Parte cle sua linguageiii -
contato, awaren,ess, o aqui e agora - toinou o lugar do "símbolo Elico" e clo
"complexo cle Édipo" na linguagein corriqueira da psicologia cle ii-iesa de Imr. Ilc \Tez
eiii quando, os Iiospitais, clíilicas, escolas de medicina, clepartaiiicnios cle psicologia e
de serviço social, as forças doiiiinantes no inunclo da psicoterapia, abrein suas poitas
para uixa palestra ou urn seiiiinário sobre Gestalt terapia. Os livros clidáticos
universitários sobre os métodos de psicoterapia tratain-na geralmente coino uiii conjunto
de técnicas, e a confiinclein cotn o psicodraina e as assiin charnaclas terapias einotivas
ou expressivas, uina representação falsa que mostra como se tornou clif~indic1:i a
tendência a identificar o gosto de Perls coin a totalidade da Gestalt terapia. Há niuitos
institutos cle treinamento de utn lado a outro do país, assiiii como nuinerosos terapeutas
particulares que se denotninam Gestalt terapeutas, e existeiii conferências e iiin
periódico triinestral, mas tudo isso não parece estar progredinclo para nenhuni lugar ein
particular.
Por que a Gestalt terapia estagnou ou entrou nuin deciínio de meia-idade a
despeito de sua juventude proinissora e revolucionária? Eni prinieiro lugar, uma
debilidade intelectual persistente continua a flagelar a Gestalt terapia. Considerando o
teiiiperamento de Pei-ls - sua proiniscuidade intelectual, seu talento para forinulaçijes
perspicazes em vez de sisteináticas, e sua afiniclacle com a inocência e o indiviilualisino
nativos americanos, que enfatizaram sempre o conheciniento pelosentiniento e pela
ação em lugar de pelo pensamento reflexivo - não é ele surpreender que ele tenha
transiniticlo uma predisposição antiintelectual. "Perca a cabeça e passe para sc:us
: senticlos" TLose your mind and come to your senses), ele costuinavu dizer. Para falar a
verclade, os fundaclores da Gestalt terapia tentaram corrigir esse desequilhrio bein antes
ela era elo Explicada. Nos escritos de Paul Goodinan sobi-e a Gestalt terapia,
encontraiiios as inspirações de Perls reconstruíclas como conceitos de longo alcance. l'or
exeiiiplo, existe uma definição intricada da fronteira de contato como o local de
encontro entre o self e o inunclo, onde se dá todo o crescimento psicológico, um esbclço
nieticuloso das resistências ao contato como sendo bloqueios que constróem o caráter
neurótico, e uiila clescrição fenoinenológica da fonnação ela Gestalt (figura/funclo) coino
uiii princípio explicatório eficaz no entendimento da experiêiiciu humana. Laura Perls,
Isadore Froinm e outros ensinai-ain, sem alarde, essas idéias a iuultidões de terapeutas
clurante as últirilas clécadas. Infelizmente, Laura Perls que, diferentemente de seu inari~io,
praticou e ensinou cotii uin esmero paciente, só publicou artigos clispersos, e Isacl(~re
Fromin, provaveiiiiente o treinaclor de Gestalt terapeutas i~iaisreflexivo, precisc~e
cons~iiiiaclo,11x11foi publicaclo.
Coili poucas exceções, os terapeutas de Gestalt que seguira111seus passos não
fizesain inuita coisa pai-a ajudar a Gestalt terapia a evoluil-, testanclo e extendenclo
contin~iamenteos próprios liiiiites desta. Vários livros interessantes forain publicados,
iiias estes dão espaço demais para as histórias pessoais bein sucedickis dos autores e, na
inaior parte tomain c01110 ponto pacífico a teoria e a técnica. Publicain-se artigos com
regularidaele que aplica111 a Gestalt terapia a esra ou àquela populagão específica de
pacientes, ou a comparaiii, contrastain e combinam c0111 toclo tipo iiiiaginável ele
psicologia e psicoterapia. Contudo, houve inuito pouco da investiga@o teórica básica
pela qual :I psic:inálise consegue continuar a reexaiiiinai-sc e progredir. IJina fuin@o de
seinelliante teorização é criar Liliia linguageiii pública que clínicos e pesquisaclores
possam utilizai- pari irivestigar, extenclei-,inodificar, clebaier c ensinar. A Gestalt terapia
ainda Falta o f~inclanientocle uma visão total cio desenvolvime~nto Iiuinaiio e d a
personaliclacle (ininlia própria convicção é cle que ela poderia fazer alguiiias
c»ntril>uiçõesmuito impoitnntes para a nossa compreensâo cle tais assuntosl. Tainpoiico
ela produziii nada - eiiibosa parte da obra de Goodinain chegue perto - selinelhaiite
i ;irquitetua barroca e grancliosa, a coloração trágica e às coinplicações irânicas que
tornam os iilelhores escritos psicanalíticos - os de Freud sobretudo - uma literatura
rica e dui-adoura. Corituclo, tallipouco o fez nenhuma cias outras terapias rnoclernas.
Ern segunclo lugar, a Gestalt terapia tornou-se presa do apetite voraz da cultura
americana, capaz cle engolir tudo em seu caininho, toldanclo as diferençzas e
~neutralizanclotudo que a pi-ovoque, seja na arte, seja na política ou na psicologia. Tahiez
seja por isso que nossas décadas pareçam tão claraiiiente detuarcadas e nossos
movirnentos sociais tão efêiiieros, como se fossein gerados por oscilações na disposi~:ão
de ãniino: os anos sessenta radicais; os anos setenta narcisistas; seguidos dos. anos
oitenta yuppie, que possivelmente tenliain cessado, quando a bolsa cle valores quebrou
em 19 ele outubro de 1957, como que para preparar-nos para os anos noventa
espartanos. Essas oscilações cle estado ele âniino são elas inesnlas um ainericanisino
ferrenho. Thornas Jefferson considerava q u e os Estados Unidos deveriain ter uma
revoluç'ão a cada geração, de modo que a democracia pudesse se expui-::ar
periodicamente de seus agentes contaminadores. Ele tinha ein inente revoluçOes
políticas; atenuainos seu conselho e, ein lugar destas, criainos uina série de revoluçijes
de "estilo de vida". Exatainente no inomento ein que uina inovação ou movimeilto
raclicais pocleriain começar a fazer surgir um debate importante clentro de nossa o d e m
social, esta torna-se capa da Time e obtém recomendações de uina ou duas estrelas de
Hollywood. levada desse inodo à condição de algo inofensivo, é logo descartada,
cieixanclo pouco mais que uma nódoa obscura e residual nos nossos .paclrões.cultur:ris.
Se a Gestalt terapia nunca chegou realmente à capa de uin semanário de notícias, rião
foi por causa da reticência de Perls. Enquanto que Freucl se preocupava coin o fato de
que o entusiasino instantâneo do americano pela psicanálise a devoraria, ao inesmo tem-
po ein que a despojaria de suas coinplexidades, Perls capitalizava os acolhimentos
entusiásticos.
A Gestalt terapia já está ern fim de carreira? Não exatatnente, inas está aineaçada
por urna forina cle assimilação que continuará a corroer sua identidade característica.
Existem indícios cle que a Gestalt terapia está sendo absorvida, como que por osinose,
pela corrente psicoterapêutica maior, sein a consideração ou o reconheciinento de suas
contribuições. Faz uns dias li por acaso um manuscrito, antes deser publicado, do Dr.
Michael Robbins, utn analista bem conhecido, sobre a terapia das "personaliclatles
priinitivas", os tipos de caráter borderline, narcisista e esquizóicle, que inuitos
profissionais acreclitain ter toinaclo o lugar dos neuróticos tradicionais na q~ialicladede
pessoas mais perturlxaclas em nossa época. O autor arg~iinentanesse traballio que ixn
método cle aborclagein psicanalítico ortodoxo, baseado ein conflitos internos,
mecanismos de defesa, e uma terapia em trazer à luz forças inconscientes
não f~~ncionam coin semelhantes Ele quer reconsiderar o inoclelo
analítico tradicional, de inodo que explique a interação entre o self e o outro, ein ]usar
de limitar-se ao inunclo interior cle uin único indivíduo. Define a introjeção como
constructos mentais que szo constantemente elaborados e reelaborados rios
relacionainentos atuais cle uma pessoa, em lugar de serem ciepósitos de restos fixados
na personalidade desde a primeira infância. Ele nos faz leinbrar o existencialisnlo,
quando sugere que a inautenticiciacle surge do fato de distorcerino-nos ininter-
ruptainente, para satisfazer as expectativas dos outros, em lugar cle acolherinos a
verclade cle nosso próprio ser. Ele transmite i-espeito pela inventiviclacle que se gasta na
forinução cle sintomas; isto é, reconhece as raízes destes nas contorções criativas -
apesar cle clolorosas - das crianças para inanter sua conexão coin os cenários familiares
perturbados que são essenciais para a sua sobrevivência. Ele dá mais prioridack: à
experiência do paciente clo que ks interpretações do terapeuta e recusa-se a reduzir o
relacionainento entre terapeuta e cliente a um mero exemplo de transferência. Esse
ti;ibalho assenta na linguagem da teoria psicanalítica das relações objetivas virtualmente
todos os princípios básicos da Gestalt terapia, descobertos por Frederick
\...., ,*,L..<
<$,,.,,
e Laura Perls
..:.*.>r*", *v,"i,,-.4"2',.:~l..
:e ..,a
.. .r
-e~ P a u l ~ ~ o o d r n i r i h á - ~ ~ u á r é ~ t a " ~ i ntivesse
o i : ~ ~nzaoa l v équando
~ ~ ~ ~ ~disse
l ~ que ele os
tiilha inerainente reclescoberto, porque agora parece que estão sendo reclescobei~ospor
Conforme um conceito básico na Gestalt terapia, o crescimento e o
desenvolvimento são eventos dialéticos. Implicain uina integração de encontros entre o
self e o ainbiente, através de uina fronteira que preserva as cliferenç,as importantes tlos
participantes. Ein tais encontros, ambos mudain. A Gestalt terapia pode contribuir muito
: mais para a prática da psicoterapia como uin todo, retendo sua originalidade e
extenclenclo seu alcance teórico, obrigando as outras escolas a liclarein seriamente com
suas inferências. No processo, ambas mudarão. Contudo, para esse propósito,
piecisainos ter todos os escritores históricos sobre a Gestalt terapia prontainente
acessíveis, de inoclo que possam ser bastante lidos, discutidos e expeiiinentados. Em sua
confusão singular entre as predileções de um hoinein e um espírito de inclividualisino
e improvisação, sua ousadia teatral combinada a uina adaptação à sua época, Gestalt
Terapia Explicada permanece coino a crônica inais dralnática e influente dos ÚIttrrios
anos de Perls.

You might also like