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Salgado - Consciencia Juridica
Salgado - Consciencia Juridica
ed=02&folder=2
I - Introdução
A justiça é o próprio direito como tal criado, posto pelo homem na sua história,
segundo a sua natureza que não é a de um deus, nem a de uma fera no dizer
de Aristóteles, entre os quais, deuses e feras, não existe ou não existiria o
direito. É porque não é só animal, nem só razão, que o homem cria o direito,
essa mais alta forma de racionalização da vida, só possível pela atividade
criadora do homem, decorrente de ser racional. Como saber científico procede
analiticamente como diz Ulpiano (aequum ab iniquo separantes: licitum ab
illicito discernentes)2; como filosófico, dialeticamente.
O direito é o movimento do que é posto como dever ser e ser por ele negado, o
justo e o seu contrário, como percebeu o romano: justi atque injusti3. Só há
direito no movimento do justo e do não justo. É o que faz a lei. A lei, porém,
como fenômeno social é posta como direito, portanto, como justiça.
Entretanto, há uma exigência de .ir-se além da lei como posta. Ela é o
resultado da realidade humana em que o justo e o injusto se movimentam. Ela
é por isso avanço de racionalidade. Não esgota sua essência apenas como
posta, por um ato de vontade, ainda que fosse santa. Trata-se da exigência de
valoração do fato para que seja legislado. Isso é tarefa da razão, da razão
prudencial, valorativa. O direito não é apenas o que é dado, mas o que deve
ser, o em que se deve tornar pela valoração dos fatos e da revaloração do
próprio direito, que é também fato, pela razão prudencial; é posto por ato de
vontade, não dado, mas posto como deve ser, portanto racionalmente posto,
fundamentado, negando o fato dado, que é. É assim um processo permanente,
in fieri do dado e do posto, do ser e do dever ser, mas que preserva
constantes, dentre as quais a do seu próprio conceito: uma forma de
ordenação racional da vida social com vistas à liberdade das pessoas.
Permanentemente esse congraçamento entre o fato da vida e a ponderação da
razão se faz presente na experiência jurídica de Roma. Jus ex facto oritur (o
direito nasce do fato) e da mihi factum, dabo tibi jus (dá-me o fato, dar-te-ei o
direito), sempre citados, revelam a objetividade do direito e a exigência da
reflexão prudencial para a sua produção. O suporte do direito é sempre o fato,
seja decorrente da necessidade, compreendido o fato natural que cria
relações sociais normatizáveis juridicamente, seja da liberdade, vale dizer,
produzido o fato pela vontade (contrato, lei), ou proveniente do costume, fato
cultural da sociedade. O fato e a valoração do fato tornam possível a
regulação da aquisição, conservação e modificação ou extinção do direito4.
Enquanto lei, o direito aparece abstratamente (embora já seja resultado da
elaboração) como universalidade imediata de um processo, o de aplicação: é
sistema de normas destinado à ordenação social, portanto com a finalidade de
estabelecer a ordem social. Nesse caso, seccionado nesse plano, o direito
poderia confundir-se com qualquer sistema de ordenação pela força, da qual
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declaração (querer) desses valores como direitos, por ato de posição empírica
(particular) na constituição; c) como efetivação desse direito na forma de
fruição pelo sujeito de direito (universal concreto)9.
A consciência jurídica romana através da sua experiência jurídica traz uma
contribuição essencial para a formação e para a compreensão da justiça como
idealidade histórica do direito no momento da estruturação definitiva (a justiça
como valor próprio do direito, na experiência) dessa consciência, teórica e
prática, isto é, vida e razão expressas nas instituições e nos institutos10. Esses
são modos pelos quais a racionalização prática e teórica do direito se
desenvolve a partir de Roma até que o sistema das necessidades (aqui em
sentido mais amplo que o dado por Hegel na Filosofia do Direito) se resolva
num sistema de liberdades, em que a liberdade objetivada num sistema de
normas livremente postas ou autônomas (portanto postas pelos próprios
destinatários no Estado Democrático de Direito), seja também expressão de
uma ordenação racional do trabalho, de seu produto e da sua respectiva
distribuição como estabelecimento do primeiro plano da liberdade, entendida,
aí, como domínio do mundo objetivo (Hegel) e de suas condições de existência,
consideradas como efetivadas no sujeito universal11 de direitos universais, vale
dizer, o sujeito de direito universalmente reconhecido na lei (constituição)
como titular de direitos também universalmente reconhecidos igualmente a
todos: os direitos fundamentais.
O direito realiza, assim, a liberdade, não apenas como saber da liberdade,
necessário, pois sem saber o ser livre que é livre não será evidentemente livre,
mas também como agir livre, na medida em que essa liberdade se concretiza
na forma de direitos subjetivos, ou seja, reconhecidos às pessoas singulares, o
que é só possível no direito. Eis como a justiça no mundo contemporâneo se
manifesta: como efetivação da liberdade na forma de direitos subjetivos e
fundamentais, universalmente reconhecidos numa ordem normativa livremente
posta.
A Filosofia do Direito converge essas duas vertentes da liberdade: o saber da
liberdade (filosofia) e o agir livre no equílibrio (direito) da idéia de justiça,
efetivada na forma de fruição e exercício de direitos do sujeito.
Este trabalho procura esboçar como a consciência jurídica romana faz a
experiência de que justiça e direito são a mesma realidade, que se processa
historicamente até a forma de sua revelação mais avançada na declaração de
direitos do Estado Democrático de Direito.
II - A Consciência Jurídica12
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Em segundo lugar, como processo lógico dialético, ela se mostra, por ocasião
das suas manifestações concretas, como consciência imediata, como
consciência refletida objetivamente na sua diferença pelo reconhecimento da
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liberdade que exige uma ordem a ela adequada e por ela determinada,
portanto, uma ordem posta, criada, uma ordem normativa.
Uma vez existente a ordem normativa, a pergunta de como é possível só pode
ser respondida pelo pressuposto da liberdade, sem a qual não seria necessária,
nem possível a ordem normativa. A existência de uma razão ordenadora da
coexistência humana só se explica como razão livre, não determinada por
causalidade empírica, mas criadora. Esse princípio de ordem criador não pode
ser explicado pela simples ordem de coexistência, como não pode a ordenação
normativa ser explicada pela causalidade instintiva. Eis porque o princípio da
ordenação ou de ordem normativa só pode ser entendido como um a priori
com sede na própria razão pura e não como um a posteriori da experiência,
ainda que inevitável. Se se pode dizer que a experiência da ordem normativa é
inevitável por não haver sociedade humana sem norma, a explicação dessa
ordem não pode estar na experiência, mas constitui um postulado a priori da
razão prática, a liberdade, que não permite uma experiência inevitável, mas
que também não pode ser uma experiência contingente enquanto explicação
da própria experiência inevitável que é a ordem normativa.
O justo aparece, desse modo, não mais como um dever de tribuição de algo,
mas como valor tribuível a alguém como direito universalmente reconhecido
e por fim exigível.
Em razão dessa exigibilidade do direito do sujeito, duas conseqüências
decorrem para o conhecimento jurídico: a correlação do dever com o direito (a
bilateralidade) e a organização de uma força aparelhada empiricamente a
coercibilidade. A correlação dever-direito é corolário da exigibilidade. E dela
procede a relação jurídica pela qual os sujeitos de direito se defrontam. A
relação jurídica é específica no âmbito da intersubjetividade jurídica. A
coercibilidade surge como característica instrumental, pela qual a existência do
direito se dá. Não pertence à essência do direito como decorrente da forma
aparelhada do Estado, condição de existência do direito.
Entre os antigos, a consciência moral está na virtude que busca o bem fora
dela. Não busca a lei, mas o bem diretamente. Essa consciência passa a buscar
a lei em si mesma e se recolhe na busca do bem em si mesmo, pois a definição
do bem objetivo desespera a consciência; não há um critério seguro para
determinar o fim bom da ação. Por isso a consciência moral se volta para si
mesma e cria sua própria lei. Antes, porém, sabendo da dificuldade de
encontrar o bem fora dela, transforma esse bem em lei externa a ela e põe o
bem como absoluto, em outra consciência. Cria uma consciência externa e a
absolutiza, para que essa consciência externa possa criar a lei boa, que realiza
um fim bom, pois sendo absoluto sabe qual é o fim bom. Se é absoluta, o fim é
ela mesma, a boa consciência, a boa vontade que sendo boa determina o seu
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é o valor do justo, pois é nesse âmbito axiológico que a consciência não é mais
um eu abstrato, ou empírico, mas um nós, por força de não ser mais uma
universalização do eu abstratamente, e, sim, uma universalização do eu
concretamente, vale dizer, um nós. Nesse momento de plenitude do processo
da consciência jurídica e sua experiência, a lei é objetivamente posta por ela,
mas como por um nós; e, sendo por um nós, é a lei não mais produto da pura
subjetividade e universalidade abstrata do eu transcendental, mas algo que
adquire objetividade e universalidade concreta como lei posta por todos, em
que a unilateralidade do empírico do indivíduo particular e a da abstração do eu
transcendental se vencem na universalidade concreta do sujeito de direito
universal.
A consciência jurídica não é, pois, a consciência que tem como objeto a norma
jurídica apenas, mas uma estrutura de consciência própria que capta o jurídico
nos valores como universalmente tribuíveis a todas as pessoas, valorando o
próprio fim da ação, como a prudência jurídica.
Naturalmente não há por que valorar o fim, pois o fim da semente de carvalho
é ser a árvore, na sua plenitude, atualizar-se. Então, o fim é bom em si
mesmo. Para Aristóteles e os gregos em geral as virtudes já são dadas e os
fins dessas virtudes são também dados pela sociedade, pela cultura, pelo
ethos. A Filosofia Moderna tornou claro o conceito de formação, o conceito de
cultura, já presente na vida grega, quando considerou a razão como produtora
direta da vida social, de ciências, etc., portanto criadora de valores, postos por
ela como fim da ação ética. Contudo, esses valores só passam para a forma
jurídica, se a consciência os considera na perspectiva do justo e do injusto,
portanto, como consciência jurídica. Se a condição transcendental de valoração
do bem e do mal está na consciência moral, a do justo e injusto se dá na
consciência jurídica.
O justo deve assim observar dois princípios: a) que possa ser como tal
reconhecido (sabido e aceito) por todos, ou seja, segundo a fórmula de Kant, o
a que todos possam dar seu assentimento; b) que alcance a todos igualmente.
O que é reconhecido por todos é apenas uma fase do processo. Não é
suficiente o reconhecimento empírico, mas exige-se a ponderação da razão
sobre o conteúdo axiológico, portanto, de racionalidade do que é reconhecido.
Essas duas dimensões, da voluntas e da ratio, no direito, pelas quais se define
a justiça, reaparecem, respectivamente em Santo Agostinho na forma de
voluntas legislatoris e em Santo Tomás, de ratio legis, ou ordinatio rationis.
Desse modo, o direito é visto pelo romano não apenas como formalização pela
vontade da autoridade que o põe na existência, mas pelo momento do
encontro do conteúdo justo, do equilíbrio, feito pela ratio, tanto no momento
da elaboração como no da aplicação. Daí, a prudência romana expressa em
densa síntese, por um porta-voz do tribunal dos mortos: conhecer a lei é
captar a sua força e potestade, a sua ratio (Celso).
A crise do ethos grego à qual se refere Lima Vaz, da qual surgiu a Ética como
teoria através da investigação metódica de Sócrates e a conceituação das
virtudes, marcando a etapa antropológica da filosofia grega, tem como análoga
no processo cultural do ocidente a resposta da consciência jurídica romana e a
formação da Ciência Jurídica e da Filosofia do Direito, cuja produção teórica,
por mais lógica e precisa, só encontra seu sentido, tendo em vista sua
finalidade prática, no momento da aplicação.
que surge não como virtude moral a ser cumprida pelo sujeito do dever moral,
mas como bem universalmente reconhecido ao sujeito de direito e por ele
exigível universalmente.
Uma das descobertas maiores do romano, no plano ético lato sensu é o sujeito
de direito e propriamente o sujeito de direito universal, detentor da
universalidade da actio. A noção de sujeito de direito universal, dada na actio,
envolve duas dimensões: a universalidade posta pelo reconhecimento de toda
a sociedade do direito subjetivo material, através da norma jurídica, e a
universalidade posta na força aparelhada do Estado garantidor da actio.
Entretanto, esse sujeito de direito ou pessoa está ainda posto num momento
abstrato, o do direito privado, quanto ao direito material.
sob essas formas. É o contéudo do direito, razão pela qual é um absoluto, pois
se concebe como o inaestimabilis que se não avalia patrimonialmente, e que
não se submete a qualquer pacto que a pretenda extinguir. Por isso é
irrenunciavél, embora no direito positivo possa perdê-la o seu titular; não,
porém, por renúncia ou por pacto. Além disso, está presente não apenas nos
momentos da aplicação e da interpretação, norteando-as, mas também no da
elaboração, como preconiza Pompônio: secundum libertatem respondendum
erit.
A consciência jurídica romana faz uma experiência da liberdade individual
quase absoluta, mas limitada pelo razoável e pelo justo na relação com o
outro29. Isso torna possível uma conjugação da liberdade ou da diversidade
entre as pessoas com a igualdade que deve a justiça preconizar. A igualdade e
a liberdade caminham pari passu, portanto numa dialética positiva da
igualdade e da desigualdade. "Em Roma, tudo o que é dotado de força viva
deve desenvolver-se livremente"; só se reprime o arbítrio e o privilégio 30.
E torna possível, ainda , além dessa consideração da liberdade e da igualdade,
abrir caminho para o processo do embate entre o poder e a liberdade ou a
liberdade objetivada e a liberdade subjetivada, duas idéias que informam o
caráter e o espírito romano e, na sua sucessão, o do Ocidente; idéias essas
que mantinham tanto "a energia dos indivíduos como a do Estado na sua
tensão constante", desenvolvendo-o, no seu mais alto grau, de tal modo que
Ihering considera a sua realização como o "fato mais importante da história
romana".31
Em virtude da realização desse bem inestimável e da dimensão ética da justiça
é que o Estado, ou o poder, se estrutura e se estabelece. O direito público, o
que resguarda o interesse da Respublica32, tem em vista o cuidado da justiça e,
como tal, a heteronomia do poder se estabelece e se organiza em compasso
com a autonomia privada da liberdade, pois desde o início da sua tradição a
potestas pertence ao povo e só foi conferida à autoridade do rei através de
concessão da lei (Lex Regia), o que permanece na consciência jurídica romana
até ao império. Isso marca o ínicio de nova forma de poder, a representação e
com ela a institucionalização do poder que não mais depende do dirigente
virtuoso33. Nesse sentido, de concessão do povo, é que a vontade do Príncipe
tem força de lei34. Basta lembrar, com relação à preocupação com a esfera
social, destinada em última instância a dar a cada um o que lhe é de direito, a
par do interdictum da liberdade, vários outros institutos jurídicos de dimensão
social de proteção às pessoas, como a postulatio suppleti tutores, para
proteger o impúbere; a actio popularis (Lex Plaetoria) para a proteção do
menor; a Lex Hortilia, para proteção do prisioneiro de guerra ausente; a ratio
communis pietatis, referente a solenidades (pietas); o instituto do vindex
libertatis (pro libertate agere35) referente ao interdictum da liberdade; a
inviolabilidade do domicílio: memo de domo suo extrahi debet, etc 36.
Isso mostra que a consciência jurídica romana avançou de modo incomum na
regulação do direito, ao fazê-lo pela outorga da actio, sem contudo deixar de
regular negativamente e positivamente, proibindo e ordenando, quando se
tratava de questão de interesse público, mesmo em situação de direito privado
como na posse, através dos interdicta e dos decreta.
Os interdicta têm uma presença importante no direito romano, como
complementação das actiones da lei, naquilo que não era por ela regulado,
mas que necessitava da intervenção da autoridade por força da ordem pública.
Sua função era negativa: "interdicere est denunciare et prohibere".37
Cuidavam de proteger a res divina e a res humana. Esta, tanto no setor da res
publica como no da res privata38. Na res privata, contudo, é que se desenvolve
uma das mais significativas experiências jurídicas romanas, tendo como
conteúdo a liberdade.
4 - As Categorias Jurídicas
Qualquer ordem jurídica positiva surge da operação pela qual dentre os
inumeráveis fatos sociais se distinguem alguns43 e se separam outros para lhes
atribuir uma sanção eficaz, diz Gèny, direitos subjetivos ou deveres jurídicos
segundo a relevância ditada pela valoração prudencial. Os romanos souberam
como nenhum outro povo fazê-lo, através da ordenação sistemática de
categorias formais, com que se estabeleceram as instituições jurídicas na
disciplina do caos social e depois através das categorias reais44. Categorias
formais ou simbólicas e categorias reais que substituem os símbolos por
definições científicas, ou seja, em vez de imagens, conceitos.
a 1) O ius ad rem
A consciência da coisa externa como outro que não ela, do ponto de vista da
praxis, avança dessa posição inicial ontológica para o fazer e o agir, na medida
em que a coisa é usada. O uso da coisa é o início do caminho da descoberta da
consciência de si, como livre, isto é, como pessoa, pois o uso da coisa, embora
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Entretanto, é direito que não se apresenta como pura interioridade, pois ainda
resta a coisa como algo fora da consciência.
a 2) o ius ad personam
Entretanto, a coisa só é propriedade na relação infinita com as outras coisas e
outras consciências, que se opõem como negatividade absoluta à consciência
proprietária. Essa relação infinita de negatividade que exclui as outras
consciências só será completa com a relação negativa com o próprio
proprietário, ou seja, de exclusão com relação a ele mesmo na forma do ius
abutendi. É na alienação da propriedade, enquanto passagem para o outro,
que se confirma a exclusão desse outro, agora pondo-o em relação positiva,
como proprietário ou titular de algum direito sobre a coisa. Trata-se de relação
positiva e ao mesmo tempo negativa para o que aliena, exerce um poder que o
despoja da propriedade; o mesmo ocorre com o adquirente: exerce um poder
de que está excluído. Surge então a circulação da propriedade, o último uso
dela feito, mas que se trava entre o proprietário e o não- proprietário,
particularizados totalmente na pessoa que aliena e na pessoa que adquire.
Essa relação particularizadora do processo aprofunda a interiorização do
direito, pois não é mais a coisa determinada que ocupa o momento principal da
relação, mas a própria consciência ou o outro que surge como devendo uma
prestação de dare, facere ou non facere, mediatizada pela coisa. A coisa,
porém, é indeterminada, e ainda permanece na relação dando-lhe uma
cunhagem patrimonial. De qualquer modo, há uma interiorização aprofundada
na relação, pois essa se dá entre as consciências, o sujeito de direito e o
sujeito de dever jurídico, ambos determinados na particularidade da relação
jurídica do direito pessoal. A relação é, portanto, consciência - consciência,
mas particularizada como relação entre titular do direito e portador do dever,
ambos determinados na mediação efetivada pela coisa indeterminada47.
Del Vecchio não alcança o conceito de consciência jurídica, pois não chega à
concepção de que é o direito que realiza a totalidade ética, porque é o direito
que realiza a universalidade concreta na dialética da norma abstrata e do
direito subjetivo, no sujeito de direito. Desloca, porém, no plano da consciência
jurídica, a consciência moral universal kantiana para pôr o campo intermediário
do direito e da moral, o do chamado direito natural, utilizando o conceito
kantiano de pessoa, como fim em si mesmo, na forma de um sujeito
universal53, o indivíduo que age como se nele se concentrasse toda a
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Del Vecchio tem o grande mérito de pôr a matéria à reflexão, embora no plano
moral subjetivo, segundo o modelo dos teóricos pré-revolucionários, não mais
na sua imediatidade não-refletida.
É, portanto, necessário ultrapassar o kantianismo e tomismo delvecchiano, não
no sentido de desprezá-los, mas de ir adiante e inseri-los na dialética da
realidade ética do direito positivo, modo pelo qual o direito, a par de sua
idealidade transcendental (Kant) e metafísica (Santo Tomás), se movimenta na
realidade objetiva da substância ética, na qual os valores são gerados e se dão
como conteúdo da consciência jurídica. É nesse elemento que se desenvolve a
consciência jurídica, que na metafísica tem como substância esse sujeito
universal da síntese kantiano-tomista, mas que na esfera do direito é o sujeito
universal de direito.
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bem jurídico e sua tribuição. A vontade dá uma justiça formal. Se livre, passa a
ter conteúdo para o romano. Sem a vontade livre não há direito para o
romano, repita-se. O conteúdo, por exemplo, é justo, se livre; a-justa as
vontades das partes, põe-nas juntas, junge-as, etc. É, porém, a ratio que diz
do conteúdo, se o que se atribui o foi livremente, ou se não houve uma laesio
enormis. O direito é, então, exigência de realização do maximum axiológico e
ético da cultura63 .
Justificado como bem jurídico, o ius tem de ser universalmente tribuído, como
possibilidade de todos. Essa concepção é o resultado de uma evolução do
direito, a tribuição universal formal como possibilidade e, depois, como
realidade. Antes a atribuição se faz segundo o valor tenha sido tribuído pela lex
a esta ou aquela pessoa. O seu direito é posterior à lex que o tribui para que
seja dado, atribuído na aplicação.
No Direito Romano elaboram-se os dois elementos de exteriorização racional
do direito ou da justiça: a lex ou direito posto pela autoridade, e o jus ou
direito elaborado pelo jurista. A consciência da justiça surge não como virtude
moral ou dever moral, mas como bem reconhecido universalmente ao
sujeito de direito e por ele exigível universalmente.
A distinção entre direito e moral está na natureza própria do espírito do povo
romano, pois que aparece desde o início. Ihering no Espírito do Direito
Romano, afirma essa estrutura do pensar jurídico romano, pela qual
abstraíam de tudo que não fosse jurídico nas relações consideradas (dass sie
von allen Nicht-juristischen in den Verhältnissen abstrahirt)64.
Essa distinção, embora não tematizada, aparece não apenas na realidade do
trato do direito, na experiência jurídica imediata, como também na consciência
jurídica erudita, na forma dos princípios teóricos dos responsa prudentium,
sintetizados na sentença de Paulo: Non omnes quod licitum honestum est 65.
A Lei das Doze Tábuas é um exemplo de que desde o início da sua formação o
romano desenvolvera a técnica de separar o direito da moral.
O direito, tomado na sua manifestação imediata, não é percebido como
universal. Entretanto, qualquer ato humano, ético ou não, já está impregnado
de universalidade, pois que é razão prática, a menos que se manifeste como
instinto.
Um ato é já sempre universal em si e para um outro; embora incorretamente
ou sem o saber dessa universalidade é já universal, pois que ato, isto é,
vontade produtora de efeitos no mundo externo ou capaz de produzi-los, e por
isso, razão prática.
Essa universalização em si tem de passar pela consciência da sua
particularidade, ou seja, o saber da sua particularidade como ato que traduz
uma vantagem para quem o pratica e um efeito para um outro, vantagem ou
desvantagem, ou resultado neutro, para chegar a uma universalidade pela qual
os atos se consolidam como estrutura universal de uma sociedade, como
normas de ordenação: é o costume. Nele o universal como norma é abstrato
(padrão) e se realiza como universal concreto no ato de cada um que com ele
se conforma. O saber desse costume é, pois, abstrato e imediato, enquanto
norma abstrata ordenadora das condutas.
As condutas surgem como boas se são segundo o costume e os bens atribuídos
pelas normas do costume o são espontaneamente, portanto, imediatamente,
É
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Equivale isso a dizer: quando o direito tem como conteúdo o poder, então tem
como forma a norma considerada como técnica de coersão. Quando tem como
conteúdo a liberdade, tem como forma o direito subjetivo, cujo conteúdo é o
bem jurídico, e que é o conteúdo da norma jurídica; o poder na norma é direito
subjetivo. "Eis porque a regra procede do direito, a forma da matéria e sua
processualidade, tanto no processo de elaboração, quanto no da aplicação pela
qual se investiga a ratio legis". Daí a síntese profunda de Paulo: "Non ex regula
ius sumatur, sed ex iure, quod est, regula fiat"67.
Essas duas correntes mostram os dois vetores do direito, como vida social ou
experiência jurídica, e como racionalidade não só imanente no momento
espontâneo do empírico multifário, através do costume, mas no que o
transcende, buscando a validade a priori do direito na razão.
Esse período de expressão analítica do direito não era, contudo, abstrato, de
modo a dividir a substância do direito, a experiência e a racionalidade. Ambos
convivem e se complementam na força da experiência racionalizada, cujo
momento de chegada será a sistematização do direito, já preconizada por
Capitão71.
De qualquer modo, essas duas correntes não devem ser estudadas
analiticamente, mas como momentos da experiência da consciência jurídica do
romano, cujo resultado é a superação da natura rerum ou utilitas dos
sabinianos, e da ratio como separada (o que na verdade não ocorre de uma
maneira matematizante, entre os proculeários), mas o direito como sustância
ética racional em que essa substância ética, por não ser pertencente à
natureza, mas à cultura, se submete de modo particular à ratio científica,
"estrutura de regra como qualquer outra ciência" (ars, tecnné)72, mas cujo
conteúdo humano é o bonun et equum, substância ética que não se submete à
exatidão matemática para os romanos. Por isso o ius respondendi dos juristas,
sendo obra da sua razão jurídica não era alheia aos mores, mas também não
eram apenas aplicação receptiva desses costumes73; eram elaboração da razão
ordenadora da matéria ou vida social e sua validade formal decorria da
autoridade do Imperador (ex auctoritate principis), expressamente reconhecida
por Adriano, pela qual lhes era permitido criar o direito (iura condere), isto é,
dar-lhe nascimento formal, uma vez que o elemento material, a vida social
ordenada pela razão reflexiva cabia ao jurista através dos responsa e da
interpretatio prudentium. Aparecem, aí, os dois elementos constitutivos da lei,
a voluntas da autoridade, então concedida pelo Princeps e a ratio dos
prudentes, que os acumulava.
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p ,q
Ambas as escolas, caracterizadas, uma pela naturalis ratio (sabinianos) e outra
pela civilis ratio (proculeanos) encontram sua unidade na experiência da
consciência jurídica dos romanos, como vivência e teorização do justo.
A prudência jurídica ou a sabedoria jurídica do romano é o saber erudito do
direito, que através da consciência jurídica emergiu da rudeza da experiência
jurídica da vida cotidiana à luminosa expressão teórica do direito.
A experiência da consciência jurídica é assim essa articulação processual da
experiência jurídica como vida do direito e da consciência jurídica como razão
do direito, na síntese superior da razão jurídica, em que a vida e a sua medida,
a razão, se expressam na consciência jurídica do jurista como consciência
erudita de uma sociedade, na criação dos institutos jurídicos e da legislação
jurídica. A consciência jurídica, nesse ponto, é uma consciência erudita numa
sociedade de cultura avançada e de complexa civilização. Antes disso, ela mais
não é do que consciência moral, religiosa, etc.
A processualidade da justiça mostra-se desse modo como movimento
ascendente, do empírico para o racional, expresso este na lei, e do racional
para o empírico ou o fato concreto, em movimento descendente, impondo a
sua racionalidade na variedade da manifestação da vida. Portanto, um juízo
reflexionante na elaboração e um juízo determinante no silogismo prático da
aplicação, pelo qual o universal abstrato da lei, através da particularidade
abstrata do caso conflituoso, se realiza como o justo concreto, ou seja, como
singularidade do valor jurídico.
Notas
3 Ulpiano. D. 1,1,10,2.
7 Reale, Miguel. Filosofia do Direito . São Paulo: Saraiva, 1999, p.273 (n. 114).
20 Celso. D., 1, 3, 4.
21 Pompônio, D., 1, 3, 3.
Reclam,1975; Cfr. Lima Vaz, Escritos de Filosofia II. São Paulo: Loyola, 1888,
p.124.
24 Fassó, G. (Storia dela Filosofia del Diritto, I. Bologna: Milani, 1968, p. 146)
assinala essa diferença entendendo também poder o ius ser concebido como
direito subjetivo decorrente do direito positivo. Fica, contudo, preso ao conceito
grego, entendendo diversamente o devido e a bilateralidade, a qual confunde
com a mera relação com o outro.
27 Florentino. D, 1,5,4.
28 Florentino. D, 1, 1,3.
34 ...quod Principi placuit, legis habet vigorem: quum lege, quae de ejus
imperio lata est, populus ei et eum omne imperium suum et postetatem
concedat.(Inst. 1, pr.6;Ulpiano. D. 1,4,1.).
39 Paulo. D. 50,17,106.
40 Pompônio. D. 50,17,20.
43 Gèny, Op. Cit, I, p.173; cita Ihering, R. Der Geist des römischen Rechts, II,
1883,§ 45-47; e ed. francesa, III, § 50-57.
51 MAYNEZ, García. Filosofia del Derecho. Mexico: Ed. Porrúa, 1996, p.66.
recolher (...) e indica o caráter abrangente de lei” (Lima Vaz, Ética Filosófica 2,
p.116), que inclui também a escolha .
62 Lima Vaz, H.C.Moral, Sociedade e Nação. In: Rev. Paz e Terra, n.1, p.96.
64 Mantello, Antônio. Un’ ética per il Giurista? In: Per la Storia del Pensiero
Giuridico Romano.Torino Giappichelli, Ed. 1996, p.148.
66 Celso, D. 1,1, 1; Cf. Moreira Alves, José Carlos. Direito Romano I, Rio:
Forense, 1983, p.91.
67 Paulo, D, 50,17,1.
70 Stein, Peter (Le Scuole. In: Per la Storia del Pensiero Giuridico Romano.
Torino: Giappichelli, 1996, p. 9) liga o conceito de norma ou regula à gramática
da qual, diz, esse grande conhecedor Labeão, levando a sancionalidade da
gramática para o direito.
https://revista2.tce.mg.gov.br/2001/01/02/2002_11_06_0002.2xt/-versao_impressao4559.html?ed=02&folder=2 36/36