You are on page 1of 23
CASTRO ALVES, POETA AMOROSO Jon M. Toucan, I. Castro Alves, wma Biografia Amorosa Castro Alves apresenta 20 estudioso um enigma vivencial de dificil pene- tracio. A presenga do mito nacional que é 0 posta dificulta a consideracéo objetiva de sua poesia, especialmente sua poesia amorosa, No € possivel se- arar nitidamente obra e vida, tal como manda a critica hodierna, Nunca 6 facil separar autor e persona num romantico onde propositadamente 0 “eu” do poeta se mistura com o “ele” da persona, onde a méscara narrativa revela ‘uma personalidade hibrida, parte real, parte retrica, Se acrescentamos a este complexo.a tremenda forea padronizante da época, onde certos modelos vi- venciais literdrios, tals como heréi byronico, predominaram, teremos a me- dida da dificuldade do problema. No caso especifico de Castro Alves, a vida breve do poeta tem foreado certo desdobramento critico em que a obra se Projeta sobre a vida, enriquecendo de detalhes palpitantes os poucos © pro- saicos dados vivenciais historicamente comprovados. Achando que, em geral, tal processo é invélido como método de interpretacio critica, limitar-nos-emos neste trabalho ao processo inverso: empregaremos os dados biogréficos, re- conhecendo devidamente a sua qualidade extrinsica, apenas para tornar mais compreensiveis certos temas, atitudes e até téenicas de sua poesia amorosa. Neste caso, a biografia serve, nfo para definir a poesia, nem como chave para. sua compreensio, mas apenas como uma espécie de encaixe histérieo, onde podemos vislumbrar com mals autenticidade a tatica criativa do poeta. A vac Uidez da interpretagio empreendida neste trabalho deve, portanto, ser julgada @ partir de sua fidelidade hermentutica com relacdo ao préprio texto literdrio. Os dados biograficos essenciais so os que seguem: uma vida curta, apenas um prelidio, 1847-1871, O moco trava relacdes amorosas com a atriz Eugenia Camara que duram de 1865 a 1869. Depois, ferido, tuberculoso, amputado e ‘moribundo, vive precariamente mais um ano e meio, Neste interim 6 estudante de Direito e escritor prolific, A volta & Babla, longe de restabelecer-Ihe as forcas fisicas declinantes, apenas adia 0 seu encontro com a morte durante 23 JON M. TOLMAN alguns meses, Mas é precisamente durante estes tiltimos meses de vida que @ poesia amorosa do poeta sai do trilho retérico estereotipado para adquirir uma rica e expressiva autenticidade vivencial, que antes Ihe faltava, Il. Primeira Fase Amorosa A poesia amorosa juvenil de Castro Alves nfo apenas é facil, mas tam- bém conhecidissima, ¥ a poesia contagiosa que tem empolgado geracdes de adolescentes brasileiros. Realmente, nfo apresenta dimenso estétiea: é sen- sorial, luxuriante e otimista, © jovem poeta se comporta na vida e na obra tal como os modelos the indicavam que 0 jovem byrénico devia se comportar. A pose vira substancia, em parte consciente, em parte subconsciente, O re- trato psicolégico apresentado é dum egocentrismo jovem e sadio que se com- raz no elemento mais superficial do amor — superficial como a pele & superficial, precisamente uma poesia de pele erotizada, bem captada por Antnio Candido, que assinala em primeiro lugar a qualidade essencialmente objetivista desta poesia, em que o poeta projeta o seu eu poético sobre o mundo em vez de recolher impressGes subjetivas: “O conflito interior que, originando forte contradicio psicolégica, dobra 0 escritor sobre si mesmo, Projetado, por ele do eu sobre o mundo”, Depois 0 critico focaliza a poesia erdtica, notando 0 seu carter sadio ¢ masculine, extremamente sensual © amor, como desejo, frémito, encantamento da alma ¢ do corpo, Superando completamente 0 negaceio casimiriano, a esquivanca de Alvares de Azevedo, o desespero acuado de Junqueira Freire. Encontramos pela primeira vez, na poesia romAntiea uma Poesia onde a dor no se traduz em lamiria, onde néo ha lu- bricidade nem devaneio etéreo dissociando a integridade da paixio + + © seu sentimentalismo amoroso percorre a gama completa a carne e do espfrito; @ adulto, numa palavre, como o Vitor Hugo, a quem prendiam-no’ afinidades profundas, nfo mera in- fluéncia literaria. (1) E precisamente este elemento adulto, sadio aparentemente vivencial que marea a originalidade desta poesia, Poesia aliés nfio desprovida duma técnica ceficaz, indicio de um talento literario fora do comum. Mas ao dar énfase a0 Jado sensorial desta poesia nfio queremos também negar os seus aspectos idco- Yogicos. (Q, Antonio Candido, A Formacho da Literatura Brasllelra (Sto Paulo: Livra- Ha Martins Ealtora, 1964)," V- 11) pp. 269, 73-204" CASTRO ALVES, POETA AMOROSO 29 Os romanticos, reagindo a excessiva materializagio amorosa do século XVII, fazem do amor um eixo fundamental do seu pensamento, chegando @ formular inclusive uma ideologia amorosa, © declinio do misticismo exético, introduzido na Europa pela heresia catarista do século XII, tem sido exausti vamente estudado por Denis de Rougemont e outros erudites. O nadir'da de- generacio hedonista do culto do amor é atingido no século XVIII, quando 0 ‘amor perde todo © seu contetido sagrado ¢ ritualistico. A nova atitude se en- carna no Marqués de Sade e vé no mito de Dom Jo&o a sua justificagio filo: s6fica, O Romantismo, a partir de Rousseau, tenta recuperar o mistério pas- sional do amor, redescobrindo os mitos eavalheiresces e, no processo, erigindo ‘um novo sistema de valores amorosos desprovidos de elementos cristios, Neste sistema, a unifio divina se consegue através da transcendéncia do “eu” pela Intensidade da sensacdo. Rougemont no esconde a sua repugnancia por esta nova heresia: “O romantismo alemio . . . adotou a velha heresia da paixio © procurou aleancar a transgressiio ideal de todas as limitagbes e a negacio do mundo através do desejo extremado.” (2) Em maior ou menor grau esta tendéncia se observa no romantismo da Franca e da Inglaterra e, partindo dal, nos paises de importacdo cultural como o Brasil. Para o jovem Castro Alves fa sensacdo amorosa ma sua intensidade tinha matizes cosmolégicos facilmente identificdveis com a ideologia romantica predominante: Eamamos . . . Este amor fol um delirio . Foi ela minha crenea, foi meu lirio, ‘Minha estrela sem véu. . . Seu nome era o meu canto de poseia, Que com 0 sol — pena de ouro — eu escrevia Nas laminas do céu. Oh! Amar é ser Deus! . . . Olhar ufano © céu azul, os astros, 0 oceano E dizer-lhes: sois meus! Fazer que 0 mundo se transforme em lira Dizer ao tempo: . . tu és mentira Espera que sou Deus! (3) © conceiti da intensidade de experiéncia, seja amorosa, seja filoséfica, soja apenas emocional, 6 elaborado em franca rebelido contra as teorias aprioristicas mecanicistas do neoclassicismo, Em contraste, os roménticos elaboraram uma filosofia particularista em que a generalizagio parte duma experiéncia isolada e nfo 0 contrario, © conhecimento de um objeto nio se efetua a priori (@ Denis de Rougemont, Love in the Western World (New Yoric: Doubleday, 1957), P. 221. tugs ‘a “Antonio ae castro Alves, Poesins Completas, (Sto Paulo: Companhia Ealtora Naclonal, 2388), ppm deb, Modes as Feterencias b obra postca de Castro Alves, do- Favante, sorao aeata call 'NAG ferko nota w Parte, constando apenas de tndleagdes de pagina no corpo do artigo. 80 JON M, TOLMAN mas sim emerge da experiéncia concreta e sensual que 0 pocta tem com ele. ‘Nesse processo a intensidade da experiéncia isola a esséncia escondida na forma fisica do objeto: “The excellence of every Art is its intensity, capable of making all disagreeables evaporate, from their being in close relationship with Beauty ‘and ‘Truth." (4) Daf a valorizacao da intensidade e daquilo que Keats chama “capacidade negativa”, ou seja, a capacidade de anular o “eu” na procura da esséncia do objeto, Coaduna-se com estes conceitos a chamada “imaginacdo simpatica”, ou a capacidade de projecio imaginativa dentro do objeto, seja qual for a sua qualidade: pedra, passaro,.mulher, tempestade — tudo tem a capacidade de enriquecer quem o procura com intensidade. O processo imagi- native almeja a criacéo, através do enriquecimento espiritual fornecido pela capacidade negativa, de uma identidade comploxa e enobrecida, Assim o poeta tenta compenetrar 0 objeto, num processo:psigquicamente antropotiigico, acres- centando ao préprio “ego” a identidade alheia e, na conjuncio, atingindo uma nova identidade superior. (5) © proceso se estende ao mundo inanimado tam- ‘bém, onde tanto objeto quanto homem se enriquecem “each having been made more great and dignified by an ardent pursuit. . , With a lasting embrace of the ardent pursue, nothings [coisas] are given worth. Meanwhile we too as- sume greater reality and worth, ‘The mountancer is finer for having looked into the eagle's nest; the foot is richer for its tread upon the sward, The heart that darts into the sparrow which picks about in the gravel is on the way to forming a soul’. (6) A poesia funciona neste proceso como veiculo de trans- cendéneia, uma espécie de escada sensorial até o divino, Mas ao contrério do mistico e asceta cristiio, o romfntico se esquiva da unio téo desejada e, apesar do seu impulso egocentrifugo original, recai sobre si mesmo, e afirmando 0 corpéreo terestre, se vincula de novo com a vida, Para Keats a etapa defi- nitiva de unio ¢ a morte, ou seja 0 ndo-ser, produto inelutavel da excessiva idealizagio amorosa. (7) Veremos depois neste ensaio que Castro Alves em- prega este conceito de uma projecio imaginativa intensa na sua captagéo da natureza sertaneja baiana em seus derradeiros poemas, Neste caso, a projecio se ofetua numa tentativa de fixar e enriquecer a sua identidade na confronta- do com a morte, Por enquanto, basta notar que para o poeta o amor é divino e nele a mu- Ther amada se diviniza. Pode-se até ampliar o conccito para incluir 0 seu amor pela patria e pela liberdade; extensGes da ideologia amorosa, que na sua (Q, Joh Keats, The Letters of John Keats, ed. Maurice Buxton Forman, 4tn fa. (ew Zonk: 1952), pio (Carta &sotge e Tomas Keats Seas, (5), Para os comiceitos de intensidade @ enriquecimerito convém eltar a HYron, “Harold, TIT Muth form our fancy, gaining as We give The lite we image, even as i'do now (0) M. A. Goldberg, The Pooties of Romanticism (Ohio; Antioch Press, 196¥), (2 Castso Alves, Obras Completas, ed, Atranlo Peixoto (Sio Paulo: kaltora Nacional do' Livro, 2040), 11p. SH” me CASTRO ALVES, POBTA AMOROSO aL forma normal visa apenas a relago sensual e particular entre homem e mu- Ther, E notével, por exemplo, que para Castro Alves a esséncia da escravidio tem base amorosa, Nao é a falta de liberdade politica nem material que define ‘a escravidio, mas sim a falta do direito de amar plenamente. Luis, 0 escravo ‘em Gonzaga, diz 0 seguinte: Luis, — Minha mulher, oh! sim, ela era minha mulher - ¢ tio minha que um dia levaram-na, Gonzaga. — Pobre homem! Luis, — Ah! 6 que foi loucura do triste escravo querer ter um leito abengoado por Deus, querer que a mulher que emou, no mo- mento de receber 0 primeiro beljo, fosse bendita pelos anjos e chi mada pelo santo nome de esposa! . . . (8) ‘A procura desesperada de Luls por sua filha perdida é um dos motivos principais da peca, Também em A Cachoeira de Paulo Afonso a tragédia é de base passional. TH. Fase de Transigao: 1869 |A derradeira poesia de Castro Alves tem poucos admiradores no Brasil. Costuma-se separar os poemas incluidos em Espumas Fhutuantes, que foram es- critos nos dois iiitimos anos de sua vida, dos outros espalhados nas Obras Com- pletas. Para nés, a poesia escrita depois da volta & Bahia apresenta marcadas ‘caracteristicas integrais, N&o é licito fazer, como faz Fausto Cunha, excecio para alguns poemas em Expumas Flutuantes, na condenacao geral da obra de Castro Alves. Para Fausto Cunha, Castro Alves ¢ um poeta extremamente limitado, sem evolucdo Uterdria perceptivel, seja temética seja tecnicamente, ‘Um poeta quase totalmente definido pelos padres vigentes do ultra-romantismo, poeta que tem s6 uma corda na lira e, essa mesma emprestada. Ba partir de 1868 que sua personalidade poética se afirma com autonomia e entra por seu tumd, a influenciar os contem- poraneos. Ele continuaria agrilhoado, no entanto, a matrizes temé- tieas — 0 que se observa, de maneira paradoxal, principalmente quando 0 motivo lhe tocava mais de perto, © rompimento com ‘Eugénia Camara e 0 derradeiro amor de Agnese Trinci Murri mer ‘gulharam-no de novo no oceano de Iugares-comuns ultra-romanticos, {quase todos jé esto superados pelo seu proprio acervo, G0 smote conree neste cosy ¢ Badinas, erat 40 pounce TEES ome Bue pecune a belees deal amy Cinta, mat wiht Spercever que 8° Sbandonar a sensacko corpérea tinha abandonado a sua prdpria existénela, 22. JON M, TOLMAN ‘A muitos respeitos, a trajetéria postica de Castro Alves é desconcertante e parece ajudar a tese — por certo extremista — de que o poeta era um “realizado”. Dentro de estreito Umite, 6 ossivel aludir a certo progressivo esgotamento de sua lirica depois de 1869, ...Se a obra de adolescéncia de Castro Alves esté salpi- ‘cada de pastichos, a de maioridade vai ressentir-se de interferéncias completamente desnecessérias... A impressio que nos deixa, na fase derradeira, no é bem a de um “satisfeito”, de uma “realizado” 6 de um aniquilado — com as:peculiares explosées de otimismo energia. (9) Ha uma razo légica para 0 descaso desta poesia. A obra castroalvina apresenta os defeitos conhecidos de uma antologia, Eepumas Flutuantes 6 ‘mais ou menos uma antologia sclecionada pelo poeta sem critério cronolégico, © efeito deste atropelamento ¢ de diminuir ou mesmo obliterar qualquer per- fil definido da poesia de maioridade, Poemas escrites em 1869 © 1870 esto misturados com poemas dedieados a Eugenia Camara escritos em 1866. A produglo poétiea de 1871 nfo entrou em Hspumas Fiutuantes ¢ encontra-se no fim das Obras Completas que poucos leitores chegam a ler, especialmente em vista dos poemas na maforia mediocres que o poeta, por razies ébvias, no Inclulu em Bspumas Flutuantes, e que nada acrescentam & fama do poeta. Mas experiéncia de juntar cronologicamente os poemas escritos nos. altimos anos di impressio poética bem diferente do estereotipo de fraqueza e anl- quilamento que ainda predomina no julgamento critico, Podem-se estabelecer duas etapas nesta derradeira poesia, Ha uma nitida fase de transicdo que inclui poemas eseritos no Rio, em fins de 1869. O choque duplo da quebra com Eugénia Cémara co abalo fisico-moral da tuberculose fe do pé gangrenado produzem uma explosio egocéntrica sem maior origina Jidade, em que o autor lanca m&o de temas roménticos bem definidos, alguns 44 cultivados pelo poeta, aos quais nada acrescenta: 0 poeta maldito, a femme fatale perversa, o destino tragico, a mocidade perdida, enfim toda a gama romantica. O pessimismo macabro desta fase, na sua insisténcia, 6 novo na poesia de Castro Alves e dai a sua originalidade. Marca a internalizacio exis- tencial daquilo que o poeta antes tinha aceitado duma maneira risonha e superficial. Representa por isso, um passo importantissimo na obra do poeta —a transicéio, neste caso forcada, entre a mocidade e a maioridade, A morte ‘aparece agora como destino fatal e 0 pocta, apenas saido da mocidade, passa a Jamentar a sua velhice precoce. © poema “Adeus”, ao tratar da despedida do poeta, comunica separaco definitiva entre a vida e a morte, entre amor & {solamento. A partir desse momento o tema agora pessoal do poeta maldito repercutira nesta poesia: (@) Fausto Cunha, 0 Romantismo no Brasil (Rio de Janeiro: Paz e Terra, as71), P. 29. CASTRO ALVES, POETA AMOROSO, 33 Adeus! P'ra sempre adous! A voz dos ventos Chama por mim batendo contra as fragas, Bu vou partir ... em breve 0 oceano Vai lancar entre nés milhdes de vagas... Sinto que vou morrer! Posso, portanto, A verdade dizer-te santa e nua: ‘No quero mais teu amor! Porém minh’ alma Aqui, além, mais longe, é sempre tua, (298-302) © furor se comunica numa série de cinco poemas. Eles combinam 0 des- prezo pela mulher frivola e devorante, com o tom lamuriento que Antinio Candido achava ausente desta poesia. © desespero do poeta é visivelmente tingido de autocompaixio. “A Uma Taca Feita De Um Crinio Humano” baseado num poema de Byron, representa os pensamentos de um crénio feito taca, O pessimismo é total, niilistico: Vivi! amet! bebi qual tu: Na morte Arrancaram da terra os ossos meus, Nao me insultes! empina-me ... que a larva ‘Tem beijos mais sombrios do que os teus, E por que nao? Se no correr da vida ‘Tanto mal, tanta dor af repousa? bom fugindo & podridao do lodo Servir na morte enfim pra alguma coisa! ... (36-37) “O Tonel das Danaides” representa a mulher pérfida que destréi o amante: “Na gruta do chacal ao menos restam ossos ... / Mas tudo sepultou-me aquele amor cruel!” (77) Em “Immensis Orbidus Anguis” o poeta representa a mu Iher em termos de serpente venenosa, nfio s6 tomando a vida mas também a inocéncia virginal do poeta, numa imagem ao mesmo tempo biblica e reme- morativa de Basilio da Gama, Em “6 Tarde” Castro Alves se apresenta como devasso to corrupto que nem o amor inocente e virginal o pode redimir. Aqui joga consicentemente com o mito de Dom Jodo e logra certo efeito coma inversdo hiperbélica de papéis: 6 0 devasso que nobremente se sacrifica negando-se a conspurcar a inocéncia que tdo ingenuamente se Ihe oferece: at JON M. TOLMAN, B tarde! B muito tarde! O templo é negro : © fogo-santo ja no altar nio arde, Vestal! nao venhas tropecar nas piras ... B tarde! B muito tarde! E tu, visio do céu! Vens tateando © abismo onde uma luz sequer nio arde? Ai! no vas resvalar no cho lodoso ... # tarde! muito tarde! (108-109) ‘Mas também se insinua nesta ladainha de desespero um tema que vird 4 predominar no ano e meio de vida e criagio que restavam ao poeta, Jé em “Versos de um Viajante" 0 tema da saudade se mistura com o da efemeridade ©, com estes temas, uma técnica da qual o poeta abusou nos seus momentos épicos: a apéstrofe. Mas nesta Gltima poesia o apelo funciona para iniciar 0 Processo de recriacio a base do proceder eriador do poeta, Voltando do Rio de Janeiro & Bahia em 1869 0 poeta lamenta os tempos idos e as mocas eandidas do sul que jamais veria de novo, ‘Tenho saudade das cidades vastas, Dos invios cerros, do ambiente azul ... ‘Tenho saudade dos ceriileos mares, Das elas filhas do pais do sul! ‘Tenho saudades dos meus dias idos, = Pét'las perdidas em fatal paul — Pét'las, que outrora desfolhamos juntos, ‘Morenas filhas do pais do sul! (60) IV. Fase Definitiva: 1870-1871 Nos poomas escritos na Bahia é possivel ver um aprofundamento de certas tendéneias romanticas, agora nfo meramente motives do momento histérico, mas sim préprios. Os temas ¢ seu tratamento poético correspondem agora 20 caso individual do poeta, tentando desesperadamente recuperar-se ¢ enfrentan- do @ cada paso a morte, encontro solitério em que Castro Alves age apenas com as armas psicolégicas adquiridas na sua juventude festiva. Esta interna- Uzagiio filoséfica nada tem a ver com o uso de estereotipos, tipico de um artista que, sem experiéncia propria, pede emprestado os seus simbolos e técnica poé- tica. No caso presente, vemos'a “originalidade” de um poeta que desenvolve sua criacdo utilizando elementos comuns da época que obedecem As suas pré- rias necessidades expressivas, CASTRO ALVES, PORTA AMOROSO 35 Castro Alves, em 1870, defronta uma plena crise existencial, No sew iso: Jamento em Curralinho, Santa Isabel, ou mesmo em Salvador, vé 0 futuro murado. (O encontro com a morte é sempre individual, mesmo quando a vi- tima more entre a sua familia), Para ele féceis manhis promissoras {4 no existem, e urge expressar (e no processo enriquecer) a sua prépria identidade, Devido a sua juventude e pouea experiéneia o posta se viu forgado a profetar-se fem virias direcdes. ‘Na sua recriaco do pasado, talvez mesmo pela falta de matéria extensa o poeta emprega um processo quase proustiano de acumulacio de detalhes. ‘Tenta apanhar e valorizar o passado efémero em funco da inten- sidade pormenorizada de evocacio. Ao mesmo tempo, na sua fuga de um pre- sente intolerdvel, projeta-se sobre a natureza sertaneia numa apoteose da ima- inagdo simpatica romantica, Hé também poemas em que 0 poeta ancla 0 amor maternal e confortante, outra mancira de fugir ao seu combate mortal. Numa série de poemas dedieados a mulheres enigméticas, damas sem piedade que se interpelam dcbalde, 0 poeta rovela simbolicamente 0 seu desespero, prefigurando 0 inevitével fracasso vital, Podem ver-se portanto os elementos abstratos romanticos utilizades por Castro Alves nesta derradeira poosia, Neste caso, 0 “nareisismo” romantico se Impée no poeta, talvez o menos introspective dos romanticos brasileiros. Até o timo momento, o poeta recusa as formulas féccis de auto-compaixio (salvo nos primeiros momentos de abalo em 1869), projetando-se ora sobre o passado, ora sobre um mundo sensorial imaginado, ow até sobre problemas raciais (coneebidos em termos amorosos) como em. “A Cachoeira de Paulo Afonso”. Entrelagada nestes temas predominantes ha uma preocupacdo com a efe- meridade e, as vezes, surge o tema tradicional de carpe diem. Em “Murmiios da Tarde”, 0 poeta evoea um jardim edénico onde ha perfeita harmonia amoro- sa na qual toma parte a natureza toda. Uma vez estabelecida esta visto paradi- siaca, 0 poeta insere nela o tema de tempus fugit em que os casais expressam a sua ansiedade e temor ante a separacio vindoura, As trés estrofes tranqiilas de introducto seguem-se trés de desespero. Aqui o poeta acumula intensidade revelando uma gama’ enciclopédica de trégica antecipacao mos casos naturais, desfechando esta carga emocional na ditima estrofe quando apela diretamente ‘& mulher amada. © tema de ansiedade nfo tarda em aparecer, comegando na Quarta estrofe uma corrente agonica: Era dos seres a harmonia imensa, ‘Vago concerto de saudade infinda! ‘Sol — nfio me detxes”, diz a vaga extensa. ‘Aura — nfo fujas", diz a flor mais linda. Era dos seres a harmonia imensa, Depois se atropelam os pares — nuvens/orvalho, rola/ninho, musgo/penha, enha/rio — série interrompida pela repentina presenca de Maria no jardim, 36 JON M. TOLMAN procurada pelas flores, visio divina ¢ ideal, movendo-se neste ambiente eroti- ‘zado como uma espécie de belja-flor. O poeta comeca por interpretar 0 desejo, da rosa pela mulher, logo depois se identificando com a flor: Rosa de amor, celestial Maria ... E eu, que escutava o conversar das flores, Ouvi, que a rosa murmurava ardente: “Colhe-me, 6 virgem — néo terei mais dores, “Guarda-me, 6 bela, no teu seio quente ...” E eu escutava 0 conversar das flores. ‘Leva-me! lova-me, 6 gentil Maria!” ‘Também entiio eu murmurel cismando ... “linha? alma é rosa, que a geada esfria “Di-the em teus seios um asilo brando . “Leva-me! leva-me, 6 gentil Maria!” (70-72) Este poema, escrito no Rio em 1869 e portanto expressando o sofrimento do poeta ao deixar o sul (a vida anterior jocosa, alguma mulher real), ¢ impor- tante nio s6 pelo uso concebivel em tais circunstincias do tema da efemeri- dade, sendo por sua prefiguracio deste elemento no context do apelo a mu- ther que nio responde, O poema acaba no momento do pedido, mas a identi- ficacdo do poeta com as coisas do Jardim e portanto dando énfase a distancia entre cle ¢ a dama, permitem a inferéncia de falta de resposta, o que depois se confirma noutros poemas. (© tema da efemeride repercute na poesia que segue a 1869. As vezes 0 poeta postula um caso ideal onde o amor néo morre e o tempo niio mata, contrastando-o com a sua propria situacio: ‘Ai quem pudera ‘Numa eterna primavera Viver, qual vive esta flor, Juntar as rosas da vida Na rama verde e florida, Na verde rama do amor. (76, “A Duas Flores") Em “Aves de Arribacdo” o tema se desenvolve largamente, outra vez em ter- mos de um paraiso moribundo, O poema “Consuelo” nos permite vislumbrar nflo apenas 0 tema da efemeridade, mas também 0 processo criador de Castro Alves: ‘CASTRO ALVES, POETA AMOROSO 37 Horas de amor, por que fugis tio cedo? ‘Bxtases santos, por que assim passais? Plantam-se risos no fatal rochedo ... ‘Vinga a seara dos sombrios ais. Apanha a esséncia destas fundas mégoas, Concentra 0 fogo nos teus seios nus; Na gruta mudam-se em cristal as éguas, No abismo a lava se transforma em luz. (320) As palavras empregadas na dltima estrofe citada denunciam o jogo do posta: apanha... esséneia... concentra... cristal... lava... luz, A extrema visua- Mdade desta poesia se deve em grande parte & necessdria fixaclo do fluxo vital ea sua transfiguraco poética, © apelo se emprega nesta poesia de duas maneiras, para evocar a pre senca de mulheres do pasasdo ou para penetrar na inscrutabilidade do futuro, simbolizada na mulher. O poeta dé um contorno amoroso a estas tentativas, outra vez mostrando o eixo sentimental do seu pensamento e da sua poesia. Pode-se seguir a evolugio desta tendéncia em poemas de transicéo, como “ uma Estrangeira”, em “Anjos da Meia Noite” (“Ultima Fantasia”, 91-92), e numa série de poemas escritos em 1870-1871. Nestes mon6logos 0 poeta nunea obtém resposta e, as vezes, a mulher nfo se particulariza, Em “Se eu te Dissesse”, 0 poota imagina uma série de provas de amor e constancia, todas encabecadas por “se eu te dissesse...”, terminando com a possivel negacio da amada; “Se eu te dissesse.., — Foi talvez mentira! ... / Se eu te dis- Sesse... Tu talvez dissesses! ...” (307). Noutra ocasifio os versos sobre a Juventude so dedicados a uma jovem que nio responde, permitindo que o Foeta reflita. No ensimesmamento egocéntrico préprio da junventude a mo- ga nem percebe 0 poeta com a sua condofda ternura: ‘Menina e moca! Adormecida garca Que o mar na riba do ideal balouca ... © bardo canta na tormenta ao longe Sonha o teu sonho de — menina e moca! (a1) Nos poemas com este motivo, escritos em 1871, ha um degenerado tema, AS damas sio cruéis, remotas ¢ intocdveis. O pocta no logra esconder 0 Seu rancor, e ha certo tom lamuriento. © poeta interpela uma senhora sen- tada durante uma fungio piblica em “No Camarote”. O ponto de vista é dis- tante e o poema se basela numa série de perguntas obsessivamente repetidas. Aqui o poeta imagina que a frieza encobre paixio, estereotipo comum na época: 38 JON Mt, TOLMAN, No camarote gélida ¢ quicta, Por que imével assim cravas a vista? Hs 0 sonho de neve de um posta? Es a estditua de pedra de um artista? Pois naquela alma s6 se encontra neve? ‘Nada palpita nessa forma branca? Pois no freme este mérmore de leve? Pois nem o canto esta friez Ihe arranca? (323-324) © momento culminante desta poesia ¢ atingido quando o poeta tenta re- eriar © pasado, fixando detalles e pormenores sensoriais, Tem sido costume dar énfase aos aspectos narcisfsticos do amor romAntico, e alguns criticos che- gam a negar que haja clementos desinteressados nele; Para Irving Babbit o amor roméntico é por definigéio egoista, nfo existe verdadeiro objeto amado senio amor préprio disfarcado em roupagens do ideal: ‘Though the romanticist wishes to abandon himself to the rapture of love, he does not wish to transcend his own ego ... There is in fact no object in the romantic universe — only subject. This subjective love amounts in practice to a use of the imagination to enhance emotional intoxication, or if one prefers, to the pursuit of illusion for its own sake ... The object is thus elusive because as I have said it is not, properly speaking, an object at all but only a dalliance of the imagination with its own dream. (10) Psicologicamente, é facil entender a extrema idealizac&o do amor em tal sis tema, 34 que justifiea a insatisfacdo com o amante real que funciona no nivel conereto apenas para nutrir 0 amor préprio que encobre. O amor assim 6 cfémero, ao passo que 0 poeta procura o ideal (si mesmo) através do real (objeto), encontrando inevitvel frustraglio que acarreta ruptura, nova liga- iio idealizada, nova ruptura ... Cada vez que se ama é para sempre, ¢ 0 encontro predestinado, Naturalmente, a dificuldade de manter esta tensio ideal leva o poeta a recriacio do passado, onde 0 momentineo que tanto foze do captaco no presente, vira décil criacéo do poeta que controla tudo. O Poeta romiintico entio desenvolve o que Babbit chama de “meméria sensorial” em que cheiros, impresses visuais e sensacdes téteis envolvem de luxiria 0 ‘objeto lembrado, (20) Trving Babbit, Rousseau and Homanticlsm (New York: Houghton-Mittimn, Be 228. CASTRO ALVES, PORTA AMOROSO 39 No caso de Castro Alves 0 narcisismo romantico the é imposto por elreuns- ‘tncias inelutaveis. O poeta morre devagar, mergulhado numa solidi inape- Vével, apenas aliviado, se tanto, por visitas a Salvador, Na sua luta com a morte, no hé amigos que lhe valham, nem mulher que 0 resgate do abismo. Nestas circunstancias a meméria sensorial funciona para circundé-lo de com. panhia ¢ controlar 0 tempo num perfodo em que futuro Ihe esta bloqueado © 0 presente oferece apenas @ agonia de uma doenca fatal, No seu isolamento, © poeta desdobra o seu mundo interno de memérias ao redor de si, logrando, ainda que por instantes, transpor-se a outros tempos onde ainda havia espe. ranga, O resultado interessante desta fixaglio do passado, muitas vezes, é uma Poesia extremamente visual, e ha exemplos nitidamente “parnasianos” resul- tantes de processos criativos ultra-roménticos. © esforgo de depuracéo, de “apanhar a esséncia”, leva o poeta através da sua propria estética a resiltados imprevistos. Esta natural evolucio entre o romantismo eo parnasianismo de- monstra claramente, néo s6 a falta de uma barrelra intransponivel entre os dois movimentos, mas também a essencial autoctonia do desenvolvimento lite: ririo brasileiro. A tradicio literdria brasileira, ao passo que danca ao ritmo alheio da Europa do século XIX, também obedece as necessidades intrinsecas, a sua prépria evolucio literéria. A “influéncia” estrangeira, nos melhores es- critores, deixa de ser mera imitaco, passando a ser uma espécie de achado — veleulo adequado as necessidades expressivas do poeta, pré-existentes ao en- contro com o “modelo” francés, inglés ou o que se A acumulacdo sensorial destes pocmas se v8 bem em “Os Perfumes” onde © sentido olfatorio leva Castro Alves a uma divagagio filoséfica sobre a essén- cia feminil, Aqui, como em outros lugares, predominam a plasticidade e o tato. E 0 poeta se revela no poema no proceso de evoeac&o, Como noutros poemas desta tendéncia hé uma palpdvel intensidade da imagem sensual: perfume 6 o invéluero invisivel, Que encerra as formas da mulher bonita, Bem como a salamandra em chamas vive, Entre perfumes a sultana habita, © posta se revela nas estrofes 7* e §*, trabalhando o poema a base de uma Tosa emurehecida: Por mim eu sei que hé confidéncias ternas, ‘Um poema saudoso, angustiado, Se uma rosa de ha muito emurchecida, Rola acaso de um livro abandonado. © espirito talvez dos tempos idos Desperta ali como invisivel nume ... E 0 poeta murmura, suspirando: Bem me lembro ... era este o seu perfume! 40 JON M. TOLMAN Depois, mulheres de todas as qualidades @ tendéncias se atropelam numa Jembranca efusiva: E que segredo no revela acaso ‘De uma mulher a predileta esséncia? Ora 0 cheiro & lascivo e provocante! Ora casto, infantil, como a inocénciat Ora propala os sensuals anseios Dialcova de Ninon ou Margarida, Ora 0 mistério divinal do leito, ‘Onde sonha Cecilia adormecida. Aqui, na magnélia de Celuta Lambe a solta madeixa, que se estira, Unge 0 bronze do dorso da eabocla Eo marmore do corpo da Hetaira. B que o perfume denuncia o espirito Que sob as formas feminis palpita . Pois como a salamandra em chamas vive, Entre perfumes a mulher habita. (101-102) A qualidade sensual, a intimidade do contato se expressa bem na pentltima estrofe com dois verbos de carater animalesco: lamber, ungir, Também é no- tavel a inclusiio natural de um elemento sertanejo brasileiro, a cabocla, entre @ evocacio de mulheres de tradi¢io européia. ‘Num poema escrito em junho de 1871 se v8 0 proceso acumulativo apli- cado a uma mio. O poeta amontoa palavras e imagens, obsessivamente fixado sobre a mio, que ora é festiva, cheia de anéis e jéias; ora fidalza, fina e branca; ora destra, gil; ora sensual ... © poeta reduz todo o jogo amoroso, toda a Givinizacio da muther bela a uma parte do corpo e, depois, se alarga metafo- ricamente, enchendo com ela o mundo, O resultado é uma espécie de orgia visual e sensorial que mostra seu romantismo no arrebatamento de pensa- monto e na incontinéncia verbal, Mio de crianca! Era u'a mio de arminhos, ‘Tendo essas covas, esses alvos ninhos, ‘De aves que a terra desconhece ainda! Lembrando as conehas dos pareéis marinhos, A polpa branca dos nascentes lirios Covas ... porque se enterram mil delitios ‘Naquela mAo tio linda! CASTRO ALVES, POETA AMOROSO a No teatro, uma noite, casta, esquiva, ‘Na luva de polica a mio cativa, Recordava um eclipse da lua .. ‘Mas um momento apés, deixando a guante, Vi salvar-se da espuma, rutilante, Como Vénus despida e palpitante, Aquela mao tio nua! (“Aquela Mao", 339-341) © posta denuncia o seu romantismo, apesar da plasticidade conseguida, no de- Yicioso acotovelamento de opostos, como na primeira estrofe citada. Ali a mao de erianca evoca a inocéneia e a ternura ao mesmo tempo que suscita uma imagem extremamente sensual na equiparagao de arminho (pele luxuriante de animal) ¢ cova/ ninho de amor (sentidos visuals — braneure-eseuridio de cova: sentidos tateis — arminho, suavidade, lisura; sentides morais em choque — brancura, virgindade, inocéncia — ninfolépsia, posse sexual), Depois 0 clima erdtico se adensa em comparacées que continuam 0 jogo inocénela — gozo fi- ‘sieo com implicagées sexuals nas referéncias a conchas e polpa (prefiguradas na palavra cova). A tensiio sensual continua na estrofe seguinte, onde 0 poeta joga com a castidade, 0 cativeiro da roupagem (Iuva — roupa da mio) © consegue uma metifora belissima, ao mesmo tempo Classica e extremamente sugestiva na alusfo venusiana, Onde 0 aniquilamento poético desta iiltima poesia? B certo que a poesia @ desigual, e alguns trechos aqui citados demonstram claramente os conhecidos altos e baixos castroalvinos. O surpreendente, porém, é que o poeta, as vésperas a morte, consiza a isencio criativa para elaborar um poema como 0 que se acaba de analisar. Mas prova ainda mais contundente existe em dois poemas, uum eserito cm 1866 e outro em 1871, “Horas de Martirio” nio foi ineluido em Espumas Fhutuantes. © pooma nada aerescenta & fama do poeta, obviamente Produto da juventude e transbordando lugares-comuns @ grandiloquéncia oca. Em 1871, o poeta retoma o poems, talvez atrafdo pelo tema da auséncia, e nos 44 uma pequena obra-prima em que o estardalhaco de 1866 cede ao sofrimento ‘maduro, a solidio transcendental e a uma eloqiiéncia simples e direta, Convém citar extensivamente os dois poemas. Na versio definitiva, o poeta usa intelras apenas as primeiras duas estrofes, logo partindo & recriacdo do passado, Como em varios outros lugares, Castro Alves nos revela a origem do impulso criador — 8 solidio que gera a necessidade de uma companhia, mesmo que imaginada, seguida da acumulagio de detalhes na tentativa de fixar o efémero: HORAS DE MARTIRIO Dama Negra De dia na solidio seguir-te 0s pasos, De noite vigiar-te A luz da lampada, JON M. TOLMAN Ser quem amas, ea sombra com quem sonhas. Eis minha eternidade. ‘Maciel Monteiro Quando Ionge de ti eu vegeto ‘Nestas horas de largos instantes, © ponteiro, que passa os quadrantes ‘Marea séc'los, s'esquece de and Fito 0 céu — é uma nave sem limpada, Fito a terra — é uma varzea sem flores, © universo & um deserto de dores, A madona nfo brilha no altar, Entio lembro os momentos passados, Entio lembro tuas frases queridas, Como o infante que as pedras luzidas Uma a uma desfia na mio, Como a virgem, que as jéias de noiva, Conta alegre a sorrir de alegria, Conto os risos, que deste-me um dia, Que rolaram no meu coracéo, ‘Me recordo 0 lugar onde estavas... © rugir de teu lindo vestido, Como as asas de um anjo caido Quando rocam as flores do val... ‘Vejo ainda os teus olhos quebrados, Este olhar de tio filgides raios, Este olhar que me mata em desmaios, Doce, terno, amoroso, fatal... ‘Tuas frases... so garcas, que voam, B meu peito — o seu eindido ninho. .. ‘Teus amores — a flor do caminho, Que eu apanho, viajante do amor. Quer os cardos me firam as plantas, Quer os ventos me acoitem a fronte, Dou-lhe orvalho — do pranto na fonte, Dou-lhe sol — do meu peito no ardor, Oh! se Deus algum dia orgulhoso © seu livro infinito volvesse, B nas letras de estrelas relesse Seu passado nas folhas azuis ‘Nilo teria 0 orgulho que tenho, CASTRO ALVES, POETA AMOROSO Quando 0 abismo dest'alma sondando, No infinito de amor me abismando Eu me engolfo num pego de luz... ‘Feu amor... teu amor me engrandece, Di-me foreas nos transes da vida, E a borrasca fatal, insofrida, Fazme dé, faz-me rir de dosdem. Se eu cair, — rolarel no teu selo.. Se cu sofrer, — ouvirei o teu canto! Sentiret nos meus dias de pranto Que inda longe de mim — vela alguém! Meu amor... Meu amor é um delitio, # volipia, que abrasa e consome, ‘Meu amor é uma mescla sem nome, ¥s um anjo, e minh'alma — um altar, Oh, meu Deus! manda ao tempo, que fuja, Que deslizem em fio os instantes, E 0 ponteiro, que passa os quadrantes, Marque a hora om que a posca beijar. Convento de Sio Francisco no Recife, julho de 1866 (285.287) LONGE DE TI Quando longe de ti eu vegeto, Nessas horas de largos instantes, © ponteiro que passa os quadrantes, ‘Marea séculos se esquece de andar. Fito o céu — é uma nave sem lampada. Fito a terra — 6 uma varzea sem flores, universo ¢ um abismo de dores, Se a madona nfo brilha no altar. Entio lembro os momentos passados, Lembro entio suas frases queridas, Como o instante que as pedras luzidas ‘Uma a uma desfia na mio, Como a virgem que as jéias da noiva Conta alegre a sorrir de alegria, Conto os risos que deste-me um dia E que eu guardo no meu coracdo. 44 JON M. TOLMAN Lembro ainda o lugar onde estavas.., ‘Teu cabelo, teu rir, teu vestido. De teu lébio o fulgor incendido..., Destas mios a beleza ideal... Lembro ainda em teus olhos, querida, Este olhar de tio languidos raics, Este olhar que me mata em desmaios, Doce, terno, amoroso, fatal Quando a estrela serena da noite ‘Vem banhar minha fronte saudos Julgo ver nessa luz misteriosa, Doce amiga, um carinho dos teus! E ao siléneio da noite que anseia De volipia, de anelos, de vida, ‘Bu confio o teu nome, querida, Para as brisas levarem-no aos eéus. De ti Jonge minh’alma vegeta, Vive 86 de saudade ¢ lembranca, Respirando a suave esperanca De viver como escravo a teus pés, De sonhar teus menores desejos, De velar em teus sonhos dourados, “Mais humilde que os servos curvados! Tnda mais orgulhoso que os reis!” © meu Deus! manda as horas que fujam, Que desfilem em fio os instantes... E 0 ponteiro que passa os quadrantes ‘Marque a hora em que a possa fitar! ‘Como Tantalo & sede morria, Sem achar 0 conforto preciso... Morro mingua, meu Deus, de um sorriso, ‘Tenho sede, Senhor, de um olhar. Bahia, 1871 (328.330) A superioridade na nova terceira estrofe & ébvia, O “me recordo” preten- sloso dé passo ao simples “lembro”. O “rugir” de um vestido cedo passo Jembranca detalhada da mulher, onde o vestido @ apenas parte de uma cadeia de evocacées que tomam o lugar de anjos caidos e flores do vale, A comparacio das Ultimas estrofes 6 também instrutiva, © poeta salva o melhor da primeira CASTRO ALVES, POETA AMOROSO 45 versio, a impaciéncia com a vinda da amada, agora destacando-a ao principio éa estrofe. E consegue, nos dltimos versos, a expressio lapidar e definitiva, to procurada dos poetas, sem perder a simplicidade direta e profundamente pessoal que caracteriza o poema: “Morro A mingua, meu Deus, de um sorri- so, /Tenho sede, Senhor, de um olhar’ © esforco terrivel de lembranca gera no poeta a capacidade de obliterar interferéncias, de concentrar-se sobre a sua visio. Em “Durante um Temporal”, Castro Alves emprega um elemento predileto do Romantismo, a tempestade, Mas ‘agora a heranca tradicional, outrora usada sem maior originalidade, modifica-se individualmente. © poeta néo desafia o trovio, mas sim Tesiste tenazmente a sua atracéo, criando da violéncia uma visio amorosa calma e redentora: Que importa 9 rafo azul, a terra funda, A orquestra dos trovées, a voz do abismo, ‘So em ti cismando ... some-se o universo, ‘Se em ti somente eu cismo? ‘Tu és a minha vida ... 0 ar que aspiro ... ‘Nao ha tormentas quando estas em calma, Para mim s6 ha raios em teus olhos, Procelas em tua alma! (318) Apesar do valor inegdvel de alguns destes poemas, nio resta divida que @ obra-prima do poeta dentro desta tendéncia recriativa se encontra em Os An- jos da Meia-Noite, escritos em 1870. O ciclo de poemas representa toda a gama de expresso J vista em poemas individuais, Parte do valor dos poems vem precisamente da sua perfeicio formal ¢ tematica, Talvez por causa da concisio inerente ao soneto, o poeta aqui logra conter a caudal emocional roméntica, em beneficio da beleza pléstica e sonora dos poemas, As ‘fotografias” comegam com uma invocagio em termos completamente roménticos — insonia, vampl- ragem, sofrimento, isolamento, febre, fantasmas companheiros, Esta introducio apaixonada (e inferior aos poemas que seguem) di passo a quadros de lem- branca. O retrato de Marieta lembra os poemas da juventude, de contemplacio embevecida da amante casta ¢ virginal, adormecida, cuja insconseléneia permi- te a intrusio concupiscente do olhar masculo. Todos os elementos de sensua- lidade noturna esto presentes: a luz morna e reveladora da lua, espédua ¢ sselos nus, cabelos esparramados, O retrato seguinte de Barbara, a hetaira, real- ¢a elementos visuais. © bem mais uma fotografia do que a representagio de Marieta, A primeira estrofe apresenta-nos na sua combinagio de vermelho branco a perfeico venusiana, junto com a sugestio dissoluta do Alcool: Erguendo 0 efilice que o Xerez perfuma, ‘Loura a tranca alastrando-lhe os joelhos, Dentes niveos em labios tio vermelhos, Como boiando em purpurina escuma; (88) 46 JON i TOLMAN As variantes amorosas seguem-se: Estor, visio diffana de sensualidade, e Fa- iola, a bacante cruel, presenca constante neste poeta e traco inegavel da época. No soneto dedicado a Candida e Laura, com a sua énfase no amor conju- gal, a trangiiilidade temética gera o melhor poema da série, perfeito soneto “parnasiano". Num golpe intuitivo, os simbolos da nobreza, clsnes ¢ lirios, se ‘empregam aqui tal como os parnasianos 0 fardo. Completa a composicio o am- biente de jardim e palicio, A beleza estatica serve efetivamente de repouso espititual depois das evocacées emocionantes anteriores, Além do choque de ‘oposicdes to querido dos romanticos, o poema representa o momento em que 03 impulsos visuais anteriores atingem 0 dominio total da unidade postica: ‘Como no tanque de um palicio mago, Dous alvos cisnes na bacia lisa, Como nas Aguas que o barqueiro frisa, Dous neniifares sobre 0 azul do lago ... Como nas hastes em balouco vago Dous lirios roxos que acalenta a brisa, Como um casal de juritis, que pisa © mesmo ramo no amoroso afago ...(90) # notével na segunda estrofe a inclusdo natural de elementos brasileiros num ambiente decididamente curopeu, A presenca do sertéo baiano é constante nesta porsia, talvez por constituir o ambiente real do poeta durante meses a fio, internalizado e incluido inconscientemente na sua obra, Depois do remanso espiritual do quinto soneto, o poeta prossegue na trilha a consolacso com a evocacao de Dulce, outro amor casto, materno e acolhedor. © iitimo soneto em que Castro Alves interpela uma musa enigmética liga 0 tema recriativo com o do apelo. Aqui o poeta revela claramente a ligacko morte-amor-destino que corre insistentemente debaixo de tantas perguntas no Tespondidas. Como sempre, o poeta nfo ouve resposta. ¥ possivel que as mu- theres Iembradas, que amam e consolam 0 poota, e as duras damas hieriticas sejam apenas manifestacées contrétias do mesmo impulso de afirmagio indi- vidual: Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso, Que te elevas da noite na orvalhada? ‘Tens a face nas sombras mergulhada ... Sobre as névoas te libras vaporoso Quem és tu? Quem és tu? —ss minha sorte! Es talvez o ideal que est'alma espera! Hs a gloria talvez! Talvez a morte! ... (91) CASTRO ALVES, POETA AMOROSO a Existe outro elemento na poesia amorosa escrita na Bahia que ainda néo ‘estudamos devidamente, Na sua solidio, o poeta nfo s6 se projeta ao passado através da meméria sensorial, mas se lanca, através da imaginacio simpética, na natureza sertaneja que o circunda. O poeta anima a natureza fazendo com que la transborde de sensualidade. A tentativa se justifiea na elaboracao da identi- dade superior acima estudada. Nos poctas mediocres a imaginacdo simpatica se traduz na reconhécida felicia patética onde o escritor anima a natureza para me- Ihor refletir o seu estado animico. A. projecdo simpatica de Castro Alves nesta poesia compartilha do melhor da tendéncia, ¥ notével a énfase na harmonia. amorosa natural nesta poesia, Para Castro Alves todo o universo, seja huma- no, animal, planta ou mineral, compartilha um diapasio harménico sensual. Como diz Goldberg, “Projection of the sympathetic imagination is not only independent of pre-established categories, but it aims at breaking down these categories whenever they may be found”. (11) Em “A Volta da Primavera”, o poeta postula uma relacao erética na ne tureza em funcio da qual o seu préprio amor pela mulher representa uma necessidade indeferivel: ‘JA viste As vezes, quando o sol de maio Tnunda 0 vale, o matagal e a veiga? ‘Murmura a relva; “Que suave rai Responde o ramo: “Como a luz 6 meiga!” E, a0 doce influxo do clardo do dia, © junco exausto, que cedera & enchente, Levanta a fronte da lagoa fria . Mergulha a fronte na lagoa ardente ... Se a natureza apaixonada acorda Ao quente afago do celeste amante, Diz! ... Quando em fogo o teu olhar transborda, ‘Nao vés minh’alma reviver ovante? (34) Em “Murmirios da Tarde”, 0 leitor defronta idéntica cena de sensualidade transbordante, dentro da qual o amor humano é apenas mais um elemento. O ‘amor é uma espéeie de éxtase transcendental que desce sobre o mundo, infla- mando tudo. Esta exacerbagio sensual é encarada em termos sagrados, onde s participantes logram total comunhfio através dos sentidos: (i) Goldberg, p. 92. 48, JON M, TOLMAN Ontem a tarde quando 0 sol morria, A natureza era um poema santo, De cada moita a escuridio saia, De cada gruta rebentava um canto, Ontem, & tarde, quando o sol morria, Larga harmonia embalsamava os ares! Cantava 0 ninho — suspirava 0 lago . B a verde pluma dos sutis palmares ‘Tinha das ondas o murmirio vago ... Larga harmonia embalsamava os ares, Era dos sores a harmonia imensa, Vago concerto de saudade infinda! (70-71) A compenetracio castroalvina da natureza chega eo auge nos poemas de “A Cachoeira de Paulo Afonso”, produzindo efeitos lindissimos que se encontram entre os exemplos prediletos de varias geragSes de leitores brasileiros. A tarde especialmente, como se viu nos exemplos acima citados, apresenta-se a0 poeta ‘como momento diurno de maxima intensidade voluptuosa, com a sua luz morna e dourada sugerindo a proximidade do fim-morte do dia. Em “A Tarde” 0 poeta nos desereve tal momento: ‘Era a hora em que a tarde se debruca ‘La da crista das serras mais remotas .. d'araponga o canto, que soluca, Quando sobre @ lagoa, que s'embuca, Passa o bando selvagem das gaivotas ... ¥ a onca sobre as lapas salta urrando, Da cordilheira os visos abalando, Era a hora em que os cardos rumorejam Como um abrir de bocas inspiradas, E 03 angicos as comas espanejam, Polos dedos das auras perfumadas . ‘A hora em que as gardénias que se beijam ‘Siio timidas, medrosas desposadas; Ba pedra ... a flor ... as selvas ... 0s condores Gaguejam ... falam .., cantam seus amores! (211-212) A originalidade de Castro Alves, dentre tantos poctas romAnticos a falarem incessantemente da tarde, se encontra na incluso natural do sertio na poesia ‘erepuscular da época. Depois de estabelecer o seu ambiente amoroso, 0 poeta CASTRO ALVES, POETA AMOROSO 49 nos introduz Maria, moca tdo atraente que @ natureza se apaixona por ela numa bela hipérbole amatéria: Onde vais, @ tardezinha, Mucama téo bonitinhs ‘Morena flor do serta: A grama um beljo te furta Por baixo da saia curta, Que a perna te esconde em vao ... (213) © poeta volta ao tema de sensualidade crepuscular no famoso poema ““Creptise culo Sertanejo”, outra vez deserevendo uma sinfonia pastoril. Ainda mais co- phecido & "O So Francisco”, onde o poeta descreve © curso do rio em termos de posse e as terras se apresentam como uma série de mulheres invadidas pela forea conquistadora das aguas, Para terminar este ensaio, queremos recapitular brevemente os argumen- tes empregados. Para nés, a melhor poesia do poeta é escrita nos anos 1870- “1871, no que chamamos a sua fase definitiva, Ao contrario do consenso cr tico que encontra pouco o que admirar nesta poesia, nés a achamos profunda © profundamente fascinante. Em contraste com 0 posta jovem, o Castro Alves de ento internaliza conceitos romAnticos de acordo com necessidades psicolé- gleas inapeléveis. © resultado ¢ uma poesia ricamente elaborada onde os re- cursos ultra-romanticos geram beleza sonora e visual. Os temas unificadores de carpe diem, tempus fugit e da efemeride recorrem através dos motives do apelo ¢ da recriacio do passado. O pocta emprega o apelo para chamar as me- mérias e para indagar, sempre debalde, 0 futuro encarnado numa série de mu- heres frivolas e distantes. Nos poemas onde o pocta desenvolve largamente a sua meméria sensorial encontramos as suas obras-primas, O poeta atinge 0 ‘auge desta tendéncia nos poemas merecidamente famosos de “Anjos da Mela- Noite", mas demonstra felicidade poética em iniimeros outros poemas. O liltimo elemento poético examinado neste ensaio foi o desenvolvimento da sensibilidade negativa em Castro Alves, O poeta se distingue na sua poesia ‘amorosa derradeira por uma tentativa bem sucedida de ultrapassar os limites egocéntricos, logrando criar uma sensualizacdo transcendental da natureza em gue 0 elemento humano ¢ harmoniosamente fundido com © mundo, Ao mesmo tempo que o poeta se transborda afetivamente na tentativa de enriquecer a sua identidade, ele inclui naturalmente o sertdo balan no ambiente poético. ‘Uma das desvantagens da consagracdo literaria é 0 peso do julgamento critico que interfere muitas vezes com a justa apreciagao do texto escrito. Den- tre muitos outros autores brasileiros convenientemente encaixotados pela cri- tica podemos destacar Castro Alves, Depois da comemoragio do centendrio da sua morte é justo que a sua obra seja avaliada de novo. Esperamos ter con- tribuido para uma re-leitura de Castro Alves através deste estudo de uma parte. de sua obra imerecidamente desprezada,

You might also like