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Rogério Haesbaert O Mito da Desterritorializag¢ao Do “fim dos territdrios" & 2 2 3 3 3 3 3 2 2 5 j : g i 4 3 edicdo revista Gosta, Rogiio Heosbacr da Sime da Gestertriaeagéo: do “im dor SBD+ 3 BERTRAND BRASIL Sumario Prologo 13 1. Introdugdo 19 1.1, As Ciéneias Sociats redescobrem o territério para falar do seu desaparecimento 26 Definindo Territério para Entender a Desterritorializagio 35 2.1. A amplitude do conceito 37 2.2, Territ6rio nas perspectivas materialistas 42 2.2.1. As concepgées naturalistas 44 2.2.2. A concepgio de base econdmica 55 2.2.3. A tradig&o juridico-politica de territério 62 2.3. Territério nas perspectivas idealistas 69 2.4. Territério numa perspectiva integradora 74 2.8. A visio relacional de territério em Sack e Raffestin 80 ‘Territério e Desterritorializagio em Deleuze e Guattari 99 3.1. Conceitos para a Geografia? 101 3.2, As multiplicidades, o rizoma e as segmentaridades 112 3.3. O conceito de territério e seus componentes 118 3.4. Desterritorializagio e reterritorializagao: a criagdo ea destruigSo de territérios 127 3.5. A desterritorializagdo relativa ou a desterritorializago do socius 133 Pés-modernidade, “Desencaixe”, Compressio Espago-tempo © Geometrias do Poder 143 4.1, 0 desencaixe espago-temporal 156 4.2. Compressio tempo-espago 160 4.3. Geometrias de poder e diferentes formas espaciais 165, lade humana e desterritorializagao 237 6.2, Desterritorializaga edesterritorializacao 264 ‘Territorios, Redes e Aglomerados de Exclusio 279 7.1. Tervit6rios, redes e territérios-rede 279 7.2, Desterritorializagio e aglomerados de exelusio 311 Da Desterritorializagdo & Multiterritorialidade 337 Desterritorializagao como Mito 363 gratia 373 indice 391 John Allen e Sarah Whatmore. A contribuigéo dos debates durante (08 Seminérios do Departamento e nos grupos de leitura foi funda- disto, meu muito obrigado aos professores Jacques Lévy e Michel Lussault, na Frange, e Wolf-Dietrich Sahr, na Ale- ‘manha, pelos convites pare semindris epalestras que proporciona- ssGes to interessantes desta temdtica em Reims e Cérisy Heidelberg, Jena e Leipzig (Alemanha). any thanks @ British Library e seus funciond~ tos e amigos, uma instituigdo que é um verdadei- da humanidade” e que, como nossa “eatedral”, como costumava dizer Doreen Massey, proporcionou alguns doe ‘meus momentos mais extraordindrios em termos de stisfagdo inte- lectual Ali, a sociatizasdo do conhecimento, de todos os cantos e para tantos estudantes do mundo inteiro que, como eu, tiveram 0 privilégio de freqtenté-la, éa melhor demonstragto de que a utili- za¢do digna do dinheiro puiblico é una bandeira pela qual devemos continuar sempre lutando, (..) 0 homem nao é mais 0 homem confinado, mas o homem endividado. # verdade que 0 capitalismo manteve como cons- tante a extrema miséria de trés quartos da humanidade, pobres, demais para o endividamento, numerosos demais para 0 confi- ‘namento: o controle néo 86 terd que enfrentar a dissipagao das fronteiras, mas também a explosdo dos guetos e favelas. (Gilles Deleuze, 1992(1990):224) recriadas pela ferrovia, das pontes “impossiveis” (uma, a poucos quilémetros da cidade, dizia-se, tinha 0 mator vao livre da América do Sul). Mas meu territério, no fundo, era calmo, um cotidiano ‘moro, de ritmos repetitivos, fins de semana “sagrados” na missa de domingo, manhas de aula, tardes de “busear o terneiro” no campo, aventura com a qual nunca me entusiasmei, Apés um ano na cidadezinha, meu pai arrendou um lote no alto de um cerro, a pequena distancia, que subiamos de carreta. Do alto podia-se ver 0 imenso “chapadao” da Serra Geral e a Campanha —o Pampa —a perder-se de vista no horizonte, Ali eu descobria outra fronteira para nosso territorio, campos e planuras sem fim, uma abertura ‘que me fascinava, longe’dos constrangimentos da Serra. Mas a Serra era mais diversa, ¢ cada vale tinha também suas surpresas. ‘Na Campanha, tudo parecia se revelar ao mesmo tempo, nada se escondia, nada parecia restar por aprender. Mas, ledo engano, ali também se escondiam “segredos”: depois de dois anos, mudamos para o Pa pobre que assustou minha irma de quatro anos, que se negava a entrar... Voltei no eaminhao da ‘mudanga, Teria de ficar alguns meses para acabar os estudas. Aos ito anos de idade, morando com desconkecidas, uma nova territo- rializagdo era preciso. Lembro quanta falta sentia da familia e como tudo ali tinha cheiros, sabores e cores completamente outros. Até descansar ficava mais dificil. Era como se féssemos obrigados @ reconstruir um lar, um territdrio, aos oito anos. Mas logo as {férias, 0 retorno ao campo, aquele “rancho” de sapé e chao batido, Jogio de chapa de ferro e concreto, agude para buscar dgua, E reen- contros, muitos, incluindo os irmaos que estudavam com os avés na “eidade grande ‘meu territ6rio, dominado pelos pais, apropriado pela festa com 08 o pobre virou sem grande dificuldade irmaos. Mas minha cabega também je ia longe, por outros campos. ‘Me fascinava saber que para além do rio (Ibieui) havia outros trens, e estes eruzavam outra fronteira, rumo ao Uruguat. Um tio morava na fronteira, gémeas”, nome misterioso este... Para estu- dar, meses depois, fomos novamente pra cidade, Outra des- reterritorial Tudo fisicamente perto, no méimo 100 q ‘metros, mas, para mim, naquela idade, disténcias enormes. Outra cidade, agora “muito maior”, dois mil e quinhentos habitantes, pela primeira vez ruas calgadas, Forum, até um cinema (onde ganhei entradas gratis por dois anos, depois de responder pergun- tas sobre Geografia na praga da cidade). Novos amigos. A desco- berta de Monteiro Lobato e Narizinho. Os primeiros atlas. Quantas viagens (imagindrias) era possivel fazer... Mas ao mesmo tempo em ‘que viajava pelos mapas, tentava de alguma forma “viajar pelo mundo”, ali perto, que fosse, criar outras redes, mais reais, expan- dir meu(s) territério(s). As primeiras “correspondentes” foram duas argentinas de um énibus de turismo que parou na praca da cidade, onde eu trabalhava vendendo revistas. Para mim, os pros- ppeetos da agéncia de turismo onde elas trabalhavam eram mais, importantes do que a ida do homem @ Lua, que eu presenciei numa das raras tevés preto-e-branco da cidade, Melhor mesmo sé quando mudamos outra vez, dois anos depois, para a “cidade grande”, Santa Maria. Ali, apesar da peniiria por que passamos, meu pai trocando de trabalho todo tempo, casas alugadas em todos os can- tos da cidade (cinco bairros diferentes em seis anos), havia 0 aces- 0a uma Biblioteca Publica, meu “territério” predileto, reino da Georama e de outros atlas, muito mais detathados do que meu sim- ples Atlas Escolar do MEC, Ouvia radios de ondas curtas todas as noites (de Londres a Pequim) e comecei a ter amigos corresponden- tes do mundo inteiro. Foi assim que, mesmo muito longe dos tem- pos de Internet, “comprimi" meu tempo-espaco, conectando-me, do meu jeito, com o outro lado do mundo. Preparando-me para a ‘mobilidade “real” que me des-reterritorializaria depois no Rio de Janeiro, para 0 mestrado, em Paris, para 0 doutorado, e em Londres, agora hé pouco, para o pés-doutorado. Olhar para tras e ver todas essas territorialidades acuruuladas — ou, as vezes, parti- das —e minha familia ainda no Sul, na sua territorialidade restri- ta, meu pat cuidando dos cavalos dos vizinhos, minha mae cuidan- do da mesma horta, do mesmo jardim, tudo isto é um misto de nos- talgia que amarra dor e felicidade. Saber que temos todos esses muileiplos territérios dentro de nds, e que podemos ainda vivenciar ‘muitos outros, de gatichos na Bahia, de chineses na Califérnia, de bengalis em Londres... O privilégio da multiterritorialidade que é acessivel a poucos. Cidados do mundo que deveriamos ser todos. Para recriar 0 futuro, com os alicerces de um passado que ndo se esvai, mas que é constantemente recriado, com nossa aldeia na ‘meméria —e no respeito por aqueles que preferiram (e tiveram a opeao) de permanecer nas suas pequenas-grandes aldeias-ter- ritdrios da sobrevivéncia e do aconchego cotidianos. Que é, ou deve- ria ser, no final das contas, também, o territério-mundo para todos que essa globalizagdo perversa teima em mentir que estd nos dando, tg ‘mito da desterritorializaedo 6 0 mito dos que imaginam que mem pode viver sem territério, que a sociedade pode existir sem territorialidade, como se 0 movimento de destruigdo de terri- t6rios ndo fosse sempre, de algum modo, sua reconstrugao em novas bases. Territério, visto por muitos numa perspectiva politica ‘ou mesmo cultural, é enfocado aqui numa perspectiva geogréfica, intrinsecamente integradora, que vé a territor cesso de dominio (politico-econémico) e/ou de apropriagéo (sim- bélico-cultural) do esparo pelos grupos humanos. Cada um de nés necessita, como um “recurso” bdsico, territorializar-se. Nao nos \s0 como 0 pro- moldes de um “espaco vital” darwinista-ratzeliano, que impde 0 solo como um determinante da vida humana, mas num sentido ‘muito mais miltiplo e relacional, mergulhado na diversidade e na dindmica temporal do mundo. De dicotomias estamos cheios e 0 discurso da desterritoriatizagdo esté repleto detas: materialidade e ‘imaterialidade, espacialidade e temporalidade, natureza e cultura, espago e sociedade, global e local, Expressdes classicas como a da tempo” foram responsdveis por grande parte do “preconceito espago-territorial” que envolveu cada vez mais os territérios em ‘uma carga negativa, vistos mais como empecilhos ao “progresso” e 4 mobilidade, a ponto de (teoricamente, pelo menos) submergirem no mar da “fluidez” que tudo dissolve e desagrega. Mas 0 que seria do homem se sucumbisse a esse oceano de indiferenciagao e mobi- lidade? Nao se trata em hipétese alguma do saudosismo de uma Gemeinschaft, vida comunitéria, fechada e autérquice, que de certa forma sé existiu na simplificagdo de alguns cientistas sociais. grande dilema deste inicio di io, parece-nos, ndo é 0 fend- ‘meno da desterritorializaedo, como sugere Virilio, mas o da multi~ territorializagao, a exacerbagao dessa possibilidade, que sempre existiu, mas nunca nos niveis contempordneos, de experimentar 8 territdrios ao mesmo tempo, reconstruindo constante- ‘mente 0 nosso. Sabendo, de saida, que “multiterritorializar-se”, para a maioria, ndo passa de mera virtualidade, A exelusio avil- tante ow as inclusdes extremamente precérias a que as relagdes capitalistas relegaram a maior parte da humanidade faz com que ‘muitos, no lugar de partitharem miltiplos terri busca de um, o mais elementar territério da sobrevivéncia cotidia- nna, Assim, os miiltiplos territérios que nos envolvem incluem esses territérios precérios que abrigam sem-tetos, sem-terras e os tantos, grupos minoritérios que parecem nao ter lugar numa des-ordem de “aglomerados humanos” que, em meio a tantas redes, cada vez mais estigmatiza e separa. Assim, 0 sonko da multiterritorialidade generalizada, dos “territérios-rede” a conectar a humanidade inteira, parte, antes de mais nada, da territorialidade minima, abrigo e aconchego, condigao indispensdvel para, ao mesmo tempo, estimular a individualidade e promover 0 convivio solidério das ‘multiplicidades — de todos e de cada um de nds. l= Introdugao ++ @aceleragio, néo mais da histéria (..) mas a aceleragéo da propria realidade, com a nova importéncia deste tempo mun- dial em que a instantaneidade apaga efetivamente a realida- tervalos geogréficos que organiza- (irilio, 1997:17) Inadaptado aos novos dados da economia, impotente para br em ordem a proliferaedo contempordnea das re lismo, [0 territ6rio] fot ultrapassado pelos avangos de uma ‘mundializagdo que pretende unificar as regras, os valores e 08 objetivos de toda a humanidade. adie, 1996:13) mundo estaria se “desterritorializando”? Sob o impacto dos processos de globalizago que “comprimiram” 9 espago e o tempo, erradicando as distncias pela comuni- cago instantanea e promovendo a influéncia de lugares os mais distantes uns sobre os outros, a fragilizago de todo tipo de fronteira Go» & a crise da territorialidade dominante, a do Estado nagio, nossas ages sendo regidas mais pelas imagens e representagSes que faze- ‘mos do que pela realidade material que nos envolve, nossa vida imersa numa mobilidade constante, conereta e simbdlica, 0 que res~ taria de nossos “territérios”, de nossa “geografia"? Segundo 0 urbanista-fildsofo francés Paul Virilio, até a geopolitica estaria sendo sobrepujada pela cronopolitica, pois seria estrategicamente muito mais importante o controle do tempo do que o controle do espago. O mundo das divisoes territoriais dos Estados nagées, na forma de colcha de retalhos, estaria condenado frente ao mundo das redes, a “sociedade em rede” como denominou Manuel Castells, Se pensarmos nas nossas préprias experiéncias pessoais, pelo ‘menos para aqueles que partilham mais amplamente da globaliza- ermitida ao nosso deslocamento fisico pelos transportes quanto pela inst mente a Enquanto geégrafos, estamos preocupados em elucidar as atinentes & dimensdo espacial e territorialidade enquan- a condigéo humana. Decretar uma ‘absoluta” ou o “fim dos tervitérios” seria pa- radoxal. A comegar pelo simples fato de que o préprio conceito de sociedade implica, de qualquer modo, sua espacializagio , sua territ ago. Sociedade e espago social so dimensdes gémeas. Nao hé como definir o individuo, 0 grupo, a comunidade, a sociedade sem ao mesmo tempo inseri-los E interessante iniciarmos lembrando que, ainda que muito presente no debate das Ciencias Sociais, pelo menos desde os anos 1970 (com os filésofos Gilles Deleuze e Félix Guattari), 0 termo desterritorializagao ainda nao é reconhecido pelos grandes di nérios. © famoso reconhece territorializagao como um termo antigo, mas nada Gn & comenta sobre desterritorializagio, Na Geografia, o primeiro registro deste verbete, de nossa autoria, é extremamente recente, tendo sido publicado no Dictionnaire de la Géographie et de Vespace des sociétés em 2003 (Lévy e Lussault) No Ozford English Dictionary consta apenas o termo t rializagao, derivado do verbo territorializar, que significa tornar territorial, situar em bases territoriais, ou ainda associar a um ter- ritério ou distrito particular. O mais interessante é observar as citagdes assinaladas, uma de 1848, comentando que “recer ‘te 0 papa tervitorializou sua autoridade numa grande érea”, outra de 1697 sobre a “territorializagio do servigo militar” (e do Exérei- to), e uma de 1899 sobre a “territorializagdo das ferrovias” (p. 819). Pode-se perceber a est clonais de construgéo de lizando, pelo territério, interesses de ordem pol ), politico-militar (Bxército) e politico-econdmica (redes técnicas) ‘Ainda que o termo desterritorializagdo seja novo, nao se trata de uma questo ou de um argumento propriamente inédito, Muitas osigdes de Marx em O Capital e no Manifesto Comunista revela~ vam claramente uma preocupagio com a “desterritorializagao” capi seja a do camponés expropriado, transformado em “trabalhador livre”, e seu éxodo para as cidades, seja a do burgués thado numa vida em constante movimento e transformacéo, ‘tudo que é s6lido desmancha no ar”, na famosa expresso llarizada por Berman (1986(198 A burguesia ndo pode existir sem revolucionar incessantemen- te 08 instrumentos de produgdo, por conseguinte, das relagdes de producito e, com isso, todas as relapses sociais.(..) Essa sub- versio continua da produpao, esse abalo constante de todo o tema social, essa agitagdo permanente e essa falta de segu- ranga distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relagées sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepedes e de iddias secularmente vene- radas; as relagées que as substituem tornam-se antiquadas ox antes de se consolidarem. Tudo o que era sélido e estével se desmancha no ar, tudo 0 que era sagrado é profanado e os hhomens sao obrigados finalmente a encarar sem ilusbes a sua posigdo social eas suas relagées com os outros homens (Marx e Engels, 1998(1048}:43) Ao contrério das interpretagbes que se restringem & perspecti- va econémico-politica, Berman enfatiza o enfoque cultural no materialismo hist6rico de Marx, cuja “verdadeira forga e origina- Vidade” adviria da “luz que langa sobre a moderna vida espiritual” (2996:87). Neste sentido, trata-se de uma leitura mais ampla que projeta a desterritoriatizarao (mesmo sem o uso explicite do termo) como uma das caracteristicas centrais do capitalismo, e, mais ainda, da prépria modernidade Certamente podemos afirmar que ¢ intrinseco & reprodugao do capital este alimentar constante do movimento, seja pelos proces 05 de acumulagdo, com a aceleragao do ciclo produtivo pela trans- formagio técnica e paralela reinvengdo do consumo, seja pela dindmica de exclusdo que joga uma massa enorme de pessoas em circuitos de mobilidade compulséria na Iuta pela sobrevivencia, cotidiana. Temos assim, pelo menos, duas interpretagées bastante distintas daquilo que é percebido como desterritorializagio, e que ‘muitas vezes os discursos correntes confundem: uma, a partir dos grupos hegem@nicos, efetivamente “globalizados”, outra, a partir dos grupos subordinados ou precariamente incluidos na dindmica globalizadora Guy Débord em seu clissico A Sociedade do Espetdculo (origi- nalmente publicado em 1967), retomando Marx (inclusive na ‘mesma alusio feita por ele a destruigio de “todas as muralhas da intetiza bem essa perspectiva materialista histérica so- 10s desterritorializadores/globalizadores do capitalismo: A produgdo capitalista unificou 0 espago, que jé nao é limitado Por sociedades externas. Essa unificagdo é a0 mesmo tempo um processo extensivo e intensivo de banalizagao, A acumulagao eo» & das mercadorias produzidas em série para o espago abstrato do ‘mercado, assim como deveria romper as barreiras regionais € legais e todas as restrigdes corporativas da Idade Média que ‘mantinham a qualidade da produgdo artesanal, devia também dissolver a autonomia ¢ a qualidade dos lugares. Essa forga de homogeneizagdo é a artitharia pesada que fez eair todas as ‘murathas da China (Débord, 1997:111, destaque do autor), Um outro classico, o socislogo Emile Durkheim, jé na outra assagem de século, do XIX para 0 XX, embora sem usar explici- ‘tamente o termo “desterritorializagao” e dentro de uma perspecti- va teGrica e ideol6gica bastante diversa, comentava a respeito da fragilizagdo das divisdes territoriais a partir do crescente papel das, “corporagées” (em sentido amplo}: (..) tudo permite prever que, continuando 0 progresso a se efe- tuar no mesmo sentido, ela [a corporagdo] deverd assumir na sociedade wma posigdo cada vez mais central, (.) a sociedade, em vez de continuar sendo o que ainda é hoje, um agregado de distritos territoriais justa de corporagdes nacionais.(..) Veremos, de fato, como, & medida ‘que avangamos na historia, a organizagdo que tem por base agrupamentos territoriais (aldeia ou cidade, distrito, provincia etc.) vai desaparecendo cada vez mais, Sem diivida, cada um de ‘nds pertence a uma comuna, a um departamento, mas os vineu- los que nos ligam a eles se tornam cada dia mais frageis e mais frouxos. Essas divisdes geogréficas sao, em sua maioria, artifi- ciais e jd ndo despertam em nés sentimentos profundos. O espi- rito provinciano desapareceu irremediavelmente; 0 patriotismo de paréquia tornou-se um areaismo que ndo se pode restaurar ad vontade (Durkheim, 1995{1930]:-XXXVI-XXXVI. Apesar de suas profundas diferengas tedricas e ideol6gicas, Durkheim, tal como Marx, profetizava também a globalizagdo, 0 fim de identidades territoriais regionais-locais (0 “espirito provin- ex» } iano”) ¢ a emergéncia de uma sociedade onde as bases territorial de organizagao seriam substituidas pela “organizago ocupacional” © por um padrao geral de corporagées {trans]nacionais. Tal como ‘muitos autores contemporaneos, ele acreditava também na extinggo dos provincianismos e paroquialismos, como se as identidades mais ‘radicionais estivessem sendo simplesmente varridas do mapa. De forma semelhante a esse “final de era” (ou melhor, de afir- magdo da modemnidade) e passagem de século durkheimniano, 0 final do séoulo XX (ou do segundo milénio) eo chamado advento da pés-modemidade trouxeram uma quantidade ainda mais sur- Preendente de fins: o fim da modernidade (Lyotard, 1986) velo acompanhado pelo fim daquilo que, se acreditava, eram seus ter= ‘mos basicos — 0 Estado nagao (Ohmae, 1996), 0 trabalho, as clas- ses sociais, a democracia (Guehénno, 1993) — e houve até mesmo ‘asse, lado a lado com a morte do soeialismo (real smo” (Drucker, 1993). Para completar, idéia mestra do mundo moderno, a idéia de “histéria’ dindmica social cumulativa de “progresso” e “revolugio”, seria abolida (Fukuyama, 1992), ‘Mas, como argumenta Virilio na citagdo que abre este item, ara alguns nfo se trata do fim da Histéria, mas do fim da pr6pria Geografia, confundida muitas vezes com a simples distancia, supe- rada a partir do avango tecnoldgico dos transportes e das comuni- cagdes. No discurso de O'Brien (1992), enquanto economista-chefe do American Express Bank, o fim da Geografia se refere, antes de ‘mais nada, aos circuitos financeiros, aqueles que muitos conside- tam o locus por exceléncia da globalizagao. Aqui, o argumento da desterritorializasao e o projeto neoliberal caminkam juntos, um a servigo do outro. De qualquer forma, o discurso da desterritorializacao tomou vulto e acabou se propagando pelas mais diversas esferas das Ciencias Sociais, da desterritorializacao politica com a chamada crise do Estado nagio a deslocalizagio das empresas na Economia 8 fragilizagio das bases territoriais na construgdo das identida- des culturais, na Antropologia e na Sociologia, Su & Este trabalho corresponde & retomada e ao aprofundamento de uma temética que temos desdobrado ha varios anos (Haesbaert, 1994, 1995, 1999). 14 em 1994, ironizando esta era “pés", do pés- industrialismo ao pés-fordismo, do pés-socialismo ao pés-capitalis- (no sentido do senso eomum, como (J geralmente acredita-se que os “territérios” (geogréficos, cioldgicos, afetivos...) estdo sendo destruidos, juntamente com as identidades culturais (ou, no caso, territoriais) e 0 con- trole (estatal, principalmente) sobre o espaco. A razéo instru- ‘mental, através de suas redes técnicas globalizantes, tomaria conta do mundo... Como se a prépria formagao de uma conseténcia-mundo ndo pudesse reconstruir nossos territérios (de identidade, inclusive) em outras escalas, ineluindo a plane- téria(..) (Haesbaert, 1994:210), ‘Mais recentemente, acrescentamos que “hoje virou moda afir- mar que vivemos uma era dominada pela desterritorializagio, confundindo-se muitas vezes o desaparecimento dos territdrios smento da mediacao espacial nas relagdes sociais” (HHaesbaert, 1999:171, grifo do original). Ou seja, trata-se a j4 antiga confusao que resulta principalmente da néo explicita- 80 do conceito de territério que se esta utilizando, considerado muitas vezes sindnimo de espago ou de espacialidade, ou, numa ainda mais problematica, como a simples e genérica dimen- sdo material da realidade. Se formos mais rigorosos, poderemos afirmar que mesmo este enfraquecimento da mediagio espacial/material nas relagdes sociais, em seu sentido mais elementar e concreto, € questiondvel, ois ndo faltam processos que reenfatizam uma base geogrética, ‘material, a comesar pelos que envolvem questdes ecoldgicas (desflo- restamento, erosdo, poluigio, efeito estufa) e de acesso a recursos naturais (como aqueles ligados & biodiversidade), questoes, Gitas demograficas e de difusdo de epidemias, questdes de fronteira Sr» & € controle da acessibilidade (como nos fluxos migratérios), novas Jutas nacional-regionalistas de forte base territorial ete, 1.1. As Ciencias Sociais redescobrem o territério para falar do seu desaparecimento ‘A maioria dos autores que defendem um mundo em processo de desterritorializacao, como seria previsivel, vem de outras éreas que nio a Geografia. E como se a dimensio geografica ou espacial da sociedade fosse de um momento para outro “redescoberta”” pelas outras Citncias/Sociais, paradoxalmente, porém, mais para afirmar seu enfraquecimento e, em relagao ao territério, até mesmo seu desaparecimento, do que para demonstrar sua relevancia, O que se percebe é que por longo tempo os filésofos ecientistas sociais, com raras exceedes, negligenciaram © espago em stias andlises, € somente a crise “pés-moderna” contemporénea, a comesar por ‘Michel Foucault, teria novamente alertado para a importancia da dimensao espacial da sociedade. H4 um texto de Foucault (1986(1967}) que jé se tornou referencia obrigatéria na defesa da “forga do espaco”, principalmente quando ele afirma, logo no inicio: A grande obsessdo do século XIX foi, como sabemos, a histéria (.) A época atual talvez seja sobretudo a época do espaso. Estamos na época da simultaneidade: estamos na época da jus- taposiedo, na época do perto e do distante, do lado a lado, do disperso. Estamos num momento, creio eu, em que nossa expe- riéneia de mundo é menos a de uma longa via se desdobrando através do tempo, do que a de uma rede que conecta pontos e entrecruza sua prépria trama, Poder-se-ia dizer, talvez, que 8 ideoldgicos que animam a polémica contempo- ranea opdem os fiéis descendentes do tempo aos determinados habitantes do espaco (p. 22) ox» h ‘Muitos sociélogos e antropélogos, que hé varias décadas igno- ravam e/ou criticavam leituras geogréficas ou sobre a tervitoriali- dade humana*, redescobrem a importaneia da dimensio espacial da sociedade — agora, porém, notadamente, a fim de diagnosticar a polemica desterritorializaedo “moderna” — ou “pés-modema” — do mundo, Como se af, também, nao houvesse sempre, conjuga- das, a destruigdo e a produgéo de novos territérios, tanto aqueles mais abertos e flexiveis quanto aqueles mais fechados e segregado- res. Esta “dimenso mais concreta” em que se desdobram os pro- is poderia mesmo proporcionar, em periodos de crise \elhor percepeao da real intensidade das mudangas. ido Soja (1993(1989)), a alegada passagem proposta por Foucault de uma era centrada no tempo para uma era que privile- «ia 0 espago, localizada na passagem do séeulo XIX para o XX, na verdade deve ser transportada para o final do século XX: A medida que nos acercamos do fim do século XX (,.) as obser- vagées premonitérias de Foucault sobre a emergéncia de uma “era do espago” assumem uma feicdo mais razodvel. ..) A geo- grafia pode ainda nao ter desalojado a histéria no cerne da teo- ria e da critica contempordneas, mas hé uma nova e animado- ra polémica na agenda teérica e pi ‘anuncia maneiras significativamente diferentes de ver o tempo © 0 espaco juntos, a interagdo da histéria com a geografia, as ido, da imposigao do privilégio categérico intrénseco (pp. 18-19). ‘uma polémica que Fildsofos como Foucault (1984) para o ambito do poder e Jameson (1996{1984)) para o da cultura so embleméticos no senti- do de perceberem, através do espago, novas leituras do movimento , por exemplo, a forga quase puramente simbélica (ou identita- ) da “regiao” de Bourdieu (1989) esua critica algo simplista a inter~ pretagdes de alguns gedgrafos, desconhecendo as produgses mais recentes nesta temtica. on da sociedade, Outros, como Deleuze e Guattari, que tomaram “des- territorializagio” um dos termos centrais e mesmo definidores de sua filosofia, acabaram ampliando tanto a noglo de territério que as vezes fica diffiltransitar por sua “geoilosofia” (Litulo de capi tulo do livro O que E a Filosofia, 1991). Mesmo assim, sendo os atutores que mais ulilizaram o termo e contribusram para sua teo- rizagHo, eles sero objeto de tratamento especttico no tereeiro capt tulo deste livro, abrindo perspectivas para desdobramentos te6ri- cos posteriores, ainda que néo concordemos com alguns de seus pressupostos pés-estruturalistas e com muitas das implicagses politicas de seus discursos. ‘A maioria dos autpres recorre &leltura espacial ou geogréfica, a fim de visualizar melhor nfo a emergéncia do novo, mas 0 desa- parecimento do antigo. f assim que o cientista politico francés Bertrand Badie (1995) titulo de um livro dedicado sobretudo & discusso do debilitamento do Estado territorial osurgimento de espagos dominados pelas orga- nizagbes em rede. ‘Alguns estudiosos mais ausados, algo visionsrios, eomo Viriio ram até mesmo a defender que “a questdo do final deste séeulo” (XX) seria a da desterrtorializagio. Guatlari, mais (io, atentou para o perigo do fascinio que a desterritorializagao er sobre n6s: “ao invés de vive-la como uma dimensio— rel — da criagio de territérios, nés a tomamos como uma finalidade em si mesma. E inteiramente desprovidos de terzi- t6rios, nos fra (Guattari e Rotnik, 1996:284) i posstvel pereeber, ao longo da \ltima década, uma série de ientistas sociais que dedicaram muitas paginas ao debate da {torializagdo. Apenas para exemplificar, vejam-se os tra~ 10 de seu livro Socie- balhos de Tanni dade Global sobre a desterritorializago, e Ortiz (1994, 1996), que deu o sugestivo titulo de “O outro territ6rio” a uma de suas obras. Ortiz (1994) fala de uma desterritorializagdo que seria domi- nante na modernidade contemporanea (ver especialmente as Sx} pp. 105-111). Para ele, um dos elementos estruturantes da moder- nidade 6 “o principio da ‘circulagao” (p. 48), pois “modernidade é mobilidade” (p. 79), mobilidade esta que chega a tornar-se, na ‘mesma linha de Bauman (1999), “sinal de distingao”, ao separar os “sedentérios” dos “que saem muito”, os “que aproveitam a vida” (p. 211), Percebe-se aqui uma das interpretagées problematicas da desterritorializagao, aquela que a associa com mobilidade em senti- do amplo, sob inspiragio do “tudo que é sélido desmancha no at” larx. Questionaremos especificamente este ponto no Capitulo 6 deste livro. A sociedade moderna é vista por Ortiz como “um conjunto desterritorializado de relagées sociais articuladas entre si” (1994:50) ¢ até mesmo a nagdo é “um primeiro momento de dester- Titorializagao das relagdes sociais” (1994:49). O autor parece ‘menosprezar, pelo menos neste momento, a permanéncia dos con {tos que envolvem a contradigao entre uma nago modema, “des- territorializadora” em nome de uma cidadania que se pretende tuni- versal, € o particularismo dos (neo)nacionalismos de base étnico- cultural. Seu livro posterior, O Outro Territério (1996), retifica alguns pontos e aprofunda algumas dessas proposigées. Prova~ velmente seu didlogo com outros cientistas sociais, especialmente ge6grafos como Milton Santos, tenha influenciado nesta mudanca. ‘A propésito, Santos foi o ge6grafo que mais estimulou o deba~ te sobre territério e des-territorializagho nos anos 1990, como hem atestam suas obras coletivas (Santos et al., 1993; 1994) ¢ indivi- duais (Santos, 1996). E ena de maneira explicita, em A Natureza do Espago ele amplia a no¢ao a ponto de incorporar sua dimenstio cultural, pois “desterritoriali- zac&o 6, freqiientemente, uma outra palavra para significar estra- nhamento, que é, também, desculturizag4o” (p. 262). Além disto, 1nd uma associagéo (discutivel) entre “ordem global” que “desterri- torializa” (ao separar o centro e a sede da ago) ¢ “ordem local” ado poucas vezes 0 termo que “retervitorializa” (p. 272). anni (1992) também associa globalizagdo, desenraizamento desterritorializagdo: “A globalizagio tende a desenraizar as coisas, Sw S as gentes e as idéias [p. 92]. (..) Assim se desenvolve 0 novo e sur- ram-se estas nogies, desterritorializam-se “colsas, pes ‘a propria literatura se desenratza em génios num universal que desdenha a ‘a desterritorializagio aparece como ‘um momento essencial da pés-modernidade, um modo de ser isen- to de espagos e tempos ( adoxalmente, contudo, ela desvela, 6 imprescindivel dise no” que se desenha zag (ver a este re que abordam o tema, ora é a modernidiade que carrega um viés profundamente desterritorializador, ora 6 a pés-modernidade que se encarrega de, dissociando 0 espago eo tempo através das novas teenologias e dos processos em “tempo real”, promover a destrui- 0 dos territérios ou a jé lugar-comum e muito polémica “supres- s80 do espago pelo tempo”. indo a amplitude (erelevncia) que a questo da ndo “moderno-pés-moder- 0s processos de desterritoriali- lo 4). Para os cientistas sociais desterritorializagao adq proprios gedgrafos hé aqueles que, de uma forma ou de outra, im” dos terzitérios e a forga da desterritori icaria decretar o fim da propria Geografi é importante lembrar que entre os menos a idanga de categorias, como faz Chi (1999), propondo espacialidade no lugar de territorialidade. Uma espécie de a-territorialidade do nosso tempo também pode ser divisada em anélises mais especifieas, como aquela das didsporas (ver o Capitulo 8). Ma Mung (1995, 1999), um dos prin- cipais geégrafos na abordagem desta tematica, afirma que os ‘migrantes em diaspora partilham de uma erritorialidade”. Ao contrario, como veremos em nossa a nd , pensamos que se trata de um dos exemplos mais ricos em termos daquilo que deno- minamos multiterritorialidade. Desta forma, elaboramos nossas reflexdes a partir das seguir tes questies basicas sobre os discursos € ralizagéo: 1. Geralmente nao hé uma definigao clara de territério nos debates que focalizam a desterritorializagao; 0 territério ora aparece como algo “dado”, um conceito implicito ou a prio- rireferido a um espago absoluto, ora ele 6 definido de forma negativa, isto 6, a partir daquilo que ele nao ¢. Desterritorializagao é focalizada quase sempre como um processo genérico (¢ uniforme), numa relagio dicotémica e do intrinsecamente vinculada & sua contraparte, a (re)ter- ritorializagao; este dualismo mais geral encontra-se ligado a ‘vérios outros, como as dissociagdes entre espaco e tempo, es- ago e sociedade, material e imaterial, fixagio e mobilidade. Desterzitorializacao significando “fim dos territérios” apa~ rece associada, sobretudo, com a predominancia de redes, completamente dissociadas de e/ou opostas a territérios, € ‘como se crescente globalizagio e mobilidade fossem sempre sinonimos de desterritorializacao. Estas questies sero retomadas ao longo do texto, estruturado de forma a discutirmos, de safda, as diferentes concepgées de terri- t6rio ao longo da tradigao do pensamento geografico e sociolégico (e mesmo etolégico) e que servem de pano de fundo, explicito ou indo, para 0 debate sobre a desterritorializagao (Cap. 2). A concep- slo teorieamente mais elaborada sobre desterritorializagao vem da Filosofia, como um dos conceitos centrais do pés-estruturalismo de Gilles Deleuze e Félix Guattari (Cap. 3) Trata-se de um debate que se tornou assim uma das marcas da chamada pés-modernidade, onde se confunde com as novas experiéncias de espago-tempo —a “compressio” ou 0 “desencaixe” espago-tempo e as novas geome- trias de poder af envolvidas (Cap. 4). Tal como a prépria nogao de territério, os discursos da desterritorializagao abrangem as mais di- ferentes dimensbes, do econdmico ao politico e ao cultural (Cap. 5). Aqui questionaremos alguns dos pressupostos As principais dicotomias que, a nosso ver, esto subentendidas nna maloria dos debates sobre a desterritorializagio — termo que muitas vezes utilizamos hifenizado, pois se trata sempre de uma des-territorializagao — sero analisadas em diferentes partes do texto, © dualismo mais amplo, aquele referente a relagdo entre cespago e tempo, sera abordado mais diretamente no capitulo dedi- ccado & pés-modernidade (Cap. 4). Ele tem implicagdes diretas nos emais: os raciocinios bindrios entre fixagao e mobilidade (Cap. 6) € entre territbrio e rede (itens 6.3 e 7.1). Outras dicotomias, como aquelas entre sociedade e natureza, espago e sociedade e global e local, sero abordadas de forma mais difusa ao longo do texto. Como propostas conclusivas, defenderemos a idéia de que muito do que os autores denominam desterritorializagdo 6, na ver- dade, a intensificagao da territorializag&o no sentido de uma “mul- ut jalidade” (Cap. 8), um processo concomitante de destrui~ ‘so e construcao de territérios mesclando diferentes modalidades territoriais (como os “territ6rios-zona” e os “territ6rios-rede”), em. ‘miltiplas escalas e novas formas de articulagao territorial. Antecipando algumas consideragées finais, dirfamos que mui- tas vezes 0 discurso da desterritorializagao se coloca como um dis- curso eurocéntrico ou “primeiro-mundista” (se é que ainda se pode falar em Primeiro Mundo), atento muito mais a realidade das elites, Daag oe eee ein a ce perenne como no ner eprom poles centrais. Com certeza, o desprezo de algumas correntes filo- séficas pela materialidade do mundo (todas elas elaboradas em paises “centrais”) contribuiu para essa difusdo da idéia de um mundo de extingo dos territérios ou mergulhado numa dinamica crescente de desterritorializagao. Neste sentido, néio éde surpreen- SF der que, no amplo leque de dimensbes com que o tema é tratado, justamente grande ausente é a concepao mais estritamente social de desterritorializago, ou seja, aquela que vincula desterri- de exclusio socioes- Por fim, uma adverténcia: como se trata de um tema vasto e ‘multi ou transdisciplinar, ndo almejamos de modo algum a exaus- tividade, e alguns pontos aqui discutidos apresentardo lacunas ou 1 do que o requerido — dat, , nosso compromisso de continuar o debate em trabalhos posteriores, aprofundando algumas dessas teméticas. Além disto, € importante ressaltar que nosso raciocinio e nossa erftiea partem sempre de um olhar mais especifico, 0 olhar geogréfico, Como tal, pelo menos a partir desta perspectiva acreditamos estar contribuln- do substancialmente para uma maior problematizagio e para a busca de respostas ou, pelo menos, de algumas pistas importantes para o tratamento mais rigoroso e menos dicatémico da questo. 2= Definindo Territério para entender a Desterritorializagao! final, de que territério estamos falando quando nos refe- Times a “desterritorializacdo”? Se a desterritorializagio existe, ela esté referida sempre a uma problemética ter- Htorial —e, conseqdentemente, a uma determinada concepgio de territério. Para uns, por exemplo, desterritorializagao esta ligada & fragilidade crescente das fronteiras, especialmente das fronteiras estatais — 0 territério, a, é sobretudo um territério politico. Para outros, desterritorializagao esti ligada & hibridizagdo cultural que impede o reconhecimento de identidades claramente definidas —0 territério aqui é, antes de tudo, um territério simbélico, ou um espago de referéncia para a construsdo de identidades. Dependendo da concepsio de territério muda, conseqtlente- mente, a nossa definigao de desterritorializacao. Assim, podemos erceber @ enorme polissemia que acompanha a sua utilizagio centre os diversos autores que a discutem. Como j enfatizamos, os sequer deixam explicita a nogdo de territério com que estéo » Algumas partes deste capitulo tomam por referéncia 0 artigo de mesmo titulo publicado na coletinea “Territori, Terzitorios” (Haesbaert, 2002) Sw & Lidando, cabendo a nés deduzi-la, Daf a importincia de esclarecer- mos, de inicio, as prineipais linhas teérico-conceituais em que a 1u pode ser utilizada, sem em hip6tese alguma preten- Fa conceituago & problematica, mas mostrando sempre a diferenciagio e transformagio dos conceitos em fungao das ques- t0es priorizadas, Apesar de uma relativa negligéneia das Ciéneias Sociais com relagdo ao debate sobre o esparo e, mais especificamente, sobre a territorialidade humana?, pelo menos desde a década de 1960 polémica sobre a conceltuagao de territério e territorialidade vern 1m balango'sociolégico da nocao de territorialidade, cons ima dimensdo sociolégiea negligen- para com a dimensio espacial/territorial, mas, sobretudo, a falta de didlogo entre as diversas areas das Ciéncias Sociais. A Geografia, por exemplo, a quem deveria caber © papel principal, estava completamente ausente daquele debate. ‘Se nfo levarmos em conta os trabalhos mais pontuais de Jean de obra escrita especificamente sobre o tema do territério e da ter~ ritorialidade na Geografia o livro Territorialidade Humana, de ‘Torsten Malmberg (1980, escrito originalmente em 1976), obra de referéncla, mas euja fundamentagio tebrica behaviorista foi motivo de fortes criticas, Embora ele tenha estabelecido as bases de um sailente com outras reas, este foi muito mais o de refutagio, jé que a base do coneeito envolve uma associagdo dema- siado estreita entre terr ‘mal, na esteira da polé fo territorial” biol6gi- co de Robert Ardrey (Ardrey, 1969(1967). 2 “Territorialidade” aparece na Bibliografia ora assinalando 0 pressuposto mente constituidas ou no), Sw & Alm das perspectivas externas as Ciéncias Humanas, espe- clalmente aquelas ligadas & Etologia, de onde surgiram as primei- ras teorizagdes mais consistentes sobre territorialidade, a Antropo- logia, a Ciéncia Politica e a Histéria (com incursdes menores tam- 'bém na Psicologia) sto os outros campos em que, ao lado da Geo- grafia ¢ da Sociologia, encontramos o debate conceitual, o que demonstra sua enorme amplitude e, ao mesmo tempo, reforga nossa percepedo da precariedade do didlogo interdiseiplinar, que ¢ por onde tentaremos, sempre que possivel, levar as nossas reflexes, 2.1. A amplitude do conceito Apesar de ser um conceito central para a Geogratia, territérioe tervitorialidade, por dizerem respeito a espacialidade humana?, tém uma certa tradigio também em outras reas, cada uma com enfoque centrado em uma determinada perspectiva. Enquanto 0 gedgrafo tende a enfatizar a materialidade do tervitério, em suas méltiplas dimensées (que deve(tia] incluir a interagio sociedade-natureza), a Ciéncia Politica enfatiza sua construgdo a partir de relagées de poder (na maioria das vezes, ligada & concepgdo de Estado); a Economia, que prefere a nogdo de espaco & de territério, percebe-o ‘muitas vezes como um fator locacional ou como uma das bases da produgdo (enquanto “forpa produtiva”); a Antropologia destaca sua imensto simbélica, principalmente no estudo das sociedades ditas, tradicionais (mas também no tratamento d¢ ‘temporaneo); a Sociologia o enfoca a partir de sua intervengio nas relagdes so incorpora-o no debate sobre a construgo da subjetividade ou da Identidade pessoal, ampliando-o até a escala do individuo. em sentido amplo, e a Psicologia, finalmente, * Alguns autores distinguem “espago” como categoria geral de andlise e “territério” como conceito, Segundo Moraes (2000), por exemplo, “do onto de vista epistemolégico,transita-se da vaguidade da categoria expa- Uma idéia nftida da amplitude com que o conceito de territ6- ‘Jé nos animais, sabemos da importancia das atividades que rio vem sendo trabalhado em nossos dias pode ser dada a partir consistem em formar territérios, em abandond-los ou em sair desta leitura, que vai da perspectiva etolégica (ou seja, deles, e mesmo em refazer territsrio sobre algo de uma outra comportamento animal) & psicolégi tureza (0 etdlogo diz que o parceiro ou o amigo de um “equivale a um lar”, ou que a familia é um “territério Um “territério” no sentido etolégico € entendido como o am- Com mais forte razdo, o hominidieo, desde seu registro biente [environment] de um grupo (...) que ndo pode por si ‘mesmo ser objetivamente localizado, mas que é constituido por padrées de interagdo através dos quais 0 grupo ou bando asse- gura uma certa estabilidade e localizagdo. Exatamente do mesmo modo 0 ambiente de uma tinica pessoa (seu ambiente social, seu espdgo pessoal de vida ou seus hdbitos) pode ser isto como um “territério”, no sentido psicoldgico, no qual @ ‘pessoa age ou ao qual recorre. Neste sentido ja existem processos de desterritorializagao @ reterritorializasao em andamento — como processos de tal territério (psicolégico) — que designam o status do relaciona- mento interno a0 grupo ou a um individuo psicolégico (Gunzel, s/4), Partindo da Etologia, onde subvaloriza as bases materiais, objetivas, da constituigdo do territério, 0 autor propoe a constru- ‘edo de um territério a nfvel psicol6gico. B interessante observar que ele reconhece o cardter metaforico da nogSo ao utilizé-la entre spas, embora, como veremos no préximo capitulo, nao seja exata- ‘mente como metéfora que Gilles Deleuze e Felix Guattari tratam o territério, especialmente em O que E a Filosofia? (Deleuze e Guattari, 1991), Estes autores referem-se a uma noglo ainda mais ampla de ter- ritério, como um dos conceitos-chave da Filosofia, em dimensoes que vao do fisico ao mental, do social ao psicoldgico ede escalas que vvao desde um galho de drvore “desterritorializado” até as “reterri- torializagdes absolutes do pensamento” (1991:66). Dizem eles: Sx» & za sua pata anterior, ele a arran- a da terra para fazer dela uma mao, e a reterritorializa sobre gathos e utensiios. Um basido, por sua vez, é um gatho dester- ritorializado, E necessério ver como cada um, em qualquer dade, nas menores coisas, como nas maiores provasdes, procue ra um terrtério para si, suporta ou carrega desterritorializa- 60s, ese reterritorializa quase sobre qualquer coisa, lembran- £2, fetiche ou sono (1991:68) ‘Mas nao pensemos que esta polissemia acaba quando adentra- ‘mos a seara da Geografia. Hla 6 bem visivel no verbete do dicionério LLes mots de la Géographie, organizado por Roger Brunet e outros (1993:480-481), Ele reine nada menos do que seis definigées para territériot. Uma delas se refere & “malha de gestéo do espago”, de apropriago ainda nao plenamente realizada; outra fala de “espago apropriado, com sentimento ou consciéncia de sua apropriagéo”; uma tereeira se refere & nopdo ao mesmo tempo “Juridica, social e cultural, € mesmo afetiva”, eludindo ainda a um cardter inato ou jatural” da territorialidade humana; por fim, um sentido figurado, metaférico, e um sentido “fraco”, como sinénimo de espago qual- ‘quer. Uma outra definigo é a que evoca a distingdo entre rede, near, ¢ territorio, “areal” (de érea), na verdade duas faces de um + Em obra mais recente, de mesma naturesa, Jacques Livy (Lévy ¢ a”, continua, frente aos espagos de mét sera objeto de discussdo no Capitulo 7, ‘rio e rede. mesmo todo, pois 0 espaco geogrdfico ¢ sempre areal ou zonal e linear ow reticular, o territério sendo feito de “lugares, que sio inter- Ligados” (p. 481), Em nossa s{ntese das varias nogies de territério (Haesbaert, 1995 e 1997; Haesbaert e Limonad, 1999), agrupamos estas concep- (bes em trés vertentes basicas: ica (referida as relagSes espago-poder em geral) ou tica (relativa também a todas as relagbes espa g0-poder ritério é visto como um espago delimitado e control através do qual se exerce um determinado poder, na maio- ria das vezes — mas nfo exclusivamente — relacionado ao priotiza a dimensio simbdlica e mais subjetiva, em que 0 territério € visto, sobretudo, como o produto da apropria gio/valorizagio simbélica de um grupo em relagio ao seu espago vivido. —econdmica (muitas vezes economicista): menos difundida, cenfatiza a dimensio espacial das relagdes econdmicas, oter- do no embate Posteriormente, acrescentamos ainda uma interpretago natu- ista), mais antiga e pouco veiculada hoje nas Ciéneias Socia que se utiliza de uma nogdo de territério com base nas relagdes entre sociedade e natureza, especialmente no que se refere ao com- portamento “natural” dos homens em relagdo ao seu ambiente fisi- co. Brunet et al, (1992) lembram a acepeao de territério utilizada para o mundo animal em seu “equilibrio” entre o grupo e os recur- sos do meio, Como veremos logo adiante, ela acabou muitas vezes sendo ampliada para o mbito social (especialmente através dos de- bates gerados pela jé cltada obra de Robert Andrey), discutindo-se a SoS pareela que cabe “ao inato e ao adquirido, ao natural e ao cultural, na nogdo de territorialidade humana” (p. 481). Embora reconhegamos a importéncia da distingdo entre as quatro dimensdes com que usualmente o territério 6 focalizado — ‘ politica, a cultural, a econémica e a “natural”, é importante que organizemos nosso racioeinio a partir de outro patamar, mais, amplo, em que estas dimensées se inserem dentro da fundamenta- 80 filoséfica de cada abordagem. Assim, optamos por adotar aqui um conjunto de perspectivas te6ricas, retomando um artigo recen- te Haesbaert, 2002a) onde discutimos a conceituagio de territério segundo: ) 0 bindmio materialismo-idealismo, desdobrado em fungdo de duas outras perspectivas: i. a visto que denominamos de territério, ao enfatizar uma dimenséo (seja a 1 econdmica, a politica ou a cultural pectiva tieas que, “condensadas” através do espaco, envolvem con- juntamente todas aquelas esferas. b) 0 bindmio espago-tempo, em dois sentidos: i. seu cardter seja no sentido de incorporar Jativizadora), seja na distin- 0) social-histérica (como relag&o); ii, sua historicidade e geo- graficidade, isto é, se se trata de um componente ou condi- ‘¢4o geral de qualquer sociedade e espago geogréfico ou se esté historicamente circunscrito a determinadot Fica evidente que a resposta a estes referenciais ird depender, sobretudo, da posigdo filosofica adotada pelo pesquisador. Assim, ‘um marxista, dentro do materialismo hist6rico e dialético, poder defender uma nogio de territério que: i) privilegia sua dimensio material, sobretudo no sentido econémico; ii) aparece context zada historicamente; e iii) define-se a partir das relagoes so Ga & nas quais se encontra inserido, ou seja, tem um sentido claramente relacional. No entanto, devemos reconhecer que vivenciamos hoje um entrecruzamento de proposigdes tebricas, e sio muitos, por exem~ plo, os que contestam a leitura materialista como aquela que res- ponde pelos fundamentos primelros da organizagio social. Somos levados, mais uma vez, a buscar superar a dicotomia material/ ideal, o territério envolvendo, ao mesmo tempo, a dimensio espa- cial material das relagdes sociais e o conjunto de representagoes, sobre o espago ou o “imaginfrio geogréfico” que ndo apenas move como integra ou 6 parte indissoctivel destas relagées. 2.2, Territ6rio nas perspectivas materialistas Se encararmos territ6rio como uma realidade efetivamente existente, de carter ontolégico, e néo um simples instrumento de anélise, no sentido epistemoldgico, como recurso conceitual formu~ lado e utilizado pelo pesquisador, tradicionalmente temos duas possibilidades, veiculadas por aqueles que priorizam seu carder de realidade fisico-material ou realidade “ideal”, no sentido de mundo das idéias. Para muitos, pode parecer um contra-senso falar em “concepeo idealista de territério”, tamanha a carga de materiali- dade que parece estar “naturalmente” incorporada, mas, como ‘veremos, mesmo entre ge6grafos, encontramos também aqueles que defendem 0 territério definido, em primeiro lugar, pela “conscién- cia” ou pelo “valor” territorial, no sentido simbélico. \ismo-idealismo, portanto, podemos dizer que a vertente predominante 6, de longe, aquela que ve o ter~ rit6rio numa perspectiva materialista, ainda que nao obrigatoria~ mente “determinada” pelas relagdes econémicas ou de produgio, como numa leitura marxista mais ortodoxa que foi difundida nas incias Socials. Isto se deve, muito provavelmente, ao fato de que territério, desde a origem, tem uma conotacao fortemente vincula- da ao espago fisico, & terra Sx Etimologicamente, a palavra territ6rio, territorium em latim, € derivada diretamente do voeabulo latino ferva, e era utilizada pelo sistema jurfdico romano dentro do chamado jus terrendi (no Digeste, do século V1, segundo Di Méo, 1998:47), como 0 pedago de terra apropriado, dentro dos limites de uma determinada jurisdi- trativa. Di Méo comenta que o jus terrendi se (terrifier, em frances). ire Etimologique de la Langue La- 132]:687-688), e 20 Oxford Latin jonary (1968:1929), percebe-se a grande proximidade etimolé- gica existente entre terra-territorium e terreo-territor (aterrorizar, aquele que aterroriza). Segundo 0 Dictionnaire Etimologique, ter- rito estaria ligado & “etimologia popular que mescla ‘terra’ ¢ “terreo" (p. 688), dominio da terra e terror. Territorium, no Digesta do imperador Justiniano (50, 16, 239), 6 d agrorum intra fines cujusque civitatis (“toda terra compreendida no interior de limites de qualquer jurisdigao"). © Diciondrio de Inglés Ozford apresenta como duvidosa esta origem etimolégica latina a partir do termo terra (que teria sido alterado popularmente para terratorium’) ou terrere (assustar, alterado para territorium via territor, como ap Roby (1881), em sua Gramatica da Lingua Latina, ciondrio Ozford, também coloca um ponto de interrogagao junto ‘a0 termo que teria dado origem a palavra ferritorium, “terrer do como universitas aplace from which people are warned off” (p. 363) —lugar de onde as pessoas sio expulsas ou advertidas para ndo entrar. ‘De qualquer forma, duvidosa ou néo, é interessante salientar esta analogia, pois muito do que se propagou depois sobre territs- rio, inclusive a nivel académico, geralmente perpassou, direta ou indiretamente, estes dois sentidos: um, predominante, dizendo res- Segundo o Diciondrio Btimolégico da Lingua Portuguesa (Machado, 41077), a palavra “tervitdrio” era utilizada com a grafia terratorium nos Documentos Gallegos de los siglos XIII al XVI (1422). ex & Le A terra e, portanto, ao territério como materialidade, outro, :minoritario, referido aos sentimentos que o “territério” inspira (por exemplo, de medo para quem dele ¢ excluido, de satisfagdo para aqueles que dele usufruem ou com o qual se identificam). Para nos- sa surpresa, até mesmo um dos conceitos mais respeitados hoje em dia, aquele concebido por Robert Sack (1986), de territério como rea de acesso controlado, esta claramente presente na acepg30 comentada por Henry Roby. Entre as posigdes materialistas, temos, num extremo, as posi- que reduzem a territorialidade ao seu cardter biol6gico, a ponto de a propria territorialidade humana ser molda- da por umm comportajnento instintivo ou geneticamente determina- do. Num outro extremo, encontramos, totalmente imersos numa perspectiva social, aqueles que, como muitos marxistas, conside- ram a base material, em especial as “relagdes de produgéo”, como 0 fundamento para compreender a organizago do territério. Num ponto intermediatio, teriamos, por exemplo, a leitura do territério ‘como fonte de recursos. Destacaremos aqui, na forma de trés itens distintos, as concepgbes que denominaremos de naturalista, econd- mica e politica de territério, mesmo sabendo que se tratam de divi- bes arbitrarias e que em alguns momentos, especialmente no caso da chamada concepeao politica, também dialogam diretamente com o campo simbélico, 2.2.1, As concepgdes naturalistas Aqui, trata-se de discutir em que medida 6 possivel conceber uma definigao naturalista de territ6rio, seja no sentido de sua vin- culagio com o comportamento dos animais (0 territério restringido ao mundo animal ou entendido dentro de um comportamento “natural” dos homens), seja na relago da soctedade com’a nature- 2a (0 territério humano definido a partir da relagdo com a dinami- ‘ca —ou mesmo o “poder” —natural do mundo). Su & Segundo Di Méo, a concepeao mais primitiva de territério ¢a de um “espaco defendido por todo animal confrontade com a necessidade de se proteger” (1998:42). Para a Etologia, © territério é a drea geogréfica nos limites da qual a presensa Permanente ou fregiiente de um sujeito exelui a permanéncia simulténea de congéneres pertencentes tanto ao mesmo sexo (machos), & exceedo dos jovens (territério familiar), quanto cos dois sexos (territ6rio individual) (Di Méo, 1998:42) s estudos referentes a territorialidade animal sfo relativa- ‘mente antigos no Ambito da Etologia. Trabalhos eléssicos como 0 de Howard (1948, original: 1920) langaram o debate a partir do estudo do territério de certos passaros. J4 nessa ocasiao se diseutia ‘ amplitude da concepgio e as dificuldades de estendé-la, de uma forma padrio, para o mundo animal no seu conjunto. Entretanto, mesmo com esta dificuldade de generalizagao para 0 préprio mundo dos animals, muitas foram as extrapolagées feitas para 0 campo humano ou social. O proprio Howard afirmava que no poderiam existir territérios sem algum tipo de limite (ou fronteira), que por sua vez ndo poderia existir sem algum tipo de disputa, de forma andloga ao que ocorre no mundo dos homens. © autor que levou mais longe esta tese da extensio da territo- Tialidade animal ao comportamento humano foi Robert Ardrey, referencia cléssica no que tange a leitura neodarwinista de terri- torialidade, afirmando que nao s6 0 homem é uma “espécie territo- rial”, como este comportamento territorial corresponde ao mesmo que € percebido entre os animais. Ardrey (1969[1967]:10) define territério como sendo: (..) uma drea do espago, seja de dgua, de terra ou de ar, que um animal ou grupo de animais defende como uma reserva ez siva. A palavra é também utilizada para descrever a compul 80 interior em seres animadas de possuir e defender tal espa- 0 (p. 15), ox» & Ao expandir a nogtio a todos “os seres animados”, er quais se encontra o homem, Ardrey promove a argumentagao com- equivocada de que os homens, como os animais, pos- ima” ou um impulso para a posse e defe- sa de territérios, e de que todo seu comportamento seria moldado de forma Agimos da forma que agimos por razdes do nosso passado evo- itive, no por nosso presente cultural, e nosso comportamento 6 tanto wma marea de nossa espécie quanto 0 é a forma do oss0 vossa core ow a configuragio das nervos numa rea do cére- bro humano. (.3) se defendemos o titulo de nossa terra ou a soberania de nosso pais, fazemo-lo por razdes ndo menos inatas, ndo menos inpdveis que as que fazem com que a cer proprietério aja por umn dono quando se aplica a comportamentos em esca- las muito diferentes, desde interagGes entre dois povos até choques entre nagdes, € @ de que a territor tem surgido, mesmo recentemente, entre escritores credenct: (p. 45). 0 trabalho do gedgrafo sueco T. Malmberg, Territorialidade Humana, publicado em 1980 (mas escrito em 1976), seria um dos melhores exemplos. Malmberg propos a seguinte definigao: Territorialidade comportamental meno de ecologia etoldgica com um niicleo i ‘manifestada enquanto espagos mais ou menos exclusivos, aos individuos ou grupos de seres hummanos estao ligados emocionalmente e que, pela possivel evitagdo de outros, sdo \guidos por meio de limites, marcas ow outros tipos de ifestagdes de adesdo, movimentos ou Gwe & Mas ele ressalva que, a0 contrério de leituras como a do etolo- agista Konrad Lorenz, 0 aspecto cotidiano do territério é mais o de uso de recursos do que de defesa e agressio, Algumas semelhangas, entretanto, sdo, no minimo, surpreendentes. Embora a tese de Konrad Lorenz (1963) sobre a assoclagao ampla entre defesa do territ6rio e instinto de agressividade esteja hoje superadat, algu- mas consideragées deste autor merecem ser mencionadas. Por exemplo, ¢ interessante perceber que entre os animais 0 territério pode ser uma questo de controle nio s6 do espago, mas também do tempo. Comentando o trabalho de Leyhausen e Wolf, Lorenz afirma que: igdo de animais de uma certa espécie sobre o bistopo vel pode ser afetada néo apenas por uma organizagao pago mas também por uma organizagdo do tempo. Entre ‘gatos domésticos que vivem livres em zona rural, muitos indi- luos podem fazer uso da mesma drea de caga sem nunca entrar em conflito, pela sua utilizagdo de acordo com um hord- © Segundo Lorenz, “podemos afirmar com seguranga que a funsio mais -especifica 6a distribuigo uniforme dos ani particular sobre uma érea hal “Lorenz comete 0 erro de (.30). Segundo 1a violéncia, independente- ),embora também defenda a 0s homens) especiais” (p. 47). ou & ‘Mesmo entre animais “governados apenas pelo espago” (como alguns mamiferos carn{voros), “a area de capa no deve ser imagi- nada como uma propriedade determinada por confins geograficos; ela é determinada pelo fato de que em c viduo a preparagao para lutar é maior no lugar mais f Isto 6, no mefo do seu territério”. Quanto mais afastado de seu “niicleo territorial de seguranga”, mais o animal evita a uta, a disputa, por se sentir mais, inseguro (Lorenz, 1963:28) ‘Embora as analogias com contexto social sejam sempre muito perigosas, -s fato de que, através deles, é possivel reconhecer a nfio-exclusividade de algu- ‘mas propriedades que muitos consideram prerrogativas da territo- rialidade humana. Mesmo que se trate de mera coincidéncia, sem nenhuma possibilidade de estabelecer correlagdes com o compor- tamento humano, estas caracteristicas mostram que algumas de nossas constatagdes para a territorialidade humana nao sao privi- légio da sociedade. A partir de varios estudos, cldssicos ou mais recentes, sobre a territorialidade animal, é possivel constatar que (n)o territério animal: smos estes exemplos pelo sim —em termes temporais, pode ser cfclico ou temporério; —no que se refere a suas fronteiras ou limites, pode ser gra- ual a partir de um niicleo central de dominio do grupo ¢ possuir diversas formas de demarcao, com delimitagdes ‘nem sempre claras ou rigidas’, que marcados no solo, podem ser res a de poder" (p. 29). Sed —a diversidade de comportamento territorial é a norma, exis- tindo inclusive aqueles que os etologistas denominam “ani- mais nfo-territoriais”, no sentido de que “vagam mais ou menos de forma ndmade, como, por exemplo, grandes ungu- lados, abelhas de chao e muitos outros” (Lorenz, 1963:31)8. Como ja afirmamos, 6 dificil generalizar a respeito da territo- rialidade animal, pois ela “serve a diferentes fungées em diferen- tes espécies e tem um grande niimero de desvantagens” (Hun- tingford, 1984:189). Daf a importéncia em se analisar a context: lizagao de ee ‘mais gerais da territorialidade animal, temos, variando muito con- forme a espécie: —a base de recursos que ela oferece para a sobrevivéncia dos lades que proporciona para o acasalamento e a reprodugao (alguns animai a época de reprodugéo, “territérios de acasalamer —a protecao dos filhotes durante o crescimento, evitando pre- adores, Além de uma espécie de jogo custo-beneficio que a territorlali- dade proporciona através desse sentido funcional, haveria também, para alguns autores, como Deleuze e Guattari, uma outra dimensio, a da “expressividade”. Trata-se provavelmente da caracteristica mais surpreendente da territorialidade animal, ou melhor, de certos ‘grupos animais especificos, como alguns passaros e peixes — inusi- tada e polémica, ja que muitos a consideram a mais exclusivamen- te humana das caracteristicas da territorlalidade. ' Kraul (2002), citando teses de Pemberton e Jones, comenta ocaso de car 1ivoros que nlo possuem territorialidade definida, como alguns marsupiais we podem se organizar “perfeltamente bem num sistema (©. 98). Bles néo patrulham nenhuma fronteira e muitas vveres tm um comportamento espacial totalmente eastco, ou & ‘Segundo Deleuze e Guattari (2002), 0 territério, antes de ser funcional, “possessivo”, 6 “um resultado da arte”, expressivo, dotado de qualidades de expressio. Esta expressividade estaria presente nos préprios animais, representada, por exemplo, na marca ou “péster” de uma cor (no caso de alguns peixes) ou de um canto (no caso de alguns péssaros)’. “Arte bruta”, para os autores, seria esta constituigao ou liberagio de matérias expressivas, 0 que faria com que a arte nao fosse “um privilégio dos seres humanos” (p. 316). Concordar com Deleuze e Guattari poderia significar ampliar o rol de semelhangas entre as territorialidades animal ¢ humana até um nfyel, provavelmente, muito problemético, onde poderfamos nos aproximar perigosamente das teses dos que defen- dem uma correspondéncia quase irrestrita entre o mundo animal € ohumano, “Apesar de todas essas possibilidades de encontrar analogias, surpreendentemente as discusses dos geégrafos sobre territério pouco ou nada abordam sobre a territorialidade animal. Isto é tanto ‘mais surpreendente quando lembramos que um dos debates centrais, imputados ao geégrafo é 0 da relapdo sociedade-natureza. Um campo bastante novo, entretanto, tem sido aberto, principalmente através do que alguns ge6grafos anglo-saxdes denominam “Geo- grafias Animais”, um debate sério sobre as formas de incorporagio dos animais ao espago social!®. Os poucos geégrafos que ousaram fazer a ponte entre territorialidade humana e territorialidade ani- mal cafram naquela interpretagio, j4 aqui comentada, segundo a qual a territorialidade humana pode ser tratada como uma simples extensio do comportamento animal, num sentido neodarwinista. Mas muitas vezes provém dos proprios biélogos o alerta para esse risco de pensar a nossa territorialidade da mesma forma que a territorialidade animal, Thorpe (1974), por exemplo, alerta para os de um componente tal como a colora 18 Uma visio sintética dos avangos nesta tematica pode ser obtida a do artigo Animating Cultural Geography (Wolch, Emel e Wilbert, 2003). Go» & sérios danos que alguns pesquisadores (como Andrey) provocaram (econtinuam a provocar) “ao concluir que nossa propria territoria~ lidade ¢ de todos os modos compardvel dos animais” (p. 252) Pior do que isto, cita-se a origem dos para justificar um instinto no s6 agressivo, mas também de neces- je dominar um pedago de terra. Apesar de todas estas erfticas, ndo se trata de teses que tenham sido definitivame: .das — pelo contrario, a tendéncia é de que ganhem novo folego, especialmente a partir dos avangos no campo biogenético. Recentes descobertas no ambito da Btologia e © crescimento de campos como o da Soi rages muito polémicas e a um retor mens entre os predadores a “armadilha bio~ ‘Waal (2001) permite que percebamos claramente este risco 20 comentar as duas formas de abordar a relagao entre o homem e 0s 10 de comparagioe que 3 Sociais, e aquela que, a partir da teoria darwinista, percebe “o comportamento hi como produto da evoluco, outros animais, aquela que descarta todo 6 lugar-comum” entre as fo do comportamento ani 4). J4 percebemos que a jue as duas proposigdes sto criticavels. io é que Waal vai longe demais ao optar pela segunda pers~ pectiva, cuja respeitabilidade e ampliago, segundo ele, tm sido crescentes, principalmente em fungao dos avangos da teoria sobre © comportamento dos animais: Compreensivelmente, acadé: vida condenando a idéia de que a biologia influencia 0 compor- tamento humano sao relutantes icos que tém empenhado sua lar de rumo, mas eles estdo sendo ultrapassados pelo piblico em geral, que parece teraccitado que ‘nds somos efazemos (p. 2) ca humana, do bem-estar e da moralidade estdo sendo agora discutidas & luz da observagio dos primatas (Waal, 2001:4). Gres No lugar do comportamento, ou, mais especificamente, de ins- tintos como a agressio, agora é a vez da genética em sentido amplo. O sério risco que corremos 6, mais uma vez, o de atribuir tud © fundamento de tudo, ao campo biolégico, natural. A tal ponto que a equagao pode mesmo se inverter: se a “natureza natural” do hhomem nao explica comportamentos como os que dizem respeito & nossa miitipla terri realizar o que esta biologia socialmei conseguiu fazer, ou seja, dirigir o comportamento human ve na sua relago com o espago. As afirmagdes do antropélogo José Luis Garcia, feitas ainda ‘em 1976, sem diivida mantém sua atualidade: (..) ndo sabemos, e dificilmente poderemos chegar a saber algum dia, até que ponto observardes extraidas do comporta- ‘mento animal podem ser aplicadas, ainda que analogicamente, ‘a0 homem. Faltam-nos dados objetivos sobre o significado real da conduta animal, sobretudo se nos introduzimos no mundo ivacional, 12 0 antropélogo, que experimen tou em sous estudos trismo, dificilmente pode se convencer de que salvard o in nito espago que separa a espécie animal da humana sem sub- ‘mergir, por sua vez, no antropocentrismo mais descarado. (..) Nao queremos com isso desconsiderar os estudos do comporta- simplesmente prevenir sobre a inadequada nelusdes ao mundo humano (Garcia, ais 0 grave perigo do etnoc mento animal, aplicagao de suas 1976:17-18) ‘Tomando a critica pelo outro extremo, das abordagens que exeluem completamente qualquer discussdo sobre a relagao sociedade-natureza e mergulham no antropocentrismo apontado por Garefa, outra ligso que parece ficar, diante de alguns fendme- nos, como o dos contflites pelo dominio de recursos (como o petréleo, as terras agricultaveis e, em alguns casos, ainda que de forma mais a propria agua) yue nunca, separar Suge ‘a de que, mais d natureza e sociedade, comportamento biolégico e comportamento Fugindo do tao criticado “determinismo ambiental” ou “geo- grafico”, tornou-se muito comum, mesmo entre os gesgrafos, negli- genciar a relagao entre sociedade e natureza’! na definigdo de espa- ‘90 geogratico ou de territ6rio. Por forga de uma visio antropoeéntri- cca de mundo, menosprezamos ou simplesmente ignoramos a din mica da natureza que, dita hoje indissociével da ago humana, na maioria das vezes acaba perciendo totalmente sua especificidade. Exagerando, poderiamos até mesmo discutir se nfo existi ‘também uma espécie de “desterritorializago natural” da socieda- de, na medida em que fendmenos naturais como vulcanismos e ter~ remotes sdo responsdveis por mudangas radicais na organizagao de muitos territ6rios. As recentes erupgdes de um vuledo no Congo, obrigando dezenas de milhares de pessoas a abandonar a cidade de Goma, e na ilha Stromboli, na Italia, estdo entre os varios exem- plos deste proceso, Mesmo sabendo que os efeitos desta “desterri- torializagao” s4o muito variévels de acordo com as condigées sociais e teenolégicas das sociedades, nao ha divida de que temos ai uma outra “fora”, ndo-humana, interferindo na construgio de nossos territ6rios. ‘Mesmo discordando do termo “desterritorializagao”, em senti- do estrito, para caracterizar esses pracestos — pois, como acaba- ‘mos de ver, seria absurdo considerar a existéncia de territérios “naturais”, desvinculados de relagdes sociais—nio podemos igno- rar esse tipo de intervengdo, pelo simples fato de que o homem, por ‘mais que tenha desenvolvido seu aparato téenico de dominio das 113 importante lembrar que muitos autores consideram “natureza” em um gue observamos pela percepréo ot dos” (p. 7). Optamos aqut por uma interpretagao mals estrita, om 0 nico objetivo de enfatizar a existéncia de uma dinémica da natureza de algum modo distin- 1as nfo discociada) da dinimica da sociedade Soe condigées naturais, no conseguiu exercer efetivo controle sobre ‘uma série de fendmenos ligados diretamente & dinamica da nature- za ou mesmo, com sua ago, provocou reagées completamente imprevisiveis. ‘Além disto, se levarmos em conta a discutivel tese de autores que ampliam de tal forma a nogdo de poder que este acaba ultra- pasando os limites da sociedade, é possivel extrapolar dizendo {que o territério, mesmo na leitura mais difundida nas Ciéncias Sociais, que privilegia sua vineulagio a relagdes de poder, também incorpora uma dimenséo “natural” em sua constituigdol? — ou, pelo menos, a capacidade de as relagies sociais de poder se im- porem sobrea dinamica da natureza. ‘Numa outra perspectiva, uma espécie de territério “natural” ds avessas é aquele que se define a partir das cha~ ‘madas reservas naturais ou ecolégicas. Obrigado a reinventar a T? Reconhecer a importéneia de uma dimensio “natural” na composigso de terrtérioe nfo significa, portanto, concordar com a posigdo de autores que ao de poder para a esfora da natureza. Para 0 ‘poder pode ser atzibuido a propriedades dda natureza tanto quanto a propriedades da espécie humana, tais como o do meio ambiente sabre as comunidades humanas. De fato, dde nossa espécie e da propria evolugao da vida atestou o ‘poder da selepio natural. ‘Poder’, num sentido geral, pode ser provisoria~ mente definido como a habilidade de eriar, destrui, consumir, preservar ‘ou reparar. Os poderes produtives acessiveis& sociedade, que para Marx ‘slo sindnimos de forgas produtivas, desembocam sobre os da naturezs, como a fertlidade naturel do solo ea procriatividade do mundo animal. Os poderes Gestrutivos da natureza ineluem a entropia, tercemotos ¢ relémpa- 05; seus poderes preservadores e restauradores abrangem sistemas de imunidade biolégica, coberturas Horestais e lava solidificada. E numa ten- ‘sio criativa com esses poderes fundamentals de transformagio e preserva~ (glo que a historia humana tem se desenrolado”. O autor define ainda 0 “poder humano” como “a habilidade de (realizar as intengdes ou potencia- Idades humanas de] eria, destruir, consumir ou preservar coisas, tals como independéncia eautoridade na esfera politica riquezana econtmics, fou poder na esfera militar, através da intervengio nestes poderes da natureza” (Blackburn, 1992(1989}:287). Gu natureza através de concepgdes como ecologia, biosfera e meio ambiente, 0 homem se viu na contingéneia de produzir concreta~ existido entre espagos “humanos” ¢ “naturais”, como numa leitura da Geografia que separava paisagens naturais e paisagens culturais ou humanizadas (Sauer, 1928). Assim, a recluséo a que algumas éreas do planeta foram rele- ‘gadas, em fungio de sua condig&o de freas “protegidas”, provoca a reprodugio de territérios que sao uma espécie de clausura ao con- ‘rério, j& que muitas vezes tém praticamente vedadas a interven- 80 € a mobilidade humana em seu interior, f claro que, af, as, ‘questées de ordem cultural, politica e econémica envolvidas so ‘to importantes quanto as questdes ditas ecolégicas. De qualquer forma, trata-se de mais um exemplo, muito rico, de um territério interpretado numa perspectiva materialista e que, embora entre- ize fortemente 4reas como a Antropologia, a Sociologia e a cia Politica, também é bastante focalizado a partir de perspec- tivas como as da Ecologia, Dentro da dimensdo material do territério, é necessério, por- tanto, de alguma forma, considerar essa dimensio “natural”, que em alguns casos ainda se revela um de seus componentes funda- mentais. Mas nunca, é claro, de forma dissociada. No fundo, a azo esta com autores como Bruno Latour (1991), para quem movemo-nos muito mais no campo dos “hibridos” sociedade- natureza. A questo central, portanto, nao é questionar a existen- cia de visdes naturalistas (como as nogdes de territério aqui discu- tidas), mas como desenvolver instrumentos conceituais para mente uma separagao que nunea ter Jas dentro desse complexo hibridismo em que cada vez mais estdo se transformando, 2.2.2. A concepgo de base econdmica ‘A opgiio pela dimensdo material, analisada aqui em sua pers- pectiva mais extrema, a que envolve a concepeiio naturalista de ter~ So» &

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