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Tratado, Governo e Congresso

A referenda de tratados e a possibilidade de sua


alteração legislativa no direito público brasileiro

Christian Edward Cyril Lynch

Sumário
1. Da tradicional adesão, pelo Brasil republi-
cano, do sistema misto de formação e celebração
de tratados. 2. Da inexistência de previsão ex-
pressa, na Constituição, de competência congres-
sual para modificar os acordos internacionais
celebrados pela Presidência. Opiniões contrárias
a essa possibilidade. 3. Da competência do
Congresso para apreciar os projetos de trata-
dos enviados pelo governo. 4. Distinção entre
competência exclusiva (art. 49) e competência
privativa (art. 84). 5. O que é “celebrar tratados”
e “referenda” (art. 84, VIII). 6. O que são “refe-
rendar” e “resolver definitivamente” (art. 49,
I). 7. O texto do acordo internacional remetido
ao Congresso ainda não é tratado, mas projeto
de tratado. 8. O princípio da equipotência entre
Poder executivo e o Poder Legislativo impede
o intérprete de proibir a este o que se concede
àquele – o direito de modificar parcialmente os
projetos que lhe são remetidos por outro poder.
9. Doutrina constitucional favorável à possibi-
lidade de emenda legislativa aos projetos de
tratados remetidos pelo Executivo. 10. Das con-
venções e doutrinas internacionais favoráveis à
possibilidade de emenda legislativa aos projetos
de tratados remetidos pelo Executivo. 11. Da
interpretação constitucional de próprio Poder
Legislativo, favorável à sua competência para
modificar o teor dos tratados. Conclusão.
Christian Edward Cyril Lynch é Professor
do Departamento de Direito Público da Uni-
versidade Federal Fluminense e do Programa
de Pós-Graduação em Direito e Sociologia 1. Da tradicional adesão, pelo Brasil
da Universidade Federal Fluminense (UFF). republicano, do sistema misto de formação
Professor do Programa de Pós-Graduação em e celebração de tratados
Direito da Universidade Gama Filho (UGF).
Pesquisador do Setor de Direito da Fundação Envolvendo direito constitucional e di-
Casa de Rui Barbosa. reito internacional, além de farta doutrina
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e jurisprudência, é polêmica a questão da sempre, invariavelmente, adotado por
possibilidade de alteração de tratado pelo todas as suas constituições. Com pouquís-
Congresso Nacional, no curso do processo simas variações semânticas, a república
de referenda. brasileira adotou sempre a mesma fórmula,
Conforme ensina Hildebrando Accio- fosse o regime oligárquico, democrático
ly (1966, p. 144), no seu clássico Manual ou autoritário: cabe sempre ao Presidente
de direito internacional público, os acordos “celebrar” os tratados e atos internacionais
jurídicos entre Estados são atos jurídicos em geral, “ad referendum” do Congresso Na-
por meio dos quais se manifesta o acordo cional, a quem cabe, por sua vez, “resolver
de vontades entre dois ou mais Estados. definitivamente” sobre eles.
Em regra, eles recebem o nome genérico Assim, na Constituição de 1891, cabia
de tratados, mas, conforme seu tipo, con- ao Presidente “entabular negociações in-
teúdo, objeto ou fim, podem ter aquela ternacionais, celebrar ajustes, convenções e
denominação, agora no sentido estrito, ou tratados, sempre ad referendum do Congres-
várias outras, como convenção, declaração, so”, a quem cabia “resolver definitivamente
protocolo, convênio, ajuste, acordo, com- sobre os tratados e convenções estrangeiras”
promisso, etc. Como qualquer contrato, (art. 48, XVI e art. 34, XII). Na Constituição
são requisitos de validade desses atos de 1934, cabia ao chefe de Estado “celebrar
internacionais em geral a capacidade das convenções e tratados internacionais, ad
partes contratantes, a habilitação dos agen- referendum do Poder Legislativo”, que, por
tes signatários, o consentimento mútuo, e sua vez, deveria “resolver definitivamente
objeto lícito e possível. Uma vez celebrado o sobre tratados e convenções com as nações
tratado entre as potências signatárias, passa estrangeiras, celebrados pelo Presidente da
ele por um processo de ratificação. O direito República, inclusive os relativos à paz” (art.
internacional não prescreve a fórmula por 56, VI, e art. 40, “a”). Na própria Constitui-
que a ratificação deve ser empreendida, o ção autoritária do Estado Novo (1937), o
que fica a cargo das disposições constantes sistema foi mantido, cabendo ao Presidente
nas constituições dos países signatários. “celebrar convenções e atos internacionais,
Recorda Roberto Luiz Silva (2007, p. 97) ad referendum do Poder Legislativo” e, a este
que existem três sistemas de ratificação: o último, discutir e votar “projetos de lei sobre
primeiro deles é o de competência exclusi- tratados e convenções internacionais” (art.
va do Poder Executivo, vigente nos países 54, “a”, e 74, “d”). Sob a ordem constitucio-
autocráticos; segundo, o de competência nal democrática de 1946, repetiu-se a fórmu-
exclusiva do Poder Legislativo, de matriz la mais uma vez: cabia ao Presidente “cele-
britânica; por fim, o sistema de competência brar tratados e convenções internacionais ad
mista, em que os dois poderes políticos con- referendum do Congresso Nacional”, ficando
correm para aquele fim. De um modo geral, este encarregado de “resolver definitivamen-
as constituições democráticas adotam este te sobre os tratados e convenções celebradas
último sistema: o Executivo fica encarregado com Estados estrangeiros pelo Presidente da
de entabular negociações com os governos República” (art. 87, VII, e art. 66, I). A Carta
estrangeiros e de celebrar com eles projetos de 1967 incumbia o Presidente de “celebrar
de tratados, ao passo que o Legislativo fica tratados, convenções e atos internacionais,
incumbido de posteriormente examiná-los ad referendum do Congresso Nacional”, a
para, uma vez averiguada a sua constitu- quem, por sua vez, era atribuído o dever de
cionalidade, oportunidade e conveniência, “resolver definitivamente sobre os tratados,
possa o Governo, caso queira, ratificá-los. convenções e atos internacionais celebrados
No Brasil republicano, o sistema misto pelo Presidente da República” (art. 81, X, e
de formação e ratificação de tratados foi art. 44, I). Por fim, a atual Constituição (1988)

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concede ao Presidente a competência pri- Leal, Pontes de Miranda, Temístocles Ca-
vativa para “celebrar tratados, convenções valcanti, Wilson Accioli e Vicente Marotta
e atos internacionais, sujeitos a referendo Rangel, creem nesta possibilidade.
do Congresso Nacional”, ao passo que este Vejamos os argumentos da parte con-
tem competência exclusiva para “resolver trária a tal possibilidade.
definitivamente sobre tratados, acordos ou Nos seus Comentários, João Barbalho
atos internacionais que acarretem encargos (1902) se opõe à possibilidade de “aprova-
ou compromissos gravosos ao patrimônio ção integral ou parcial” do tratado, alegando
nacional” (art. 84, VIII, e art. 49, I). que as cláusulas de um tratado comporiam
Como se vê, a atual Constituição não um todo orgânico e que “quebrar-lhe a inte-
fugiu à regra. Daí por que, nos seus Comen- gridade vem a ser o mesmo que rejeitá-lo in
tários à Constituição, Celso Ribeiro Bastos totum”. O Congresso deveria perceber que,
(1988, p. 97) classifica esse processo de “se mais não obteve o governo em bem dos
formação e validação de tratados “um ato interesses que se prendem ao tratado, é que
complexo, em que se integram a vontade do naturalmente outra coisa não pôde conse-
Presidente da República, que os celebra, e a guir”. Por fim, acrescenta que, como caberia
do Congresso Nacional, que os ratifica”. ao Legislativo “resolver definitivamente”
a questão, qualquer modificação que lhe
2. Da inexistência de previsão expressa, fosse introduzida importaria, na verdade,
na Constituição, de competência na negociação de um novo tratado pelo
congressual para modificar os acordos governo. Assim sendo, em vez de resolvê-la
“definitivamente”, o Congresso obrigaria o
internacionais celebrados pela Presidência.
Executivo a reabrir a negociação (CAVAL-
Opiniões contrárias a essa possibilidade CANTI, 1902, p. 111). Essa é a mesma razão
Entretanto, nenhuma das Constituições apresentada por Cançado Trindade (1988,
brasileiras fez jamais alusão expressa à pos- p. 4): as modificações introduzidas pelo
sibilidade que teria o Legislativo de alterar Congresso imporiam a celebração formal de
ou não o conteúdo do tratado celebrado e um novo acordo, que contivesse a sugestão
remetido pelo Executivo no processo de sua ou emenda do Legislativo. Daí que, para ele,
referenda. Ou seja, nunca houve proibição “ao Congresso Nacional escapa competên-
ou ordem explícita. Uma vez que pratica- cia para, ele próprio, promover alterações
mente todas as Cartas, porém, falaram em ou introduzir ressalvas no texto de um acor-
“celebrar”, “referendo” e “resolver defini- do já negociado, no decreto legislativo para
tivamente”, podemos consultar toda a dou- a sua aprovação”. Mais recentemente, Celso
trina republicana, desde 1902, para verificar de Albuquerque Melo (2002), no seu Curso
como os clássicos do direito constitucional de direito internacional, também se opôs à
brasileiro encararam a questão. possibilidade de emendar o Congresso o
Ao fazê-lo, porém, o que imediatamente conteúdo do acordo: esse procedimento
percebemos é que, sobre o tema referido, constituiria uma “interferência indevida
lavra uma intensa e constante divergência, nos assuntos do Executivo, uma vez que
que se arrasta há mais de um século. Para al- só a ele competem negociações no domínio
guns, como Aristides Milton, João Barbalho, internacional”, não passando a emenda de
Clóvis Beviláqua, Carlos Medeiros Silva, Al- “forma indireta pela qual o Legislativo se
berto Adeodato, Cançado Trindade, o Poder imiscui na negociação”. Para Melo (2002,
Legislativo não pode alterar o conteúdo dos p. 230), a apresentação de emendas pelo
projetos de tratado, devendo limitar-se a Congresso, além de invadir a seara do
aprová-lo ou reprová-lo na íntegra. Outros, Executivo, delongaria desnecessariamente
porém, como Carlos Maximiliano, Aurelino o processo de ratificação do tratado.

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De uma forma geral, os autores con- e “referendo”, no art. 84, e “exclusiva” e
trários à alteração dos projetos de tratado “resolver definitivamente”, no art. 49.
pelo Legislativo geralmente são interna-
cionalistas ou defensores da supremacia 4. Distinção entre competência exclusiva
do Executivo, e sustentam que apenas (art. 49) e competência privativa (art. 84)
este poder poderia promover mudanças
no texto, por meio de reservas, quando da Do ponto de vista doutrinário, não resta
ratificação, e, mesmo assim, somente nos dúvida acerca da diferença entre compe-
tratados multilaterais, vedada tal possibi- tência exclusiva e competência privativa,
lidade nos bilaterais. Assim, por exemplo, em direito constitucional. Como recorda
Valério de Oliveira Mazzuoli (2008, p. 58), José Afonso da Silva (2002), “competência é
para quem “não há que se falar em reservas a faculdade juridicamente atribuída a uma
no caso dos tratados bilaterais, uma vez que entidade ou a um órgão ou agente do Poder
nestes acordos a vontade das partes tem de Público para emitir decisões”. Nesse sentido,
estar em perfeita harmonia (...). Somente os as competências exclusivas e privativas se
tratados multilaterais o admitem”. diferenciam das competências comuns ou
concorrentes, que podem ser exercidas si-
multaneamente por mais de uma autoridade.
3. Da competência do Congresso
No que se refere especificamente à distinção
para apreciar os projetos de tratados
entre competência privativa e competência
enviados pelo Governo exclusiva, é que a primeira – a privativa –, em-
Essa não é, todavia, a nossa posição. Pa- bora exercida por um único órgão, comporta
rece-me claro que, do texto constitucional, delegação para que outro o exerça, ao passo
não se depreende qualquer óbice à partici- que, no segundo caso, essa possibilidade é
pação do Poder Legislativo na elaboração vedada. No caso das normas constitucionais
do texto definitivo do tratado. em referência, isso significa que o Presidente
Consultemos o texto da Constituição da da República pode delegar a outrem a tarefa
República (1988): de “celebrar tratados, convenções e atos in-
“Art. 49. É da competência exclusiva ternacionais”. É efetivamente o que ele faz a
do Congresso Nacional: I – resolver mais das vezes, outorgando cartas de plenos
definitivamente sobre tratados, poderes a embaixadores, plenipotenciários
acordos ou atos internacionais que extraordinários, ou qualquer outro agente
acarretem encargos ou compromissos seu. Conforme lição de Valério Mazzuoli
gravosos ao patrimônio nacional; (2008, p. 55), “todo funcionário de carreira,
Art. 84. Compete privativamente entretanto, acreditado ou credenciado pelo
ao Presidente da República: VIII – país estrangeiro, pode ser agente plenipo-
celebrar tratados, convenções e atos tenciário”. O Congresso, como depositário
internacionais, sujeitos a referendo de competência exclusiva, a ninguém pode
do Congresso Nacional.” delegar a incumbência constitucional de
No plano do direito constitucional, é a “resolver definitivamente sobre tratados,
partir do exame dessas duas normas que se acordos ou atos internacionais”, prevista no
deve verificar se pode ou não o Congresso art. 49, I (SILVA, 2002, p. 478).
Nacional alterar o conteúdo de um ato
internacional lato sensu celebrado pelo Pre- 5. O que é “celebrar tratados” e
sidente da República. Para tanto, podemos “referenda” (art. 84, VIII)
recorrer a todas as formas conhecidas de
hermenêutica jurídica para compreender o A norma contida no art. 84, VIII, da
que significa “privativamente”, “celebrar” Constituição atribui ao Presidente a com-

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petência privativa para “celebrar” os atos Como se percebe, a intenção do referido
internacionais em geral. Barbalho, Albu- comando – art. 84, VIII – não é a de criar
querque e outros autores que se opõem um monopólio absoluto acerca da definição
à alteração das cláusulas do tratado pelo do conteúdo possível dos acordos para o
Congresso fundam precisamente nesse Presidente da República, mas o de excluir
comando constitucional suas razões para o Congresso Nacional da possibilidade
afirmar que apenas o Presidente da Repú- de entrar em contato com plenipotenciá-
blica pode definir a substância do tratado. rios estrangeiros para negociar tratados.
Para compreender a questão, é preciso Tanto assim que, ao conferir ao chefe do
compreender o que significa “celebrar”. No Executivo a competência privativa para
que respeita à interpretação léxica, Aurélio “celebrar tratados” – ou seja, negociar com
Buarque de Holanda está longe de conce- Estados estrangeiros –, em lugar nenhum a
der, a esse verbo, a extensão que lhe dão os Constituição proíbe o Congresso de sugerir
sobreditos autores. Para o ilustre filólogo, alterações que, de qualquer modo, ficam
“celebrar” significa “fazer realizar com sole- à discrição do Presidente aceitar ou não,
nidade, promover, patrocinar” (FERREIRA, encaminhando-as, em caso positivo, à
1986, p. 303). O exemplo, aqui, é, justamente, apreciação do representante diplomático
“celebrar um tratado de paz”. Se, por um dos demais países signatários.
lado, é natural que quem celebra o tratado
seja quem o negociou (era esse o texto da 6. O que são “referendar” e “resolver
Constituição de 1891), daí não se infere que
definitivamente” (art. 49, I)
ele detenha o monopólio acerca do seu conte-
údo e, portanto, que ele não possa ser alterado Quanto a “resolver definitivamente”,
– especialmente quando a própria Constitui- os críticos da hipótese aqui defendida, de
ção incumbe o Congresso de referendá-lo e de possibilidade de intervenção do Legis-
resolver definitivamente sobre a questão. lativo, tendem a esvaziar sua dimensão
No que toca ao verbo “referendar”, léxica, acusando a expressão adotada pelo
ele significa, para o mesmíssimo Aurélio legislador constituinte como equivocada ou
Buarque de Holanda, “aceitar a responsa- imprópria. Alega-se que não seria o Con-
bilidade de (algo já aprovado por outrem), gresso que resolveria “definitivamente”
concorrendo para que essa coisa se realize”. do tratado, mas o Presidente da República,
O irônico é que o exemplo acrescentado pelo que exerceria o juízo de conveniência e
ilustre filólogo é justamente o seguinte: “O oportunidade acerca da ratificação. Como
Congresso não referendou o tratado nos ter- esclarece Antônio Paulo Cachapuz de
mos em que vinha redigido”. O exemplo de- Medeiros (1983, p. 133), “a decisão efetiva-
nota que tanto o próprio bom senso como a mente definitiva incumbe ao Presidente da
efetiva prática institucional (como veremos) República, que pode ou não ratificar os tra-
aprovam tal interpretação. Quanto à possi- tados internacionais, depois de estes terem
bilidade de alterar-se parcialmente a propo- sido aprovados pelo Congresso”. Assim,
sição contida em referendo, basta lembrar o pronunciamento do Congresso só seria
que, no que concerne ao referendo popular, definitivo quando rejeitasse integralmente
sempre que ele versa sobre diversos artigos o acordo, isto é, a proposta de tratado. Daí
de uma mesma lei, o costume é submeter a impropriedade do advérbio “definitiva-
quesitos isolados à população interessada. mente”, empregado na Constituição.
Raramente a consulta impõe ao eleitorado Essa crítica à redação da regra consti-
a obrigação de aceitar todas as mudanças tucional procede; daí não se segue, porém,
em bloco. É o que se viu, ultimamente, na que o advérbio definitivamente seja uma
Itália, na Venezuela e no Brasil, quando do expressão ociosa. Seguindo a regra clássica
referendo da lei do armamento. de hermenêutica jurídica, segundo a qual

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o legislador não emprega expressões em ela conferiu ao Congresso competência
vão, parece temerário simplesmente inferir para resolver definitivamente a questão dos
que, da faculdade que tem o Presidente de acordos, por meio de referenda.
ratificar ou não o projeto de tratado, que o
Congresso não resolve nada. Ao contrário, a 7. O texto do acordo internacional
presença dessa expressão – definitivamente remetido ao Congresso ainda não é
–, em todas as Constituições brasileiras tratado, mas projeto de tratado
desde 1891, serve para demonstrar que,
embora não lhe caiba ratificar o tratado, o Por esses motivos, parece-me equivoca-
Congresso detém um poder qualquer para do o argumento de que a modificação do
além de simplesmente aceitar ou rejeitar, texto do acordo imporia, não sua resolução
por referenda, o conjunto das normas do pelo Congresso, mas a reabertura de nego-
projeto de tratado. Reporto-me aqui à opi- ciações, pelo Governo, para a celebração de
nião de Wilson Accioli (1984, p. 166) sobre um novo tratado. Eles partem do princípio
o tema, que é a melhor doutrina: de que o acordo celebrado pelo Executivo já
“Resolver definitivamente não significa é, tecnicamente, um tratado. Ora, para que
apenas aprovar ou desaprovar total- o tratado gere os efeitos dele esperados, ele
mente. Aprovar totalmente, mesmo precisa ser ratificado pelos signatários. A
que, nessa aprovação, se englobas- Constituição brasileira prevê que, para tan-
sem cláusulas contrárias ao interesse to, ele deverá ser referendado previamente
nacional, seria contraproducente. pelo Congresso, por meio de um projeto de
Desaprovar totalmente, mesmo que decreto legislativo. Nada garante a priori
essa aprovação importasse no julga- que ele deva ser aprovado ou rejeitado na
mento de certas cláusulas favoráveis sua totalidade, seguindo o trâmite normal
às conveniências da política nacional, de todos os projetos legislativos. Daí que o
seria desaconselhável. Por essa razão, acordo celebrado pelo Executivo não seja
entendemos perfeitamente desejáveis um tratado, mas um projeto de tratado,
as emendas ou reservas, pois tais que pode ser alterado como qualquer outro
modificações não elidiram o preceito projeto submetido à apreciação parlamen-
do art. 44, inciso I (da Constituição tar. Portanto, a modificação do texto do
de 1967), quanto à aprovação defi- acordo não impõe a negociação de um novo
nitiva”. tratado pelo Governo; caberá a ele, simples-
Contra a argumentação dos autores para mente, submeter as modificações sugeridas
os quais a apresentação de emendas ou pelo Congresso à outra parte signatária que,
reservas inutilizaria o tratado, desde que aceitando-as, permitirá a ratificação.
exprimisse uma recusa a ser submetida
à outra parte, Accioli (1984, p. 167) pensa 8. O princípio da equipotência entre o
que “a desaprovação total (que acham uma Poder Executivo e o Poder Legislativo
resolução definitiva) seria uma forma de re- impede o intérprete de proibir a este
jeição que poderia, do mesmo modo, forçar o que se concede àquele – o direito de
as partes contratantes a uma reformulação
modificar parcialmente os projetos que
dos termos do tratado em causa”.
lhe são remetidos por outro poder
Como se percebe, pois, da exegese dos
dois comandos constitucionais, não há como Como se sabe, o princípio basilar que
deles extrair a ideia de que a Carta de 1988 rege as relações entre Poder Executivo e
tenha outorgado ao Poder Executivo o mo- Poder Legislativo é aquele conhecido como
nopólio da definição soberana do conteúdo “separação de poderes” e foi recepcionado
dos acordos internacionais. Pelo contrário, no art. 2o da Constituição da República.

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De acordo com a teoria, estabelecida ini- de lei enviados pelo Legislativo, enquanto
cialmente por Montesquieu, os poderes este último se veja obrigado a aprovar ou
políticos devem ser exercidos por órgãos rejeitar os projetos de tratado por inteiro,
diversos e autônomos, iguais em força – devido a uma interpretação tão ortodoxa
equipotentes, portanto – e interdependen- quanto desamparada de fundamento
tes por mecanismos de freios e contrapesos, constitucional. O argumento de que a
que visam regular suas relações e preservar Constituição não prevê a possibilidade
o funcionamento da máquina constitucio- de emenda pelo Legislativo é inócuo na
nal. A finalidade dessa teoria é, como se medida em que ela também não previa, em
sabe, garantir o equilíbrio sistêmico, de sua redação original, a possibilidade de que
molde a impedir que, mais fortalecido que o Congresso pudesse propor emendas às
o outro, um dos poderes acabe por atacá- medidas provisórias enviadas pelo Execu-
lo ou aniquilá-lo, abrindo as portas para o tivo, que também não passam de projetos
autoritarismo (Cf. MONTESQUIEU, 1997, de lei (ainda hoje, a possibilidade é apenas
p. 202). Daí porque a referida norma cons- implícita). Em suma: enquanto que, no
titucional estima que os poderes políticos processo legislativo ordinário, o Legislativo
sejam “independentes e harmônicos entre pode derrubar o veto parcial presidencial,
si”. O sistema misto de processamento e o Executivo também pode “derrubar” as
ratificação dos tratados, adotado pelo Bra- modificações feitas pelo Congresso, pela
sil, é um exemplo perfeito do que seja um simples negativa de dar seguimento ao
mecanismo de freios e contrapesos entre processo de ratificação.
poderes equipotentes, ou seja, que detém Essa é a única interpretação que se
uma porção idêntica de poder, necessária à concilia com a lógica sistêmica da estrutura
preservação do equilíbrio entre eles. constitucional.
Tendo em mente, portanto, o princípio O argumento se torna ainda mais persu-
da equipotência, percebe-se perfeitamente, asivo quando recorremos a uma interpreta-
por conta dele mesmo, que o processo legis- ção histórica. Até 1925 não havia possibili-
lativo relativo à ratificação de tratados, gros- dade de veto parcial, pelo Executivo, dos
so modo, é análogo ao processo legislativo projetos de lei enviados pelo Legislativo.
ordinário. A única diferença substantiva Por décadas o tema foi debatido, já que
está, digamos, nos sinais invertidos: se, o entendimento formalista e ortodoxo do
ordinariamente, é o Legislativo quem toma positivismo então dominante enunciava
a iniciativa dos projetos de lei, que ficam que, na falta de previsão constitucional
sujeitos à sanção do Executivo, no caso expressa, o chefe de Estado não poderia
dos projetos de tratado, cabe ao Governo exercer o veto parcial. Era o caso de João
a iniciativa, que os sujeita ao referendo do Barbalho (1902) que, negando ao Congres-
Congresso Nacional. Enquanto que, no so a rejeição parcial do projeto de tratado,
processo legislativo ordinário, instância coerentemente sustentava que, somente na
de fiscalização e controle do Legislativo, íntegra, o Presidente podia vetar os projetos
o Executivo é livre para vetar o projeto de de lei. Ou seja, assim como o Legislativo
lei por este enviado, o Congresso também não poderia alterar em parte os projetos de
tem o direito de formular um juízo jurídico tratados, o Executivo não poderia alterar
e político sobre a oportunidade e a con- em parte os projetos de lei: “A lei deve ser,
veniência do projeto de tratado remetido em sua contextura, um todo sistemático, co-
pelo Governo, também podendo rejeitá-lo. eso, harmônico; a eliminação, ao arbítrio do
Ora, à luz do princípio da equipotência governo, de alguns artigos, a desconcertaria
entre os poderes, não faz sentido que o e a desfiguraria” (CAVALCANTI, 1902, p.
Executivo possa vetar em parte os projetos 146). Do outro lado, um defensor da possi-

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bilidade de emenda de projeto de tratado, gica, lembrando Maximiliano que caberia
pelo Legislativo – Aurelino Leal (1925) –, ao chefe de Estado o direito de “não aceitar
lamentava, também coerentemente, a falta os alvitres, não reatando as negociações”
de previsão constitucional para o veto par- (SANTOS, 1918, p. 360).
cial pelo Executivo: “Não o conhece a nossa Pontes de Miranda (1953, p. 292), nos
Constituição, o que é para lastimar. Um seus Comentários à Constituição de 1946, ex-
projeto de lei pode conter disposições boas pôs posição parecida: embora reconhecesse
e más, e não era demais que o Executivo que, em regra, deveria o Congresso limitar-
exercesse o seu contraste somente quanto se a aprovar ou não o tratado, reconhecia
a medidas que lhe parecessem atentatórias igualmente que, na prática, o Legislativo
da lei magna, ou más para a sociedade” sugeria alterações; nesse caso, o Presidente
(LEAL, 1925, p. 850). O dilema foi resolvido, da República deveria entender que “o trata-
afinal, pela revisão constitucional de 1926 do não conseguiu aprovação, e entabulará,
que, por intermédio da emenda n. 30, alte- ou não, a seu juízo, as negociações”. Isso,
rou o art. 37 pp. 1o da Constituição de 1891 sem falar nas reservas.
para permitir expressamente o veto parcial Por sua vez, recorda Aurelino Leal
dos projetos de lei pelo Executivo. (1925, p. 626) que a Carta vincula a eficácia
Por todos esses motivos, é no mínimo do tratado ao referendo congressual. Em-
de espantar que, hoje, em plena vigência bora concorde que o Congresso não pode
da hermenêutica jurídica pós-positivista, examinar o tratado minuciosamente, como
os defensores do Governo neguem ao se fosse um projeto de lei, entende o autor
Congresso Nacional aquilo de que se viram de Teoria e Prática da Constituição Brasilei-
privados por tanto tempo – o direito de veto ra que limitar a ação do Congresso ao sim-
parcial de projetos de lei. ples poder de aprovar ou rejeitar os pactos
internacionais transformaria o Congresso
9. Doutrina constitucional favorável “numa possível máquina de embaraço à
à possibilidade de emenda legislativa política internacional, porque um tratado
pode ser fundamentalmente bom e conter
aos projetos de tratados remetidos
um ou outro detalhe suscetível de modifi-
pelo Executivo cação”. Para ele, o argumento de que seria
Não por acaso, a melhor doutrina bra- preciso celebrar outro acordo não constitui
sileira favorece a tese de que o Congresso óbice para as eventuais modificações intro-
tem o direito de modificar o conteúdo dos duzidas pelo Congresso, já que, quando da
acordos negociados pelo Executivo com ratificação, bastaria o governo comunicá-las
Estados estrangeiros. à outra parte para, assim, ratificarem ambas
Nos seus Comentários à Constituição o acordo. E conclui:
Brasileira, o ex-ministro da Justiça e ex- “O poder de emenda dos tratados
ministro do Supremo Tribunal Federal e convenções internacionais existe
Carlos Maximiliano entende que, a rigor, necessariamente e não seria possível
o Congresso não poderia emendar a con- suprimi-lo. Dependendo a sua apro-
venção internacional; entretanto, em vez vação final do Congresso Nacional,
de rejeitá-la, pura e simplesmente, não este precisa examinar se o tratado
haveria qualquer óbice a que ele sugerisse viola a Constituição Federal ou as
ao Governo modificações que, levadas por leis da República. Neste segundo
este “ao plenipotenciário estrangeiro e por caso, ele é o órgão competente para
ele aceitas, determinariam sua aprovação abrir exceções às leis já votadas,
definitiva”. Essa seria a prática de países quando os tratados e convenções
como os Estados Unidos, a França e a Bél- as tiverem alterado; e o Congresso

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não poderá desempenhar uma tal incompatível com a finalidade do tratado,
atribuição jungido à alternativa de conforme constante dos itens “a”, “b” e
aprová-los ou rejeitá-los, até porque “c” do mesmo artigo. Ainda que assim não
muito poderá convir aos interesses fosse, poderia ser legitimamente objetado
públicos a aprovação de um pacto que o Brasil não se encontra vinculado às li-
internacional, uma vez expurgado mitações constantes da convenção, vez que
desta ou daquela irregularidade” até hoje não a ratificou, jazendo o projeto de
(LEAL, 1925, p. 628). decreto legislativo nas gavetas do Congres-
so Nacional há mais de quinze anos.
10. Das convenções e doutrina Vários são também os doutrinadores,
internacionais favoráveis à possibilidade na área de direito internacional, que reco-
de emenda legislativa aos projetos de nhecem o direito que efetivamente tem o
Congresso de modificar os dispositivos do
tratados remetidos pelo Executivo
projeto de tratado enviado pelo Executivo
No âmbito estrito do direito internacio- para referenda. Num parecer publicado no
nal, não encontra amparo na própria Con- primeiro número da Revista de Informação
venção de Viena sobre os Tratados, de 1969, Legislativa, o próprio Itamaraty reconheceu
a doutrina a que fizemos alusão, no começo que, exercendo sua competência exclusiva
deste parecer, segundo a qual as emendas de “resolver definitivamente” sobre os
(ali chamadas reservas) somente seriam pos- acordos, o Congresso Nacional poderia
síveis nos tratados multilaterais; do mesmo aprová-los “com emendas ou reservas”2.
modo, a convenção não ampara a tese de Na época, ainda depois do golpe de 1964,
que a expressão reserva seria mais restrita reconheceu esse direito ao Congresso Na-
do que a de emenda. A definição de reserva, cional o Ministro das Relações Exteriores
constante do art. 2o, “d”, é propositadamen- do Governo Castello Branco, Vasco Leitão
te genérica, de molde a compreender, por da Cunha: “Entendo que grande número
esse termo, toda e qualquer mudança no de tratadistas, em muitos países, concorda
texto do tratado, seja supressiva, aditiva, que o Congresso, ao ratificar um acordo,
seja modificativa1. Da mesma forma, o art. pode introduzir uma reserva (...). O Con-
19 da Convenção de Viena não restringiu gresso, na sua sabedoria, poderá fazê-lo
a possibilidade de formulação de reservas e evidentemente será acatado pelo Poder
aos contratos multilaterais; ao contrário, Executivo” (MEDEIROS, 1995, p. 445). O
parece referir-se tanto à possibilidade de ex-Consultor Jurídico do Itamaraty Vicente
formulá-las nos bilaterais como nos multi- Marotta Rangel (1991) embora distinguindo
laterais. É o que se depreende da redação entre reserva e emenda – distinção que a
do caput: “Um Estado pode, ao assinar, Convenção de Viena não faz –, reconheceu
ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou também o direito que tem o Legislativo de
a ele aderir, formular uma reserva”. Assim, emendar os textos dos projetos de trata-
a formulação de reservas ou emendas é per- dos. Emendado pelo Congresso e aceito
feitamente legítima em todos os tratados, pelo Executivo, o acordo bilateral haveria
desde que a possibilidade de modificação de ser submetido à outra parte signatária,
não esteja proibida pelo tratado ou que seja incorporando-se ao tratado desde que dela
obtido o assentimento. Por fim, podemos
1
“Art. 2o,‘d’. Reserva significa uma declaração
mencionar a opinião igualmente favorável
unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denomi-
nação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar de Haroldo Valadão (1962), emitida ao
ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo
de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas dis- 2
Revista de Informação Legislativa, ano 1, n. 1,
posições do tratado em aplicação a esse Estado”. mar. 1964.

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discorrer sobre o significado da expressão que a dita emenda entre em vigor –
“resolver definitivamente”: o que poderia deixar de ocorrer, à
“Em verdade, resolver, literalmente, falta de assentimentos em número
seria até ‘separar, desagregar’ (Aulet- suficiente –, o chefe do governo pro-
te, Cândido de Figueiredo, etc.), e, no mulgará a emenda mediante decreto;
sentido translato, corrente nos meios em tudo observado, pois, o roteiro
jurídicos, ‘decidir’, ‘deliberar’. Se ao pertinente ao tratado original”.
Congresso compete, assim, deliberar,
decidir, sobre aqueles atos internacio- 11. Da interpretação constitucional
nais, não há como limitar sua delibe-
do próprio Poder Legislativo,
ração, restringir sua decisão a pontos
extremos, aprovação total ou rejeição
favorável à sua competência para
total, pois a aprovação com emendas modificar o teor dos tratados
é, claramente, também, uma forma de Longe da época em que o Executivo
resolver, decidir, deliberar”. reconhecia e respeitava as atribuições do
Assim, se a decisão do Congresso Nacio- Poder Legislativo – a época da Terceira
nal se originava de um projeto de decreto República (1946-1967) –, desde a promulga-
legislativo, não se poderia negar, à luz da ção da Constituição de 1988 trava-se entre
Constituição e dos Regimentos Internos de os dois poderes uma batalha em torno da
suas duas câmaras, o direito de emendá-lo. possibilidade ou não de o Congresso alterar
“Nada existe, assim, na Constituição, os textos dos projetos de tratado envia-
que vede ao Congresso Nacional (...) dos ao segundo para referenda; batalha
emendar um tratado ou convenção. na qual o Governo insiste em reduzir ao
Representam tais emendas ‘reservas’ mínimo possível o círculo de autonomia
que poderão ser levadas ao conhe- do Congresso em matéria internacional.
cimento da outra parte contratante Desde então, alguns projetos de lei têm sido
quando da ratificação, e se por ela formulados no intuito de explicitar esse
aceitas integrarão o tratado, definiti- poder do Congresso, como a PEC n. 402
vamente, que entrará, pois, em vigor de 2001, do deputado Neiva Moreira, que,
sem necessidade de nova apreciação julgada admissível pela CCJ, encontra-se
pelo Poder Legislativo do Brasil” aguardando inclusão na pauta. Todos os
(VALADÃO, 1962). outros quatro projetos foram arquivados
Refletindo a realidade dos fatos, Fran- por pressão do governo.
cisco Rezek (2002, p. 89), ex-ministro da Essa recusa do Executivo em reconhecer
Justiça, ex-ministro do Supremo Tribunal formalmente os poderes do Legislativo,
e ex-juiz da Corte Internacional da Haia, todavia, não o tem impedido de exercê-los
ensina como deve o Presidente da Repú- na prática. Com efeito, o que se percebe é
blica se portar diante da apresentação de que, a despeito das pressões do Executivo,
emendas por aquela Assembleia: o Congresso tem exercido o seu poder
“No Brasil a aprovação da emenda implícito na Constituição, inclusive em
pelo Congresso Nacional toma forma, tratados bilaterais. São exemplos disso o
também ela, em decreto legislativo. Acordo de Garantia de Investimentos, en-
Publicado este, está o Presidente da tre o Brasil e os EUA (1965), cujas reservas
República autorizado a consentir no foram sugeridas por ninguém menos que
plano internacional, fazendo chegar o próprio Afonso Arinos de Melo Franco3;
ao depositário do pacto a carta ou
instrumento que exprime a aceitação 3
Revista Brasileira de Política Internacional. Rio
da emenda pelo país. Supondo, então, de Janeiro, n. 34, p. 40-46, mar/jun. 1966.

204 Revista de Informação Legislativa


a Convenção para a Repressão de Atos Ilí- tilateral, o Congresso deveria apresentar
citos contra a Segurança da Aviação Civil as emendas na forma de reservas; caso se
(1972); a Convenção relativa à Proteção do tratasse de tratado bilateral, o Executivo
Patrimônio Mundial, Cultural e Natural; o deveria apresentá-las à consideração da
Convênio Ibero-Americano de Seguridade outra parte do acordo, para que sobre elas
Social (1980). Na vigência da atual ordem se manifestasse:
constitucional, o Congresso aprovou ape- “Sob nossa ótica e com base nos
nas parcialmente a Convenção n. 160 da fundamentos jurídicos e nos antece-
Organização Internacional do Trabalho, dentes legislativos (...), julgamos que
bem como a Convenção-Quadro sobre Con- o Congresso Nacional, no exercício
trole do Uso do Tabaco (2003). Nesse caso, do seu poder-dever expresso no art.
a pedido do governo, o Senador Heráclito 49, inciso I, da Constituição Federal,
Fortes recomendou pelo menos declarações poderá aprovar, ainda que parcial-
interpretativas. A própria Convenção sobre mente, tratado, acordo, convenção
Direitos Humanos foi ratificada pelo Brasil ou qualquer outro compromisso
sob reservas. internacional, sobre o qual deva se
Do ponto de vista jurídico, o Congresso pronunciar”.
Nacional tem exercido sua competência A despeito das resistências ao poder
modificativa das cláusulas dos tratados, de emenda do Legislativo, desde 2000 o
multilaterais ou bilaterais, lastrado em in- Executivo passou a incluir os dispositivos
terpretação própria, oficial, que lhe permite legais acrescidos pelo Congresso no decreto
a autonomia prevista na Constituição. Isso de promulgação do decreto legislativo – e
aconteceu em sede de consulta formulada isso, em virtude de um parecer da Consul-
pela Presidência da Câmara dos Deputados toria do Itamaraty assinado pelo próprio
acerca das reservas sugeridas por duas Cachapuz de Medeiros (2000). Por outro
comissões daquela casa aos artigos 25 e 66 lado, conforme Cristina Vieira Machado
da Convenção de Viena sobre o Direito dos Alexandre (2006), parece ter-se firmado
Tratados. Na Consulta n. 7 de 31 de agosto um entendimento tácito de que, em vez
de 1994, por unanimidade, a Comissão de de apresentarem suas propostas de mu-
Constituição e Justiça da Câmara aprovou dança como emendas, forçando o governo
parecer do deputado José Thomaz Nonô brasileiro a retomar as renegociações com
favorável à “possibilidade de o Congresso os países estrangeiros, os parlamentares
Nacional, na sua competência de referendar devem apresentar suas propostas como
tratados internacionais celebrados pelo Pre- “declarações interpretativas”, poupando-o
sidente da República, fazê-lo parcialmen- da renovação das démarches. Isso teria
te”. Na ocasião, entendeu o relator que, “se ocorrido a partir de 2003, quando dos
ao Congresso é conferido o direito-dever de debates referentes à aprovação do Acordo
aprovar ou rejeitar, in toto, o texto interna- entre Brasil e EUA para o uso do Centro
cional pactuado pelo Executivo, torna-se de Lançamento de Alcântara, do Tratado
perfeitamente aceitável a tese de que ele, de Não-Proliferação Nuclear e do Acordo
Congresso, detém o poder de aprová-lo sobre Salvaguardas Tecnológicas entre o
com restrições”. Trata-se da aplicação do Brasil e a Ucrânia, em 2003.
velho brocardo jurídico para o qual quem
pode mais, pode menos: se o Congresso Conclusão
poderia rejeitar o projeto de tratado inte-
gralmente, poderia também rejeitá-lo em Tendo em vista as ponderações acima,
parte. O relator sustentava, na ocasião, que, parece-me inegável o direito que, à luz do
em se tratando de projeto de tratado mul- ordenamento constitucional brasileiro, tem

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o Poder Legislativo de alterar o projeto CAVALCANTI, João Barbalho. Constituição federal
de tratado enviado pelo Poder Executivo. brasileira: comentários. Rio de Janeiro: Tipografia da
Companhia Lito-tipográfica, 1902.
Nesse caso, esse direito pode ser exercido
conforme duas versões, uma mais restrita FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo di-
ou moderada, e outra, mais ampla ou forte. cionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 1986.
A versão mais moderada ou restrita obe-
dece à lógica do princípio da equipotência LEAL, Aurelino. Teoria e prática da constituição brasilei-
ra. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia. Editores, 1925.
e faculta ao Poder Legislativo o direito de
alterar o projeto de tratado por meio de MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito internacio-
reservas ou supressões parciais, de forma nal público - parte geral. 4 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008.
análoga ao veto parcial que tem o Poder
Executivo a respeito dos projetos de lei que MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder
lhe são enviados à sanção. A versão mais legislativo e os tratados internacionais. Porto Alegre:
L&PM, 1983.
ampla ou forte, baseada na prática, faculta-
ria ao Poder Legislativo alterar o conteúdo ______. O poder de celebrar tratados. Porto Alegre: Sergio
dos projetos de tratados num sentido não Antonio Fabris, 1995.
apenas negativo, mas também positivo, seja ______. Parecer n. 31 da consultoria jurídica do Minis-
pelo eufemismo das “declarações interpre- tério das Relações Exteriores. 5 abr. 2000.
tativas”, seja alterando substantivamente o MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1946.
conteúdo das cláusulas. Nesses casos, como 2 ed. v. 2. São Paulo: Max Limonad, 1953.
nos anteriores, o Poder Executivo fica livre MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de.
para decidir se leva adiante o processo de O espírito das leis. v. 1. São Paulo: Editora Abril, 1997.
ratificação. Seja numa versão, seja em outra,
MELO, Celso de Albuquerque. Curso de direito interna-
todavia, o que parece inegável é o direito cional público. 14 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
que tem o Poder Legislativo de proceder a
RANGEL, Vicente Marotta (1991). Emenda dos tratados
alterações parciais nos conteúdos dos proje-
internacionais. Parecer CJ-029 do Consultor Jurídico o
tos de tratados para além do mero poder de Ministério das Relações Exteriores, de 24 de setembro
vetá-los na sua integridade. Esse me parece de 1991.
um entendimento que se deverá difundir REZEK, Francisco. Direito internacional público. São
à medida que se intensifique o movimento Paulo: Saraiva, 2002.
da globalização e de integração do Brasil no
SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Comentários
circuito internacional. à Constituição brasileira de 1891. Rio de Janeiro: Jacinto
Ribeiro dos Santos Editor, 1918.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional posi-
Referências tivo. 16 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. 3
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
público. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 1966.
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Acordos
ACCIOLY, Wilson. Instituições de direito constitucional. internacionais: as atribuições distintas de negociação
3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. pelo Poder Executivo e de Aprovação pelo Poder
ALEXANDRE, Cristina Vieira Machado (2006). O Legislativo. Parecer CJ-114 do Consultor Jurídico do
Congresso brasileiro e a política externa (1985-2005). Ministério das Relações Exteriores, de 12 de agosto
Dissertação de Mestrado da Faculdade de Direito da de 1988.
PUC. Rio de Janeiro, PUC, 2006. VALADÃO, Haroldo. Conceito moderno de ratificação de
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. tratados e convenções. Boletim da Sociedade Brasileira
Comentários à Constituição do Brasil. v. 4. São Paulo: de Direito Internacional. Rio de Janeiro, 1962.
Saraiva, 1988.

206 Revista de Informação Legislativa

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