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CAPITULO 2 O BRASIL E A COOPERACAO INTERNACIONAL: UMA DISCUSSAO CONCEITUAL 1 INTRODUGAO Este capitulo tem como objetivo central definir os conceitos operacionais que nor- tciam a claboracao do relatério sobre Cooperagéo Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (Cobradi) e a pesquisa ~ apresentada mais & frente ~ sobre Impactos da pandemia na cooperagao internacional do Brasil. Actedita-se que a clareza sobre 08 conceitos utilizados ajudard tanto no aperfeigoamento metodolégico da Cobradi quanto na provocacéo de um didlogo produtivo com a comunidade cientifica e os priticos da cooperacdo internacional brasileira e internacional. Além disso, 0 capitulo propée um modelo conccitual baseado na ideia de que tanto a cooperagao para o desenvolvimento internacional quanto a coopera- io para o desenvolvimento do Brasil estéo restritos a uma légica binéria baseada na relacéo Norte versus Sul ou pais desenvolvido versus pais em desenvolvimento. Sao discutidas as limitagées de um modelo dual desse tipo para a mensuracio da Cooperagao Sul-Sul para o Desenvolvimento (CSSD), ¢ é proposta uma abordagem mais préxima da ideia de sistemas complexos, que poderia trazer nova dimenséo para se aperfeicoar a cooperagio brasileira. 2A COOPERACAO PARA O DESENVOLVIMENTO: DUAS VISOES © conceito de cooperagio internacional conheceu profundas alteracées desde 0 pés-Segunda Guerra Mundial. Grande parte das mudancas esta diretamente relacio- nada a complexidade na administragao dos assuntos de interesse global. Inicialmente, apenas concentrada nas decisées dos Estados-nagio, a cooperagio internacional se torou mais complexa em termos de niimero ¢ tipo de atores participantes, fontes de financiamento, arranjos de implementagao, objetivos e estruturas de governanga, A auséncia de uma autoridade global dificulta a coordenacio de politicas piblicas. Consequentemente, a proviséo de bens ¢ servigos de interesse global depende da politica internacional e da negociagao entre Estados-nacao. A intensificacio da interdependéncia entre os Estados e suas populacées aumenta a necessidade de cooperacio internacional para administrar seus efeitos € suas consequéncias. Nas dreas econémica e social, a cooperagao internacional 26 Cooperacao Internacional em Tempos de Pandemia: relatério Cobradi 2019-2020 responde a trés ob i) governar os efeitos da interdependéncias fi) fortalecer estruturas que garantam os direitos & provisio minima de servigos a todos os individuos no planeta; ¢ iit) reduzir as desigualdades no grau de desen- volvimento entre paises (Ocampo, 2016). A cooperagio internacional tem como foco a correcéo de problemas de ago coletiva na provisio de bens piblicos e/ou na correcio de externalidades negativas ou positivas do consumo e da producéo, Os bens puiblicos globais (Kaul et al., 2003) sao aqueles que dependem da acao interna dos Estados e da cooperacio internacional entre Estados para que a sua provisdo seja étima, de acesso universal (nao excludente) ¢ puiblico (nao rival), Além das variadas formas que a cooperacéo internacional pode assumir (bilateral, multilateral, em rede etc.), esta pode tanto focar na provisio de condigées que garantam eficiéncia na alocagao de recursos (por exemplo, um marco regulatério global) quanto buscar ditimir efeitos negativos da producio ou do consumo (por exemplo, aquecimento global). Apesar disso, a alocagéo mais eficiente de recursos dificilmente seria a mais equitativa na proviséo de bens ptiblicos globais, dado que diferentes sociedades valoram de formas distintas determinados bens ptiblicos (Kaul et al., 1999). A provisio étima de bens puiblicos globais depende da cooperagio internacional entre atores em diferentes estados de desenvolvimento econdmico e social. Assim, a cooperaséo internacional também tem o papel de diminuir as desigualdades entre paises pela via da cooperasao pata o desenvolvimento (Ocampo, 2016). Mesmo que seja possivel distinguir conceitualmente entre os trés objetivos da cooperacéo internacional em uma estrutura global de crescente interdependéncia econémica ¢ social, a forma pela qual a desigualdade entre as nag6es poderi ser alcangada é menos clara, De fato, e desde 0 pés-Segunda Guerra Mundial, hé duas visées nao necessariamente excludentes sobre como a cooperagio para 0 desenvolvimento poderia ser operacionalizada: i) pela via da Assisténcia Oficial a0 Desenvolvimento (AOD); ¢ i) pela maior interagéo entre os paises do Sul, para superarem seus problemas comuns, a CSSD. De uma forma geral, a AOD ea CSSD possuem uma relagéo parcial no que ange 4 cooperacio para o desenvolvimento. Como serd discutido a seguir, 0 escopo da AOD é muito menor que o da CSSD. Embora as duas visdes coexistam por raz6es histéricas, clas podem ser aproximadas tanto pelo foco em assisténcia técnical desenvolvimento de capacidades quanto pela ligagéo mais ampla com 0 Objetivo de Desenvolvimento Sustentavel ~ ODS 17 (parcerias ¢ meios de implementagio).. De fato, o ODS 17 fornece o vinculo entre as estratégias de cooperagéo para 0 desenvolvimento ¢ as metas que norteiam a provisio de bens ptiblicos globais ¢ os direitos sociais e econémicos fundamentais. 0 Brasil e a Cooperacio Internacional: uma discussao conceitual 27 Da mesma forma, o Apoio Oficial Total para o Desenvolvimento Sustentavel (Total Official Support for Sustainable Development — TOSSD), desenvolvido pela Organizacéo para a Cooperagio ¢ Desenvolvimento Econémico (OCDE), tenta capturar os investimentos em AOD, parte dos demais investimentos da Cooperacdo Norte-Sul (CNS), além de tentar avangar na monetizago da CSSD. As segdes a seguir discutem a trajet6ria histérica que explica as duas visoes da cooperagao para o desenvolvimento, ao passo que introduz os devidos contornos conceituais, tendo como base o modelo conceitual representado pela figura 1. FIGURA 1 Relacao entre ODS, CSS e AOD FlaboragBo dos autores. (bs: C55 ~ Cooperagdo Sul Sul CSSE ~ Cooperacéo Sul Sul Econémica, 3 AOD ETOSSD A discussio sobre a coordenacio da assisténcia para o desenvolvimento no ambito dos paises do Norte global inicia-se com a formagao do Grupo de Assisténcia para © Desenvolvimento (DAG) ¢ a inclusio da palavra desenvolvimento no nome da entéo Organizacao para a Cooperagdo Econémica Europeia (OCEE), ambas em 1960. O DAG tinha como misao coordenar os esforcos de ajuda para o desenvol- vimento, bem como tornar mais equitativa a participagdo dos membros da OCDE na ajuda internacional. A persecugao desses objetivos recebeu um grande impulso ainda em 1961, com a criagéo do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (DAC), o lancamento ¢ estabelecimento de metas para a Década de Desenvolvimento das Nagées Unidas,! além da criagao de leis e agéncias de desenvolvimento em grande parte dos paises desenvolvidos (Fiihrer, 1996). 1. importante notar que @ Década de Desenvohimento da Organizagdo das NagGes Unidas (ONU) foi em grande medida, rmotivada pels alteraces marcadas tanto pelo processo de descolonizacio afro-asitico quarto pelo questionamento por parte dos paises do Sul sobre as regras que norteavam as relacbes entre paises do Norte e do Sul como o sistema interacional de comérciae os fluxosfinanceis, por exemplo, 28 Cooperagio Internacional em Tempos de Pandemia: Um dos objetivos mais duradouros apés a criagio do DAC/OCDE é a melhoria ¢ harmonizagio dos termos da assisténcia financeira a paises em desenvolvimento. “Tal discussao foi de importancia seminal, visto que dela resulta em um dos conceitos mais duradouros na cooperacio para o desenvolvimento, o de AOD, que permaneceu inalterado em sua esséncia por cerca de quarenta anos (1972-2012). Grosso modo, pode-se dizer que 0 conceito de AOD passou por fases distintas. A primeira coincide com a criagao do DAC (1961) e as negociagées sobre termos da assisténcia (do inglés, terms of aid), que perduraram por mais de uma década, até 1972, mas culminaram na defini¢4o do valor maximo de grant (concessionalidade) nos programas de assisténcia, bem como na fixagao de regras para a taxa de desconto grant elements (componentes de subvencao) para os empréstimos fornecidos a paises em desenvolvimento. ‘A segunda fase é marcada basicamente pelo aperfeigoamento de métodos estatisticos e outras alteragées incrementais. A terceira fase inicia-se em 2012, com a ampliagio do conceito de AOD e a adogio do sistema de grant-equivalent (volume de concessionalidade) para o cémputo dos empréstimos fornecidos pelos paises-membros da OCDE. Tendo em vista o crescimento do papel de outros atores piblicos e privados, a ascensio do Sul global e a adogéo dos ODS, a partir de 2016, ocorre o desen- volvimento da metodologia TOSSD. Na primeira fase (1961-1972), a principal dificuldade era a auséncia de uma definigéo consistente de AOD. O céleulo do volume de assisténcia dos paises desenvolvidos era feito sobre uma porcentagem de seus produtos internos brutos (PIBs), além de incluir elementos que claramente nao se aproximavam da ideia de assisténcia, como os créditos para exportacao, por exemplo. A permanéncia do cendrio de empréstimos sem padronizagéo contribuia, ademais, para 0 endividamento dos paises em desenvolvimento, o que era um paradoxo do ponto de vista dos objetivos da cooperagao para o desenvolvimento. A solugao para o problema foi a criagdo de um cdlculo de grant-equiva- Lent (volume de concessionalidade), que permitia somar o volume de soft loans (empréstimos em condigées preferenciais) ao de grants (concessdes) a partir de uma fér- mula padronizada ~ 10% de taxa de desconto ¢ 25% de grant element (componente de subvengao). Foi nesse contexto que nasceu a ideia de concessional nas atividades de AOD, Ou seja, a ideia de grant element foi utilizada para a definigéo do que seria concessional, ficando 0 conceito de AOD de 1972 composto por grants, soft loans (10% de taxa de desconto ¢ 25% de grant element) ¢ assisténcia técnica (Scott, 2015). O excesso de foco dos paises desenvolvidos na concessio de grants foi alvo de muitas criticas. Grande parte da racionalidade da proposta de empréstimo “concessional” partia da ideia da diferenca entre a taxa de desconto de 10% ea taxa de juros de mercado do pais doador, que, por sua ver, variava de pais para pais, 0 Brasil e a Cooperacao Internacional: uma discussao conceitual 29 Além disso, a definicéo de AOD deixava de lado os créditos nao concessionais, gastos com a assisténcia a refugiados ¢ apoio a determinados aspectos de opera ges de paz, apenas para citar alguns. Por fim, 0 conceito de AOD incluia alguns gastos efetuados por paises desenvolvidos em seus préprios territé: caso de bolsas universitarias e campanhas de informagio ptiblica sobre assisténcia internacional (Hynes e Scoot, 2013). s, Como No Com o fim da Guerra Fria e a rediscussio do papel da assisténcia internacional, tanto em termos de impacto quanto de eficiéncia do gasto, o DAC/OCDE resolvew modernizar 0 conceito de AOD. A modernizagao a partir de 2012 almejava incluir as contribuicées de paises nao vinculados ao sistema DAC-OCDE e entidades filantrépicas, atualizar as possibilidades ¢ os instrumentos de financiamento, bem como dar mais precisio a objetivos sobrepostos entre esforcos de cooperacao para 0 desenvolvimento c as éreas humanitéria/refugiados, seguranca internacional ¢ perdo de dividas. O principal resultado prético foi a mudanga no sistema de grant element para o sistema de grant-equivalent no computo da AOD, que passou a considerar somente o componente de grant em um empréstimo concessional e nao mais 0 valor de face de tais empréstimos. Os critérios de concessionalidade sao distintos para diferentes grupos de paises, de acordo com seus PIBs per capita (OECD, 2021). Embora o conceito de AOD continue em constante aperfeigoamento, é importante mencionar o esforco recente da OCDE em ampliar o entendimento de cooperagéo na direcéo do desenvolvimento para além do objetivo de desenvol- vimento econdmico ¢ bem-estar dos paises em desenvolvimento, Tendo os ODS como norte, ¢ particularmente 0 ODS 17, a metodologia TOSSD, desenvolvida de forma intensa desde 2016, amplia o tradicional foco em desenvolvimento eco- némico ¢ social para outras agendas de seguranga ¢ sustentabilidade ambiental. Além disso, inclui outros fluxos internacionais e formas distintas de cooperagio para 0 desenvolvimento, que até entao nao figuravam nos computos oficiais da coopera- cio para o desenvolvimento, como a cooperacio Sul-Sul ¢ a cooperacao triangular. O TOSSD também dé grande énfase a ferramentas que apoiem a captura das contribuigées do setor privado e de empréstimos nio concessionais.? Uma caracteristica adicional é 0 fato de a metodologia considerar dois pilares distinto: i) contribuigées para a agenda de desenvolvimento; e ii) provisao de bens ptiblicos globais e mitigacio de efeitos indesejados da interdependéncia, os chamados males puiblicos (do inglés, public bads) 3 2. Disponivel em:

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