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A crianga no comércio sexual caPpiTULO 2 Qualquer um de nds, crianga, analista, pai, mae ou obstetra, sempre carrega consigo a inquietude de sua propria concep¢ao. O sujeito inevitavelmente encontra a questao de seu sexo e a de sua contin- géncia no ser, “ou seja, de um lado, ele é homem ou mulher e, de outro, poderia nao ser, os dois conjugando seu mistério eo enla- gando nos simbolos da procriagio e da morte” (Lacan 1957-8a: 549). Essas questdes nao tém como resposta apenas as que 0 sujeito da, Se ele é levado a construir um mito individual (1953b) para responder a sua origem inatingivel, é porque sua concepsao, obra de seus genitores, nao é suficiente para responder a questao de sua vinda ao mundo, para dar sentido a sua inefavel existéncia. Ele precisard interpretar no discurso do Outro o desejo que neste se deixa balizar. Uma dialética entre a hiéncia do que é intransmissivel a preeminéncia do que vem do Outro banha o sujeito, transporta- 0, mas as vezes também o invade, “o rasga por todos os lados” (1957-1958: 549), no que diz respeito 4 questao de sua existéncia. Poderfamos citar 0 que Freud descobre com o pequeno Hans, a partir do que seu pai afirma acerca da fantasia do bombeiro no dia 11 de abril: “Vocé sabe, eu pensei uma coisa: eu estou na banheira e af o bombeiro chega e a desaparafusa, Entio ele pega uma grande furadeira e a enfia na minha barriga” (1909: 138). Freud fica intri- gado com a palavra “furadeira” (Bohrer), que segundo ele nao fora escolhida por acaso, sem conexdo com a palavra “nascido”, “nasci- mento” (geboren, Geburt). A crianga no teria distinguido “nascido” (geboren) de “furado” (gebohrt). Freud se pergunta se ndo ha uma 33 iversal, entre essas duas idéias, p,, Jo fundamental, universal, > Promet relagao fun - Como ~ cer que “a crianga trata as odemos esque Freud, nao p' ira muito mais concreta que o adulto”, Trata-se ineira ’ = Ja ao pé da letra: um equivoco para Hans entre segui-la “furado”. , : ide ca com sua mae Hans se identifica pequeno hen & 5 ens, era também aquele que fura’ i homens, era criador dos obser, Palavray de » ENE, de “nascidg? a Por meio desse 5 de furo na barriga: “Ele assume veio fazer um gran¢ ° algo que lhe furo, ou seja, a posigio materna” (Lacan 1956-7: 331), Em oe , de permutagao, ¢ 0 pequeno Hans que, no fim das Contas, ae mente o furo da mie, “ou seja, 0 abismo, o Ponto an a ; 0 ponto que esta em questo, a coisa que nio se ee . o aes fate sob a forma eternamente inapreensivel an cavalo” (ibid.: 332), quer ers ° ae ‘che a boca dos cavalos que Ihe dé tanto medo, onde ele morde, esta situada a coisa que no se deve olhar, Fezes, pénis, crianca E curiosa a posiggo da crianga na famosa equagio freudiana her pénis — crianga”, rica em ensinamentos sobre a ae q ae nos ocupa. Freud é explicito: “Como ponto de partida me Cussoes, podemos tomar o fato de que, conforme aparece nas p! dudes do inconsciente —idéias, fantasias e sintomas de excremento (dinhei , os conceitos ane jistin- 0, presente), crianga e pénis nao oe guem com clareza e se substituem facilmente entre eles’ a 107)'. Freud deduz sua posicao do que o pequeno Hans lhe en sons Sabemos que Hans considera a crianga como Lumpf: “Como al a ma ah separa do corpo passando pel fans identifica a crianga com 0 excremen coi! H Jo intestino” (ibid.: ee nto, De maneira geral, Ver aesse respeito o traci" capitulo VII, “Erotismo anal e complexo de em Freud (1918; 378-92), alse ea psica linia da origem: a crianga entee a meslicina € 8 P que para Freud prova também a expressao “dar um filho”; testemu- nho lingiiistico da identidade entre a crianga e o excremento (ibid.). Esse é 0 ponto de vista pulsional, prosaico, a respeito da crianga. O excremento, segundo Freud, ¢ 0 primeiro presente por meio do qual a crianca manifesta sua ternura a pedido da pessoa amada. Transagio, troca em face do pedido do Outro, eis em jogo a passa- gem da atitude narcisica para o amor objetal com a alternativa dele decorrente: a crianga sacrifica 0 objeto em nome do amor ou entao o retém para sua propria satisfago, qualificada por Freud de auto- erotica (ibid.: 110), Excremento, presente, retengao, obstinacao, ordem, economia, avareza, ouro e dinheir questao pulsional de onde Freud deduz a equivaléncia entre dinheiro e crianga. “De um lado, o interesse pelo excremento persevera como interesse pelo dinheiro e, de outro, ele se desloca para o desejo de ter uma crianga. No desejo de ter filhos, hd, portanto, uma mogio erética anal e uma mocio genital (inveja do pénis)” (ibid.). Freud faz equivaler fezes, dinheiro, pénis e crianga por meio da transposigao de pulsdes, revelando que o pénis pode ter também uma significagio erética anal. Com efeito, como escreve Freud, “as fantasias originalmente concebidas de modo genital podem se transformar em fantasias de natureza anal, sendo o pénis substituido pelo bastao fecal e a vagina pelo intestino” (ibid.). A crianga —crianga pesquisadora—pode ser considerada, a partir de suas teorias sexuais infantis, como tendo nascido do intestino. Ela se faz assim herdeira do erotismo anal, mesmo se este foi pre- cedido pelo desejo do pénis, que se transformou em desejo de ter uma crianga. Nao se trata aqui, em suma, de retornar ds teorias sexuais in- fantis. Retenhamos, entretanto, que a crianga é tomada por um sistema de trocas que implica, de um lado, excremento, dom, di- nheiro e, do outro, um significado falico, Dar uma crianga, reto- mando a expressio citada por Freud, parece implicar um complexo sistema de trocas entre uma valéncia anal e uma valéncia falica, A crianga no comércio sexual 35 Povderiamos lembrar 0 exemplo fomecido por Katl Abra, por Lacan em 0 Semindrio, livro 4: a relasio dy n° comentado , objey (Lacan 1956-7: 192). Trata-se de wna menina de doisanos ayer até o armiio de charutos depofs do almoso. Ela pega tds chin, Dao primeiro para seu pai, © segundo para sua mae, que nio fuma, ¢ poe 0 terceiro entre as pernas. Abraham admite de maneira im. plicita que 0 terceiro gesto da menina indica que esse objeto sim. bélico Ihe falta. Ela manifestaria dessa forma a falta, Pata Lacan, contuclo, que se apdia no artigo de Freud sobre a sexualidade fem, nina (1931; 139-55), nao se trata apenas disso. Nao se pode ocular seu segundo gesto: trata-se antes de dar um para sua mie. E sobre esse dom que gostarfamos de insistir. Efetivamente, 9 que interessa saber é, segundo Lacan, “como a crianga realiza, mais ou menos conscientemente, que falta algo a sua mie onipotente’”, Essa falta representa um perigo para a crianga. A crianga transforma sua mae em uma mie insacidvel. Ela precisa encontrar um meio de satisfazé-la, de Ihe dar alguma coisa, receosa de que seja ela o objeto que preenchera o que falta 4 sua mie. A situagio entre a mie ea tian¢a comporta para esta a descoberta de que sua mie deseja alguma coisa que no ela propria (Lacan 1956-7: 193). E assim que, para sair dessa historia, resta a crianga saber pot que via ela dard a mae 0 que lhe falta, que é também o que faltaa ela. Nao é exatamente isso 0 que se reencontra posteriormente no fato de dar um filho? meee jogo & saber qual é a fungio da crianga para? (ibid. ; 5 Fespeito a esse falo que & 0 objeto de seu dese} 4. ; : 2). E sobre esse Ponto Lacan é bem preciso: a crians? sera para a mae of ‘ adi so ni Paraa mae a metonimia de seu desejo de falo (ibid.), Isso 8° quer dizer que el trario, é “meton| Lacan, la metonimica como faléforo, A erianga, a0 6 fg na Come totalidade” (ibid.), E nesse plano, p* » 0 falo do menino nio yy Defato, 0 falo édescoberto ai a insatisfacao €xperimentada Pp ale muito mais que o da menina- progressivamente a partir da profun e ~ sriang3 la mae em sua relago com acriant 36 Clinica d ise # da origem: a crianga entre a medicina ¢ a psi"! ou pela crianga em sua relagio com a mie. A frustragao nao esta somente do lado da crianga que vé sua mie ir embora. A frustragao também est do lado da mic. E assim que ela se enlaga 4 nostalgia do falo originario, que faz da crianga uma figura imaginaria. Nin- guém mais encontra sua liberdade nessa relagio, Cada uma das partes fica presa em uma equago sem saida, que pode se difundir pelo sistema social até regular certas leis de troca na ordem familiar, mais precisamente, nas estruturas de parentesco e de filiagao. O problema é satisfazer 0 que nao pode ser satisfeito, um desejo que nio pode ser saciado. Dar uma crianga a uma mulher, fazer da mulher uma mie, sempre estamos na mesma histéria. O essencial & arelagio com o falo (ibid.: 193), que ocorre também com a crianga. Um vem de dois Fazer uma crianga. Ter um filho. Dar um filho. Nao se sai da equagao feres — pénis — crianga. O que é a crianga nesse comércio sexual? © que damos, quando fazemos um filho? Damos a vida, dizemos. Mas de que dom se trata? A quem ele é dado? Fazer uma crianga implica um sistema de troca bem particular. “Um vem de dois”, como escreve Claude Lévi-Strauss, ao fazer dessa formula a estrutura comum aos diferentes mitos de Edipo: “{...] sempre se trata de compreender como um pode nascer de dois: por que nao temos um sé genitor, e sim uma mie e um pai a mais?” (1955: 240). Essa afirmagao poderia ser testada a partir de quest6es suscitadas pelos novos procedimentos de procriagao medicamente assistida hoje disponiveis. Entre ato sexual, fecundagio, nidagao, parto, fi- liagdo, adogao, de cendéncia e geragdes, tudo o que até entao estava ligado pode ser agora dissociado, Sera que o lugar da crianga como produto da linhagem se modificou? , sem lagos Ter filhos sem relagdes sexuais, sem lagos com 0 p: de sangue com a mie, que de resto se tornou tao incerta quanto 0 pai, ter duas maes biolégicas — uma genética, fornecedora do ovulo, 37 ‘A ctianga no comércio sexual eri tindo a gestagao — mas even e outra, uterina, garan gestag ra tualmente vm que cria a crianga, poder saltar varias geracées antes 4 ia le gvo fecandado, um embriao congelado, saido day, es. rou de uma familia diferente: de quais sistem, las terceira implantar um ma linhagem familia de trocas se trata aqui? Falamos de dom de criangas, de dons de évulos, de dons e esperma. Qual €0 tipo de dom em jogo (Delaisi & Verdier 1994, se antes de um abandono? Que lugar ocupam 135-97)? Ou trata no sistema de parentesco esses homens e essas mulheres que dio ubstancias relativas 3 filiagao? Os doadores de gametas contribuem nascimento de criancas. Esses dons so mediados, sem contato ra da sexualidade. Tudo se passa por meio de instituigies, rma, servicos de ginecologia, unidades de esteril- para direto, for bancos de espe dade. Que lugar ocupam esses doadores indiretos de criangas? E 0 médico que faz a mediagio, transformando, com paixio, mulheres em mies e homens em pais? O esperma ou ovécito sao gerados além da histéria de um ho- mem e de uma mulher, conduzindo a uma estranha mistura entre © sujeito e as regras sociais e éticas ainda mal estabelecidas. Lagos de sangue, lagos de leite, os produtos do corpo entram em um sistema de trocas que ultrapassa no sé a histéria do sujeito, como também as restrigdes bioldgicas. Para Francoise Héritier, a definigao de consangiiinidade é, em um primeiro plano, uma questdo de es- colha e de reconhecimento social. Os critérios que definem 0 incest em em jogo “ 4 i ; 5 P ego “o que hi de mais fundamental nas sociedades hu manas: a mancira como ela d s Constroem suas categorias de idéntico € diferente” (1994; 11) > & uma orientayye Para Heri- Ee es ae lugar, o que esta em que: sn » Trata-se de distinguir o idé 7, €869 oposicSo “é uma das mais a cede da diferenca dos sexos” ntico do diferente. reaicas e profundas porque pace (1991; 349), Inicialmente, é uma gr miatica feita de . oposigde: Posigoes, de diferengas para permitir uma orienta $40. Um sist ema de ‘ ne Parentesco é também uma repartiao simbdlica- 38 Clinica 'nica da origem: a crianga entre a medicina ¢ a psicaral® Encontramos 0 mesmo problema nas procriagdes artificiais. Li- mites devem ser estabelecidos, Problemas de eugenismo aparecem: tem-se de garantir que nao haja implantag3o consangiiinea, Além disso, oanonimato dos bancos de esperma est em vias de ser abolido em certos paises. Qual o efeito disso sobre a filiagao simbdlica? Temos de preservar 0 anonimato do doador ou, ao contrario, ga- rantir 4 crianga a possibilidade de conhecer suas origens? De que origem se trata? Qual a relacao entre a fungao paterna e um esper- matozdide? Entre a mae que carregou a crianga e aquela que a criou? Qual a relagdo entre uma func3o materna e um dévulo? O pai sera reduzido ao espermatozdide? Mesmo que as regras sociais no o permitam, uma mulher hoje em dia pode conseguir uma inseminagao artificial por sua propria iniciativa, sem a contribuicao de um homem. Podemos encontrar também dons de ovulos e mies gestantes. A incerteza quanto ao pai pode ser duplicada por uma incerteza quanto mae. Uma crianga feita em um casal por inseminagao artificial a partir de um dvulo de uma terceira pessoa, fecundado por um espermatozdide de um ou- tro terceiro anénimo, porém gerado e carregado no titero da mae, pode nao ter qualquer laco de sangue nem com 0 pai, nem com a mae. Da mesma maneira, um évulo da mie, fecundado por um doador, pode ser implantado em outra mulher antes de ser nova- mente doado 4 mae. Quem é a mie? Quem é 0 pai? As pistas se embaralham, sobretudo se o titero emprestado é o de uma parente: mie, irma ou filha, Em que se transformam as leis da filiagio? Qual é, por sua vez, 0 desejo do médico em seu engajamento no tratamento da esterilidade, seja ela masculina ou feminina? Dom de esperma, dom de évulo, dar uma c lugar ocupa es nga. a um casal estéril: que ¢ terceiro que escolhe a profissio de dar uma crianga aum casal, a uma mulher? A quem ele da a crianga? Qual a relagio que nutre com a mulher ou com 0 homem, com a mae ou com o pai? O que sente e vive aquele que tem o poder de transformar as mulheres em mies, os homens em pais, ao largo da sexualidade? ‘A crianca no comércio sexual * Realizar um desejo de ter uma crianga: qual 0 futuro ¢, esse A edicg sem relago sexual, e mesmo no anonimato? Tudo parece Pr 7 ler desejo quando ele é satisfeito por meio de uma intervencao m, ser revirado. As procriagSes medicamente assistidas que implian, um doador podem efetivamente criar novos problemas nas repras de nomeagao. O simbdlico, que definimos como primeiro, estarig em crise por causa de tais intervengdes sobre o real? Mas essa realmente uma mudanga importante? Sabemos que a filiagio acon. tece, em primeiro lugar, em relagao as estruturas de Parentesco, que passam por outras coordenadas que nao a filiagao bioldgica e as da histéria da instituigdo familiar. Novos mal-estares Encontramo-nos, assim, em face de um efeito do desenvolvimento da ciéncia que leva o sujeito a se confrontar com novas formas de gozo: novas formas de mal-estar na civilizagao. Aluguel de utero, venda de criangas, trafico de embrides, de material fetal, por que nao clonagem: encontramo-nos em face da neutralizacao da distingo entre o sujeito e o universal. Disso decorre © rebento de problemas éticos. O que foi feito do direito do em- brido? O que fazer dos embrides estocados e dos que decidimos finalmente eliminar? Sio embrides abandonados? Uma nova forma de aborto? Os embrides sio descartaveis? Tém personalidade ju- ridica? Nés enterramos o sujeito, Nés lhe reservamos uma sepultura que © transporta além de sua existancia. O embrido acaba em uma lixeira ou em um incinerador anénimo. A partir desse nada, ele nos interroga, nos olha, e chega a produzir efeitos de pavor. Por mei dele tocamos um ponto de real, Nenhuma narrativa parece poder acolhé-lo. E assim que apelamos ao direito como recurso derradeiro- Como dizia « i lizia com justeza Lacan, foi exatamente no moment em que comee: - q $amos a falar da prevengao do desaparecimento dos elefantes que estes foram mais destruidos, Talvez seja a mesma coisa para a criang: " Py anga. E no momento em que falamos da prevens2° 40 linia de origem: a crianga entre a medicina ¢ a psicansite dos maus-tratos que seu desencadeamento é mais palpavel. Esse tipo de acontecimento mostra os efeitos de um gozo que caminha sozinho, Dispéndio, parte maldita, como talvez dissesse Bataille De todo modo, ultrapassagem de um limite, ‘ Nao foi isso que testemunharam os sobreviventes de um aci- dente de avido nos Andes? Para sobreviver, tiveram que comer os mortos. O horror descrito por eles nao foi o de cortar 0 corpo de um homem, de comer carne humana. O horror, ao contrario, de- corria do fato de que, além do limite, encontramos 0 mesmo, 0 semelhante’, O horror era que o limite pudesse ser ultrapassado. Ocorre o mesmo do outro lado. Aquele que atravessa o limite acaba por pensar que ele nao passa de um artificio. E talvez o mesmo fenémeno que vivem os ginecologistas e os casais no tratamento da esterilidade: eles se imaginam pai ou mie artificiais. Nao se trata de procriagGes artificiais? Sempre existe, contudo, um artificio, no importa o meio utilizado. Toda crianga deve ser o adotado de um desejo. O lago de filiagdo deve ser construido, inventado. Nao existe um lago de antemio, seja ele a validagao biologica ou a validagao histérica. A cada vez ha um artificio. Todo pai é um pai artificial, adotivo. Todos que engendraram uma crianga por via sexual sabem disso. Sio os que adotaram ou procriaram artificialmente que supdem que os outros sio pais mais verdadeiros que cles, Siderados por essa idéia, podem permanecer paralisados em seu encontro com a crianga, que se mantém funda- mentalmente um desconhecido em sua propria casa. Futuro anterior De certa mancira, a crianga ja existe antes de seu nascimento, Quan- do vem ao mundo, seja qual for 6 modo de procriagio, toda uma ? Refiro-me aqui ao que Marie-Jean Sauret desenvolveu em um coléquio em Clermont-Ferrand, em 18 de dezembro de 1993. 41 ‘A crianca no comeércio sexual je de seus anteced\ lentes — lendas, historias, acontecim, 5 lento; ‘Antes mesmo de sua concepgao, muitas — sj Calrg séri mon Ja estivesse IK. Ela é f dela antes que ela estivesse Id. Ela é falada ant Falaram q 5 de fal Nascida por acaso, aqui ou lA, cabe a ela se virar com 9 sey E essa, alias, a difi Assim, a crianga seria, antes de tudo, essa “crianga-ancest, ' caracteristica de certas culturas (Nathan 1985; 1993), que fuaem ma espécie de medium entre 0 mundo presente € 0 alin o entre o real e a divindade, Por meio da crianga mante. . Mei culdade para toda crianga. ss. dela u um mestig ramos um didl deveria sempre ser quem se deveria perguntar © que se quer saber de um estrangeiro, De onde vem vocé? Quem é vocé? Qual é 0 seu nome? Entre os Soninke, por exemplo, uma crianga pode néo ser uma porém um velho que retorna para dizer a palavra diva, logo com 0 outro mundo, E assim que uma crian, recebida como um ser vindo de outro lugar, crianga, Devemos falar com ele respeitosamente, chamé-lo de “avé”, Dize- mos que ele ¢ um jovem velho. Um filho-avé, E ao mesmo tempo sorte e grande azar para uma familia receber uma crianga assim. Uma tal concepgao é util para nossa clinica. Nao reencontramos aqui o enunciado do poeta Wordsworth “A crianga é 0 pai do homem”, que retoma o adagio atribuido a Pla tao? Essa frase reteve a atengao tanto de Freud (1913: 205) quanto de Lacan (1969-70: 144; 1959-60: 33). Tom-la ao pé da letra leva a atribuir 8 crianga uma certa fungao paterna. E verdade que els com sua chegada ao mundo, traz algo que esté aquém dela, que P™ cede sua existéncia subjetiva. A crianga revela que o sujeitoé marcado Por certa anterioridade. Entre os Soninke, considera-se que # crianga ae traz uma mensagem do outro mundo, que deve Ed ecfrada, E preciso aprender com ela, Encontramos aqul a inti? de Prév ‘ 1 ; : 5 Tt que aconselhava apurar o ouvido diante de um rec™ Nascido e traduzir seus gritos 7 experiénd: ! — : “Acredite na minha velhi * ‘J qual for o modo de concepgao, éa partir de uma constelaga° €ssencialmey nte si a iments ingular que o sujeito deve, desde seu nascime 42 Clinica d ecal a psicardlst la origem: a crianga entre a medicina € * P® realizar sua emergéncia. A crianga ensina que o tempo do sujeito é marcado por uma certa anterioridade. “Terds sido aquela crianga”: o futuro anterior, tempo gramatical perturbador, situa 0 enigma do nascimento subjetivo em uma ordem inteiramente diferente do nascimento biolgico. Futuro anterior, tempo do “s6-depois”, nao & sempre a esse mesmo paradigma temporal que esses enunciados se referem? Destino que nao pode ser evitado, fatalidade do que ja foi, o futuro anterior seria o tempo que carrega as incidéncias da infincia — ou, mais exatamente, do infantil — na vida adulta. ‘A crianga real se distingue da crianga como realidade concreta. Accrianca real nio é a crianga tal como ela é. Aquém do sujeito, ela carrega 0 desconhecido. Ela nao é apenas o produto de uma linha- gem. Com sua chegada, traz consigo 0 mistério da encamago. A ques- tho de saber de onde vém as criangas permanece insolivel, e de- finitivamente a crianga constitui um dos modos privilegiados de revelagao do real. Que a crianga seja testemunha do real mais que do originario, que sua existéncia se realize sobre um fundo de nao-ser, pe em questio o proprio tempo da historia da crianga. O sujeito, levado pelo tempo, no tem acesso ao presente. Este se revela, muito freqiientemente, no s6-depois, justamente como o futuro ante- rior. “Wo Es war, soll Ich werden”, eis 0 adagio freudiano (Freud 1933c: 110). “La onde isso era, devo advir”, traduz Lacan (1957: 524). Essa sentenga indica o descentramento do sujeito em relagao : “Quem é, entao, esse Outro a asi proprio. Como escreve Laca quem sou mais apegado que a mim mesmo, ja que, no seio mais consentido da minha identidade, é ele quem me agita” (1957: 524). A questio essencial, portanto, é saber como 0 sujeito se constituira no lugar do Outro que o preexiste. Para Lacan, “a descoberta de Freud éa do campo das incidéncias, na natureza do homem, de suas relagdes com a ordem simbdlica” (1953a; 275), O simbilico ja esta li: “Os simbolos envolvem a vida do homem em uma rede to abrangente, que conjugam, antes 43 A crianga no comércio sexual que cle venha ao mundo, aqueles que irao gerd-lo ‘em i came osso"; que trazem, em seu nascimento, os dons dos astros, guy i" nio os dons das fadas, 0 desenho de seu destino” (ibid, ; 2p Uma questao de dom Voltemos, entao, questo do dom, que faz com que a orang se extirpada de seus determinantes naturais. De fato, ela ndo pode se humanizar sozinha, © Outro tem de responder para que o sujeits possa se ouvir, Como mostra Lacan, é uma resposta que transforma o primeiro grito em apelo (Lacan 1954-55; Lemoine-Luccioni 1989). Nao basta, contudo, que © sujeito esteja no habitat lingua. geiro. Ele precisa também de uma causa, considerada sexul por Freud, que vem fazer furo no mundo linguageiro e produzir um resto pulsional irredutivel. Nesse duplo movimento, o sujeito perde uma parte de si mesmo. E uma versio da divisio do sujeito em razio de sua captura na linguagem e na sexualidade, tal como encontrada na légica da reprodugao, A reprodugao sexuada poe em jogoa divisio pela qual o ser individual renuncia a seu préprio crescimento. Como escreve Bataille em A parte maldita, ele renuncia a seu crescimento ¢ passa para a multiplicagao dos individuos. Transfere algo para 2 impessoalidade da vida. E assim que, para ele, “a reprodugio sexuada é, junto 4 mastigagio € 4 morte, um dos grandes desvios luxuoss que asseguram 0 intenso consumo da energia” (1967: 87). Doadores de gametas. Doadores de embrides. A expressio “dit uma crianga” parece ter se realizado concretamente, ter se reificade por imo se dons curiosos, mediatizados pela medicina ¢ a ae ae Inseminagao artificial por doador. Estranho on 0 que dio esses doadores? Por que 0 fazem? Tro° substincias relativce (i, = nw tancias relativas a filiag3o, de que circulaggo de mercadorias * , Ver a pertine a . elaist Pertnene discus feta subre essa questo por Genevieve DP € Pierre Verdier (1994; 137.95), : jcanilise Clinica da origem: a erianga entre a medicna ¢ 4 PS” ig trata? Quais as leis que regem essas trocas? A transposi¢ao das pul- sdes nao se resume a intimidade! Parece haver restos concretos da sexualidade infantil nos gestos sociais do tratamento da esterilidade, A légica do dom sempre implica um certo desafio, ainda que este seja negado. Tornamo-nos devedores perante aquele que da. Nao devemos devolver aos deuses 0 espirito da coisa? (Bataille 1967: 37-46; Mauss 1923-4: 144-274). Sera que acabaremos embalados por uma guerra de presentes como no potlach dos indios do noroeste americano? Qual é a extensio desse desafio quando se trata do dom de uma crianga? Em qual légica da divida e do dom de gametas o sujeito atirado, seja ele pai ou filho? Como dizia Sao Vicente de Paula: “Temos de nos perdoar do bem que fazemos aos outros” (Delaisi & Verdier 1994: 151). Dom, divida, ganho. Eis af o que entra em jogo em toda histéria de dom de vida, de dom de uma crianga. Sabemos que os pais, inconsciente ou mesmo conscientemente, podem esperar que os filhos devolvam parte do que lhes foi dado. Essa historia, freqiientemente secreta, pode se transformar em arma, chantagem, tomando formas particularmente cruéis toda vez que a questo sobre a revelacao dessa pretensa verdade acerca da filiag3o se apresenta. O dom gratuito é uma ilusio, Alids, pode-se dar a vida? Ha ai um ponto de real, um limite a propria questao do dom. O dom de gametas influencia o romance familiar. Os doadores de filiagdo sao também doadores de fantasias, De todo modo, qual- quer romance familiar poe em divida a filiagio, Qual &, entio, a incidéncia de uma procriagio concretamente realizada ao largo da sexualidade? Destino pulsional mais que romance familiar, reen- contramos a substituigao entre objetos parciais definida por Freud pela equacio fezes — penis ~ crianga ~ dinheiro — presente, Nao encontramos algo semelhante com o dom de drgaos? Aque- le que doa nao pode conhecer a identidade daquele que recebe. E 45 A crianga no comércio sexual quem recebe desconhece quem doou. Isso, contudg quele que recebeu o orgio de um outro Para sob; a fantasmatica particular. Penso nos P 1 Ni j iny que a — o em uma cen acien 3 fi fe transplante renal, que reencontram, com o drgio de um 0 a sexual e a possibilidade de gerar uma crianga, 5 com éncii utr poténci 0,4 Um enigma irredutivel Mesmo assim, subsiste uma parte de mistério. As medidas de tr, tamento da esterilidade nao conseguem mascarar o irredutivel en . ma da origem. Esse pode permanecer oculto pelo aspecto ae do parentesco biolégico. A questao de saber de onde vémascriana continua insolivel, nao assimilavel pelos relatos sobre a filiagio, £ assim que a paixio das origens leva ao mito. Os mitos de filiagio séo multiplos na cultura e parecem ultre passar largamente tudo o que a tecnologia médica péde inventar até agora, Como testemunha José, a0 revelar que so hé pai adotvo Ou Atena, nascida do pai. E esse, alids, o argumento que ela utiliza para defender Orestes no processo que se seguiti ao matric de Clitemnestra para vingar Agamenon: “Darei meu voto 4 Orestes, ovo os homens em tudo ede pois nao tive mie para me gerar, apr‘ 1, Sou totalmente a favor todo meu coragao, exceto para me casal do pai. Nao tenho consideragao pela mort matou seu marido, o senhor da casa” (Esquilo 458 a. ° Se Atenas saiu armada da cabega de Zeus, 0 deus parturie Dion{sio saiu de sua coxa, Ele é também esse deus que fer irmios eirmis da barriga de Cronos utilizando umm vor tamos muito além de todos os métodos imagin: esterilidade, que se contentam com imitar ou pro! © nascimento é uma ruptura, Corte irrepardvel origem para sempre faltante. Dessa separaga0 P sujeito se recupera totalmente, Somente 0 desejo P uma tentativa de redescoberta dessa primeira perd2- 46 ce Clinica da origem: a crangs entre meicin® apior “) ], separa es a ;meira, Me rimeira, poss ode €§ O processo de filiagao seria, assim, a prova de uma integragio em um sistema simbdlico redescoberto na ruptura introduzida pelo nascimento. Tendo havido o nascimento biolégico do organismo, resta ao sujeito vir a ser. Tendo nascido de um pai ou de uma mic, ou de um pai desco- nhecido, e mesmo de uma mie desconhecida, 0 sujeito nao deixa de ter a chance de vir a ser. Tudo dependeré do que ele faz, e no so- mente de como o fizeram, Como enfatiza Colette Soler, a crianga, antes de ser filho bio- logico de seus pais, é filho de um significante. Nao se pode confundir o pai com o Nome-do-P. “Pois o Nome-do-Pai, que Jacques Lacan extrai do mito edipico, nao é um pai, e sim um nome” (Soler 1985: 41). E um significante que pode ter efeitos apesar da auséncia do pai. Pode inclusive padecer de sua presenga. E melhor a falta de pai que um pai que barra a fungao paterna. O sujeito, desse modo, é também filho desse significante legis- lador do desejo e do gozo do Outro que é o Nome-do-Pai. Sobre o efeito desse significante, como mostra Soler, nao se pode intervir nem de fato, nem de direito, O que nao impede que se possa esperar que o sujeito tenha o acaso de um bom encontro com algum adulto, pai ou substituto, que lhe empreste o desejo ¢ o faga viver: “De qualquer carne que nasga, 0 sujeito nao é nada mais que o adotado de um desejo, com a condigao que nao se reduza ao primeiro objeto que foi” (ibid.). AT A crlanga no comércio sexual

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