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4, ALCUMAS QUESTOFS A RESDETO DA PREVENCC! A propria idéia de que possamos fazer prevengdo em matéria de distirbios psiquicos pode parecer contestivel, ¢ so numerosos agueles que se apressam em dizé-lo. De fato, no se diz suficientemente que € somente na poste- rioridade que o sintoma se articula e ganha sentido? E que o sinto- ma deve ser respeitado, na medida em que ele porta a verdade do sujeito? E que qualquer tentativa de intervir sem que haja uma de- ‘manda € uma intervengo destinada ao fracasso? Eu gostaria, antes de ir mais além nessa delicada matéria, de dizer como me parece possivel respeitar essas diferentes objegdes, ‘odas vindas da teoria psicanalitica, sem que no entanto elas se tor nem Verdadeiros obstaculos. A Pevengio ndio consisle em anfecipar a aparigio de um siloma 7 de tudo impea ’ CONCEPSAO freudiana de posterioridade vem ane iibedir uma interpretagiio suméria que reduziria a concer iti f " yando em "altica da historia do sujeito a.um determinism linea lev G iste, DF ‘lo waduzido por Regina Orth de Aragio,psicanalist 172 Accainics erect [NASCIMENTO DO HUSANO conta unicamente a ago do passado sobre o presente. Dentro de tal perspectiva, que reduziria ao passado infantil 0 conjunto das agdes e dos desejos humanos, tudo se decidiria nos primeiros meses da vida, ou até da vida intra-uterina... 0 que alguns no deixam de defender. Ora, a posigdo freudiana é muito mais precisa: ela postula, pri- meiramente, no ser todo o vivido que € remanejado a posteriori, mas somente elementos que nao puderam ser ligados a uma significancia: cla nomeia af o acontecimento traumético. Sustenta também que esse acontecimento que ficou fora do sentido seré remanejado apés um segundo acontecimento; este teré com o pri- meiro apenas algumas semelhancas ou analogias e ter ocorrido apés uma maturagio ou uma mudanga de circunsténcias, que permitem a0 sujeito aceder a novas significagdes. Nessa perspectiva, € somente 0 segundo acontecimento que dé ao primeiro seu valor patogénico: “uma lembranca € recalcada, que 6 se tornou traumitica a posteriori”. Na andlise proposta por Freud do sonho do homem dos lobos,? ele insiste sobre sua relagdo com a cena primitiva: 0 homem dos lobos s6 compreendeu 0 coito... “na €poca do sonho, aos quatro anos, ¢ nao na época em que ele o obser- vou. Com um ano e meio, ele recolheu impressdes que pode com- preender s6 depois, na época do sonho, gragas a seu desenvolvimen- to”, isto é, ao aparecimento de suas prdprias sensacdes sexuais. AS- sim, € 0 sonho que confere retroativamente & cena primitiva uma eficdcia de posterioridade, A idéia de que nao € no primeiro encontro do sujeito com um acontecimento que o trauma se produz, ¢ de que € preciso um segut- do encontro, um segundo acontecimento, em favor do qual 0 primei- ro ganhard sentido © organizard retroativamente o sintoma, é algo que me parece aplicdvel nao somente A questo traumética, mas & questo do préprio sintoma. ___Esta simples precistio me parece suscetivel de esclarecer a n0- gdo muito na moda de “resiliéncia”, que exprime o fato da experién- 2. Em francés 0 verbo entendre, pode significar tanto “ouvir” como “entender”. (NT) AUCUNAS QUESRS 4 HSFETO Dx rarvencig 173 cia comum de que 08 sujeitos atravessam muito diferentemente as provagdes da vida: alguns sesaem indenes de situagdes apocalipticas, enquanto percursos de vida muito ordindrios podem esconder gran. des sofrimentos subjetivos, Como considerar tal constatagio? Se o Sujeito € capaz de en- contrar nele mesmo bad Tecursos subjetivos permitindo-lhe se cons- truir ou se reconstruir nas piores circunstincias, nés podemos pen- sar que ele est no tempo um do trauma, aquele do primeiro encon- tro que nao inscreve o sintoma, Ao contrério, aqueles que parecem naufragar num fino fio de 4gua de uma existéncia comum, esto necessariamente no tempo dois, mesmo se o tempo um nos escapa completamente. Colocada dessa forma, tal abordagem ¢ interessante porque ela permite dizer que no possfvel antecipar a maneira pela qual 0 acontecimento — dependendo de ser ele primeiro ou segundo ~ serd tratado pelo sujeito, isto é, permite dizer que nfo sabemos nunca de antemdo 0 que um acontecimento desencadearé num sujeito dado. Nio é portanto como uma antecipacdo em relacdo & apari¢zio de um sintoma que é possivel pensar a questio da preven¢ao. Se cedéssemos a tal tentagio, seria preciso adotar uma posi¢ao “psicologizante” e normativa a partir da qual nés poderfamos saber ~ antecipar, em referéncia necessariamente a uma norma — 0 que € Suportavel do que nao 0 é, antes mesmo que © sujeito tenha tido tempo de articular sua propria resposta. Por outro lado, esta abordagem nao exclui que umaescuta atenta organiza imediatamente um lugar para a significdncia que tal acon- tecimento toma para um sujeito. Pensamos entio estarmos sempre instalados no momento em que alguma coisa se define para 0 sujel- 0, isto 6, no tempo dois. Por exemplo, para uma jovem que S anoréxicas em sua adolescéncia, o fato de ter 4 confrontard necessariamente a uma situag: de alimentar-se/ser alimentado, a partir doh tomou. A experiéncia do bebé, ainda que tempo 1m para O ofreu de dificuldades de alimentar seu bebe o complexa para ela, @ lugar da mae que ela se bebé, 174 Acculsica maucoce: © NasciveNto 0 mLMANO ‘vem ento marcadamente no tempo dois na troca com sua mie. Se 0 ham a mame nessa médico ou a equipe da creche, que acompan! aventura, sfio sensiveis 4 complexidade da situagao, sem_no entanto saber de antemio 0 que isso vai fazer a esse bebé e & sua mie, nés temos entio uma chance de entender o que vai se configurar. Por que podemos pretender que s¢ trata aqui de um acompanha- mento de prevenga0? Primeiro, porque a escuta implica que nao se sai~ ba de antemio o que vai se produzir, mas que estejamos prontos para ouvi-lo, 0 que abre um espago de liberdade para o sujeito. E em segui- da, porque, se por exemplo dificuldades aparecem efetivamente na al- mentagio desse bebé, 0 que conta é que estejamos ali, ao aleance da mie, de maneira que ela possa vir nos formular sua questo. ‘A posigao de escuta comporta a0 mesmo tempo uma implica- do subjetiva e uma ndo intrusfio que alguns profissionais sabem intuitivamente muito bem adotar, mas ndo todos. E a razio pela qual a posigfio de escuta deveria sempre ser trabalhada em equipe, em reunides clinicas onde os profissionais possam trazer 0 que eles es- cutam, para terem uma possibilidade de entender. E provavelmente na capacidade e na possibilidade de partici- par de tais reunides que a qualidade do trabalho de acompanhamen- to de uma equipe se desenvolve, seja ela uma equipe de acolhimento ou uma equipe de tratamento. A prevencdo nao é fazer desaparecer o sinfoma, ainda que... De maneira muitas vezes caricatural, a psicandlise defende a idéia de que a abordagem do sintoma deve ser respeitosa e néio normativt, isto €, sem buscar a todo preco fazé-lo desaparecer, mesmo considera” do que, se 0 sujeito se livra dele, vai ser melhor para ele. ___ Esse paradoxo € somente aparente, pois ele se apsia sobre ® idéia de que o sintoma é construfdo de tal maneira que ele comporta do mesmo tempo um impasse para o sujeito, e também um dizer Wwe de outro modo fica indizivel para o sujeito. ALGUMAS QUESTORS A RESFEITO Ds rREvENciO {75 Retomemos nosso exemplo do bebé com sua mae que fora anoréxica: 0 fato de nfo se alimentar corretamente representa mani- festamente um impasse para ele, e ao mesmo tempo esse sintoma é a \inica maneira que sua mie e ele encontraram para evocar esse capf- tulo doloroso da hist6ria deles: nao € fécil ter de ocupar o lugar da mie que alimenta, quando se foi uma jovem anoréxica, em conflito aberto com sua prdpria mie... 0 bebé é literalmente tomado dentro de uma cadeia significante que nao é a sua, e é a esse titulo que as vezes pode-se dizer que a crianga é o sintoma de seus pais... Mas, de fato, em uma situago assim no hd nada a resolver, e menos ainda a fazer desaparecer, ainda que... estejamos todos de acordo ~ inclusi- ve a mie — sobre o fato de que nés prefeririamos que 0 bebé se alimentasse bem. Para isso, um tnico caminho parece possivel: trabalhar para que mie e bebé encontrem um meio de dizer de outra forma 0 que eles tém a se dizer. Isso equivale a dizer que o espago de escuta evocado anteriormente deve acolher o dizer da mie e do bebé, per- mitindo a eles captar aquilo dentro do que os dois estiio tomados... experiéncia prova que quando isso possivel, com uma escuta aten- ta e benevolente, o bebé pode se liberar do lugar de ser o suporte desse dizer, e a mie pode trabalhar sua questo, aqui ou alhures. Ainda uma vez, isso nao se dé sem um trabalho clfnico perma- nente para os profissionais, para poderem se colocar nesse lugar que acolhe um dizer sem interpretar répido demais ou sem se defender. A\ prevengio no consste em anfecipar uma demanda, mas em permite sua elaboracio A prevengdo nfio é adiantar-se a uma demanda, mas permit Sua elaboragdo: um programa inteiro! _ A questiio da demanda — ou auséncia de den lias com dificuldades € um dos temas de preocup’ ©quipes de acompanhamento. manda ~ igo maior das 176 A cuinica earcoce: 0 NASCIMENTO DO HUMANO Para abordar essa dificil questo, uma das principais apostas me parece ser: quem demanda? Pois muito frequientemente percebe- se que sto os profissionais, ou 0 entorno ~ avés, professores, ¢ até ‘mesmo 0 médico — que se preocupam a respeito de tal ou tal crianga, enquanto seus pais, tnicos vetores possiveis de uma consulta, pare- cem niio se mobilizar. ‘Vem entdo esse tempo dificil que eu chamo de elaboracdo da demanda, que corresponde de fato a uma subjetivacao da questo pelo pai (ou mfe), em vez de ela Ihe chegar pelo exterior, enunciada pelo outro, e por isso intrusiva, desencadeando muitas vezes reagdes de defesa e de denegagao, qualquer que seja sua pertinéncia. Un guia prdlico em tres tempos ‘Ao longo de anos de pritica em Protegao Materno-Infantil, or- ganizei, em colaborago com os médicos que cuidam da primeira infancia, um guia pratico em trés tempos, destinado a Ihes dar refe- réncias nas situagdes em que com maior freqiiéncia eles sé tém a intuigdo clinica e 0 s6lido bom senso para sustenté-los, desenvolvimento desses trés tempos deveria esclarecer 0 médico sobre a conduta a adotar e particularmente sobre a oportuni- dade de introduzir ou no uma consulta especializada. Esse procedimento, ainda que puramente empfrico, leva no en- tanto em conta processos que estéio em aciio na situag’io de entrevista e especialmente leva em conta a situagdo transferencial que se dé ® revelia dos participantes em presenga : o médico e seu paciente. Esses tempos devem ser compreendidos como tempos l6gicos correspondents a uma posigo especifica na relagdio, desenvolven~ do-se segundo uma ordem preestabelecida. Por outro lado, o nime- To € a duraciio das consultas ficarao a critério do médico e variarde para cada caso. ALGUMAS QUESTORS 4 RESPHTTO Ds PREVENCIO im Drimeiro tempo Esse tempo corresponde a situagio classica de consulta médica: 0 paciente expe uma dificuldade, um sofrimento. O médico identifica 0 sintoma e prescreve um tratamento acompanhado de certo ntimero de conselhos préticos. O médico est4 aqui no papel e na fungao para os quais ele foi longamente formado: ele esté ali para saber e para fazer ‘Tomemos uma situagio freqiiente em consulta pedistrica: em visita de acompanhamento, uma mie queixa-se de que seu bebé “no pega bem” o seio ou a mamadeira, A configuragao mais freqilente ¢ aquela na qual o estado do bebé nao preocupa particularmente 0 médi- 0, pois ele parece receber o que precisa, apesar da queixa da mie. O médico faz ento o que ele sabe fazer muito bem: ele avalia o estado do bebé, afasta qualquer inquietude em relagao a possiveis doengas, e dé em seguida alguns conselhos & mae, a maior parte das vezes de modo a deixar o bebé regular livremente seu apetite, expli- cando 4 me que nao € necessério preocupar-se, € que “ele certa- mente nfo se deixard morrer de fome”. Ele pede em seguida A mie para voltar uma ou duas semanas depois para dizer como as coisas evolufram. Hip6tese favordvel: A mie nfo insistiu, ela consegue suportar © apetite varidvel de seu bebé sem muita angiistia, e 0 bebé recome- $4 pouco a pouco a comer. A mie — € 0 médico ~ ficam satisfeitos. Hipstese desfavorivel: nio ha melhora: 0 bebé continua a re- Cusar 0 alimento, a mae forga-o ¢ sua angtistia aumenta, 9 Depois de algumas consultas nesse modelo, é preciso admitir Que estamos diante de um impasse: por uma razJo que NOs escapa Qualquer que seja o bom fundamento dos conselhos do médico, @ Me mostra-se incapaz de segui-los. ey E muitas vezes nessa articulagiio precisa que @ situagao se bloqueia: 0 médico 6 formado para saber ¢ para fazer, ¢ suporta mal essa resist@ncia que 0 coloca em situagdo de fracasso ¢ de impotén- Cia, Freqilentemente enti ele insiste, somando sempre conselhos, Melhores uns do que os outros, mas sempre igualmente ineficazes. 178A caivica enacoce: [NASCIMENTO DO HUMANO Se isso nao fosse vivido dramaticamente, o trio poderia ser c6mico: © médico insiste com a mie, que insiste com 0 bebé, que se mostram tGo recalcitrantes um como 0 outro, € nada avanga. Depois de um tempo, o médico comeca a pensar que aquele nao € um bom dia para ele, logo que vé a mae na sala de espera. E por fim ele declara que nao é de sua competéncia e manda a mie ir ver 0 psi. que € totalmente bem fundado, salvo que € provavelmente cedo demais e isso se traduz por intimeras indicagées de consultas especializadas que, ou nao se realizam, ou nao dio em nada apés al- guns encontros, qualquer que seja a competéncia do psi consultado. Segundo fempo Quando 0 médico verificou bem que as coisas nao avangam, ¢ aqui que propomos a ele uma outra maneira de agir. Esta se inspira naquilo em que nés, os psis, somos formados para saber fazer: ado- tar uma posigiio na qual ndo é 0 médico que sabe, mas sim o sujei~ to que sabe, embora a sua revelia, Nessa configuracio, 0 médico € somente 0 interlocutor que serve como revelador para esse saber que o sujeito pode entio enunciar, Alguns dirdo que isso é convidar os médicos a brincarem de psi. A experiéncia e as trocas com os médicos me provaram que no é assim, € que se nés nos compreendemos bem, nao 6 esse o meu propésito. Esse segundo tempo é menos misterioso do que parece, ¢ 0S bons clinicos sabem intuitivamente fazé-lo muito bem: trata-se sim- plesmente de suspender nosso saber sobre a situagdo. © bebé nio mama 0 suficiente, ao gosto da mie, e isso nio parece grave para 0 médico; entretanto, é preciso aceitar entender que, por uma razio que escapa ao médico, isso parece grave para a mae. A pattit dat, 0 médico poderd perguntar 4 mae, com muita humildade, a razio pela qual isso parece tio grave para ela. Ao abrir esse espaco de palavra, j4 estamos levando em conta © afeto da mile — sua anguistia, por mais irracional que seja— e ouvi mos 0 que ela tem a dizer, prontos a ouvir o que eu chamo a verdade ALGUMAS QUISTOES 4 RESFEITO D4 REVENGIO 179 das mées, que, € claro, nfio recobre nunca a verdade cientifica, a verdade do médico! Se realmente formos bastante humildes e respeitosos, as mies serflo capazes de nos dizer coisas surpreendentes, mas dificeis de ouvir, porque com_freqiiéneia essas coisas ferem nossa concep¢do racional. Muitas vezes, nessas circunstancias, as mes nos fazem saber que a inquietude delas funda-se numa crenga, num aconteci- mento ocorrido na familia — bebé morto ou doente entre os préximos —ou ainda tal ou tal episédio de sua prépria infncia, que elas acham gue vai voltar, como uma fatalidade do destino. Diante desse tipo de afirmacio, 0 médico deve sobretudo evi- tar o seguinte: ~ banalizar: isso nao é nada, isso no tem importancia, isso acontece com muita gente, isso nao é grave, ete. - desqualificar: no € isso, a senhora est4 vendo que isso nio tem nenhuma relagao, etc. e por fim: - interpretar: € por isso que seu bebé nfo come! Em suma, 0 médico deve se limitar a acolher com benevolén- cia o saber da mde e pedir a ela para voltar a vé-lo para saber como a situacdo evoluiu. Hipétese favordvel: de uma maneira que parece um pouco ma- gica, a coisa funcionou: a mie nfo sabe dizer por que, mas ela esta melhor, o bebé come ou dorme, ou ainda, mesmo se a dificuldade ersiste, ela parece menos importante para a mie: se no houve Sedacizo do sintoma, houve ao menos sedagdo da angiistia materna. Apesar das aparéncias, niio ha af nada de magico. O que provavel- Mente aconteceu é que o bebé que preocupava a mie nio era o bebe do Presente. E a mie torna-se, de certo modo, capaz de vé-lo. E 0 que eu tenho 0 habito de chamar de descolagem imagindria. Na dindmica es- Pecular que descrevi no primeiro capitulo, é como se fosse a representa S40 inconsciente projetada sobre a crianga que tivesse sido modificada, Hipétese desfavorivel: 0 bebé niio melhora, € a mie despeja na consulta um discurso invasivo e incessante, mas que parece no “azer a ela nenhum alivio. 180A caiica enecoce: 0 NASCIMENTO DO MANO E sem dtivida desaconselhavel deixar assim uma mie se es- tender em falas que ndo podem nem ser retomadas nem entendidas, O momento chegou de se dizer que 0 que podia ser feito no enqua- dre do acompanhamento chegou ao fim, e que doravante é necessé- rio inoduzir uma consulta especializada. Terceiro tempo ‘Trata-se aqui do acompanhamento da elaboragao da demanda, que deve_sobretudo visar 0 que eu chamo de subjetivagdo da ques- tao. Trata-se de preencher 0 hiato entre 0 momento em que nds, 0s profissionais, percebemos e designamos a dificuldade ou o estado de sofrimento, e 0 momento no qual o sujeito vai poder apropriar-se dele, fazendo dele sua propria questio. Hé af um tempo subjetivo irredutfvel, que € dificil, mesmo im- ossivel, de avaliar de antemo. O que importa é se dar conta de que, no momento em que a dificuldade € enunciada pelo médico, hé uma ¢fragio. Esta ndo opera sobre um terreno virgem, pois, na maior parte do tempo, 0 sujeito nfo ignora sua dificuldade, ele somente quer ignoré-la, Esta efractio pode produzir diferentes resultados: de inicio. ne nhum. Nenhuma mobilizagao aparente. Ou entio, negagdo e ruptur- ° Pai ou a me no voltam & consulta ou evitam 0 médico. FE nesse tipo de circunstancias que parece importante saber esperar, mas (a" — iar uma escuta atenta, se for possivel continuar scone mento. E durante © encaminhamento realizado com a escutt 6° me os of ae @ mie terminaro por encontrar uma formulag3® Sua, € poderdo levé-la a quem de direito. A subjeivagio da demanda Tomemos 0 exemplo de Sel leses, muito viva e desperta, Sua iu que a filha nao receberia a my : 8 ima, uma bonita menininha d | . 3 ina, dec mae, de origem marroquina, m dit ‘edria que el? sma educagiio autoritiria a! ALGUMAS QUESTOES 4 RESPEITO Ds PREVENCKO 181 mesma sofreu durante sua infancia. Ela entio se interpde entre Sel- mae seu pai, que tenta em vio colocé-la na linha. O resultado é que Selma no reconhece qualquer limite, o que niio demora a criar difi- culdades para ela na creche que freqienta. Entretanto, qualquer ar- gumento relativo aos limites a dar a Selma é inaudivel para esta mie. Para ela, sua filha goza de uma liberdade invejavel, eis tudo! A situacdo piora e Selma comega a ter dificuldades crescentes para adormecer, e finalmente distirbios claros do sono aparecem. O acompanhamento que a equipe da creche tinha sabido fazer enquan- to esperava que alguma coisa pudesse se tomar audivel para esta mae mostrou-se recompensado: Selma e sua mie finalmente consul- taram em razo dos distirbios de sono ¢ uma terapia mée/crianga pode ser iniciada mais ou menos um ano depois. Em outras ocasides, o antincio da dificuldade € vivido como muito ameagador, porque isso mostra muito diretamente 0 que 0 sujeito se esforgava para manter afastado, e entdo pode haver ruptura ou evitaga0 da relacdo. O pai ou mie nao voltam mais ou nfo dio mais noticias. Nao se deveria concluir dai, com precipitagio, que teria sido melhor calar, A experiéncia prova que o enunciado faz sempre Seu caminho, ilo 6 raro fiear sabendo que tal pai ou me, que néo veio mais & nossa consulta, acabou indo se consultar em outro lugar, ¢ com suces*9- O exemplo de Angélica é particularmente esclarecedor. eet caé uma menina de seis anos que sofreu aos 18 meses um tntin AE craniano extremamente grave durante um acidente de tinsifo. = © ejetada do carro que sua me dirgia, que capotou warns Veies (Oe de ter derrapado sobre uma placa de gelo. AMP ST a om lica, que foi trepanada varias vezes, guar i resibeals nea reanimagdo, uma hemiplegia esquerd © Sea To este G40 as quais é dificil discernir em que medida eles do psiquico de Angélica quando de nosso encontro. ‘ i 10 médico e re ‘Tudo o que poderia ser feito no plano medic A A asco feito. A psicdloga do servigo que @ tats PETE TY Tuma psico- quadro complexo tem uma dimensio relaciont! © terapia poderia ser benéfica para Angélica © sua educativo foi 182A cuca PRECoce: © NAscimENTO DO HUMANO B assim que elas chegam a consulta: Angélica ¢ uma menini- nha ecolélica, que apresenta uma evitagdo do olhar € parece com- pletamente ausente da relagio. Pesando minhas palavras, eu digo & mie o quanto eu acho formidaveis todos os cuidados que foram ofe~ recidos a Angélica até o presente, e o quanto me parece apropriado que “nos ocupemos de Angélica como menina agora”. Apesar da prudéncia de minha formulaciio, a mae — que tinha uma grande culpabilidade em relagdo a Angélica — vive com dificul- dade minha proposicao ¢ pretextando um trajeto longo demais e ho- nordrios muito caros nao volta mais. A psicéloga do servigo fica deso- ada. Durante varios meses, nao tenho mais noticias. Entdo a psicélo- ga me telefona para me dizer que afinal Angélica e sua mae consulta- ram um psiquiatra infantil mais préximo do domicflio delas. Aproximadamente um ano mais tarde, a mae me telefona, sem comunicar ao servigo, € me pergunta se aceito rever Angélica, a te- rapia iniciada no tendo tido continuidade. Assim Angélica péde, depois desse longo percurso, realizar um trabalho cujos resultados foram muito répidos: a ecolalia reduziu-se em favor de uma emer- géncia de linguagem subjetivada, a evitagdo do olhar desaparecev, ¢ Angélica est muito mais presente na relagao. Ela comega até mes- mo a abordar as aprendizagens formais. Esses resultados répidos so certamente devidos ao fato de que a sindrome autista de Angéli- ca era secundaria: 0 desenvolvimento de Angélica era satisfatério até os 18 meses, no momento do acidente. A historia de Angélica é exemplar de como uma demanda pode ter necessidade de fazer muitas voltas durante muito tempo, antes de Poder se colocar, ¢ sobretudo de ser dirigida a alguém. Toda a di- mensio da transferéncia esta em jogo aq fax um ean ba alien, pis a experiencia prova que quando raramente consultam, Pot Anonimo “ya ver no. CMP",? as families Yer alse qua ele CG poe ay ae ae ee aPomadity que podera ajudar a familia, ™ s » a demanda se completa. 7 owro- _ Hecviigi de Centre Médico-Psychologique ~ Centro Médico-Psicol6gice ALGUMAS QUESTOES 4 ResPerTo Ds PazveNcio 183 O que indica a importincia dos encontros entre profissionais da prevengiio e 0s que se ocupam dos tratamentos, ¢ a criagdo de lugares ¢ de momentos nos quais eles possam ter trocas em relagao aos acompanhamentos em comum, Por vezes, tais lugares existem. Outras vezes, nao. E preciso entiio saber deixar suas paredes e ir a0 encontro de nossos parceiros institucionais. Tais organizacdes “em rede” so provavelmente as melhores garantias — e mesmo as tinicas — para que um trabalho de prevengdo eficaz possa acontecer. O trabalho de parceria com os pediatras e com os profissionais da HA alguns anos estamos tentando, com alguns colegas, uma experiéncia de encaminhamento em comum entre uma abordagem psicanalitica da psicopatologia do lactente e as priticas dos médicos que animam os lugares de vida e de consulta da primeira infaincia. Com efeito, a vocagdo de prevengio da PMI na Franga torna essas consultas e esses lugares de vida aptos a oferecer ao lactente € a0 seu entomo uma grande qualidade de escuta e de intervenciio, condicdes difi- ceis de se reunir em outros enquadres, hospitalares ou de consultorios. Assim, além de nossa participagiio direta ao lado das equipes de prevencao, com um grupo de colegas imaginamos organizar ages de formagdo destinadas aos médicos, 2 luz de nossa experiéncia ad- Quirida sobre o terreno, tendo um objetivo preciso: a prevengio pre- quena. ente e das problemiticas coce dos distirbios relacionais no lactente na crianga pe Com efeito, nosso conhecimento do lac freqiientemente encontradas pelas equipes médicas permitiram-nos elaborar e ajustar, em intengao deles, 0 conterido das for Esse procedimento apoiava-se sobre tervenciio rapida e pertinente, logo na aparigio dos primeiros sinais ar ow ao me- rmagoes. a hipotese de que uma in- de sofrimento precoce, tem melhores chances de bloque: 184A cuinica PRecoct: 0 NASCIMENTO DO HUMANO nos de alterar a evolugio dos distirbios. Ela se apdia igualmente so- bre a realidade institucional atual da Franga: os atores da Protegao Materno-Infantil so muitas vezes as primeiras testemunhas das difi- culdades precoces encontradas por uma mie e sua crianga. Por esse fato, a acuidade de seu olhar e sua capacidade de discernimento mos- tram-se capitais para a instalagao de ages de prevencdo precoce. ‘Assim, esta colaboragao visa dar aos profissionais da primeira infancia nio somente os meios de reconhecer 0 aparecimento dos distirbios, mas também, em um ntimero significativo de casos, de reagir de maneira apropriada, 0 que por vez pode ser suficiente para modificar 0 quadro. Em outros casos, a dificuldade encontrada ul- trapassa o limite do que pode ser tratado in situ: é preciso entio acompanhar as familias para um tratamento especializado. Esse ultimo ponto mostra-se muitas vezes diffcil, nio somente porque a demanda necessita uma elaboragfio, mas também porque 0 didlogo entre equipes de prevengio da primeira infancia e equipes de satide mental nem sempre é facil. Assim, nosso trabalho visa tam- bém a criacdo de lagos interinstitucionais de colaboragio em vista de uma prevengao precoce. A reskzagio de agées para a formagio ie ie este formagio Profissional continua na Franga perm série de programas jo dos profissionais da primeira inffincia wm oe cone as CUS conteidos foram pensados em fungto de nto obtido da pratica, a I pinurama destinado aos médicos de PMI esté entre aul Os pest tor sucesso varios anos, Seu conteido aor € institucionais préprios a fungiio de médico 4° as ALGUMAS QUESTOES 4 RESPETTO DX PaEVENCIO 185; O objetivo principal dessas formagées é 0 de tornar o médico sensivel & dimensao relacional de sua clinica quotidiana, dificil- mente reduzivel a uma abordagem puramente somitica, ¢ a tornd- Jo apto a conceber seu papel como implicando uma prevengio pre- coce dos disttirbios nascentes da personalidade no lactente e na crianca pequena. Varios anos de experiéncia na troca com os pediatras e outros profissionais da primeira infancia nos permitem delimitar as lig6es seguintes: 1) Parece que esse compartilhar de conhecimentos conduz num primeiro tempo a uma modificagdo do olhar dos profissionais sobre as problematicas apresentadas pelos bebés e pels crian- gas pequenas em situagdo de consulta pedidtrica; 2) Emum segundo tempo, essas trocas fornecem-Ihes referenciais, que permitem nao somente identificar a maior parte dos sinais de sofrimento precoce, mas também intervir, de maneira per- tinente, em numerosas situacdes da clinica habitual; 3) Enfim, parece que uma melhor compreensiio da natureza das dificuldades facilita também 0 didlogo com aqueles que de- vem ao final, tomé-los em tratamento, isto é os profissionais de satide mental. Isso se traduz na prética por uma procura e uma constituigio mais facil de parcerias de trabalho, tanto no interior das equipes como com os profissionais de outras instituig6es. O trabalho nas inshluigbes da primeira infin lagem analitica da clinica da © campo de agiio de uma abord a Primeira infancia com as equipes de profissionais que povoam as istituigdes é imenso. Um dos ensinamentos fundamentais que eu retiro de meu pereur~ situagdes 80 € que © saber especffico do terapeuta ¢ transportivel para 186A cae precoce: 0 NASCIMENTO DO HUMANO fora do enquadre do tratamento clissico, e que ele pode ser coloca- do a disposigio dos profissionais da érea médica e educativa que atuam com as criangas em diferentes instituic6es. ‘Além das intervengées leves e répidas, na clinica quotidiana, desencadeadas a partir de sinais muito discretos e com a cumplicidade das equipes de acompanhamento, e que obtém na maior parte das vezes resultados répidos e satisfat6rios, ha também formas miltiplas de atendi- ‘mentos indiretos ou institucionais que é possfvel organizar ou promover. Com efeito, um dos métodos praticos mais freqiientemente uti- lizados € aquele que consiste em trabalhar com os profissionais que se ocupam da crianga no dia-a-dia, ou mesmo com o médico que a acompanha. Esse dispositive que eu chamo de “por pessoa interme- diaria” — porque na maior parte das vezes nfo encontrarei nunca a familia — consiste em encontros regulares de reflexio sobre 0 que esta em jogo entre o profissional e a crianga ¢ sua familia. Esses encontros se esforcam sempre em chegar a uma conduta a ser segui- da pelo profissional, e no minimo, que permita a ele ter uma visio ampla da situago e uma representacao do lugar que ele ocupa em relagdo a dificuldade que ele acompanha. Esse dispositivo pode ser aplicado nas instituigdes as mais va- riadas: ele exige poucos meios suplementares mas sobretudo um estado de espirito: que a reflexao sobre a pritica faca parte das obri- gagdes do servigo! Em relago a isso, a conviccdo do responsive pelo servigo ¢ sua capacidade para sustentar esse dispositivo set sempre decisiva para 0 engajamento de uma equipe nessa via. Quando é este 0 caso, esse dispositivo permite a um sé psicélo- g0 trazer ajuda a numerosas criangas, sejam elas acolhidas em ber Sarios, creches, servigos hospitalares, creches domiciliares ou ainda com suas mies, nos centros maternais ..5 Para concluir, gostaria de evocar o caso das escolas maternais, ates ee cada vez ea Solicitadas para acolher criangas cada vet » * com professores cuja formacio nio os prepara necessatia- 5. De atendimento as miles 6. As escolas t8m accito, cada vez las tém accito, cada ver mais, eiangas de dois anos de idade. AUGUMAS QUESTORS 4 RESPEITO DA PREVENCAO 187 mente para abordar o lugar que eles sdio no entanto chamados a ocu- par. A historia de Céline na terceira parte desse livro é uma boa ilustragiio disso. Aqui também, os lagos funcionais entre equipes pedagogicas e equipes de tratamento sao sem diivida desejaveis, so- bretudo por meio das “avaliagées” ditas de maternal, praticadas pe- los médicos de PMI com as criangas de quatro anos, no contexto das escolas maternais. Essa avaliagao constitui um momento de encon- tro que pode ser decisivo para numerosas familias, desde que seja bem trabalhada, 0 que nem sempre € 0 caso.

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