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REINKENTANDO * ASMIBERDADE A abolieao la> escravatura "(fo Brasil PIP Antonio Torres Montenegro 137. EDICAO Antonio Torres Montenegro graduou-se em Filosofia pela Universidade Catolica de Per- nambuco em 1974. Mestre em Historia pela Universidade Es- tadualie Campinas em 1983. Professer’do Mestrado de His- toria e dé.Colégio de Aplica- gao da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do CNPq e FINESP. Autor do livro Aboligao (Atica) e, em co- autoria, de Movimento de bair- ro — repeti¢ao/invengao (pu- blicagéo da Equipe Técnica de Pesquisa e Acdo Social — Etapas), Casa Amarela: me- morias, lutas e sonhos (publi- cagao da Federacdo dos Mo- radores de Casa Amarela — Feaca) e Recife: que historia 6 essa? (publicagao da Fun- dagao de Cultura da Cidade do Recife). Titulos da série NAVEGAR E PRECISO Grandes descobrimentos maritimos europeus Janaina Amado Ledonias Franco Garcia OS SONHADORES DE VILA RICA A Inconfidéncia Mineira de 1789 Edgard Luiz de Barros REINVENTANDO A LIBERDADE A Aboligdo da escravatura no Brasil Antonio Torres Montenegro IMPERIO DO CAFE A grande lavoura no Brasil — 1850 a 1890 Ana Luiza Martins UMA TRAMA REVOLUCIONARIA? Do Tenentismo a Revolu¢do de 30: Antonio Paulo Rezende ; NOS TEMPOS DE GETULIO ' Da Revolugao de 30 ao fim do Estado lovo Sonia de Deus Rodrigues Bercito O BRASIL DA ABERTURA De 1974 4 Constituinte Marly Rodrigues INDUSTRIA, TRABALHO E COTIDIANO Brasil — 1889 a 1930 Maria Auxiliadora Guzzo de Decca INDEPENDENCIA OU MORTE A emancipagao politica do Brasil limar Rohloff de Mattos Luiz Affonso Seigneur de Albuquerque DE GETULIO A GETULIO O Brasil de Dutra e Vargas — 1945. 1954 © Francisco Fernando Monteoliva Doratioto José Dantas Filho DOCE INFERNO Agucar — guerra e escravidao no Brasil ) | holandés (1580-1654 Elsa Gongalves Avancini A REPUBLICA BOSSA-NOVA ‘ A democracia populista (1954-1964) ‘ José Dantas Filho Francisco Fernando Monteoliva Doratioto A consolidagao do Estado imperial brasileiro Jlmar Rohloff de Mattos Marcia de Almeida Gongalves A ORDEM EO PROGRESSO O Brasil de 1870 a 1910 Margarida de Souza Neves Alda Heizer _ O IMPERIO DA BOA SOCIEDADE 7 | HISTORIA EM. XS DOCUMENTOS: REINVENTANDO A LIBERDADE A abolicgdo da escravatura no Brasil Antonio Torres Montenegro Coordenagao: Maria Helena Simées Paes Marly Rodrigues 137. EDIGAO © pUTORIZ4 Fa e 5 © Antonio Torres Montenegro, 1989 ‘AW: Copyright desta edigdo: BS Se EDITORA ATUAL S/A., Sao Paulo, 1998 cman? Todos os direitos reservados. EDITORA AFILIADA, Dados de Catalogacéo na Publicagdo (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Montenegro, Antonio Torres. Reinventando a liberdade : a aboligio da escravatura no Brasil / Antonio Torres Monte- negro. — Sao Paulo : Atual, 1989. — (Histéria em documentos) Bibliografia. ISBN 85-7056-274-8 1. Escravos — Brasil — Emancipagao 2. Historia — Estudo e ensino (29 grau) Brasil I. Titulo. Il. Titulo: A abolicao da es- cravatura no Brasil. CDD-981.007 89-1628 -981.0435 Indices para catélogo sistematico: 1. Abolic¢éo da escrayidéo : Brasil : Historia 981.0435 2. Brasil : Histéria : Ensino de 2° grau 981.007 3, Escravidio : Abolic&éo : Brasil : Histéria 981.0435 Série 6ria em Documentos Editora: Sonia Junqueira Assistentes editoriais: Henrique Félix/Thais H. Falcio Botelho Preparagdo de texto: Renato Nicolai Revisao: Noé G. Ribeiro/Paulo S4/Rosa Chadu Dalbem Diagramagao; Tania Ferreira de Abreu Arte: Alexandre Figueira de Almeida Produgdo grdfica: Antonio Cabello Q. Filho/Silvia Regina E. Almeida Consultoria para o desenvolvimento do projeto: Edgard Luiz de Barros Projeto grdfico: Ethel Santaella Capa: Avelino Guedes (baseado na obra Sao Salvador, de Rugendas, realizada por volta de 1822) Fotos: Vilu Salvatore Mapa: Antonio Cabello Q. Filho Roteiro de leitura: Antonio Torres Montenegro Composigéo: AM Produgées Grdficas Fotolito: Priscor 10.12.98 NOS PEDIDOS TELEGRAFICOS BASTA CITAR O CODIGO: AZSH 9051A EDITORA ATUAL S/A ‘Ay, Marqués de Sao Vicente, 1697 — Barra Funda 01139-904 — Sao Paulo — SP — Caixa Postal 2362 SUMARIO Parte I Caminhos ¢ descaminhos da liberdade Parte I A fala dos documentos 1. O avesso do Paraiso 2. O discurso e a agao 3. O registro literario Apéndice Vocabulario Cronologia Para saber mais Bibliografia res. eer!) a eae hl Te, 21 33 eee ce A, 65 70 PARTE I - Gaminhos e e descaminhos da liberdade | } palavra ‘‘abolig&o”’ significa ato ou efeito de abo- lir, extincdo. Neste livro, estuda-se como se con- quistou a abolicao do trabalho escravo no Brasil. Para se entender a aboligao, estudar-se-4 como foi o inicio da implanta¢ao do regime escravista*; por que fo- ram trazidos povos da Africa para serem escravos no Bra- sil; quais as lutas que esses africanos realizaram para se libertar; como a sociedade da €poca vivia e convivia com a escravidao e a abolicao. Escraviddo antiga e moderna Entre os povos antigos que habitavam as margens do Mediterraneo (séculos IV e V antes de Cristo), era comum o regime escravista. Os egfpcios, os gregos, os romanos, apenas para citar os mais conhecidos, ao conquistarem ou- tro povo, muitas vezes o transformava em escravo. Os po- vos primitivos também tinham o habito de escravizar os povos inimigos, quando derrotados. No regime escravista, o homem, a mulher ou 0 povo transformado em escravo nao é mais considerado um ser humano. O proprietdrio do escravo, ou o senhor, tem to- dos os direitos sobre ele — trocar, vender, obrigar a tra- balhar todos os dias sem parar e, até, matar. Os portugueses, ao aportarem nas terras dos tupis, dos guaranis e de diversos outros povos indigenas do Bra- sil, em 1500, muito cedo comegaram uma luta, uma guer- ra. Usaram todos os meios, violentos € nao violentos, para : As palavras com asterisco sao definidas no Vocabulario, no final do ivro, apoderar-se das terras e dominar os povos que nelas habi- tavam h4 milhares de anos. Muitos indfgenas, ao serem presos pelos portugueses, foram transformados em escra- vos. Paralelamente, comegava a se desenvolver, nesse pe- riodo, um rico e lucrativo comércio: o de comprar, de cer- tas tribos africanas, povos que haviam sido derrotados pa- ra transforma-los em escravos. Eram os primeiros passos da escrayidao moderna. O comércio de escravos da Afri- ca, que ja existia nas ilhas dos Acores e Madeira, iria len- tamente orientar suas rotas para o Brasil, Cuba, Haiti, América do Norte. No Brasil, comeca a se desenvolver o cultivo da cana- de-aciticar que, plantada em extensas propriedades, exige um grande nGmero de trabalhadores. Os primeiros enge- nhos foram instalados no Nordeste — da Paraiba a Serg pe —, no Recéncavo Baiano e no Rio de Janeiro. Apesar da abundancia de terras, faltava mao-de-obra, pois portu- gueses ¢ brasileiros eram ainda em ntimero reduzido e mui- tos nao se submetiam a esse tipo de trabalho. Por outro lado, tornava-se mais econémico comprar escravos aos co- merciantes vindos da Africa do que realizar expedigdes pelo interior para guerrear com indigenas e prendé-los. As ex- pedigSes eram arriscadas e as terras, muito mais conhec: das dos indigenas. Além disso, esses indfgenas, ao se re- voltarem contra os portugueses, sempre contavam com o apoio do restante da tribo ou de outros povos indigenas amigos. Essas foram as razdes que favoreceram a adocao, como escravos, dos povos trazidos da Africa. O processo de adogao do trabalho escravo nas socie- dades que se organizavam na América do Sul, Central e do Norte foi acompanhado por toda uma justificativa. O europeu considerava os povos indigenas que habitavam a América e a Africa como selvagens, ou seja, barbaros, fe- rozes, bravios, incultos, sem civilizagiio. Esses povos, por nao terem os mesmos habitos e tradig6es culturais dos eu- ropeus, nao eram considerados pessoas; logo, nada have- ria de errado em n4o serem tratados como os demais ho- mens e mulheres. Nesse periodo — dos séculos XIV ao XIX —, a Igreja Catélica foi uma das instituigdes que muito difundiram a idéia de que a escraviddo era uma decorréncia natural da lei de Deus. Segundo a Igreja, sé apés a conversao ao cris- tianismo é que esses povos poderiam vir a ser considera- dos seres humanos. Por essa razAo, a propria Igreja Gat6- lica tinha, em suas propriedades, grande ntimero de es- cravos. As mudangas, trezentos anos depois A escravidao na terra chamada ‘‘Brasil’’ teve inicio com a invasao portuguesa em 1500. S6 no final do século XVIII e inicio do século XIX comeca-se a nao admitir a escravidao como algo natural. Praticamente, trezentos anos se passaram. Uma série de acontecimentos estao relacio- nados a essa mudanga: © a proclamagao da Independéncia dos Estados Unidos, que continha uma Declaragao dos Direitos do Homem, afirmando a igualdade de todos os individuos; © a Revolucdo Francesa em 1789 e seus principios de Li- berdade, Igualdade e Fraternidade; *® a Revolucao Industrial na Inglaterra, que implicou a ado- cao da maquina e 0 aumento consideravel das mercado- rias produzidas, levando os economistas a defenderem o trabalho livre como 0 mais lucrativo. Todas essas mudangas sociais, polfticas e econdmicas comegam a disseminar a idéia de que a escravidao € ina- ceitavel. Entretanto, no Brasil, 0 escravo é a mao-de-obra mais importante e domina as atividades produtivas na ci- dade e no campo. Para os senhores, seus escravos sAo si- nénimo de um importante capital investido que a aboli- cao ameaga destruir. Para os traficantes*, a possibilidade de perder um rentavel negécio. Por essas razées, a luta pelo fim de trabalho escravo se estendera por todo o século XIX. A medida que a Europa, que até o século XVIII de- fendera e justificara 0 escravismo, passa a se opor a ele por algumas das razdes acima relacionadas, tém infcio as cam- panhas e os apelos internacionais pela abolic¢ao no Brasil. 5 Quilombos, levantes*, assassinatos, suicidios Os povos africanos transformados em escravos e co- mercializados nas colénias* européias da América nunca deixaram de lutar contra essa condicao imposta pelos po- vos ditos ‘‘civilizados’’. Desde o momento do embarque nos navios negreiros, a luta contra a escraviddo nao tinha trégua. Além de re- voltas nos prdéprios navios, havia suicfdios (com os escra- vos langando-se ao mar) ou mesmo a morte por banzo (sau- dade). A resisténcia desses povos A sujeicao que lhes cra imputada nunca silenciou. A chegada ao Brasil nao diminui a luta. Os escravos procuram estar préximos de outros africanos da mesma tri- bo, cultivando sua lingua, suas misicas, suas dancas, suas religides, enfim, sua cultura, de forma a manter viva a sua identidade de homens livres que tinham até serem apri- sionados. Os senhores, por seu lado, procuram evitar que grande namero de escravos de mesma origem vivam juntos sim como profbem todas as manifestacdes culturais africanas. Apesar dos terriveis castigos impostos a todos que se rebelam contra a escravidao, a fuga é uma pratica cons- tante. Individual ou coletiva, ela sempre representa uma permanente ameaga aos senhores. E criada, inclusive, a “‘profissao’’ de capitdo-de-mato*, ou seja, aquela pessoa que se dedica a capturar escravos fugidos para entrega-los aos seus senhores, recebendo 0 pagamento previamente combinado ou estipulado em antincios nos jornais. Em decorréncia das fugas, os escravos, ao abandona- rem as fazendas, engenhos ou mesmo as casas dos senho- res na cidade, se estabelecem no mato, criando sua pré- pria comunidade, vivendo do plantio e da criagéo e man- tendo vivas suas tradigGes culturais. As comunidades as- sim organizadas deu-se o nome de quilombos. Os senhores € as autoridades estavam sempre em guerra contra eles, mas nunca conseguiram extingui-los completamente. 6 Vale registrar, entre os diversos quilombos, um dos mais importantes pelo tamanho, pela populagao e por sua prolongada existéncia — o Quilombo de Palmares. Fun- dado por volta de 1630, na Serra da Barriga, no atual es- tado de Alagoas, sé foi destrufdo pelas autoridades em 1695. A existéncia de Palmares e sua vitoriosa resisténcia as in- vestidas bélicas dos senhores e das tropas portuguesas se tornavam uma forte ameaga A manutengao da escravidao. Além de constituir uma segura alternativa de vida para os escravos fugidos, esse quilombo era o simbolo da vitéria do africano contra a ordem escravista que senhores de en- genho, fazendeiros ¢ comerciantes tentavam impor. Mas a violéncia contra o escravo nao tinha limites. Marcar 0 corpo do escravo com ferro em brasa, colocar Agua fervente no ouvido, cortar pedago da lingua ou dedo dos pés ou das maos, além de surras de agoite seguidas de banho com Agua e sal eram algumas praticas comuns de senhores e feitores para conseguirem dobrar 0 escravo as suas vontades e caprichos. Algumas vezes, em reac¢4o a esse quadro, registra-se o assassinio de senhores e feitores por escravos. Em um clima de tamanha revolta e violéncia, no momento em que a escravidao comega a ser condenada e a fuga dos escra- vos, apoiada por clubes e associagées abolicionistas, 0 tra- balho escravo estava no seu estertor. Fim do trafico Os ingleses foram um dos povos que mais pressiona- ram o Brasil para que extinguisse o trafico de escravos. Uma das razGes dessa pressao reside no fato de o agacar produzido nas coldnias inglesas das Antilhas ter seu preco elevado em virtude do fim do tréfico em 1807 e da aboli- ¢ao da escravidao em 1833. O agicar brasileiro produzido pela m&o-de-obra escrava tornava-se, entao, mais barato. O senhor de engenho poderia aumentar sua produciio ape- nas fazendo 0 escravo trabalhar mais horas. J4 para as co- I6nias inglesas, que estavam sob o regime de trabalho li- vre, qualquer aumento na produgiio significava pagar a % mais trabalhadores. Um outro aspecto é que 0 processo de passagem de uma producao organizada com base no tra- balho escravo para aquela baseada no trabalho livre exige um perfodo de adaptac4o e organizacao, provocando sen- siveis reducdes na produgao. Dessa forma, o agticar brasi- leiro passava a levar vantagem no comércio internacional Outra razao que se associa ao empenho inglés pelo fim da escravidao em outros paises é 0 seu avango industrial. Com aadogao da maquina, a produgado amplia-se consideravel- mente. O regime escravista, por nao pagar salarios, res- tringe o mercado de consumo. Ou seja, o mercado era re- duzido, pois o escravo consome muito poucos produtos, ja que grande parte do que é necessdrio a sua subsisténcia é produzido nas fazendas e nos engenhos. E em raz&o desses fatos que, desde 1810, os ingleses comegam a pressionar 0 governo portugués no Brasil para que proiba o tr4fico de escravos como forma de extinguir lentamente a escravidao. No entanto, os interesses dos gru- pos internos (como senhores de engenho, fazendeiros de café e muitos comerciantes) foram mais fortes do que a pres- sao externa dos ingleses. Passaram-se quarenta anos sem que, na pratica, o comércio de escravos fosse interrompido. A pressao inglesa sobre 0 governo portugués no Bra- sil e a perseguicZo aos navios negreiros em Aguas territo- riais brasileiras geraram um esfriamento das relagdes com a Inglaterra a partir de 1845, quando o Brasil nao reno- vou um acordo, feito anteriormente, que consistia no di- reito de os ingleses vistoriarem os navios brasileiros sob suspeita de transportarem escravos. Em represdlia pela nao- renovagao do acordo, os ingleses aprovam em seu Parlamento* a lei Bill Aberdeen, a qual lhes concedia o direito de vistoriar qualquer navio negreiro*, onde quer que se encontrasse — em claro desrespeito ao direito in- ternacional, que s6 permitia o direito de visita e busca com © consentimento de ambas as partes. Estavam, dessa forma, Brasil e Inglaterra em ‘‘esta- do de guerra’’. Durante o perfodo em que a lei Bill Aber- deen esteve em vigor, um niimero ainda maior de escra- vos foi trazido para o Brasil. A iminéncia de que o Brasil, 8 a qualquer momento, cedesse 4 pressao inglesa estimulou ainda mais esse comércio. Em 1850, o Brasil, finalmente, concorda em assinar uma lei que probe o trafico de escravos, e toma as medi- das necessdrias para que a mesma seja cumprida. Isso por- que, em 1831, o governo brasileiro havia assinado uma ou- tra lei proibindo a entrada de escravos no pais, mas esta nunca foi cumprida. As raz6es que explicam a assinatura e o cumprimen- to da lei Eusébio de Queirés, de 1850, proibindo o trafico de escravos, est&o associadas a dois fatores. Por um lado, a press4o inglesa, apreendendo e destruindo diversas em- barcacGes utilizadas no trafico, criando um estado de guerra entre o Brasil e a Inglaterra, nacao mais poderosa na épo- ca. Por outro lado, diversos comerciantes e produtores de agticar e café comegavam a ter seus negécios com a Ingla- terra prejudicados, em face dos conflitos causados pelo trafico. Dessa forma, a crise politica (questao do trAfico) ira lentamente gerar uma crise econdmica — diminuicao de acordos comerciais — entre Brasil e Inglaterra. Diante des- se quadro, proprietarios e comerciantes comecam a defen- der, junto ao governo brasileiro, a aprovacao do fim do trafico de escravos. Assinada a lei em 1850, ha registro de alguns desem- barques de escravos nas costas brasileiras em 1851 e 1852, mas em pequeno numero, evidenciando que essa lei aca- bou por ser, efetivamente, cumprida. A idéia emancipacionista Com o passar dos anos, vai-se tornando evidente que a extingao do trafico de escravos, por si, nao é suficiente para garantir um fim préximo para a escravidao. Existia, agora, o comércio de escravos entre as provincias* (assim eram chamados os estados durante o Império), que come- ¢ava a gerar outros problemas. Isso porque as provincias do Norte e Nordeste passaram a vender grandes quanti- dades de escravos para o Sul e Sudeste. As fazendas de ca- 9: fé, que se expandiam rapidamente, passaram a necessitar de mais escravos. Como a economia do Norte e Nordeste nao assistia a um perfodo de prosperidade, era vantajoso vender para 0 Sul ¢ Sudeste, a precos elevados, muitos dos seus escravos. O Norte e o Nordeste passam, ent&o, a adotar, cres- centemente, o trabalho livre, tornando-se, aos poucos, mais flexiveis em relacgZo a um prazo imediato para o fim da escravidao do que o Sul, que tinha acabado de realizar um grande investimento na compra de escravos. No final da década de 1860, muitos dos paises que ainda mantinham a escravidao foram cedendo a pressao abolicionista, como as colénias dos impérios portugués, francés e dinamarqués. No entanto, o maior impacto so- bre os defensores da escravidao no Brasil resultou da abo- ligdo na América do Norte, apdés uma guerra civil entre o Sul, escravocrata, e o Norte, favoravel 4 libertagao. Em 1865, a escraviddo s6 era mantida nas colénias espanholas — Cuba e Porto Rico — e no Brasil. Nesse quadro, avanga um movimento interno consti- tuido por uns poucos politicos, proprietarios e, principal- mente, camadas médias — militares, funciondrios publi- cos, senhoras da sociedade, estudantes, profissionais libe- rais —, que defendem a aprovacao de uma lei que defina um prazo para o fim da escravidao. Para muitos proprie- tarios, principalmente do Norte e Nordeste, onde a depen- déncia em relag4o ao escravo nao era tao grande, assim como para outros setores citados, o fim da escravidao era simbolo de progresso. S6 a abolig&o acabaria com vicios, corrupgao e atraso, que todos reconheciam existir na so- ciedade brasileira. Como consideravam dificil e perigosa a abolig&o imediata, esses setores defendiam um fim gra- dual para a escravidao. Eram os adeptos do movimento emancipacionista*. A lei do Ventre Livre O resultado da pressao exercida pela sociedade em fa- vor de medidas para apressar e estabelecer prazos para o 10 fim da escravidao foi a aprovagao da lei do Ventre Livre. Essa lei dava liberdade aos filhos de escrava que comple- tassem oito anos, que seriam entregues ao Estado em tro- ca de uma pequena indenizacao, ou que ficassem traba- Ihando para seu proprictario até os 21 anos, idade-limite para a libertacao. Vale salientar, entretanto, que a apro- vacao da lei do Ventre Livre em 28 de setembro de 1871 em nada modificou a escravidao. Nenhum proprietario entregou o filho ou a filha de escrava a partir de 1880, quando os primeiros escravos nas- cidos logo apés a promulgacao da lei estariam completan- do oito anos. Nem o Estado, por seu lado, construiu abri- gos, escolas, enfim, locais adequados para receber essas criancas livres, como previa a lei. Logo, todos os filhos de escrava nascidos em 1871 sé seriam libertos aos 21 anos, como também previa a lei, ou seja, 1871 + 21 1892. Torna-se, ent&o, evidente que a Aboliga&o, em 1888, antecipou em quatro anos a liberdade desses filhos e filhas de escravos. A idéia abolicionista O Brasil entrava na década de 80 do século XIX co- mo 0 tnico pafs do Ocidente a manter 0 trabalho escravo. A idéia de civilizacgio*, de progresso, de evolugdo, asso- ciada a Declaracao Universal dos Direitos do Homem, construfa-se a partir dos principios liberais, que defendiam a igualdade de todos os homens. Enquanto essa igualdade nao alcangasse a sociedade brasileira, o pais nao seria re- conhecido no conjunto das nagGes como civilizado. Nao pertencer ao rol dos civilizados era simbolo de atraso, de barbarie, de inferioridade. O regime escravista, que fora a base de todo o desenvolvimento econdmico até o século XVII, em face das mudangas que ele proprio gerara, pas- sava a ser completamente repelido, rejeitado, condenado. Discursos, declaragées, livros e artigos que justificaram, durante v4rios séculos, a justeza e a necessidade do traba- lho escravo eram substitufdos por outros discursos, livros € artigos que defendiam exatamente o contrdrio. i Nesse palco é que se digladiam duas forcas antag6ni- cas na sociedade brasileira: grandes proprietarios de fazen- das de café, senhores de engenho, comerciantes e politicos representantes dos seus interesses, de um lado, e, de ou- tro, as camadas médias, politicos e proprietarios nao mais dependentes do regime escravista. Essa luta dos que reivindicam a extincao imediata da escravidao — a abolicao —, contrariamente A idéia de pro- cesso lento e gradual defendida pelos emancipacionistas, ira envolvendo toda a sociedade. Sao fundados clubes e as- sociagdes abolicionistas* em quase todas as principais ci- dades das provincias. Estes trabalham tanto no sentido de propagandear, para convencer o resto da populacdo, a jus- tiga e a importAncia de se abolir o trabalho escravo, como no de fazer cotas para comprar a liberdade de determina- dos escravos. No dia da libertagio do escravo, fazia-se uma grande festa civica, que emocionava a populac4o e ampliava nela o sentimento abolicionista. Muitos desses clubes ¢ as- sociagGes irao colaborar na fuga de escravos, escondendo- 9s ou ajudando a transporté-los para outras provincias, on- de n&o seriam reconhecidos ou onde o trabalho escravo es- tava praticamente abolido. Os grandes proprietarios e comerciantes, vendo seus interesses ameacados através dessa vasta rede de clubes e organizagées abolicionistas, fundam os clubes da lavoura € comércio, com 0 objetivo de opor-se 4 campanha do mo- vimento abolicionista*. Liberdade para morrer E nesse clima acirrado de disputa entre abolicionistas € escravistas que, em 1884, comeca a ser discutido, na CA- mara, um projeto acerca da libertag&o dos escravos ido- sos, que ficou conhecido por lei do Sexagendrio. Tal pro- Jeto de lei era, para muitos, uma conquista do movimento abolicionista, que lutava, cotidianamente, pelo fim da es- cravidao, Nessa ocasiao, os grandes proprietdrios e comercian- tes voltam a defender a extingao lenta e gradual da escra- 12 vidao, sem a aprovacao de nenhuma lei além da do Ven- tre Livre. O debate sobre a lei do Sexagendrio criou uma grande expectativa nos meios abolicionistas. Acreditava- se que, aprovada essa lei, poder-se-ia passar 4 aprovacao da aboligao. A discusso em torno desse projeto de lei, a partir de junho de 1884, vai mostrar, também, a forga e a influén- cia dos clubes da lavoura e do comércio. Gomecgam a che- gar 4 Camara dezenas de abaixo-assinados de proprieta- rios € comerciantes opondo-se a lei do Sexagendrio e afir- mando que a lei do Ventre Livre era suficiente para ga- rantir uma lenta e tranqiiila extingdo do trabalho escravo no Brasil. Os debates entre parlamentares abolicionistas e escra- vistas s4o iniciados. Cedo, fica evidente que os escravistas sao maioria e que a liberdade para os escravos de sessenta anos jA nao seria aprovada. Nessas condigées, atravessa-se todo o ano de 1884; sé em agosto de 1885 a lei consegue ser aprovada. Mas as modificag6es introduzidas pelos escravistas descaracterizam completamente o projeto inicial. Embora essa lei tenha fi- cado conhecida como aquela que deu liberdade aos escra- vos com sessenta anos, a verdade é outra. S6 foram liber- tos, imediatamente, os escravos com 65 anos. Os que ti- vessem sessenta anos eram obrigados a trabalhar mais trés anos para os seus senhores, como indenizacao pela li- berdade. A aprovagao da lei nessas condig6es revoltou 0 movi- mento abolicionista, tornando evidente que, pela via par- lamentar e legal, a aboligao ainda estava muito distante. Aboligiio Na década de 1880, em face da crescente organiza- ¢ao do movimento abolicionista, a escravidao tinha seus dias contados. Os escravos, que até entao lutavam sozi- nhos, tinham agora, como aliados, importantes setores da sociedade — profissionais liberais, militares, jornalistas, estudantes e uma parcela de politicos e proprietdrios. 13 Como resultado dessa alianca entre escravos e movi- mento abolicionista, as provincias do Ceara e do Amazo- nas, em 1884, declaram extinta a escravidao. Esse fato tem uma enorme repercussao nas demais provincias, fortale- cendo, consideravelmente, 0 movimento abolicionista. Pernambuco, Rio Grande do Norte e Piauf encami- nham protesto ao governo central, pelo fato de muitos es- cravos, auxiliados em suas fugas pelos abolicionistas, es- tarem se dirigindo para o Ceara, onde nao correm nenhum perigo de serem capturados, j4 que nessa provincia a es- eravidao fora abolida. Vinha, dessa forma, ganhando, dia a dia, maiores ade- sdes 0 movimento abolicionista. Entretanto, 0 expressivo valor do escravo e a importancia do seu trabalho na cultu- ra do café e mesmo na do aciicar criavam ainda forte re- sisténcia 4 aboligao. A morte de dois escravos em Parafba do Sul (Rio de Janeiro), depois de condenados a um castigo de trezentos acoites, levantou uma onda de protestos ¢ indignagAo, cul- minando com a aprovacdo, na Camara, de uma lei que proibia, definitivamente, o acoite. Nesse periodo, as fugas comecam a crescer em ntimero incontrolavel nas fazendas de café da provincia de Sao Pau- lo, acelerando-se em 1887. A cidade de Santos era o desti- no de muitos dos fugitivos, por congregar uma importan- te organizacdo abolicionista liderada por Anténio Bento. Esta fuga generalizada provoca uma reacdo dos fazen- deiros de café, que solicitam do presidente da provincia de Sao Paulo a convocagio de forgas militares para repri- mir os revoltosos. Uma carta dos militares 4 princesa Isabel, na época respondendo pelo monarca, para que 0 exército no seja mais encarregado de capturar escravos, marca a perda de- finitiva de controle dos senhores sobre 0 processo de liber- tacdo dos escravos. Tinham, assim, os escravos conquistado, através de muita luta, sofrimento e morte, e com o apoio tardio de alguns setores da sociedade, sua origindria condicdo de ho- mens livres, em 13 de maio de 1888, 14 Liberdade, para qué? Pesquisando-se em jornais de 13 de maio de 1889, 1890 e 1891, descobre-se como as autoridades, nos anos seguintes 4 aprovacao da lei que aboliu a escravidao, sem- pre vinham realizando comemoragGes referentes a.essa da- ta. Nesses jornais, nao se registra a presenga, 0 nome ou algum discurso de africanos ou seus descendentes. Esse fato, que ao leitor desatento pode passar despercebido, vai ape- nas se tornar mais um elemento do quadro histérico onde o africano, apesar de livre, continuou a sofrer discrimina- ¢Ao social, politica, cultural e econdmica. Na data da cele- brac&o da sua liberdade, os jornais e a sociedade come- moram em teatros e recintos fechados, onde aquele por quem se comemora esta ausente. A auséncia dos africanos do noticidrio dessas come- morac¢6es é indicativo de que eles, apesar de livres, nao conquistaram, de fato, a condi¢&o de igualdade que na lei stava registrada. O movimento abolicionista, ao obter 0 apoio de am- plos setores da sociedade que até ent&o era escravocrata, impediu ou mesmo dificultou uma luta pela libertagao que inclufsse, em seu programa, questées referentes a traba- lho, educacio e satide de toda essa enorme parcela da po- pulagao constituida por africanos, descendentes destes e mestigos. O movimento abolicionista, na verdade, restringiu-se a extinguir o regime escravista, nado colocan- do em discussdo as formas de vida do ex-escravo. Esse fato nos possibilita reconhecer que a abolicgao pre- cisava vir acompanhada de um amplo programa politico. A conquista da condicgaéo de homem livre deveria estar as- sociada a outras condigdes de trabalho e de vida. Ao ex-escravo, apéds as comemoracoes do 13-de maio de 1888, s6 restou voltar a trabalhar para o ex-senhor, re- cebendo pequenos salérios (pois eram deste a terra, a ca- sa, os instrumentos de trabalho), ou se estabelecer na pe- riferia das cidades, realizando pequenos servigos ou tra- balhos mais regulares, 15 PARTE II -A fala dos documentos segunda parte deste livro inclui o trabalho dire- to com as fontes histéricas, além de mapas e gra- vuras, relativas 4 escravidio. Foi reunido um conjunto de documentos que objetiva pér o leitor em con- tato com as fontes. E a partir da leitura delas que o histo- riador escreve seus livros, artigos e ensaios. A Histéria é feita, fundamentalmente, de documen- tos escritos. E verdade que a Arquitetura, a Pintura, a An- tropologia, a Arqueologia, a Economia, enfim, todas as outras formas de conhecimento auxiliam a construgao do conhecimento histérico. Entretanto, tudo o que é esqueci- do por nAo ter sido registrado ou por nao haver interesse em ser lembrado acaba, muitas vezes, por criar histérias exatamente contrarias ao que, de fato, ocorreu. Os documentos em anexo so uma parcela do mate- rial por mim utilizado para escrever a primeira parte des- te livro. Tudo aqui afirmado foi, em grande parte, dedu- zido ou extraido da leitura desses documentos, agora ofe- recidos para sua leitura e interpretacao. Z Cada documento tem um comentario especffico. E co- mo se cada um descortinasse um aspecto da realidade, que o historiador vai montando como se fosse um quebra- cabega. A partir da andlise desse material e da reflexdo so- bre ele, escrevemos a Histéria. A leitura feita aqui deve provocar outras opinides e impressdes. Nés temos toda liberdade para, diante dos documen- tos, fazermos nossas préprias perguntas e encontrarmos res- postas que poder&o coincidir ou nao com as opinides aqui registradas. Quando desenvolvemos uma opiniao, um argumen- to hist6rico muito diferente do que a maioria das pessoas esté acostumada a acreditar, procuramos um maior nt- 19 DY 53 mero de fontes documentais para consolidar nosso ponto de vista. Um aspecto a considerar sobre a documentacao é que embora trabalhemos com um assunto que diz respeito di- retamente aos escravos, sao sempre os outros que falam. Sao muito raros os documentos que registram a fala ou a escrita do préprio escravo. Esse fato cria uma situac3o mui- to especial para o estudo da escraviddo, porque sao sem- pre terceiros a falar sobre a escraviddo, enquanto a fala do maior interessado — 0 escravo ou mesmo 0 liberto — se desconhece. A iconografia iluminando a Histéria Algumas gravuras da €poca da escravidao, intercala- das entre os documentos, convidam A reflexao. Em um primeiro olhar, podemos ser paralisados pelo grotesco que se descobre em algumas delas. No entanto, passado o primeiro impacto, devemos soltar a imaginacao e mergulhar nas representacdes como em um ttinel do tempo. O que simboliza cada gravura? Que detalhes e rela- ges podemos descobrir através de uma observacio aten- ta? O que estaria além do instantAnco registrado pelo gra- vurista? Qual vida, qual cotidiano se percebe além da ce- na que se apresenta? Com essas interrogacées, iniciemos uma viagem tam- bém através das gravuras. Foram feitas algumas conside- rag6es sobre cada uma. Entretanto, muito mais pode ser descoberto, imaginado, associado. 20 CAPITULO 1 O avesso do Paraiso Guerra aos indigenas elso Renault, em seu livro Indtistria, escravidao e sociedade, documenta a escravidao dos indigenas pelos portugueses que aqui aportaram no século XVI através do depoimento de um colono* — Pedro Bor- ges —, que escreve ao rei de Portugal dizendo: [...] néo duvida que a causa das guerras dos indios con- tra os brancos em Porto Seguro fossem os assalios aos in- dios praticados pelos cagadores de escravos desembarca- dos de navios que seguiam da costa e o Ret, reconheceu na caga de escravos a principal causa das guerras dos indios. (‘Carta de um certo colono Pedro Rorges, ao rei de Portugal em 1550’. In: Delso Renault, Industria, escravidao e sociedade, p. 77-8.) Vemos, assim, como os portugueses, ao chegarem as terras habitadas pelos indigenas, procuraram, imediata- mente, formas de domind-los para poder explor4-los. Em face da escassez de documentos sobre aescravidao dos indigenas brasileiros no perfodo da colonizagao*, con- sideramos relevante documenté-la. Poucos sao os registros deixados pelos europeus sobre as guerras de destruicao aos indigenas brasileiros. Desde 0 periodo colonial, procurou-se difundir a idéia de que eram os indigenas que atacavam os portugueses; este documento vem mostrar 0 contra- 21 rio. E, mesmo que os indfgenas atacassem, nada mais na- tural, pois ao aportar nessas terras os portugueses caracte- rizaram uma invasao. 1. Uma sesséo de agoite publico, ocorréncia didria na Praga de Sant’Ana, no Rio de Janeiro (J. B. Debret, Voyage pittoresque et historique au Brésil. 3 v., 1834, 1835 e 1839). Cruz-do-patréo Ainda hoje existem, em algumas cidades brasileiras © museus, postes de pedra ou madeira, de dois e meio a trés metros de altura, onde os escravos eram amarrados e castigados. Esses postes eram conhecidos por cruz-do-patrao e localizados nas dreas centrais das cidades. As sessdes de agoites — como a da gravura — eram um ritual que tinha como estratégia, além do castigo, a intengdo de incutir o medo € 0 terror em todos os que pla- nejassem desobedecer 4 ordem estabelecida. 22 A escraviddo aos olhos da Igreja Para muitos cristéos, os males que existem no mun- do sao resultado do fato de o primeiro homem (Adio) e a primeira mulher (Eva) terem desobedecido a Deus — o criador. Essa desobediéncia é chamada de pecado original. As guerras, as doengas, as injustigas, a escravidao, en- fim todos os males da humanidade seriam resultado da de- sobediéncia de Adao e E No documento a seguir, pode-se perceber que a Igre- ja apresenta como normal o fato de um homem ser escra- vo de outro. 1. Que sendo o género humano livre por natureza, ¢ se- nhor nao somente de st, sendo também de todas as mais criaturas, chegasse grande parte dele a cair na servidao* e cativeiro*, ficando uns senhores e outros servos, fot sem divida um dos efeitos do pecado original de nos- sos primeiros pais Addo e Eva, donde se originaram todos os nossos males. 2. E certo que se Adao perseverasse no estado da inocén- cia, em que Deus 0 criou, nao haveria no mundo cati- vetro, nem senhorio; porque no estado da inocéncia (es- tado livre de toda a pena e moléstia) nado podia haver dominio e senhorio de um homem para com outro homem. 3. O pecado, pots, foi o que abriu as portas por onde en- trou 0 cativetro no mundo; porque, rebelando-se o ho- mem contra seu Criador, se rebelaram nele e contra ele os seus mesmos apetites. Destes tiveram sua origem as dissensoes € guerras de um povo contra outro povo, de uma nagao contra outra nacao, e de um Reino contra outro Reino. E porque nas batalhas, que contra si da- vam as gentes, se achou que era mais humano ndo ha- 23 ver tanta efuséo de sangue introduztu o direito das mes- mas gentes que se perdoasse a vida aos que nao resis- tiam, € espontaneamente se entregavam aos vencedo- res; ficando estes com o dominio e senhorio perpétuo sobre os vencidos, e os vencidos com perpétua sujeigéo e obrigagao de servir aos vencedores. (Jorge Benci, Economia crista dos se- mhores no governo dos escravos, p. 47-8.) A Igreja Catélica foi uma das instituicdes que cola- boraram com a organizacao do trabalho escravo na Idade Moderna. Os homens sempre necessitam justificar, para si e para o grupo social do qual fazem parte, os seus atos. Quando as acdes humanas recebem 0 apoio de pode- rosas instituigdes, elas, por mais absurdas ou desumanas, sao consideradas e realizadas como algo natural e normal. O apoio da Igreja (ou dos préprios padres, ao afir- marem ‘‘que nao ha nada de errado ou de imoral na es- cravidao’’) deixava a consciéncia dos homens completa- mente tranqiila e eles se sentiam livres para praticar as aberracoes caracteristicas do regime escravista. Nesse livro do padre Jorge Benci, da Companhia de Jesus, editado pela primeira vez em Roma, em 1705, te- mos uma tentativa de se estabelecer regras para a relacao senhor-escravo. No entanto, antes de propor essas regras, Benci — que escreveu o livro entre 0 final do século XVII € 0 infcio do século XVIII —, a partir de quatro sermées pronun- ciados em Salvador; procurou mostrar a origem divina da escravidao; ou seja, a escravidao seria resultado do peca- do, do fato de os homens haverem desobedecido a Deus. Pode-se, ent&o, perceber, pela passagem do livro de Benci — bastante representativa do pensamento de uma época —, de que maneira os homens justificavam a prati- ca da escravidao, de forma a reconhecé-la como algo natural. 24

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