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Capitulo 1 Minas e mineiros de carvao no Rio Grande do Sul Definido por George Orwell como “extraordinariamente ter- rivel”, 0 trabalho dos mineiros 6, certamente, um dos oficios mais duros, perigosos e insalubres que o ser humano criou, Expostos per- manentemente ao risco de acidentes fatais ou incapacitantes, con- denados a escuridao, a poeira, ao frio e calor excessivos, esses ope- rérios chegaram a ser comparados a toupeiras pelo escritor francés Emile Zola, em seu célebre Germinal, No classico romance de ins- piragdo naturalista, transparecem também algumas caracteristicas recorrentes do processo de extragaio do carvio: a grande empresa mineradora, os trabalhadores reunidos em vilas, 0 controle ri igOroso do trabalho e da vida familiar, a militancia politica, a hierarquia ea solidariedade laboral. Trabalhar nas minas de carvao de Arroio dos Ratos e de Butid nos anos 40 nao constituia uma exce¢do a esse quadro ca- racteristico do oficio. As evidéneias indicam um cotidiano humi- thante, insalubre e degradante: um “suicidio lento ¢ inexordvel”. Foi justamente com essa expressiio que Manoel Jover Telles, en- téo suplente de deputado estadual eleito pelo PCB, ex-mineiro, definiu sua classe em discurso proferido na tribuna da Assembleia Legislativa, em 11 de julho de 1947. Telles defendia a encampa- ¢do das minas de Sao Jerénimo pelo governo do Rio Grande do Sul e denunciou as condigées de trabalho (“das piores possiveis”) nas minas: Trabalha o mineiro num ambiente de completa insalubridade, aspirando 0 pé produzido pelas méquinas cortadoras e de per- furacdo, bem como a fumaga da pélvora e de dinamite origina- da pelas explosdes; 0 mineiro trabalha quase no escuro, com os pés metidos na agua, sem suficiente oxigénio necessario a sua 46 Clarice Gontarski Speranza vida, e em galerias baixas, 0 que o obriga a manter-se curvado por horas a fio, sem poder endireitar o tronco. O mineito, para quem entra na mina pela primeira vez, aparece como um ser Primitivo, selvagem, como o homem das cavernas [...]*. Culpando 0 Consércio Administrador de Empresas de Mine- ra¢éo (Cadem) pela situagao, Telles refinou a seguir a figura criada, sem esquecer de, ao final, usar a sua autoridade de trabalhador/tes- temunha (comegara a trabalhar nas minas aos 12 anos) para dar mais credibilidade ao quadro: Trabalha vestindo somente uma tanga como roupa, de alperca- tas e muitas vezes descalgo. E obrigado a satisfazer suas neces- sidades fisiolégicas no préprio local de trabalho, pois nao existe a aparelhagem sanitiria indispensavel, e é nesse ambiente, sem ar, fétido, que o mineiro tem de fazer a sua refeig&o, ou meren- dar. A sensagiio do mineiro, ¢ isto sei, por experiéncia propria, € a de que est submetido a um processo de suicidio lento, gradual, mas inexordvel. 6 Arepresentagao criada por Telles destinava-se nao sé a des- crever os colegas ¢ aludir ao préprio calvario (do qual escapara, naquele momento, pela via da politica), mas também a chocar os deputados e persuadi-los da necessidade imperiosa da encampa- ¢ao. Era compreensivel, pois, que pintasse 0 quadro com cores fortes. O discurso contrasta com parte da memoria posterior da co- munidade, que procurou reconstruir as minas dos anos 40 aludindo a um tempo de “fastigio” da industria carbonifera gaticha®, Essa reconstrugdo se ancora no aumento substancial da produgao de car- vaio das minas de Arroio dos Ratos e Butié e no crescimento das vilas mineiras. Tal processo atingiu seu auge durante a Il Guerra. mas se iniciara ainda na década anterior, quando as duas prineipais empresas de mineragio da regio (¢, naquelas alturas, do Brasil) se uniram num consércio — 0 Cadem, “ TELLES, M. J. O carvdo de Sio Jerénimo: problema econdmico e problema operirio. In . O movimento sindical.... p. 216. : Ibid & SIMCH, Monografia... 1961, p. 213. Cavando direitos 47 Se pensarmos em termos de desenvolvimento econémico do setor, podemos estabelecer uma periodizagao da mineragao de car- yilo na regiao dividida em cinco fases. O primeiro periodo da explo- ragio carbonifera vai do final do século XVIII até 1872. Ela corres- ponde ao momento inicial de desbravamento e exploragao das mi- nas do Rio Grande do Sul, com a identificag&o e mapeamento dos ‘afloramentos e 0 comego das escavagdes (pelo inglés James John- son, que trouxe 12 familias de seu pais para o Brasil). Tal fase se estende até 1872, quando foi fundada a primeira empresa de explo- ragdo de carvao no Brasil, a Brazilian Collieries Company Limited, com capital inglés. Neste momento, a lavra deixou a sua época, digamos, “romantica”, para ingressar nos primérdios da indistria do carvio (com foco na exploragao racional dos recursos com vis- tas a maximizar o lucro). Um acontecimento importante, relembrado como marco iden- titario do hoje municipio de Arroio dos Ratos e de seus passados dias de gléria, marca os primeiros tempos do segundo periodo, que vai de 1872 até 1936, com a instalag’io sucessiva de uma série de empresas na regido. Trata-se da visita da princesa Isabel em 1885. A herdeira do trono imperial conheceu a vila ¢ inaugurou um pogo de exploragao do carvao. “Perguntei-me se poderia suportar isso muito tempo”, confessou Isabel em carta aos pais, contando tam- bém que os filhos Pedro ¢ Luis, ambos ainda meninos, choraram diante da escuridao da mina. Isabel referiu-se a sensagio de “opres- so” que sentiu, lamentando ainda “a sorte penosissima dos mi- neiros obrigados a 8 horas de trabalho, por dia, nessas profunde- zas apertadas”®”. Isabel fora ao local para batizar um novo pogo da Compa- nhia Minas de Carvao de Pedra, fundada em 1883. E essa empresa que deu origem, em 1889, ja na Republica, & Companhia Estrada de Ferro ¢ Minas de Sao Jerénimo (CEFMSJ), um dos futuros pilares do Cadem. © Carta da Princesa Isabel em 13/01/1885. Acervo do Museu Estadual do Carvéo do Rio Grande do Sul. 50, Clarice Gontarski Speranza Ultima empresa se transformou na Companhia Carbonifera Minas de Butia - CCMB). O Cadem passou a ser gerenciado por um exe- cutivo do grupo Martinelli, Roberto Cardoso, e implantou uma ra- cionalizagao ainda maior da exploragdo, aumentando sua lucrativi- dade e produtividade, Tanto a CEFMSJ quanto a CCMB eram com- panhias abertas, com agdes em bolsa, e sede no Rio de Janeiro. En- tre os acionistas dessas empresas, havia grandes empresarios nacio- nais, como Guilherme Guinle (CEFMSJ) ¢ 0 Barao de Saavedra (CCMB). Lindolfo Collor, ex-ministro do Trabalho, Industria e Comércio, também era acionista da CCMB e foi integrante da sua diretoria’. Nas assemblcias dos acionistas, realizadas no Rio de Janei- ro, a principal preocupagao era 0 pagamento dos dividendos, abun- dante durante o periodo da II Guerra e cada vez mais parco nos anos posteriores. O completo descaso de alguns proprietarios de agdes com a sorte dos trabalhadores das minas pode ser exemplificado por um episédio ocorrido em 1951, na assembleia geral da CEFMSJ, quando um dos acionistas sugeriu que o pagamento dos dividendos ocorresse mesmo que para isso fossem sacrificados os salarios dos mineiros”. Em 1936, no mesmo ano do surgimento do Cadem, 0 Decre- to Federal 1.828 aumentou 0 percentual minimo de consumo de car- vao brasileiro no pais de 10% para 20%. A medida beneficiou espe- cialmente 0 Consércio, que detinha o controle da produgao no Bra- sil: de 1932 a 1939, 82% da produgio nacional do minério vinha do Rio Grande do Sul’, onde 0 Cadem era lider absoluto, Neste periodo, as vilas mineiras de Arroio dos Ratos e Butia cresceram € se tornaram mais urbanizadas, as expensas e sob 0 con- trole estrito das mineradoras. Do cemitério a policia, do armazém e cooperativa ao cinema, tudo dependia c/ou era controlado pelo Ca- "Ver Ata da Assembleia Geral Ordinéria da CEFMSJ, 27/03/42. Didrio Oficial da Unitio, 24/04/1942, p. 75, segii * Ata da Assembleia Geral Ordinatia da CEFMSJ, 30/04/51. Didrio Oficial da Unido, 29/05/1951, p. 32, segao 1. O acionista que fez essa sugestdo era Homero Mattos de Magalhaes, ™ Brazil 1940/41 — An economic, social and geographic survey. Ministério das Rela- ges Exteriores: Rio de Janeiro, 1942. Cavando direitos Sl dom, Nas vilas préximas, como Minas do Leao e Recreio, empresarios imenores mantinham estruturas de escavagao se ambiciosas. O recorde da produgiio de carvao na tegifio foi ae em 1943, quando 1,34 milhfo de tonelada do minério sairam oe 2 es Jo do Rio Grande do Sul (0 Brasil, naquele ano, Ee | a Ihées de toneladas)"*. Nesse periodo, também comegou a deco ae produgao de carvéio na regiao de Cricitima, em Santa ee xs Jogo superaria a do Rio Grande do Sul, como vemos no grai 7 GrAfico 1 — Produgiio de carvao no RS e SC (por tonelada) — 1928/1970 wRS. msc Fonte: Leyantamento baseado nos anuirios estatisticos do IBGE. Quando termina a “Era Cadem”? A produgiio sofreu ne) a lo decisivo ainda em seu apogeu: j em 1944, 0 decreto aes suspenso. Dois anos depois, j4no governo Dutra, 4 foi. een da pela retomada da competi¢&o com o carvao eo Gled a u ee (fuel oil) do exterior (beneficiados pela baixa cotagao do délar, cuj 4 Anudrio Estatistico do Brasil (Ano VI-1941-1945). Rio de Janeiro: IBGE, 1946. Clarice Gontarski Speranza om nivel mundial foj alavancada pela adogao do fim dos incentivos governamentais dos pregos do minério pelo governo » aS greves dos mineiros de 1945 © 1946 as fissuras no modelo de assisténcia ‘as minas, ampliaram e publicizaram cial/controle implantado n SO- nia“ 5 area , ae e le fato” do conséreio sobre a matéria-prima local, quando, em ; /, © governo estadual entrou definitivamente na exploracao de ‘arvao, com a criagao do Departamento Auténomo do Carvao Mi- onde alimentava o alto forno de 0 Volta Redonda. Com caracteristicas fisicas diver : n rsas (menor r calorifico) e produzido mais distante do Sude: ee 3 ste (mai transporte), 0 carvaio do Rio Grande do Sul pel ae , " Tmaneceu sendo utili- Zado preferenciaimente para o transporte. Em fins dos anos 40, a iagdo Férrea consumia 400 mil toneladas anuais ‘ condmicos, o discurso patronal cul, i ores 0 ou reitera- damente a legislagao trabalhista pela decadéncia’, z = O momento também se caracteriza pelo crescimento do € da vila de Arroio dos Ratos e iste- sis- distria da Extragao do Carvao ace produto gaticho no Proprio estad bustiveis fracos najo suportam eco) cados distantes e de que ha conc onselhavam o “confinamento” do lo, “pela dupla razao de que com- nomicamente transporte para mer- orrente, também nacional, melhor 53 Cavando direitos situado em relagiio a esses mercados”. O relatério propés ainda a diminuigao dos custos de extragdo, a supressfio do transporte de grandes quantidades de carvéio e sua queima em usina termoelétrica junto 4 mina, passando os mineradores a produzir e vender energia elétrica’’. Essa perspectiva se concretizou em 1953, quando Gett- lio Vargas, em seu segundo mandato como presidente, autorizou a construgao de uma usina termoelétrica em Charqueadas. Tal perio- do é marcado por diversas mobilizagdes dos mineiros, que lutavam pela efetivagio dos direitos sociais “garantidos” pelas leis que en- traram em vigor na década de 40, mas néo cumpridos. O quinto periodo caracteriza-se por um remodelamento em- presarial que permanece em vigor até os dias de hoje. Ele come- gou em 1964, quando o Cadem foi incorporado pela Companhia de Pesquisa e Lavras Minerais (Copelmi). Cinco anos depois, o DACM transformou-se em Companhia Rio-Grandense de Mine- racdo (CRM). Nessa fase, ha momentos de maior ou menor suces- So nas tentativas de retomada mais agressiva da exploragio do carvao diante de um modelo energético de base hidroelétrica en- tao em expansio no pais e da progressiva importancia da questo ambiental (fator crucial relacionado a mineragao, dado o amplo potencial poluente do carvao). Tais retomadas, pontuais, eram favo- recidas pelas sucessivas crises mundiais do petréleo, que tendiam a abrir mercados para o minério, Além disso, aos poucos as minas subterraneas da regidio foram abandonadas ¢ a extragao se restrin- giu a minas de superficie. Atualmente, a produgao de carvao no Rio Grande do Sul esta totalmente restrita a minas de superficie. A Copelmi Mineragio, su- cessora do Cadem, mantém a extragdo em Butid, Minas do Leao, Cachocira do Sul, Charqueadas e Triunfo. A principal mina em ati- vidade € a Mina do Recreio, entre os hoje municipios de Butié e Minas do Ledo. A CRM, empresa de economia mista que nasceu do DACM, explora as jazidas de Candiota, Ledo e Irui. Um detalhe curioso & que essa empresa editava, até poucos anos atrds, como "© Relatério da Comissio de Utilizagio na $04" sessii ordindria do Indiistria da Extrago do Carvéo. In: A batalha do carvéo, op. cit., p. 140-141. Ressal- ve-se a aparente hegemonia de dirigentes catarinenses no sindicato patronal época. 54 Clarice Gontarski Speranza veiculo institucional dirigido aos operarios, um jornal denominado oO Lampido, mesma denominagao do periddico publicado pelo PCB as minae de Sao Jerénimo nos anos 50”, num mecanismo talvez nao premeditado de reelaboragio e apropriagiio das memorias de luta da comunidade. O cotidiano de trabalho : A ascensio e¢ 0 apogeu econémico da mineragio de carvio no Rio Grande do Sul so fortemente marcados pela intervengao do Estado, tanto no incentivo a produgao quanto em tentativas de regu- lamentagao, fiscalizagaio e mediagao das relagdes de trabalho. Essa intervengao parte nao apenas do projeto desenvolvimentista e cor- Porativista do primeiro governo Vargas, mas também da propria solicitagio de patrées e operdrios, interessados em garantir vanta- gens ou condigées de trabalho. Além disso, os integrantes do Estado pés-30 também sao homens que muitas vezes tinham ligagdes proximas tanto com em- presarios quanto com trabalhadores. O exemplo mais candente tal- vez seja 0 do ja citado Lindolfo Collor. Nao é demais lembrar que foi na gestdo dele no Ministério do Trabalho, Indtistria e Comércio que foram definidas mudangas importantes em relagdo ao funciona- mento dos sindicatos no pais, constituidas as juntas de conciliagio para patrdes e empregados, regulamentada a jornada didria de tra- balho, entre outros. Collor era um grande defensor da ideia de coo- Peas ee nas relagdes de trabalho, alicerce da Justiga Em 1932, pouco depois de deixar o governo, Collor recebeu do /executivo Roberto Cardoso 0 convite para ser diretor da Compa- nhia Carbonifera Rio-Grandense. A carta de Cardoso a Collor indi- cama telagéo de proximidade entre os dois, com expressdes como distinto amigo” e “um abraco do amigo certo”. Collor respondeu agradecendo e aceitando 0 convite, que debitou a “cativante genti- ” Sobre O Lampido, ver MARGAL, Jofio Batista. A i . 5 imprensa oper i 4 lo Sul. Porto Alegre: edigio do autor, 2004, p. 265. ie acprina eas SOUZA, S. F, op. cit., p. 61-62. Cavando direitos 55 leza” de Cardoso”, pedindo-lhe enfaticamente que lesse uma “en- trevista” sua (nos moldes de hoje, um artigo, pois nao ha nenhum. entrevistador aparente) prestes a ser publicada na imprensa a res- peito das impressées que tivera das minas do Butia®. O texto a que o ex-ministro se referia 6 um apanhado de elo- gios 4 “organizacio social” da empresa, que teria, conforme Collor, ‘os servicos de assisténcia social “dos melhores e mais adiantados no pais”, Ele também definia os salarios dos trabalhadores como “amplamente remuneradores, de acordo com a capacidade de traba- lho”, num ambiente de “profunda simpatia humana” e “perfeita con- fraternizagao entre dirigentes e dirigidos”*'. Mas os funcionarios dos érgios criados sob a influéncia das ideias de cooperagiio defendidas por Collor tiveram uma visao bem menos indulgente e comprometida das minas. Uma série de relatérios de inspetores governamentais realizados nos anos 40 se aproxima ‘bem mais do quadro de bestialidade descrito por Jover Telles do que do panorama réseo delineado por Collor. Conforme um desses rela- trios, referente a uma inspeciio feita por comissio especial designa- da pelo Ministério do Trabalho em 1944, os mineiros do subsolo em So Jeronimo estavam expostos permanentemente a riscos de aciden- tes ¢ doengas, agravadas pelas precirias condigées de trabalho, Um dos principais riscos era 0 de choques clétricos. A produ go de carvio era tracionada por guinchos ou pequenas locomoti- vas movidas 4 eletricidade (corrente de 220 volts), e os cabos elétri- cos desencapados suspensos nos tetos baixos dos tineis podiam provocar choques fatais. A comissao relatou ainda que as maquinas cortadeiras empregadas na abertura das galerias, ao rasgar brechas ® & troca de correspondéncias ocorre em junho, trés meses depois da saida de Color do Ministério. Em fins do mesmo ano, estouraria a Revolugio Constitucionalista, que Collor apoiou, tendo sido obrigado posteriormente a exilar-se na Argentina. Ver LIN- DOLFO COLLOR no Dossié Era Vargas! CPDOC. Disponivel em: . Acesso em: 26 set, 2011

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