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% . My : D eid ! f ! K. ff 4 a : } ‘ : ; ; t ¥ i x | 7 i » YE ENUM TST Aor | PANT ESTARAO AS PRISOES OBSOLETAS? Traducdo Marina Vargas I edigéo DIFEL Rio de Janeiro | 2018 Copyright © Angela Davis, 2003 Originalmente publicado por Seven Stories Press, Inc., Nova York, EUA, 2003, Publicado mediante acordo especial com SEVEN STORIES PRESS em combinagio com seu agente designado Villas-Boas & Moss Agencia e Consultoria Literaria. Titulo original: Are Prisons Obsolete? Imagens de capa: art-sonik/iStock (cerca); NikolaVukojevic/iStock (textura) Texto revisado segundo 0 novo Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa 2018 Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALOGACAO NA PUBLICACAO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Davis, Angela, 1944- D292e _Estardo as prisdes obsoletas? / Angela Davis; traducao de Marina Vargas. ~ 1* ed. - Rio de Janeiro: Difel, 2018. 144 ps 21 cm. Tradugio de: are prisons obsolete? ISBN 978-85-7432-148-6, 1, Prisdes - Aspectos sociais. 2. Sociologia. I. Vargas, Marina. Il. Titulo. CDD: 365 18-48836 CDU: 343.811 Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecdria CRB-7/6439 Todos os direitos reservados. Nao é permitida a reprodugdo total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorizagao por escrito da Editora. Direitos exclusivos de publicagéo em lingua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela: DIFEL - selo editorial da EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 - 2° andar - Sao Crist6vao 20921-380 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (21) 2585-2000 - Fax: (21) 2585-2084 Atendimento e venda direta ao leitor: mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002 Sumario Ayradecimentos CAPITULO 1 Introdugito: Reformar ou abolir o sistema prisional? CAPITULO 2 Hacravidao, direitos civis e perspectivas abolicionistas em relagio a prisao CAPITULO 3 Aprisionamento e reforma CARMTULO 4 (Como o género estrutura o sistema prisional CAPITULO 5 © complexo industrial-prisional CAPITULO 6 Alternativas abolicionistas Heferéncias Notas 43 65 91 3 127 131 Agradecimentos flu no deveria ser considerada a nica autora deste livro, pois suas ideias refletem varias formas de colaboragdo, nos ultimos seis 40s, com ativistas, estudiosos, prisioneiros e agentes culturais «ue tentaram revelar e discutir o impacto do complexo industrial- privional na vida de pessoas — dentro e fora das prisGes —- em todo 0 mundo, O comité organizador da conferéncia Critical feaistance: Beyond the Prison Industrial Complex [Resisténcia crltica; Além do sistema industrial-prisional], realizada em Berkeley em) 1998, inclufa Bo (rita d. brown), Ellen Barry, Jennifer Beach, Howe Braz, Julie Browne, Cynthia Chandler, Kamari Clarke, Leslie DiBenedetto Skopek, Gita Drury, Rayne Galbraith, Ruthie Gilmore, Naneen Karraker, Terry Kupers, Rachel Lederman, Joyce Miller, Dorsey Nunn, Dylan Rodriguez, Eli Rosenblatt, Jar gal, Cassandra Shaylor, Andrea Smith, Nancy Stoller, Julia Sudbury, Robin Templeton e Suran Thrift. Durante o longo srocesso de coordenar os planos para essa conferéncia, 4 qual compareceram mais de 3 mil pessoas, discutimos varias quest6es sue apresento neste livro. Agradego aos membros do comité, inclusive aqueles que usaram a conferéncia como base para criar 4 orjantzagio Critical Resistance. Em 2000, eu era membro do sriipo de pesquisa residente do Instituto de Pesquisa em Ciéncias Humanas da Universidade da California e tive a oportunidade de ESTARAO AS PRISOBS OBSOLETAS? participar de discusses regulares sobre muitos desses assuntos. Agradego aos membros do grupo — Gina Dent, Ruth Gilmore, Avery Gordon, David Goldberg, Nancy Schepper Hughes e Sandy Barringer —, por seus conhecimentos inestimaveis. Cassandra Shaylor e eu escrevemos um relatério sobre mulheres negras e 0 complexo industrial-prisional para a Conferéncia Mundial contra o Racismo de 2001, e muitas das ideias presentes nele estao neste livro. Também recorri a outros artigos recentes que publiquci em diversas coletaneas. Nos ultimos cinco anos, Gina Dente cu ministramos varias palestras juntas, publicamos em conjunto ¢ tivemos longas discussdes sobre 0 que significa realizar, como intelectuais e ativistas, trabalhos que nos estimulem a imaginar um mundo sem prisdes. Agradeco a ela por ler o manuscrito ¢ sou profundamente grata por seu apoio intelectual e emocional. Por fim, agradeco a Greg Ruggiero, o editor desta série, por sua paciéncia e seu estimulo. Introdugdo: Reformar ou abolir o sistema prisional? Na maior parte do mundo, é tido como evidente que uma pessoa »sndlenada por um crime seja mandada para a prisao. Em alguns piles incluindo os Estados Unidos —, onde a pena capital ainda # ie fol ubolida, um pequeno, porém significativo mimero de pes- » ee condenado a morte por crimes considerados especialmente p/ave% Muitos estao familiarizados com a campanha para abolir # pera de morte. Na verdade, ela ja foi abolida na maioria dos ilees Alé mesmo os defensores mais ferrenhos da pena capital ft onhecem que esta enfrenta sérios desafios. Poucas pessoas » tan dificil imaginar a vida sem a pena de morte. J). 4 prinio, por outro lado, é encarada como um aspecto ine- + t/Avel e permanente de nossa vida social. A maioria das pessoas fy 4 bastante surpresa ao saber que o movimento pela aboligao das pees Lambeém tem uma longa histéria, que remonta ao surgi- Wenite listérico das prisées como a principal forma de punigao. 1) verdad, a reagio mais natural ¢ presumir que os ativistas Ploiaili = mesmo aqueles que conscientemente se referem “ativistas antiprisionais” — desejam apenas me thorir as condigdes nas prisdes ou talvez realizar as reformas 9) eamos como ESTARAO AS PRISOES OBSOLETAS? mais fundamentais no sistema prisional. Na maioria dos circulos, a abolicao das prisdes é simplesmente impensavel e implausivel Aqueles que defendem o fim das prisdes sao rejeitados como idealistas e utépicos cujas ideias sio, na melhor das hipdteses, pouco realistas e impraticdveis e, na pior delas, ilusérias e tolas, Isso exemplifica como é dificil imaginar uma ordem social que nao dependa da ameaca de enclausurar pessoas em lugares ter riveis destinados a isol4-las de sua familia e de sua comunidade, A prisdo é considerada algo tao “natural” que é extremamente dificil imaginar a vida sem ela. Tenho a esperanga de que este livro encoraje os leitores a questionar suas proprias certezas a respeito das prisdes. Muitas pessoas jé chegaram A conclusdo de que a pena de morte é uma forma de punicdo ultrapassada que viola principios basicos dos direitos humanos. Esta na hora, acredito, de estimular discussées similares a respeito do encarceramento, Durante a minha carreira como ativista antiprisional, vi a populagao das prisdes norte -americanas aumentar com tanta rapidez que muitas pessoas nay comunidades negras, latinas e de nativos americanos, atualmente, estéo muito mais propensas a ir para a prisdo do que a ter uma educacao decente. Quando um grande numero de jovens decide se alistar nas forcas armadas a fim de escapar da inevitabilidade de uma temporada na prisdo, deverfamos nos perguntar se nio € hora de tentar oferecer melhores opgées. Discutir se a prisdo se tornou uma instituigdo obsoleta passou aser algo especialmente urgente diante do fato de que mais de 2 mi Thdes de pessoas (de um total mundial de 9 milhées) atualmente vivem em prisées, cadeias, reformatérios e centros de detengao de imigrantes nos Estados Unidos. Estamos dispostos a relegar un numero cada vez maior de pessoas de comunidades racialmente oprimidas a uma existéncia isolada, marcada por regimes autori 10 INTRODUGAO firlos, violéncia, doengas e tecnologias de reclusdo que produzem se vera instabilidade mental? De acordo com um estudo recente, f ve] que haja o dobro de pessoas sofrendo de doengas mentais em cadeias e prisGes do que em todos os hospitais psiquiatricos sos Uatados Unidos! Quando comecei a me envolver com o ativismo antiprisio- fal, no fim da década de 1960, fiquei estarrecida ao descobrir sie Haquela época havia quase 200 mil pessoas na prisio nos FT tados Unidos, Se alguém tivesse me dito que em trés décadas Haveria dez vezes mais, eu teria ficado absolutamente incrédula. Iiayino que teria respondido algo como: “Por mais racista e shlidemocratico que este pafs possa ser [lembremos que naquela *pori as demandas do movimento pelos Direitos Civis ainda #)0 eslavam consolidadas], eu nao acredito que o governo Horle-americano seja capaz de encarcerar tantas pessoas sem }Pevocar uma poderosa resisténcia publica. Nao, isso nunca vai » ontecer, a nado ser que este pafs mergulhe no fascismo.” Essa prevavelmente teria sido a minha reagao trinta anos atrds. A fe slidade é que tivemos que inaugurar o século XXI aceitando » filo de que 2 milhoes de pessoas — um grupo mais numeroso He jue a populacio de muitos paises — estao vivendo sua vida +f lugares como Sing Sing, Leavenworth, San Quentin e o ‘ederal para Mulheres de Alderson. A gravidade ‘Joe fiimeros fica ainda mais evidente quando consideramos ‘ados Unidos representa menos de 5% do ffal mundial, ao passo que mais de 20% da populagao carcerdria /enial eatd em territorio norte-americano. Nas palavras de J etl Currie, “a prisdo se tornou uma presenga dominante em ees socledace de uma forma sem paralelos em nossa histéria oy fe Hiletoria de qualquer outra democracia industrial. Exceto 1) grandes yuerras, o encarceramento em massa foi o programa Peformatério He A populagdo dos MW ESTARAO AS PRISOES OBSOLETAS? social governamental implantado de forma mais abrangente em nosso tempo”. Ao pensar na possivel obsolescéncia do sistema prisional, devemos nos perguntar como tantas pessoas foram parar na prisdo sem que houvesse maiores debates sobre a eficdcia do en- carceramento. Quando, na década de 1980, durante o que ficou conhecido como Era Reagan, houve um esforgo para construir mais prisées e encarcerar um ntimero cada vez maior de pessoas, politicos argumentaram que medidas “severas no combate ao crime” — incluindo algumas detengées e penas mais longas — manteriam as comunidades livres da criminalidade. No entanto, apratica do encarceramento em massa durante esse periodo teve pouco ou nenhum efeito sobre as estatisticas oficiais de crimi- nalidade. Na realidade, o padrao mais ébvio foi que populagées carcerdrias maiores nao levaram a comunidades mais seguras, mas a populagées carcerdrias ainda maiores. Cada nova prisaio se multiplicava em mais uma nova prisdo. E conforme o sistema prisional norte-americano se expandia, expandia-se também o envolvimento corporativo na constru¢do, no fornecimento de bens e servicos e no uso da mio de obra prisional. Por causa das vultosas quantias que a construcdo e a administracao de prisdes comegaram aatrair — da industria da construgdo ao fornecimen- to de alimentos e cuidados médicos —, de uma forma que relem- brava o surgimento do complexo industrial-militar, comegamos a falar de um “complexo industrial-prisional”> Vejamos, por exemplo, o caso da Califérnia, cuja paisagem foi completamente prisionarizada ao longo dos ultimos vinte anos, A primeira prisdo estadual da California foi San Quentin, aberta em 1852.4 Folsom, outra instituigao conhecida, comegou a funcionar em 1880, Entre 1880 e 1933, quando uma unidade para mulheres foi aberta em Tehachapi, nem uma nica nova prisao foi 2 INTRODUGAO construida. Em 1952, o Instituto para Mulheres da California fol inaugurado, e Tehachapi se tornou uma nova prisao para homens. Ao todo, entre 1852 e 1955, nove prisdes foram construidas no estado. Entre 1962 € 1965, dois campos foram estabelecidos, junto com o Centro de Reabilitagao da California. Nem uma tinica pri- sao foi aberta durante a segunda metade dos anos 1960, tampouco durante toda a década de 1970. Na década de 1980 — ou seja, durante 0 mandato de Ronald Reagan —, entretanto, teve inicio um grande projeto de cons- trugdo de prisées. Nove, incluindo a Instituigéo para Mulheres do Norte da California, foram inauguradas entre 1984 e 1989. Lembremos que a construgao das nove primeiras prisdes da California tinha levado mais de cem anos. Em menos de uma década, o nimero de prisdes no estado dobrou. E durante os anos 1990, doze novas foram abertas, incluindo mais duas des- tinadas a mulheres. Em 1995, a Valley State Prison for Women foi inaugurada. De acordo com sua declaragao de objetivos, ela “fornece 1.980 leitos para o superlotado sistema prisional feminino da California”. Entretanto, em 2002, havia 3.570 pri- sioneiras,' e as duas outras pris6es femininas do estado estavam igualmente superlotadas. Atualmente ha 33 penitenciarias, 38 campos de detengao, 16 instituigdes correcionais comunitarias e cinco pequenas institui- es para prisioneiras maes na California. Em 2002, havia 157.979 pessoas encarceradas nessas instituicdes, incluindo cerca de 20 mil pessoas que o Estado mantinha presas por infragGes relaciona- das a imigragao. A composi¢ao racial dessa populagao carceréria € reveladora. Os latinos, que agora sdo a maioria, correspondem a 35,2%; os afro-americanos, a 30%; e prisioneiros brancos, a 29,2%.° Hoje hé mais mulheres presas no estado da California do que havia em todo 0 pais no inicio da década de 1970. Na verdade, 13 ‘TARAO AS PRISOES OBSOLETAS? 4 California tem a maior penitencidria feminina do mundo, a Valley State Prison for Women,* com mais de 3.500 internas. Localizada na mesma cidade que a Valley State e literalmente do outro lado da rua, fica a segunda maior prisdo para mulheres do mundo — a Central California Women’s Facility —, cujo numero de detentas em 2002 também girava em torno de 3.500.” Se examinarmos um mapa da California coma localizagao das 33 prisdes do estado, veremos que a tinica drea que nao tem uma alla concentragao de institui¢ées prisionais é a regido ao norte de Sacramento. Ainda assim, h4 duas prises na cidade de Susanville, ea Pelican Bay, uma das conhecidas prisdes de seguranga su- permaxima do estado, fica proxima da divisa com o Oregon. O artista californiano Sandow Birk se inspirou na colonizacdo da paisagem pelas prisGes para produzir uma série de 33 pinturas de paisagem retratando essas instituicdes e seus arredores. Elas esto reunidas em seu livro Incarcerated: Visions of California in the Twenty-first Century$ Apresentei essa breve narrativa da prisionarizacao da paisa- gem da Califérnia a fim de permitir que os leitores tenham uma ideia de como foi facil produzir um sistema de encarceramento em grande escala com o consentimento implicito da populagao. Por que as pessoas presumiram com tanta rapidez que aprisionar uma proporgao cada vez maior da populagao norte-americana ajudaria aqueles que vivem em liberdade a se sentirem mais seguros e mais protegidos? Essa questao pode ser formulada em termos mais gerais. Por que as prisdes tendem a fazer com que as pessoas pensem que seus proprios direitos e liberdades estao * Em janeiro de 2013, a Valley State Prison for Women completou a transi¢ao para se tornar uma prisdo destinada a abrigar criminosos de baixa periculo- sidade do sexo masculino, passando a se chamar apenas Valley State Prison. (N. da) 4 INTRODUGAO mais protegidos do que estariam se elas nao existissem? Que outras raz6es poderia haver para a rapidez com que as prisécs comegaram a colonizar a paisagem da California? A gedgrafa Ruth Gilmore descreve a expansio prisional na California como “uma solugao geografica para problemas so- cioeconémicos”” Sua andlise do complexo industrial-prisional californiano descreve esses desdobramentos como uma resposta a excedentes de capital, terra, mao de obra e capacidade estatal. As novas prisGes californianas estao localizadas, em sua maio- ria, em terras rurais desvalorizadas; na verdade, no que eram antes hectares de terras agricolas irrigadas. (...) O estado as comprou de grandes proprietarios. E assegurou as pequenas cidades em recessio que agora vivem a sombra de prisdes quea nova industria, nao poluente e A prova de crises, impulsionaria a revitalizagao financeira da regio.” No entanto, como salienta Gilmore, nem a criacdo de empregos nem a revitalizagéo econémica mais geral prometidas pelas pri- s6es aconteceram. Ao mesmo tempo, essa promessa de progresso \juda a compreender por que os legisladores e eleitores da California decidiram aprovar a construgao de todas essas novas penitencidrias. As pessoas queriam acreditar que as prisdes nao Apenas reduziriam a criminalidade, mas também gerariam em- p mais remotos. nos se estimulariam o desenvolvimento econdmico nos lugares No fundo, ha uma questdo fundamental: por que considera- m8 as prisdes algo incontestavel? Embora uma proporgio relati- vamente pequena da populagao jd tenha vivenciado diretamente 4s condigdes de vida dentro de uma prisao, o mesmo nao é verda- deiro nas comunidades negras e latinas pobres. Tampouco é em 15 ESTARAO AS PRISOES OBSOLETAS? comunidades de nativos americanos ou em certas comunidades de asiitico-americanos. No entanto, mesmo entre essas pessoas que lamentavelmente tém de aceitar as sentengas condenatérias — em especial os jovens — como uma dimensdo costumeira da vida em comunidade, é pouco admissivel se envolver em discussdes ptblicas sérias sobre a vida na prisdo ou alternativas radicais ao encarceramento. E como se a prisdo fosse um fato inevitavel da vida, como o nascimento e a morte. De modo geral, as pessoas tendem a consideré-las algo natural. £ dificil imaginar a vida sem elas. Ao mesmo tempo, ha relutancia em enfrentar a realidade que se esconde nas pris6es, medo de pensar no que acontece dentro delas. Dessa maneira, o carcere estd presente em nossa vida e, ao mesmo tempo, esté ausente de nossa vida. Pensar nessa presenga e nessa auséncia simultaneas € comegar a compreender o papel desempenhado pela ideologia em modelar a forma como interagimos com nosso entorno social. Consideramos as pris6es algo natural, mas com frequéncia temos medo de enfrentar as realidades que elas produzem. Afinal, nin- guém quer ser preso. Como seria angustiante demais lidar com a possibilidade de que qualquer pessoa, incluindo nés mesmos, pode se tornar um detento, tendemos a pensar na priséo como algo desconectado de nossa vida. Isso é verdade até mesmo para alguns de nés, tanto mulheres quanto homens, que ja vivenciaram © encarceramento. Assim, pensamos na prisao como um destino reservado a ou- tros, um destino reservado aos “malfeitores”, para usar um termo popularizado por George W. Bush. Devido ao poder persistente do racismo, “criminosos” e “malfeitores” so, no imaginario coletivo, idealizados como pessoas de cor. A prisao, dessa forma, funciona ideologicamente como um local abstrato no qual os indesejaveis silo depositados, livrando-nos da responsabilidade de pensar sobre 16 INTRODUGAO, 0s prisioneiros s4o oriundos em nuimeros tao desproporciona Esse é 0 trabalho ideoldgico que a prisao realiza — ela nos livra da responsabilidade de nos envolver seriamente com os problemas de nossa sociedade, especialmente com aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo global. © que, por exemplo, deixamos de enxergar quando tentamos pensar sobre a expansio das prisées sem abordar os desdo- bramentos econémicos mais amplos? Vivemos em uma era de corporagées migrantes. A fim de escapar da mao de obra sindi- calizada nos Estados Unidos — e consequentemente de salarios maiores, beneficios e assim por diante —, as corporagoes correm o mundo em busca de paises que forne¢am mio de obra barata. Essa migragao corporativa deixa comunidades inteiras mergu- Ihadas no caos. Um grande niimero de pessoas perde o emprego ea perspectiva de empregos futuros. Como a base econémica dessas comunidades é destruida, a educacio e outros servigos sociais basicos sao profundamente afetados. Esse processo torna os homens, mulheres e criangas que vivem nessas comunidades destruidas candidatos perfeitos ao encarceramento. Nesse interim, corporagées associadas a industria da punicao lucram com o sistema que administra os prisioneiros e passam a ter claro interesse no crescimento continuo das populagdes carcerdrias. Para simplificar, estamos na era do complexo in- dustrial-prisional. A prisdo se tornou um buraco negro no qual sio depositados os detritos do capitalismo contemporaneo. O encarceramento em massa gera lucros enquanto devora a riqueza social, tendendo, dessa forma, a reproduzir justamente as condicGes que levam as pessoas a prisdo. Ha, assim, conexdes reais e muitas vezes complexas entre a desindustrializagéo da economia — processo que chegou ao auge na década de 1980 —e 7

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