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1|Five Nights at Freddy’s: Fazbear do Terror #3

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five nights at freddy’s
fazbear do terror #3:
1:35 AM

FIVE NIGHTS AT FREDDY’S: FAZBEAR FRIGHT #3 - 1:35 AM


(FAZBEAR DO TERROR #3 - 1:35 AM)
SCOTT CAWTHON, ELLEY COOPER, ANDREA WAGGENER

Traduzido e revisado por Sorinha Phantasie, TiuNight e Lobo.


Editado por Sorinha Phantasie e TiuNight.

Esse livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são obra da
imaginação do autor ou usados de forma fictícia. Quaisquer semelhanças com eventos, locais ou
pessoas, vivas ou mortas, são coincidências.

FIVE NIGHTS AT FREDDY’S © 2020 Scott Cawthon.


Todos os direitos reservados.

Tradução em português brasileiro pela PHANTASIE TRANSLATE, 2021. A versão atual desta
tradução foi revisada e reenviada em 2022.
A tradução deste material foi elaborada e disponibilizada sem fins lucrativos. Se você pagou
pelo acesso a este livro, você foi enganado.
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indice
CAPA

CONTO 1: 1:35 AM

CONTO 2: LUGAR PARA MAIS UMA

CONTO 3: O GAROTO NOVO

EPÍLOGO: O FANTASMA REMENDADO PARTE 3

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—O
ba! Apita, apita, apita — cantou uma voz alta e aguda.
A música insana alcançou, como um gancho de cabo longo, o agradável
sonho de Delilah e rapidamente a arrancou de seu sono abençoado.
— O quê...? — murmurou Delilah, enquanto se sentava em meio a seus
lençóis amarrotados de flanela amarrotados, piscando frente ao sol que passava por entre as frestas
de suas persianas.
— Você me enche de alegria — continuou a cantora.
Delilah jogou o travesseiro contra a parede inadequada que separava seu apartamento do
apartamento vizinho. O travesseiro fez um pof satisfatório quando atingiu o pôster emoldurado que
estampava uma cena serena numa bela praia. Delilah olhou para o pôster com um grande desejo —
representava a vista que ela mais queria ter.
Mas Delilah não tinha vista para o mar. Tinha vista para as caçambas de lixo nos fundos
imundos da lanchonete vinte e quatro horas na qual trabalhava. Ela também não tinha serenidade.
Tinha sua vizinha irritante, Mary, que continuava cantando do fundo dos pulmões:
— Obrigada, obrigada, obrigada por começar o meu dia.
— Quem é que canta sobre despertadores? — ralhou Delilah, gemendo e esfregando os
olhos. Já era ruim o suficiente ter uma vizinha que cantava, mas era mil vezes pior que a tal vizinha
criasse suas próprias músicas idiotas e que sempre começasse o dia com uma sobre um despertador.
Despertadores já não eram ruins o suficiente sozinhos?
Verdade. Delilah olhou para o relógio.
— O quê? — Ela pulou da cama como se atirada por uma catapulta.
Agarrando o pequeno relógio de pilhas digital, Delilah olhou para a tela, que dizia 6:25 AM.
— Pra que é que você serve? — indagou Delilah, jogando o relógio sobre o edredom azul.
Delilah tinha um ódio patológico de despertadores. Era um vestígio dos dez meses que havia
passado em seu último lar adotivo, quase cinco anos antes, mas a vida no mundo real exigia o uso
deles, algo com que Delilah ainda estava aprendendo a lidar. Embora agora tivesse descoberto algo
que odiava ainda mais que despertadores: despertadores que não funcionavam.
Foi quando o celular de Delilah tocou. Quando atendeu, não esperou que a pessoa dissesse
alguma coisa. Falando por cima do barulho de pratos tilintantes e um amontoado de vozes, disse:
— Eu sei, Nate. Perdi a hora. Chego aí em trinta minutos.
— Já liguei pra Rianne e pedi pra te cobrir. Pode pegar o turno dela, o das duas horas.
Delilah suspirou. Ela odiava esse turno. Era o mais corrido.
Na verdade, ela odiava todos os turnos. Odiava turnos, ponto final.
Como gerente de turno na lanchonete, precisava trabalhar no turno que melhor se ajustasse
ao cronograma geral. Assim, seus “dias” variavam de seis a dois, dois a dez e dez a seis. Seu relógio
biológico estava tão bagunçado que ela praticamente dormia enquanto estava acordada e ficava
acordada enquanto dormia. Vivia num estado de exaustão perpétua. Sua mente estava sempre turva,
como se tivesse entrado névoa por seus ouvidos. E essa névoa não só diminuía sua capacidade de
pensar com clareza, como também tornava mais difícil para seu cérebro interagir com seus sentidos.
Era como se sua visão, audição e paladar estivessem sempre um pouco estranhos.
— Delilah? Posso contar com você para estar aqui às duas? — Nate praticamente gritou no
ouvido de Delilah.
— Sim, sim. Estarei aí.
Nate resmungou alguma coisa e desligou.
— Também te amo — Delilah disse ao celular antes de abaixá-lo.
Delilah olhou para sua cama tamanho queen. O colchão grosso e seu travesseiro especial de
espuma viscoelástica lhe acenavam como um amante abatido, convidando-a a voltar para cama.
Delilah queria muito ceder. Ela adorava dormir. Adorava estar em sua cama. Era como um casulo
— uma versão adulta dos fortes de cobertores que gostava de construir quando era pequena. Ela
passaria o dia inteiro na cama, se pudesse. O que mais queria era encontrar um daqueles empregos
home office que a deixassem trabalhar na cama de pijama. Não seria o ideal para seu empregador,
porque ela só ia querer ficar deitada e dormir, mas seria melhor para sua saúde. Ela poderia
organizar seus próprios turnos se trabalhasse por conta própria.
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Mas toda a sua busca por um emprego assim não deu em nada além de golpes. O único lugar
que quis contratá-la depois que se separou de Richard foi a lanchonete. Tudo porque tinha passado
por uma unidade de internação para menores infratores e abandonado o ensino médio por motivos
que já nem lembrava mais. A vida era uma droga.
Delilah olhou para o despertador inútil. Não. Não podia arriscar. Tinha que ficar acordada.
Mas como?
No apartamento vizinho, Mary repetiu pelo menos três vezes sua música de despertador
idiota. Delilah sabia que não adiantava bater na parede ou ir até lá para pedir a Mary que abaixasse
o tom. Mary ainda não estava nem cantando o mais alto que podia. Delilah não sabia bem o que
havia de errado com a mulher — só sabia que suas queixas anteriores haviam desaparecido no
vácuo que parecia formar a mente escondida sob os grossos cabelos grisalhos de Mary.
Delilah não queria ficar no apartamento ouvindo Mary. Podia muito bem fazer algo útil.
Adentrando seu minúsculo banheiro de azulejos cor-de-rosa, Delilah escovou os dentes e
vestiu uma camiseta vermelha e um moletom cinza. Imaginava que podia sair para dar uma corrida.
Fazia pelo menos três dias desde a última vez que se exercitara. Talvez tivesse algo a ver com a
névoa em sua cabeça.
Nah. Ela sabia que isso não era verdade. Tentava se exercitar como uma solução para sua
exaustão constante. Mas não parecia importar o quanto malhasse. Seu corpo não gostava de ficar
mudando de programação e horário como um beija-flor voando de um lado para o outro.
“É só porque é inverno”, dizia Harper, a melhor amiga de Delilah. “Quando chegar a
primavera, você vai acordar, igual as flores”.
Delilah duvidava disso, e com razão. A primavera tinha chegado. Tudo estava florescendo...
exceto os níveis de energia de Delilah. Mas quer isso fosse ajudar sua cabeça ou não, Delilah calçou
os tênis de corrida e enfiou as chaves, o celular, dinheiro, a carteira de motorista e um cartão de
crédito na bolsa de corrida, que depois pendurou no pescoço.
Deixando seu apartamentinho barulhento, — Mary ainda estava cantando — Delilah saiu
num corredor acarpetado que cheirava a bacon, café e cola. Qual era a da cola? Delilah franziu o
nariz enquanto descia três lances de escadas estreitas e irregulares. O síndico provavelmente estava
consertando a parede ou algo do tipo. Ela não morava exatamente num lugar chique.
Quando Delilah chegou à portaria do prédio, dois adolescentes largados e mal-humorados
estavam passando por lá. Eles a encararam. Ela os ignorou, passando pela porta cinza de metal
arranhada bem a tempo de ver o sol se enfiando atrás de uma grande nuvem bem branca. Era um
daqueles dias de primavera brilhantes e arejados que Harper amava e Delilah odiava. Se ela morasse
na costa ou em uma floresta, talvez curtisse o sol vibrante e as correntes de ar vívidas. Cercada pela
natureza e talvez por flores prestes a desabrochar, esse dia pareceria certo. Mas ali?
Ali, naquele conglomerado urbano de lojas de rua, oficinas mecânicas, concessionárias de
carros, terrenos baldios e residências de baixa renda, o brilho e a brisa não eram agradáveis — era
dissonante. Uma tiara num porco pareceria adequada.
Tentando ignorar os cheiros de alface podre, dos exaustores e do óleo de fritura velho e
rançoso, Delilah apoiou o pé no lado do canteiro de flores vazio em frente ao prédio quadrado de
paredes cinza. Talvez parecesse mais a primavera se os canteiros estivessem repletos de flores em
vez de pedras. Delilah se espreguiçou e então sacudiu a cabeça diante de sua negatividade.
— Você é melhor que isso — ela se repreendeu.
Correndo num ritmo moderado, Delilah se voltou para o norte, por um caminho que a
levaria à área residencial mais próxima, onde poderia passar por casas e árvores em vez de lojas
movimentadas e carros.
Ela precisava sair daquela espiral negra em que estava. Já passara por terapia o suficiente na
adolescência para saber que tinha uma “personalidade obsessiva” — toda vez que se agarrava a uma
perspectiva, não conseguia mais se soltar. No momento, estava presa à ideia de que sua vida era
péssima. E continuaria sendo péssima enquanto não conseguisse outra perspectiva.
Quando seus pés encontraram a calçada irregular, Delilah tentou limpar a névoa de seu
cérebro pensando em coisas felizes.

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— A cada novo dia, melhor eu vou ficando — cantarolou. Após repetir a afirmação dez
vezes ou mais, ela começou a se sentir rabugenta. Então, trocou as afirmações por uma imagem da
vida que queria estar vivendo. Isso a fez pensar na vida que estava vivendo com Richard, o que só a
jogou ainda mais fundo no poço de negatividade.
Quando Richard decidiu que queria substituir a companheira de cabelos e olhos escuros por
uma esposa loira de olhos azuis, Delilah não teve muitas opções. Tinha assinado um acordo pré-
nupcial antes de se casar com Richard. Não tinha nada quando se casaram e também não levou nada
no divórcio. Bem, não nada. Recebeu o suficiente para conseguir um apartamento, alguns móveis
de segunda mão e seu sedã compacto de quinze anos. Conseguiu essas coisas depois de encontrar o
único lugar que estava disposto a contratá-la e treiná-la. Dado seu incrível currículo que contava
com “ensino médio incompleto”, “experiência como babá” e “trabalhou em uma rede de fast-food”,
teve sorte de conseguir o que conseguiu. E, tirando a carga horária terrível, o trabalho até que foi
bom para ela. Nate a enviara para um treinamento de administração e ela passou de garçonete à
gerente de turnos em apenas alguns meses. Aos vinte e três anos, era a gerente de turno mais jovem
da lanchonete.
— Viu só? — Delilah ofegou. — As coisas estão melhorando.
Ela se agarrou a esse pensamento tenuamente positivo enquanto corria pelo bairro velho e
maltrapilho que dava num parque industrial. O bairro era acabado demais para ser chamado de
bonito, mas era cheio de belos carvalhos antigos e álamos altos que balançavam com o vento suave
que soprava pela rua. Todas as árvores estavam cheias de pequenos brotos verdes claros. As folhas
suaves encorajavam pensamentos mais esperançosos, ainda que por apenas um minuto ou dois.
Ela se perguntou se as pessoas que moravam na área deixavam as árvores inspirá-las.
Olhando em volta, teve suas dúvidas. Algumas crianças apáticas esperavam os ônibus escolares
amarelos que vinham arrotando a fumaça do diesel enquanto avançavam atrás de Delilah. Um
sujeito mais velho com uma careca brilhante aparava um jardim cheio de ervas daninhas e uma
mulher cuja atitude parecia pior que a de Delilah estava na varanda da frente, olhando para uma
caneca de café.
Delilah decidiu que já tinha cansado daquela vizinhança — e da corrida também, a
propósito. Deu a volta em torno de uma loja de autopeças falida e se dirigiu de volta para casa.
Casa.
Se ao menos pudesse chamar seu apartamento de casa. Mas ele não era. Delilah tivera duas
casas em sua vida. Uma que dividiu com os pais, até que morreram quando ela tinha onze anos. Os
“lares” adotivos em que morou depois eram apenas lugares para passar o tempo. Sua outra casa fora
com Richard. Agora, só tinha um lugar onde dormia e nunca conseguia dormir o suficiente.
Ultimamente, a vida parecia apenas uma interrupção de sono irritante atrás da outra, como se
o mundo fosse um alarme que continuava disparando e a acordando de seus sonhos, o único lugar
onde conseguia encontrar um pensamento verdadeiramente feliz.

De volta ao apartamento, Delilah fez o possível para ignorar suas paredes verdes claras
praticamente vazias — não tinha tomado coragem para passar outra demão de tinta desde que se
mudara para lá. Ela tirou os sapatos e os deixou diligentemente diante da frente. Deu a volta no sofá
de couro bege surrado e ajeitou a manta verde e amarela pendurado nas costas. Delilah não gostava
da manta, mas Harper a costurara para ela. Um dia, Harper apareceu por ali e ficou arrasada quando
não viu a manta. Depois disso, Delilah passou a deixá-la a mostra.
“Só não esquece de colocar as pontinhas soltas de volta pra dentro”, Harper dissera a Delilah
quando lhe deu o presente. Levando em consideração que havia várias dessas pontas, era um pouco
complicado ficar fazendo isso.
No apartamento ao lado, Mary continuava cantarolando, enquanto Delilah tirava a camiseta
suada e abria o armário onde guardava seu estoque de biscoitos. O armário estava vazio. Claro.

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Suspirando, Delilah abriu a geladeira. Sabia que era uma ação fútil, já que, como não
cozinhava, não guardava nada na geladeira além de garrafas d’água, suco de maçã e uma marmita
pela metade com a comida da lanchonete. Uma das vantagens de trabalhar na lanchonete era que
recebia duas refeições gratuitas por turno. Isso a mantinha muito bem alimentada. Então, tudo o que
realmente precisava era de biscoitos, leite, algumas barras de cereal e comida congelada para as
noites em que não trabalhava.
A geladeira revelou que precisava não só de biscoitos, mas também de leite.
Foi quando a voz de Mary veio flutuando através da parede:
— A primavera chegou, os vermes vêm junto...
— Sim, é disso que tenho medo, Mary — disse Delilah.
Ela não podia ficar ali.
Entrando em seu pequeno banheiro, Delilah tomou um banho morno e então vestiu uma
legging marrom e uma jaqueta xadrez dourada e preta. Evitou olhar no espelho enquanto secava os
cabelos ondulados na altura dos ombros. Delilah não usava mais maquiagem. Em vez de gastar
dinheiro em cosméticos que atraíram atenção masculina indesejada, ela deixava o rosto natural e
guardava os dólares extras em sua conta poupança. Mesmo sem maquiagem, Delilah era bonita o
suficiente para fazer cabeças virarem. Uma agência de modelos na qual certa vez se inscrevera lhe
disse que ela estava a apenas um queixo grande de ter feições classicamente bonitas. Duas agências
chegaram a lhe passar o nome de cirurgiões plástico e pediram que voltasse depois que fizesse uma
pequena cirurgia no queixo e no maxilar.
Delilah tinha para si que, se não ia se maquiar, por que se olhar no espelho? Ela sabia como
era e, ultimamente, não estava muito interessada em olhar nos próprios olhos. Ela via algo lá que a
assustava, algo que a fazia pensar no que o futuro lhe reservava.
Ao lado, Mary cantava com todo o pulmão sobre visitar Marte.
— Pois vá, Mary — disse Delilah, desejando que Mary fosse a Marte... e não voltasse mais.
Pegando sua bolsa, Delilah foi para o carro. Imaginou que podia ir ao mercado, pegar leite e
biscoitos e ainda voltar a tempo de tirar uma soneca antes do trabalho.
Após visitar o mercado e reabastecer seu estoque de biscoitos de aveia e seu suprimento de
leite, Delilah deixou o estacionamento da loja pela saída dos fundos. Gostava de voltar para o
prédio pelas ruas mais tranquilas dos bairros ali em volta, em vez de pegar as quatro vias
congestionadas que atravessavam o coração da zona industrial e comercial onde morava.
O bairro por onde passava agora era um pouco melhor do que o outro por onde correra mais
cedo. Tinha casas maiores, gramados mais verdes e carros mais novos. A desvantagem era que o
bairro mais antigo tinha aqueles grandes carvalhos e álamos, enquanto que esse novo tinha só umas
cerejeiras nanicas. Mas tinha que admitir que as flores cor-de-rosa eram bonitas.
Virando a esquina ao lado de uma árvore particularmente florida, Delilah viu uma placa de
venda de garagem. A placa apontava para frente, então, por impulso, ela seguiu por ali. Mais duas
placas a orientaram a virar à direita e, finalmente, ela se viu diante de um sobrado estilo espanhol
que se assomava sobre várias mesas dobráveis com grandes pilhas de mercadorias domésticas.
Delilah não conseguiu se conter. Teve que parar.
Da mesma forma como Delilah tinha um fraco por ficar presa num padrão de pensamento,
também tinha um fraco por vendas de garagem. Era viciada nelas desde que era adolescente. Um de
seus terapeutas, Ali, tinha uma teoria sobre isso. Ali acreditava que Delilah adorava vendas de
garagem porque elas lhe davam vislumbres de uma vida em família. Elas a faziam lembrar de como
era ser “normal”.
Delilah não era uma compradora obsessiva. Sim, sempre havia ocasiões em que comprava
alguma coisa — inclusive, conseguira todos os seus móveis atuais em vendas de garagem. No
entanto, Delilah estava mais para uma observadora de vendas de garagem, uma arqueóloga de itens
domésticos, uma investigadora particular de “trecos”. Queria saber o que as pessoas usavam, o que
colecionavam, o que amavam e o que não queriam mais ter por perto. Isso a divertia.
Ponderando sobre o fato de que o leite só podia ficar no carro por cerca de quinze minutos,
Delilah estacionou o carro atrás de uma picape vermelha surrada. A picape e um Cadillac azul eram
os únicos carros estacionados na frente da casa. Apenas duas pessoas vagavam por entre as mesas.
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Uma das pessoas era uma mulher corpulenta que parecia interessada em utensílios de cozinha. A
outra era um rapaz ligeiramente jovem que estava vasculhando as pilhas de livros e discos. Delilah
assentiu para os dois e também para a mulher de meia-idade sentada ao lado de uma mesa de
piquenique sobre a qual havia uma caixa de metal, um bloco de papel e uma calculadora.
— Seja bem-vinda — disse a mulher.
Seus cabelos castanhos eram curtos e espetados e ela tinha os olhos bastante carregados com
delineador preto. Usava uma roupa de corrida amarela e carregava consigo um chihuahua caramelo,
tão quieto e dócil que Delilah começou a se perguntar se era real. Mas quando se aproximou para
passar a mão na cabeça, o cachorro abanou o rabo.
— Este é Mumford — disse a mulher.
— Olá, Mumford. — Delilah coçou Mumford atrás das orelhas, o que a tornou sua nova
melhor amiga.
Afastando-se de Mumford e seu humano, Delilah começou a explorar as pilhas intrigantes
em cada mesa. Cutucou uma série de pequenos aparelhos, ferramentas, jogos, quebra-cabeças,
eletrônicos e roupas, encontrando uma jaqueta de couro preta que a intrigou até que a cheirou e
ficou com o nariz cheio de bolas de naftalina velhas. Seguindo para a mesa ao lado, chegou à “seção
dos brinquedos”. Um único olhar para uma pilha de bonecas da moda obscureceu seu humor já
precário, porque as bonecas a lembraram de como era impossível impedir que outras crianças
adotivas brincassem com suas coisas na infância. Blocos a faziam pensar em um irmão adotivo do
qual ela se aproximara no lar adotivo número três, apenas para perdê-lo para a adoção uma semana
antes de ser transferida para outro lar.
Quando Delilah estava se preparando para se afastar da mesa, em busca de itens de
decoração, seu olhar pousou sobre uma boneca diferente. Com os cabelos castanhos encaracolados,
grandes olhos escuros e bochechas rosadas e rechonchudas, a boneca era quase idêntica ao bebê que
Delilah costumava imaginar ter um dia com Richard. No início do casamento, seu bebê era tão real
para ela quanto qualquer coisa no mundo físico. Ela tinha certeza de que seria uma mãe, tanta que
deu um nome ao bebê antes mesmo de ele ser concebido. Seu nome seria Emma.
Intrigada, Delilah deu a volta na mesa para se aproximar da boneca. Enfiada numa grande
caixa de madeira cheia de bichinhos de pelúcia e bugigangas eletrônicas, parte de seu lindo rostinho
de bebê estava sombreada pelo chapeuzinho azul da boneca. A aba larga do chapéu, franjada com
babados cor-de-rosa, parecia incongruentemente presa entre um aparelho de videogame e o que
parecia um avião de controle remoto. Delilah teve que mudar os dois objetos de lugar para libertar a
boneca, que tinha cerca de um metro de altura.
Usando um vestido azul comprido da década de 1980, com mangas bufantes, detalhes em
babados cor-de-rosa e um grande laço na cintura, a boneca era muito mais pesada do que Delilah
imaginara. Quando a examinou, Delilah notou que era porque a boneca era eletrônica.
Delilah pegou a etiqueta cor-de-rosa brilhante e o livreto de instruções pendurado no pulso
da boneca. “Meu nome é Ella”, dizia a etiqueta.
Ella. Tão parecido com Emma. Delilah sentiu um estranho comichão lhe atravessar o corpo.
Quão estranho era isso? Uma boneca que parecia o seu bebê há muito desejado e com um nome
próximo até demais para ser mera coincidência. Apesar que só podia ser uma coincidência, não é?
Delilah abriu o livreto. Seus olhos imediatamente se arregalaram. Uau. Era uma boneca de
alta tecnologia. De acordo com o livreto, Ella era uma “boneca ajudante” fabricada pela Fazbear
Entertainment.
— Fazbear Entertainment — murmurou Delilah. Nunca ouvira falar.
O livreto tinha uma lista do que Ella fora projetada para fazer — e a lista era impressionante.
Ella podia fazer todo tipo de coisa. Podia marcar a hora e funcionar como um despertador, gerenciar
compromissos, acompanhar listas, tirar fotos, ler histórias, cantar músicas e até servir bebidas.
Servir bebidas? Delilah sacudiu a cabeça.
Olhando em volta, Delilah ficou aliviada ao ver que ninguém estava prestando atenção em
seu interesse pela boneca. A mãe de Mumford estava ajudando o jovem a procurar discos. A mulher
corpulenta estava ocupada empilhando pratos de porcelana ao lado da caixa registadora de metal.
Ninguém mais tinha aparecido.
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Delilah continuou lendo. Ella, dizia o livreto, podia checar o nível de pH da água e também
fazer testes de personalidade quando você respondesse sua lista programada de 200 perguntas.
Como era possível que um brinquedo antigo fosse tão sofisticado?
Tanto o design de Ella quanto o de seu livreto sugeriam que suas roupas correspondiam ao
ano de fabricação. Ela não era nova, nem chegava perto. Ela fazia mesmo todas aquelas coisas?
Delilah virou Ella de costas e achou um bilhete preso em seu vestido. O bilhete explicava
que a única função de Ella que funcionava era o despertador. Delilah virou Ella novamente e viu
que tinha um pequeno relógio digital embutido no peito. Concentrando-se em seguir as instruções,
Delilah tentou ativar o recurso de despertador apertando uma sequência de pequenos botões que
encontrara na barriga redonda de Ella.
Delilah quase derrubou a pobre Ella quando o último botão que apertou fez seus olhos se
abrirem. Ela prendeu a respiração quando ouviu o estalo e seu batimento cardíaco quadruplicou em
um nanosegundo quando Ella passou do estado adormecido para acordado num único instante.
Delilah segurou Ella diante de si. Bem, ela precisava de um despertador. Checou a pequena
etiqueta de preço branca presa na nuca de Ella. Não estava tão ruim. Delilah podia pagar. E talvez
ainda conseguisse baixar o preço. Suas diversas visitas a vendas de garagem a transformaram numa
boa pechincheira.
Delilah pegou Ella e seguiu em direção a Mumford e sua mãe, que haviam voltado para trás
da caixa registradora. O jovem estava guardando uma caixa de discos em sua picape.
— Consegue abaixar quinze dólares desse preço? — perguntou Delilah. — Já que ela tem só
uma função?
A mulher estendeu a mão com as unhas vermelhas brilhantes. Virou Ella de costas, olhou o
preço e depois olhou para Delilah, que tentava parecer ansiosa e pobre ao mesmo tempo.
— Tá bom. Claro. Posso fazer isso.
Delilah sorriu.
— Ótimo.
Enquanto pagava, se orientou a notar como seu dia de fato tinha ficado melhor conforme
passava. Não tinha sido horrível ter dado uma boa corrida, comprado mais biscoitos e encontrado
uma boneca de alta tecnologia muito legal por um bom preço em uma venda de garagem. Ella daria
um ótimo assunto de conversa para deixar sobre a velha mesinha de café de carvalho de Delilah.
Harper ia amar Ella.
E agora, Delilah tinha um despertador funcionando! Poderia ir para casa, tirar uma soneca e
ainda ter uma forma de se certificar de que acordaria a tempo para o trabalho. Sim. As coisas
estavam melhorando. Talvez pudesse deixar para trás a ideia de que “a vida é uma merda”, afinal.

De volta ao apartamento, Delilah pôs Ella na mesa de cabeceira, sob o abajur de porcelana
branco. Ella, com seu vestido pomposo todo estufado e espalhado à sua volta, parecia muito bem
ali, contente até. Na verdade, parecia um pouco satisfeita consigo mesma, o que era, é claro, uma
projeção, porque Ella não tinha sequer ciência de si mesma. Era Delilah quem estava satisfeita
consigo mesma. Estava orgulhosa por ter achado uma forma de melhorar seu dia. Tinha deixado a
tristeza para trás. Isso por si só já era bastante impressionante.
Delilah checou seu relógio de pulso e configurou o relógio de Ella para ficar no mesmo
horário. Era quase 11h30 da manhã, então Delilah ainda podia dormir mais umas horas. Ajustando o
alarme de Ella para tocar à 1:35 PM, Delilah passou as mãos pelos lençóis e pela coberta para alisá-
los e então se deitou sobre eles, puxando o edredom até a altura do queixo, não porque estava frio
em seu apartamento, mas porque isso a fazia se sentir segura. Agradecida por Mary estar dormindo,
fazendo alguma coisa na rua ou por ter acabado com suas cordas vocais de tanto cantar, Delilah se
ajeitou e se deixou levar pelas correntes da sonolência até a abençoada inconsciência.

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O telefone tocou insistentemente, arruinando a paz de Delilah como um foguete destruindo
as paredes de um mosteiro. Ela levantou e pegou o celular, repreendendo-se por não tê-lo desligado
para que sua soneca não fosse interrompida.
— O quê? — rosnou.
— Onde diabos você está? — Nate rosnou de volta.
— Hã? Mas são... — Delilah olhou para Ella. Seu relógio marcava 2:25 PM. — Puta merda.
— É melhor estar aqui em quinze minutos ou nem precisa mais voltar.
Delilah tirou o celular da orelha bem a tempo de evitar o CLAP que sabia que viria. Nate
usava um telefone de fio antigo, do tipo com um gancho de metal para o receptor. Ele se expressava
pela força com a qual colocava o telefone no gancho após uma ligação. Agora, estava furioso.
Delilah correu para o banheiro, arrancando as roupas pelo caminho. Ela jogou água no rosto.
Passando uma escova pelo cabelo, correu de volta para o quarto, vestiu o uniforme azul-escuro e
pegou os sapatos de trabalho, os sapatos pretos horrorosos que Nate fazia todos os funcionários
usarem. Enquanto os amarrava, seu olhar pousou sobre Ella.
— Bem, você é uma decepção — disse à boneca.
Ella olhava para ela por entre seus cílios grossos. Um de seus cachos caíra sobre um olho.
Ela quase parecia travessa. Não era de se admirar que a boneca fosse tão barata. A única coisa que
funcionava era o relógio no meio do peito de Ella. Mas sem a função de despertador, de que servia
o relógio? Ella ainda era uma boneca bonita e ainda parecia o bebê que Delilah tanto desejava, mas
agora era mais um lembrete da frustração de Delilah do que qualquer outra coisa.
Terminando com os sapatos, Delilah pegou Ella na mesa de cabeceira. Por um segundo,
ficou maravilhada com o realismo da “pele” de bebê macia de Ella. Mas então foi para a sala, pegou
sua bolsa e saiu pela porta. Correndo pelo corredor até as escadas, Delilah sacudiu a cabeça quando
ouviu Mary exclamar:
— Eu amo esse mundo grande e maravilhoso!
Lá fora, o sol dera lugar no céu a um teto de nuvens baixas que cuspiam gotas de chuva
graúdas. Delilah parou para segurar a porta aberta para duas senhoras idosas que demoraram tempo
até demais para entrar. Então, deu a volta na lateral do prédio, indo até as caçambas de lixo.
As três caçambas verdes enormes que mais pareciam um trio de ogros ficavam nos limites
do estacionamento do prédio. Duas estavam abertas. Uma estava fechada. Delilah mirou na segunda
caçamba aberta e girou Ella num arco, soltando sua mãozinha no auge da curva. Ella voou pela
precipitação intermitente e aterrissou em meio a um baque metálico reverberante em uma das
caçambas abertas. Delilah estremeceu um pouco frente ao som, sentindo-se culpada por jogar fora
uma boneca que parecia com seu bebê, uma boneca com mãos surpreendentemente realísticas.
Delilah não viu em qual caçamba Ella aterrissara porque Nate apareceu na porta dos fundos
da lanchonete. Delilah acenou para ele.
— Está atrasada porque estava brincando com essa sua bonequinha? — indagou.
— Muito engraçado. — Delilah correu rumo à lanchonete e chegou à porta no momento em
que o chuvisco se transformou num temporal.
Nate recuou um passo para deixá-la passar e então fechou a porta diante do que agora mais
parecia um dilúvio. Delilah sentiu o cheiro da loção pós-barba de Nate, um aroma bastante sutil de
uísque do qual ele se orgulhava profundamente. “Másculo, não acha?”, ele perguntou na primeira
vez que experimentou o produto novo. Delilah tinha que admitir que era.
Desafiando o estereótipo do típico dono de lanchonete, Nate era alto, malhado, bonito e bem
arrumado. Com cerca de cinquenta anos, tinha cabelos pretos curtos que começavam a ficar
grisalhos e uma barba arrumada e bem aparada. Também tinha olhos cor-de-chumbo que poderiam
empalar alguém com seu desgosto. Ele estava apontando aqueles olhos para Delilah agora.
— Você tem sorte de ser boa e dos clientes te amarem — disse. — Mas precisa dar um jeito
no seu atraso. Não posso deixar passar pra sempre.
— Eu sei, eu sei. Estou tentando.
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— Aham, sei.

O turno de Delilah foi rápido. Essa era a vantagem de trabalhar das duas às dez. A correria
podia ser cansativa, mas pelo menos o tempo voava.
Delilah voltou ao apartamento por volta das 22h30, felizmente perdendo uma das músicas de
boa noite de Mary. O prédio estava bem quieto. Só que Delilah ouvia eram as músicas de rap que
vinham de um dos apartamentos no final do corredor e o som de risadas que vinham de uma TV no
andar de cima. Fechando a porta frente ao que mais parecia couve de Bruxelas queimada, Delilah
implorou para que o odor nocivo não a seguisse lá dentro, e não seguiu. Seu apartamento cheirava a
desinfetante pinho e laranjas. Cheirava melhor que Delilah, que estava cheirando à gordura, como
sempre ficava no final de um turno.
Tirando as roupas, ela as depositou no baú de cedro perto da porta. O baú, combinado com
uma bolsa de purificação de ar a carvão enfiada lá dentro, resolveu o problema do cheiro de gordura
que ela teve por semanas quando conseguiu o emprego.
No banho, Delilah se livrou do resto do cheiro de gordura. Depois, vestiu uma camisola de
mangas compridas vermelha e se acomodou na cama com metade de um pote com estrogonofe de
carne e vagem. O cozinheiro que trabalhava no turno das duas às dez era o melhor que Nate tinha.
O estrogonofe estava ótimo. Enquanto comia, Delilah assistiu à reprise de um programa de comédia
na TV antiga em cima de sua cômoda de carvalho antiga. O programa não a fez rir. Não a fez
sequer esboçar um sorriso. Só lhe ajudou a se sentir menos sozinha enquanto comia.
Por volta das 23h30, Delilah deixou o pote de isopor vazio sobre uma pilha de revistas de
decoração em sua mesa de cabeceira. Apagou a luz da luminária de porcelana e se encolheu de lado
na cama. As luzes dos postes que pairavam sobre o estacionamento lá fora projetavam sombras
sinistras e distorcidas por todo o quarto. Mais pareciam dedos ósseos gigantes que se lançavam em
direção à cama. Delilah fechou os olhos e desejou que o sono chegasse depressa... o que aconteceu.
E terminou tão depressa quanto chegou.
Os olhos de Delilah se abriram de súbito. A tela iluminada do seu não-despertador indicava
que era 1:35 AM.
Ela se sentou e olhou em volta. O que lhe havia acordado?
Olhando em direção à janela, ela esfregou os olhos. Tinha sido um som, uma espécie de som
intrusivo vindo de fora de sua janela. Teria sido uma campainha? Um zumbido?
Delilah inclinou a cabeça, tentando escutar. Não conseguiu ouvir nada além do barulho dos
carros na estrada.
Ela olhou de volta para o relógio. Agora era 1h36 da manhã.
Espera. Tinha acordado acordara à 1h35 da manhã. E havia ajustado o alarme da boneca
para tocar à 1h35. E se tivesse errado a configuração de AM/PM?
— Ops — sussurrou. — Desculpa, Ella.
Delilah chegou a pensar em sair para pegar a boneca que talvez ainda estivesse funcionando,
mas estava cansada demais. Daria uma olhada pela manhã.
Delilah se aconchegou debaixo das cobertas e voltou a dormir.

— Você jogou ela fora? — Harper puxou o queixo para trás, ergueu uma sobrancelha e
entreabriu a boca com a expressão de “o que você estava pensando?” estampada no rosto.
— Achei que estava quebrada.
— Sim, mas podia ser colecionável. Podia valer alguma coisa. — Os enormes olhos azuis de
Harper se iluminaram com a ideia de cifrões. Delilah quase podia ver uma calculadora totalizando
valores imaginários na mente de Harper.
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1:35 AM
Delilah e Harper estavam sentadas em uma mesa redonda elevada na cafeteria favorita de
Harper. Delilah tomou um gole de seu chá de canela. Harper tomava um expresso quádruplo chique
ou qualquer coisa do tipo. Harper era viciada em café.
A cafeteria era um espaço estreito com paredes de tijolos e tinha muito aço inoxidável e
cromo e pouquíssimas coisas em madeira. Pouco antes das 11h00, não estava muito lotado. Uma
mulher de pele escura com tranças nos cabelos estava sentada em uma das mesas, concentrada no
que quer que fosse o que estava vendo em seu notebook, enquanto um homem mais velho comia um
bolinho enquanto lia o jornal. Atrás do balcão, uma série de máquinas chiavam e cuspiam café.
— Eu não te ensinei nada? — perguntou Harper. — Sempre tenta vender essas coisas antes
de jogar fora. Lembra?
— Eu estava atrasada pro trabalho. Estava um pouco estressada.
— Você tem que aprender a meditar.
— Aí eu perderia o trabalho porque me perdi na meditação.
Harper riu. E todos no lugar se viraram para olhar para ela. A risada de Harper era como o
ganido retumbante de um leão-marinho. Dava para saber o quanto ela achara algo engraçado pelo
número de ganidos. O comentário de Delilah provocou apenas um.
— O que achou da nova peça? — perguntou Delilah.
— Achei super-mega-divertida. As minhas falas são uma droga. Mas eu amo, amo a minha
personagem.
Delilah sorriu. Harper era sua melhor amiga há quase seis anos, desde que as duas garotas
caíram juntas na mesma família adotiva. Determinadas a fazer daquele lar adotivo seu último, elas
se uniram para ajudar uma à outra a sobreviver à estrutura altamente regrada imposta por Gerald, o
marido ex-militar do casal que as acolhera.
Sempre que Gerald as repreendia por não seguirem o cronograma, lembrando-lhes de que
tinham que fazer tal coisa às 05h00 e que não sei o que lá tinha que ser às 06h10, Harper
murmurava algo como “e você pode se enforcar num pé de alface às dez pra daqui à pouco”.
Ela fazia Delilah rir, o que a ajudava a sobreviver.
Completos opostos em aparência e em personalidade, Harper e Delilah provavelmente nunca
seriam amigas se não tivessem sido jogadas no inferno dos cronogramas juntas. No entanto, elas
fizeram a amizade funcionar.
Quando Harper anunciou seu plano travesso de convencer um dramaturgo famoso a escalá-
la em suas peças, Delilah só disse “se cuida”. Quando Delilah disse que ia se casar com seu
cavaleiro de armadura brilhante e ter filhos, Harper só disse “não assine um acordo pré-nupcial”.
Harper seguiu o conselho de Delilah e teve a graça de não dizer “eu te disse” quando Delilah não
seguiu o seu.
— Acho que você devia procurar — disse Harper.
— O quê?
— Ella. Acho que você deveria procurá-la. — Harper brincou com uma das várias tranças
loiras que tinha enrolado em volta da cabeça. Usando uma maquiagem colorida pesada e um vestido
verde justo, ela tinha o visual de uma Medusa exótica.
— Porque ela pode valer alguma coisa. — Delilah assentiu.
— Não é só isso. Você disse que ela parecia o bebê que você achou que ia ter. Isso é uma
coisa bem bizarra, você não acha? Você encontrar uma boneca parecida com esse bebê imaginário?
E se for algum tipo de sinal?
— Você sabe que eu não acredito em sinais.
— Talvez devesse.
Delilah deu de ombros e as duas passaram o resto da visita conversando sobre a peça de
Harper e seu último namorado. Então ficaram se lembrando, como sempre faziam, do inferno da
qual haviam fugido.
— Não, você não pode usar o banheiro. Não até 09h45. Esse é o horário programado para
urinar — entoou Harper. Ela fazia imitações incríveis e a sua de Gerald era perfeita. E, por mais
estranho que fosse, também conseguia imitar o alarme que Gerald usava para sinalizar todo o

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cronograma de eventos da casa. O alarme era como o cruzamento de uma campainha, um zumbido
e uma sirene. Delilah sempre tampava os ouvidos quando Harper sentia que precisava imitá-lo.
Richard uma vez perguntou a Delilah por que ela e Harper precisavam reviver seu passado
com tanta frequência. Ela disse: “Isso nos lembra de como as coisas são boas agora, mesmo quando
não parecem muito. Qualquer coisa é melhor que morar com o Gerald”.
Como sempre acontecia quando Delilah e Harper estavam juntas, o tempo desapareceu.
Quando Delilah saiu para ir para o carro, percebeu que mal tinha tempo de chegar em casa e se
trocar antes de seu turno.

— Por que está sendo tão gentil comigo? — Delilah perguntou a Nate quando chegou para o
turno das duas às dez.
Estava diante do quadro de horários afixado no mural na sala de descanso dos funcionários.
Nate havia colocado Delilah no turno das duas às dez por uma semana inteira. Ela não conseguia se
lembrar qual fora a última vez que trabalhou no mesmo turno por uma semana. E essa mudança era
especialmente boa agora, porque, contanto que fosse para a cama algumas horas depois de terminar
seu turno, acordaria com bastante tempo antes do trabalho. Sequer precisaria de um despertador. Ela
poderia suportar a correria do turno da noite em troca de poder dormir de forma decente.
Nate ergueu o olhar da papelada diária que tinha sobre a mesa redonda ao lado do mural.
— É do meu interesse. Gosto quando você chega na hora para o trabalho.
— Bem, é mais fácil chegar na hora quando meu corpo consegue entender que horas são —
disse Delilah.
— Maricas.
— Tirano.
— Chorona.
— Malvado.
Delilah começou seu turno tão perto de feliz quanto não ficava há muito tempo. O trabalho
estava indo bem. Quando Nate brincava, era porque Nate estava feliz. Quando Nate estava feliz, as
coisas corriam bem.
Delilah se divertiu tanto no trabalho que voltou para o apartamento de bom humor. Comeu
bolo de carne e brócolis de bom humor e foi dormir de bom humor. O bom humor desapareceu, no
entanto, quando ela se sentou na cama, os músculos rígidos, ouvindo um barulho.
Quem estava sussurrando?
Tinha alguém sussurrando. Delilah podia ouvir palavras sibilantes indecifráveis vindo...
vindo de onde? Plenamente acordada, ela olhou para o relógio. Era 1h35 da manhã. De novo?
Delilah se esforçou para tentar entender os sussurros. Mas eles pararam. Agora, só o que
podia ouvir eram carros na estrada.
De onde tinha vindo aquele sussurro?
Ella!
Só podia ser.
Harper tinha razão. Delilah devia ter procurado por Ella. Devia ter dado uma olhada, não
porque Ella podia ser valiosa ou porque era um sinal, mas porque, pelo visto, seu alarme ainda
estava disparando à 1h35 da manhã. Mas Delilah não teve tempo antes de ir para o trabalho. Ela
com certeza daria uma olhada hoje. Mal conseguia acreditar que o alarme de Ella era tão poderoso a
ponto de conseguir ouvi-lo dali, mas, parando para pensar, a cantoria de Mary já não era uma prova
dolorosa o suficiente do quão finas eram as paredes do apartamento?
Delilah se deitou e fechou os olhos. O rosto de Ella apareceu por detrás de suas pálpebras.
Delilah abriu os olhos. Ela voltou a se sentar. Não vou dormir até encontrá-la, pensou.
Delilah se levantou e vestiu o moletom. Enfiando os pés num par de tamancos, ela abriu a
gaveta da mesa de cabeceira para pegar uma lanterna. As caçambas de lixo eram bem iluminadas,
mas se Ella estivesse parcialmente soterrada, Delilah poderia ter problemas para encontrá-la.
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Jogando por cima da roupa um casaco de lã multicolorido horroroso que Harper tricotara
para ela, Delilah saiu do apartamento, cruzou o corredor silencioso, desceu pelas escadas e deixou o
prédio. Lá fora, o ar estava gelado, mas o céu estava limpo. Algumas estrelas reluziam mesmo em
meio ao brilho pulsante da noite urbana.
Delilah parou em frente ao prédio e olhou em volta para ter certeza de que estava sozinha.
Estava. Dando a volta no prédio, seguiu em direção às caçambas. As lixeiras verdes com suas
bocarras abertas ficavam ainda mais feias sob os holofotes dos postes e as luzes da lanchonete. Uma
das duas que antes estavam abertas agora estava fechado e a que estava fechada agora estava aberta.
Todas pareciam meio tortas, como se tivessem mexido nelas.
Ótimo. Se tivessem mexido nelas, encontrar Ella seria como brincar de cabra-cega. Podia
levar mais tempo do que Delilah havia imaginado.
Dando mais uma olhada em volta, Delilah deu de ombros. Seria melhor acabar logo com
isso. Aproximando-se da caçamba do meio, na qual acreditava ter jogado Ella, Delilah levantou a
tampa, ficou na ponta dos pés e iluminou o interior com a lanterna. A luz pousou numa montanha
de sacos de lixo de plástico, um cobertor velho e esfarrapado, um punhado potes de marmita e uma
ou outra lata vazia. Sua lanterna não revelou o cheiro insuportável de fraldas sujas que o nariz de
Delilah descobriu assim que ela abriu a tampa. Delilah abaixou a tampa delicadamente, tomando
cuidado para não deixar que se fechasse. Se Ella estivesse naquela caçamba, estava enterrada.
Delilah decidiu que preferia verificar as outras duas caçambas antes de começar a escavar
qualquer uma delas. Então, fez sua rotina de mirar com a lanterna nas pontas dos pés, primeiro na
aberta que ela achava que também estava aberta quando jogou Ella numa das caçambas. A única
coisa que havia de diferente nessa caçamba em comparação à primeira que Delilah examinara eram
algumas dezenas de livros antigos tombados sobre as pilhas de sacos de lixo entulhados. Delilah
ficou tentada a levar um deles, um suspense de assassinato, mas tinha uma mancha vermelha
suspeita. Ela não queria saber o que era a mancha.
A última caçamba que Delilah checou foi a que tinha certeza de que estava fechada quando
jogou Ella fora. Então não ficou surpresa ao encontrar mais do mesmo tipo de lixo e nenhum sinal
de Ella. Frustrada, Delilah apagou a lanterna e pensou por um instante. Ela tinha mesmo que se
enfiar naquelas lixeiras e ficar escavando atrás de Ella? Nem sabia ao certo se fora mesmo Ella que
a acordara. Até onde sabia, podia muito bem ter sido Mary cantando uma música idiota no meio da
noite ou um gato no cio.
Sim, mas por que fora acordada exatamente à 1h35 da manhã, tanto no dia anterior quanto
naquele? Coincidência? Era possível, não era? Harper já tinha passado por isso, quando não parava
de acordar às 3h33 da manhã e depois começou a ver 333 por toda parte por vários meses. Harper
pesquisou o número e descobriu que era uma espécie de sinal espiritual.
E se 135 fosse um sinal espiritual só para Delilah?
Ela bufou e virou as costas para as caçambas. Só estava sendo boba. Ela voltou para a frente
do prédio. Pelo menos por ora, ia ficar só com a teoria da coincidência. Era mais fácil e menos
fedorento do que pressupor que Ella era o problema.

A explicação da coincidência perdeu força quando Delilah acordou à 1h35 da manhã pela
terceira noite consecutiva. Dessa vez, tinha certeza de que ouvira um som em sua janela. Teria sido
um arranhão? Uma batida?
O que quer que fosse, fora medonho o suficiente para que Delilah imediatamente pegasse
sua lanterna e a apontasse para as persianas. Então, depois de encarar as cortinas inertes por um
minuto inteiro, ela juntou a coragem para andar pelo quarto na ponta dos pés e olhar atrás delas.
Não havia nada na janela. E no estacionamento lá embaixo, as caçambas de lixo não haviam
mudado de posição, estavam exatamente como na noite anterior.
Delilah soltou o ar que estava segurando. Teria que vasculhar cada uma daquelas caçambas.

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Será que ela não deveria esperar amanhecer? Isso tornaria as coisas mais fáceis, não é? E se
alguém perguntasse o que estava fazendo, responderia sinceramente que jogara fora algo que não
devia ter jogado.
Delilah saiu da janela e deu um passo em direção à cama.
Ela parou. Que dia era aquele?
Trabalhando em turnos dos mais diversos e bizarros, Delilah raramente sabia que dia da
semana era. Ela pensou por um segundo. Quarta-feira.
— Puta merda — resmungou.
As caçambas de lixo eram esvaziadas nas manhãs de quinta-feira, bem cedo. Se esperasse,
Ella já não estaria mais lá.
Mas espera, isso era algo bom, certo? Se Ella se fosse, seu alarme não poderia mais disparar
e acordar Delilah. Não achava que Ella valesse alguma coisa e tinha certeza de que a semelhança
entre Ella e Emma era mero acaso. Não havia razão para que Delilah se enfiasse no meio daquele
lixo fedido. Podia simplesmente deixar o caminhão de lixo levar seu problema embora. Delilah
sorriu e voltou para a cama.

Na quinta-feira à noite, — ou melhor, na sexta-feira de madrugada — os olhos de Delilah se


abriram à 1h35 da manhã... de novo. No mesmo instante, ficou completamente alerta. Seu coração
estava batendo alto, rápido e desesperadamente, como uma batida descompassada em seu tímpano.
E esse ritmo maníaco não foi causado apenas pelo horário. Foi também uma reação à sensação
perturbadoramente forte que Delilah teve de que havia algo embaixo de sua cama. Algo estava se
mexendo embaixo da cama.
Mas não podia ser verdade. Podia?
Delilah parou para escutar. Num primeiro momento, não ouviu nada, mas então começou a
se perguntar se não estava ouvindo alguma coisa se rastejando pelo tapete embaixo da cama.
Ela se sentou e começou a abaixar uma das pernas ao lado da cama. Mas então parou. E se
realmente houvesse algo lá? Poderia agarrá-la pelo pé!
Puxando o pé rapidamente para debaixo das cobertas, Delilah estendeu a mão e acendeu a
luminária na mesa de cabeceira. Assim que seu quarto se iluminou, ela se inclinou e deu uma boa
olhada no chão em volta da cama. Não viu nada além do tapete bege claro que havia comprado
numa venda de quintal. Só devia ter imaginado o som.
Ou ainda havia algo embaixo da cama.
Delilah abriu a gaveta da mesa de cabeceira. Pegou sua lanterna, a acendeu, respirou fundo,
se inclinou sobre a beira da cama e lançou a luz embaixo dela. Não havia nada lá.
Tá, aquilo já estava virando uma loucura. Era a quarta noite seguida.
Tinha que ser Ella.
Mas as caçambas de lixo tinham sido esvaziadas.
Delilah cruzou as pernas e esfregou os braços. Estava tudo arrepiado.
E se os lixeiros não tivessem esvaziado as caçambas por completo? Ou, e se Ella tivesse
caído enquanto a lixeira estava sendo esvaziada?
Delilah tinha que checar e tinha que checar agora. Ela precisava saber.
Então, repetindo seus passos de duas noites antes, Delilah foi até as caçambas com sua
lanterna. Naquela noite, todas estavam fechadas. Sempre costumavam estar depois da coleta de lixo
nas quintas-feiras.
Delilah examinou as caçambas em ordem, da direita para a esquerda. Ergueu as três tampas
e lançou a luz da lanterna nas três lixeiras quase vazias. Só o que encontrou foram dois sacos de lixo
doméstico, uma sacola de fraldas sujas (e o odor desagradável correspondente), um abajur quebrado
e uma pilha triste de roupas de idosos. A única coisa que podia ter escondido Ella era a pilha de
roupas, então Delilah, prendendo a respiração, se pendurou na beira da caçamba com as roupas e
usou a lanterna para vasculhar a pilha. A única coisa embaixo das roupas eram mais roupas.
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Delilah seguiu então por entre as lixeiras e deu uma volta pela área ao seu redor. Apontou o
feixe da lanterna para cada canto ou recanto escuro que encontrou. Nenhum sinal de Ella.
A boneca se fora. Com certeza. Ela não estava ali.
Não podia ser o que estava acordando Delilah à 1h35 da manhã.
Então o que era?

Delilah acordou às 10h10 da manhã seguinte e a primeira coisa que fez quando se levantou,
além de tampar os ouvidos para que não tivesse que ouvir Mary cantando sobre espanar livros, foi
ligar para Harper e pedir que ela fosse visitá-la. Ela acordou Harper, mas Harper nunca deixava que
coisas assim a incomodassem.
— Claro, chego aí daqui a pouco — cantarolou ela.
Quando Harper chegou, ela largou sua volumosa bolsa de couro no chão, se jogou com tudo
no sofá e disse:
— Qual o problema?
— Como você sabe que tem um problema? — Delilah se sentou ao lado dela.
— Você não costuma me pedir pra te visitar.
Ah, é. Delilah tinha basicamente convocado a amiga. Isso mostrava quão perturbada estava.
— Eu tenho uma pergunta — disse Delilah.
— Deve ser das boas.
— Você resgatou a Ella da caçamba de lixo ontem?
— O quê?
Foi quando Mary cantou no apartamento ao lado:
— Porque eu me sinto borbulhar, oba, oba!
Harper sorriu. Ela gostou das músicas de Mary.
— A boneca. Ella. Você a tirou da lixeira?
Harper franziu as sobrancelhas.
— Por que eu faria isso?
— Você disse que ela podia valer alguma coisa.
— Bem, podia, mas a boneca é sua. Não minha. Se eu fosse procurá-la, eu te diria.
Delilah esfregou o rosto com as mãos. Sim, ela já devia saber.
— Por que a pergunta? Foi procurar e não encontrou?
— Sim, eu procurei, mais ou menos. Não cheguei a revirar o lixo. Mas aí as caçambas foram
esvaziadas.
— Tá. Então a Ella se foi. Qual o problema?
Delilah não havia mencionado para Harper sobre o fato de estar sendo acordada à 1h35 toda
manhã. Só lhe contara sobre ter encontrado a boneca e jogado fora quando ela não funcionou. Não
conseguia pensar numa forma de contar a Harper sobre acordar no mesmo horário por quatro noites
seguidas sem parecer que estava exagerando. Além do mais, Harper só ficaria falando sobre sinais
de novo se Delilah lhe contasse.
— Já que estou aqui, quer sair pra almoçar? — perguntou Harper.

Delilah se despediu de Harper, aliviada. Ficou feliz pelo almoço ter terminado porque, no
meio dele, ela teve uma ideia. Agora, finalmente podia tomar uma ação.
Seguindo com o carro em direção ao bairro mais novo com as cerejeiras nanicas, Delilah foi
em busca da casa onde havia encontrado a venda de garagem... e Ella. Planejava conseguir algumas
respostas sobre a boneca com seu proprietário anterior.

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Sem placas para guiá-la, Delilah acabou perdendo uma curva e teve que dar a volta. No
entanto, eventualmente conseguiu chegar à casa estilo espanhol onde tinha conhecido Mumford, o
chihuahua amigável.
Mas Mumford não estava em casa. Ninguém estava.
Embora Delilah pudesse ver da rua que as janelas desnudas revelavam que a casa estava
desocupada, ela estacionou diante da garagem vazia e saiu do carro. Inalando o ar úmido e inerte,
ela torceu o nariz frente a um cheiro que lembrava folhas podres. O bairro estava estranhamente
silencioso. Só o que podia ouvir era um único cachorro latindo ao longe.
Aquela era a casa, não era? Ela a examinou por um segundo e então se virou e olhou para as
casas vizinhas. Sim, era a própria.
— Estranho — disse em voz alta.
Mas era mesmo?
Afinal, a mulher que morava ali estava fazendo uma venda de garagem. As pessoas faziam
isso antes de se mudarem, certo? Para Delilah, o fato de haver vestígios de alguém ou alguma coisa
no lugar onde encontrara Ella não significava nada.
Então por que estava com um mau pressentimento?
Na esperança de talvez topar com alguma pista de para onde Mumford e a mulher de cabelos
espetados pudessem ter ido, Delilah deu a volta na casa e olhou pelas janelas. Não encontrou nada.
A casa estava completamente vazia, exceto por uma única toalha de papel amassada no balcão da
cozinha. Tudo o que Delilah conseguiu com sua exploração foi uma apreensão sinistra que pareceu
envolver seu peito numa espiral e não foi mais embora, mesmo depois que ela praticamente saiu
correndo em direção ao carro e partiu o mais rápido que pôde.

De volta ao apartamento, Delilah comeu biscoitos com leite o suficiente para dissipar a
inquietação que levara consigo da casa vazia.
— Tudo bem — disse. — Plano B.
Colocando o notebook na cama, Delilah se ajeitou para ficar mais confortável. Ela checou o
relógio. Tinha quarenta e cinco minutos antes de ir para o trabalho. Bastante tempo, esperava.
Ao lado, Mary estava cantando sobre cogumelos, mas Delilah não deu bola. Estava numa
missão. Acreditava que poderia encontrar informações sobre Ella na internet.
Ela começou sua pesquisa na rede com “boneca Ella”. Receava que fosse um pouco geral
demais, mas um dos milhões de resultados lhe deu algumas informações. A produção da boneca
Ella, Delilah descobriu, havia sido descontinuada por motivos não revelados. Deixando esses fatos
um pouco de lado, tentou descobrir mais sobre a boneca, mas só continuou encontrando as mesmas
informações inúteis ou o texto do livreto de instruções que já tinha lido.
Ficando sem tempo, começou a tentar pesquisas doidas: “boneca Ella assombrada”, “boneca
Ella quebrada”, “boneca Ella exclusiva”, “boneca Ella com defeito”, “boneca Ella especial”. Essas
pesquisas a levaram a vários blogs inúteis que não tinham absolutamente nada a ver com a boneca
Ella. Mas uma das pesquisas por “boneca Ella especial” a levou a um anúncio online publicado por
um usuário chamado Phineas que estava tentando encontrar uma das bonecas. Seu anúncio citava a
“boneca Ella especial” e dizia que ele estava disposto a pagar caro pela energia da boneca. Seja lá o
que quisesse dizer com isso.
Delilah checou o relógio. Tinha que ir para o trabalhar.
Mas que belas ideias ela tivera. Só o que fizeram foi deixá-la mais tensa do que já estava.

Mais três noites. Mais três vezes acordando à 1h35 da manhã. Uma noite, Delilah acordou
com plena certeza de que estava sendo observada. Todos os pelos de seu corpo estavam arrepiados
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como pequenas antenas, lhe dizendo que estava sob vigilância. Em sua mente, viu os enormes olhos
escuros de Ella penetrando sua alma. Quando se lançou para pegar a lanterna, pensou ter sentido
algo lhe tocar o braço. Mas a luz revelou que estava sozinha.
Na noite seguinte, Delilah ouviu um farfalhar tão baixo que não devia nem ter sido notável.
Mas ainda fez Delilah perder o sono. Quando abriu os olhos, o som ficou mais alto. Estava vindo de
seu armário, como se alguém estivesse mexendo em suas roupas. Procurando sua lanterna, Delilah
se levantou, foi até a porta do armário e a abriu. Não havia nada lá dentro além de roupas e sapatos.
Na noite seguinte, o som de uma batida acordou Delilah. Em seu sonho, as batidas vinham
de um pica-pau. Quando acordou, no entanto, notou que as batidas vinham do chão. Havia algo sob
as tábuas do piso, batendo na madeira como se tentasse encontrar uma saída. Lutando contra a
histeria, Delilah conseguiu acender a lanterna. Assim que iluminou o quarto, as batidas pararam.
Delilah estava começando a surtar. Estava tão assustada que agora estava tendo problemas
para dormir. Quando terminava seu turno, ficava tão exausta que caía na cama e dormia. Mas então
algo a acordava à 1h35. Algum som ou sensação, algo que parecia estar na margem da consciência
de Delilah, invadia seu sono e a arrastava para o despertar.
Naquela noite, era o som de algo na parede entre seu apartamento e o de Mary.
Era um arranhão, não era? Um zumbido? Ou talvez fosse um alarme? Não, Delilah achava
que não. Tinha certeza de que havia alguma coisa se mexendo pela parede.
Delilah acendeu a luz e olhou para o quarto vazio. Ela puxou os joelhos para perto do peito e
tentou acalmar seu coração galopante.
Esse era o problema com aquelas intrusões noturnas: todas pareciam algo tentando pegá-la,
algo se aproximando ou lhe chamando de alguma forma. Delilah tinha certeza que era Ella.
A boneca ainda estava por perto. Tinha que estar.
E ainda estava funcionando. Só não funcionava de forma a ajudá-la.
Delilah pensou muito sobre isso. Pensou até cansar. Foi basicamente tudo em que pensou
por dias a fio. Decidiu que Ella não estava nem um pouco feliz por ter sido jogada fora. Talvez ser
descartada tivesse ativado alguma sub-rotina que ativava novas funções em Ella, funções ocultas.
Talvez a pessoa que criara Ella tivesse um senso de humor doentio e achasse que seria uma peça
engraçada para pregar em alguém que tivesse a audácia de jogar fora sua criação. Ou talvez Ella
estivesse com defeito.
Tanto faz. O que importava era que Ella estava atrás de Delilah. Não conseguia pensar em
outra explicação para o que estava acontecendo.
Mas o que podia fazer a respeito?
Ela olhou para a fina barreira entre o seu domínio e o de Mary.
Mary.
E se Mary estivesse com a boneca?
O apartamento de Mary dava para as caçambas e ela ficava em casa o dia inteiro. E se
tivesse visto quando Delilah jogou a boneca fora e foi até lá para pegá-la?
Delilah tinha que descobrir.
Começando a se levantar da cama para bater na porta de Mary, Delilah parou. Era o meio da
noite. Bater na porta de alguém no meio da noite era uma ótima forma de começar um confronto.
Ela não queria um confronto. Não queria que Mary ficasse na defensiva e escondesse Ella.
Não. Teria que esperar até de manhã e tentar fazer com que Mary desistisse de Ella se
fazendo de boa vizinha.

Mary estava cantando sobre pinguins quando Delilah saiu do banho às 7h30 da manhã.
Vestindo suas roupas de ginástica porque imaginou que precisaria dar uma corrida depois de falar
com Mary, Delilah foi até a cozinha, onde aqueceu a fatia de torta de pêssego que trouxera do
restaurante na noite anterior. Não sabia muito sobre Mary, mas sabia que Mary gostava de torta,
principalmente torta de pêssego.
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Delilah saiu do apartamento quando Mary começou a cantar um verso sobre ursos polares.
Quando bateu na frágil porta da frente de Mary, a mulher cantou algo sobre um iceberg e depois
ficou em silêncio. Um segundo depois, a porta se abriu.
— Dona Delilah! Que surpresa agradável! — Mary abriu um sorriso e estendeu os braços
diante de Delilah.
Delilah mal teve tempo de virar a torta para o lado antes que os braços de Mary a puxassem
num abraço apertado. O nariz de Delilah ficou enterrado no gigantesco ombro de Mary. Mary
cheirava a salsichas, suor e lavanda.
— Oi, Mary — disse Delilah, quando Mary a soltou.
Ela seguiu Mary até o oásis tranquilo inspirado no Japão que era o apartamento de Mary.
Na primeira vez que Delilah bateu na porta de Mary para falar da cantoria, Delilah esperava
encontrar um apartamento cheio de bugigangas e livros. Mary parecia esse tipo de mulher. Com
cerca de um metro e setenta de puro desleixo, Mary era uma daquelas típicas velhas rechonchudas
de cabelos grisalhos, rosto enrugado e óculos de concha de tartaruga redondos empoleirados sobre o
nariz levemente arrebitado. Ela usava as roupas em camadas — xales por cima de camisas por cima
de saias por cima de vestidos, geralmente numa mistura de cores completamente discrepantes.
Mas o apartamento de Mary não era nada parecido com Mary.
— Por favor, tire os sapatos — Mary cantarolou quando Delilah se esqueceu.
— Ah, certo. Me desculpe. — Delilah segurou a torta em uma mão enquanto se equilibrava
em um pé e depois no outro para tirar os tênis de corrida. Ela colocou os sapatos no pequeno
suporte logo ao lado da porta. Então se curvou para Mary quando Mary se curvou para ela.
— Te trouxe uma torta de pêssego. — Delilah estendeu o pote quente com a torta.
— Ah, que coisa maravilhosa! — Mary pegou o pote, se curvou para Delilah de novo e
então seguiu para sua cozinha impecável para pegar um par de pauzinhos de comida japonesa.
Delilah não sabia se a decoração e o estilo de vida de Mary provinham de uma história com
a cultura japonesa ou se Mary só se achava japonesa mesmo. Ela nunca perguntou porque lhe
parecia rude dizer “qual é a dessas coisas japonesas?”.
Mas Delilah lera o suficiente para saber que estava sobre um tapete de tatame, que aquilo
que escondia a porta do banheiro era uma tela de bambu e que estava sendo levada a uma série de
zabutons azuis e cinzas dispostos em volta de um chabudai do outro lado da sala. Havia um bonsai
retorcido num vaso azul sobre o chabudai. Exceto pelo tapete, a mesa e as almofadas japoneses, a
sala estava vazia.
Quando Delilah se sentou numa das almofadas cinzas, começou a questionar a ideia de que
Mary pegara a boneca. O que essa mulher esquisita ia querer com uma boneca? Ela definitivamente
não parecia combinar com sua decoração. Apesar que Delilah nunca tinha visto o quarto de Mary. E
se essa porta escondesse uma coleção de bonecas com vestidos com babados?
Mary pôs um jogo de chá sobre o chabudai, junto com um prato de biscoitos de amêndoas, o
pote da torta e os pauzinhos. Tendo passado pelo ritual antes, Delilah deixou Mary servir o chá e lhe
oferecer um biscoito antes de dizer qualquer coisa. Enquanto Mary habilmente apanhava uma fatia
de pêssego com os pauzinhos, Delilah disse:
— Fui a uma venda de garagem bem legal no outro dia.
Mary levou a fatia de pêssego à boca, fechou os olhos e mastigou com o que parecia ser o
mais puro deleite. Quando terminou de comer, se inclinou em direção a Delilah e sacudiu um palito
na frente de seu rosto.
— Segunda mão, nada de bom, a energia também não. Mãos velhas. Mãos más. Tudo
manchado de sua história — cantou Mary. Ela balançava os pauzinhos de um lado para o outro,
como um metrônomo acompanhando o ritmo da música.
— Você não gosta de coisas de segunda mão?
Mary largou os pauzinhos, segurou a gola de sua blusa amarela com as duas mãos e afastou
a gola da pele para sacudi-la várias vezes. Ela cantou:
— Pinguins, pinguins, tragam o frio pra cá. O velho morre de medo do urso polar.
Delilah franziu o cenho. Achava que tinha entendido a música sobre coisas de segunda mão,
mas esse novo verso a deixou perplexa.
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Mary soltou a gola e pegou os pauzinhos de novo.
— Calorão. — Ela pegou um pedaço de cobertura, apertando-o em meio aos pauzinhos.
Delilah tomou um gole de chá e se perguntou o que estava fazendo ali. Como ia conseguir
uma resposta de Mary? Seria melhor nocautear a mulher e revistar seu apartamento.
Delilah observou enquanto Mary comia. Ainda que tivesse força para nocautear alguém, o
que não tinha, Delilah não achava que seria uma boa ideia enfrentar Mary. Mary não era só maior e
mais alta, ela provavelmente conhecia algum tipo de arte marcial ou coisa do tipo.
— O passado deixa manchas — disse Mary.
— O quê?
— Nada de vendas de garagem, nada de lojas de antiguidades, nada de brechós. Não quero
abrir portas velhas — entoou Mary.
Delilah assentiu. Tinha quase certeza de que conseguira entender. Se Mary não gostava de
coisas antigas porque achava que coisas antigas tinham manchas do passado, ela provavelmente não
teria tirado uma boneca velha de uma lixeira.
A menos que o tivesse feito e agora só estava brincando com Delilah.
Delilah fitou Mary nos olhos. Mary parou de comer torta por um instante e olhou de volta.
Seus olhos eram de um verde pálido, riscados com redemoinhos amarelos — meio esquisitos.
Delilah piscou e desviou o olhar. Mary não.
— Preciso sair pra dar uma corrida — disse Delilah.
— Preciso terminar a minha torta — disse Mary.
— Tá bom. Me desculpa, mas eu tenho que ir.
— Nada, nada, nada de desculpas. Apenas seja, seja, seja, seja — cantou Mary.
— Certo. Tchau, Mary.
A despedida de Mary, é claro, foi com mais cantoria:
— Beijo, beijo, nos vemos logo mais. Lá-lá-lá, lé-lé-lé, um tchauzinho pro jacaré.
Delilah acenou para Mary e fugiu do apartamento da mulher.

Na décima noite de arrepiantes despertares à 1h35 da manhã, Delilah derrubou sua luminária
no chão em pânico ao tentar acendê-la. Em vez disso, acabou a quebrando e estava choramingando
de medo quando tirou a lanterna da gaveta da mesa de cabeceira e apertou o botão.
Tinha tanta certeza de que a lanterna revelaria Ella ao lado da cama que gritou quando a luz
iluminou o quarto. Mas não havia nada lá.
Delilah, calafrios lhe subindo o corpo inteiro, lançou o facho da lanterna por todo o quarto.
A luz tremulou enquanto abria caminho pela escuridão porque a mão de Delilah estava trêmula. A
cada nova mudança na direção da lanterna, ela tinha certeza absoluta de que a luz revelaria o rosto
de Ella emergindo em meio à penumbra. Para onde a boneca tinha ido?
Ella estivera ali. Delilah tinha certeza disso.
O que mais poderia dar aqueles passinhos delicados que arrancaram Delilah de seu sono?
Delilah estava sonhando que estava deitada numa rede, sozinha. Ela então ouviu uma série de
passos, pequeninos e suaves, chegando cada vez mais perto. Ela acordou quando a alcançaram.
Delilah continuou mudando o feixe da lanterna de direção. E ficou ouvindo. Ali. Os passos
delicados. Ela apontou a luz para a porta do quarto. Estava aberta. Ela a deixara aberta?
Não conseguia se lembrar.
Achava que tinha fechado, mas não tinha certeza.
Ela se reclinou em direção à porta e inclinou a cabeça, desejando que seus ouvidos lhe
dissessem o que estava ouvindo. Seriam aquilo passos na sala de estar?
Ela ouviu um clique. Era sua porta da frente?
Querendo ir até lá para dar uma olhada e também não querendo ir até lá para dar uma
olhada, Delilah escolheu ceder à inércia. Ficou exatamente onde estava, segurando a lanterna com
uma mão e apertando os lençóis perto do corpo com a outra.
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Ainda aplicando toda a concentração que conseguiu juntar na tentativa de escutar alguma
coisa, Delilah pensou ter ouvido um barulho que vinha do corredor. Aquilo era a porta de Mary
sendo aberta e fechada?
Delilah hesitou por mais alguns segundos, depois pulou da cama, correu até a parede e
acendeu a luz. Deu uma olhada ao redor do quarto. Tudo estava normal.
Ela se virou, abriu o resto da porta do quarto e correu para a sala para acender a luz. Mais
uma vez, tudo parecia como de costume. A porta do apartamento estava fechada e trancada. Ela
estava sozinha.
Esse era o problema, não era?
Delilah foi até o sofá e jogou a manta de Harper por cima dos ombros. Ela se sentou de lado
com as pernas dobradas embaixo de si.
Na época que Delilah conheceu Harper, ela já havia se conformado com a solidão. Claro,
estava cercada de outros órfãos, mas eles não eram da família e também não eram seus amigos... até
que Harper chegou em sua vida. Nenhum deles a amava e ela não os amava. Nenhum de seus pais
adotivos a haviam amado também. Ninguém amou Delilah até Harper aparecer. E mesmo assim,
Harper não a amava o suficiente.
Depois que seus pais morreram, Delilah não achava que seria amada novamente da forma
como seus pais a amavam... até que conheceu Richard em uma festa de Halloween. Ela estava no
último ano do ensino médio. Ele estava no segundo ano da faculdade. Seus olhares se encontraram
quando estavam pegando um copo de ponche de sangue-e-olhos-arrancados e os dois passaram o
resto da noite dançando.
Quando Richard decidiu “tirar uma folga” da faculdade, ele implorou a Delilah, “o amor de
sua vida”, que fosse junto. Ela estava a apenas duas semanas dos dezoito anos, então eles esperaram
e, no seu aniversário, ela se despediu de Harper e de Gerald, que não podia estar mais feliz. Ela foi
para a Europa com Richard. Era janeiro, então ele a levou aos Alpes e a ensinou a esquiar. Por um
ano e meio, eles cruzaram toda a Europa.
Finalmente, o pai de Richard exigiu que Richard voltasse para casa e começasse a trabalhar
nos negócios da família se não fosse terminar a faculdade. Richard pediu Delilah em casamento.
Seus pais e irmã, com óbvia relutância, deram as boas-vindas a Delilah na família. Eles tiveram um
casamento de conto de fadas — Delilah se sentia como uma princesa. Eles então se mudaram para a
casa de hóspedes dos pais de Richard. A partir desse ponto, tudo o que precisavam fazer era seguir
o plano. Richard cresceria na empresa. Eles teriam filhos. Finalmente conseguiriam sua casa
própria. Viveriam felizes para sempre.
Em vez disso, Delilah estava ali. Sozinha.
Ou não sozinha.
Ela não tinha certeza do que era pior.

Todos os dias, às 16h30, Mary deixava seu apartamento para ir à sua “caminhada diária”.
Ainda que Mary não tivesse explicado isso a Delilah, ela saberia porque Mary cantava a respeito.
Delilah teve que passar por mais dois dias de trabalho e mais dois aterrorizantes despertares
à 1h35 da manhã antes de ter um dia de folga, de modo que estivesse em casa às 16h30. Nas duas
noites, Delilah ouviu sons de batuque e um farfalhar que a convenceram que Ella estava voltando
para o apartamento de Mary depois que a atormentava. Delilah estava convencida de que Mary
estava com Ella, independentemente do que Mary dissesse sobre manchas antigas. Então decidiu
que ia invadir o apartamento de Mary e procurar pela boneca.
Esse plano só era possível porque trabalhar numa lanchonete tinha lá as suas vantagens: era
preciso conhecer uma grande variedade de pessoas com uma grande variedade de habilidades. Um
dos frequentadores de Delilah era um detetive particular que se chamava Hank, e, na noite anterior,
Delilah perguntou a ele quão difícil era arrombar uma fechadura.

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— Depende da fechadura — disse Hank, ajeitando o colete de um dos ternos de três peças
que sempre usava.
— A fechadura simples de uma porta de apartamento — disse ela.
— Tetra?
Delilah sacudiu a cabeça. Mary não usava a tetra. Ela cantava muito sobre confiança e fé.
Delilah achou que o detetive perguntaria por que ela queria saber, mas, em vez disso, ele apenas
perguntou se alguma das mulheres no local tinha um grampo de cabelo e pegou um da Sra. Jeffrey,
uma idosa que ia lá todos os dias pelo arroz doce. Ele então levou Delilah até a porta da dispensa da
lanchonete e, em cinco minutos, a ensinou a arrombar uma fechadura. Ainda bem que Nate não
estava por lá. Ele não gostaria de saber de como era fácil ter acesso aos suprimentos.
Então, graças a Hank, Delilah levou apenas um minuto para invadir o apartamento de Mary.
Uma vez lá dentro, teve que tirar mais um minuto para controlar a respiração. Seu coração parecia
estar pulando loucamente, como óleo quente derramado num fogão de indução. Suas pernas
estavam estranhas, como se tentassem fugir mesmo estando paradas.
Adrenalina, pensou.
Claramente, ela não servia para ser espiã. Ela estava com os nervos à flor da pele e tudo o
que fizera fora entrar pela porta.
— Bom, por que você não faz logo o que veio fazer pra acabar com isso de uma vez? —
perguntou a si mesma.
Não achava que levaria muito tempo. Ella não estava na sala, a menos que fosse invisível.
Assim, restavam os armários da cozinha, o quarto e o banheiro.
Delilah se forçou a se mexer.
Como suspeitava, os armários da cozinha de Mary não eram muito cheios e ela deixava tudo
muito bem organizado. Ella não estava escondida em meio ao porcelanato nem dentro das panelas
de Mary. Também não estava na geladeira ou no congelador.
O banheiro também estava praticamente vazio. Só para garantir, Delilah checou a privada.
Não só estava livre de qualquer objeto oculto, era também inusitadamente limpa.
Delilah foi para o quarto. Lá, encontrou seu primeiro desafio.
O quarto de Mary era cheio de caixas organizadoras — pilhas e mais pilhas de caixas
organizadoras de plástico pretas. Estavam enfileiradas por todas as paredes, duas delas servindo
como as mesinhas de cabeceira de Mary. Fora as caixas organizadoras, tudo o que Mary tinha era
um futon e um travesseiro, ambos em meio ao chão.
Delilah checou seu relógio de pulso. Tinha cerca de quarenta minutos antes de Mary voltar.
Queria ir embora em trinta ou menos, para garantir. Então começou a abrir as caixas.
Delilah descobriu muita coisa sobre Mary nos trinta e cinco minutos seguintes. Descobriu
que Mary foi, em algum momento, professora, que era viúva, que fazia ou já fez bijuterias com
miçangas, que amava musicais, que vinha de uma família com três crianças e que teve um filho que
morreu em um incêndio. Delilah imaginou que isso dava a Mary o direito de ser um pouco estranha.
Mary tinha um notebook, que ela aparentemente usava para assistir seus filmes, e tinha uma velha
máquina de escrever manual. Mary escrevia suas músicas com ela. Elas enchiam sete das cinquenta
e três caixas do quarto.
Delilah, movendo-se tão rápido que estava pingando suor após as onze primeiras caixas,
examinou cada uma delas. Ella não estava em nenhuma.
Desistindo e já a ponto de ir embora, Delilah voltou e cuidadosamente cutucou o futon e o
travesseiro. Eram os únicos lugares que restavam onde Ella poderia estar escondida. Sem sinal de
Ella. Delilah olhou em volta para ter certeza de que havia reorganizado todas as caixas. Esperava ter
colocado todas no lugar certo. Mas ainda que não tivesse, precisava que ir embora. Agora. Já havia
extrapolado sua margem de segurança.
Ela mal conseguiu voltar para o apartamento a tempo. Logo depois que fechou e trancou a
porta, ouviu a voz de Mary cantando:
— Sangue fluindo, coração batendo, saudável, feliz. Oba!
Delilah se recostou na porta e deslizou até o chão. Estava exausta e confusa. Se Mary não
estava Ella, quem estava? E por que Ella não a deixava em paz?
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Na décima terceira noite do inferno que invadia o sono de Delilah, ela de fato ouviu um
despertador tocando à 01h35 da manhã. Era tão alto que ela sonhou que estava sendo atacada por
uma abelha gigante. Estava fugindo da abelha quando abriu os olhos e levou a mão até a luminária
que comprara numa venda de garagem. Essa luminária era de metal com lâmpadas de LED. Não ia
quebrar. Mas Delilah talvez fosse.
Na noite anterior, Delilah se perguntou, sem muita expectativa, se conseguira sobreviver às
Doze Noites de Ella. Talvez parasse. Como Delilah não sabia ao certo por que havia começado,
podia simplesmente parar. Certo?
Errado. Não havia parado. Na verdade, Delilah agora ainda ouvia um apito em seus ouvidos,
como um chiado agudo. Ela estava mesmo ouvindo isso? Ou será que havia algum problema com
seus ouvidos? Como era a síndrome do zumbido? Ela ouvira falar a respeito de um dos velhos que
se reuniam diariamente na lanchonete para reclamar sobre o estado de seus corpos e o estado do
mundo como um todo. Ele mencionara que seus ouvidos zumbiam o tempo todo. Delilah não estava
ouvindo um zumbido. Era um…
Não era nada. Tinha parado.
Delilah se virou e enfiou o rosto com força no travesseiro. Por que Ella não a deixava em
paz? E onde ela estava? Se Delilah pudesse destruir Ella, isso iria parar. Mas não podia destruir o
que não podia encontrar.
No dia seguinte à busca na casa de Mary, Delilah começou a se perguntar se algum de seus
outros vizinhos podia ter tirado a boneca da caçamba de lixo. Ela passou três horas batendo em
todas as portas do prédio para perguntar se alguém encontrara Ella. Por mais incrível que pudesse
parecer, apenas oito portas não responderam. Todos com quem conversou pareciam genuinamente
sinceros ao dizerem que não encontraram boneca nenhuma. No dia seguinte e no próximo, ela falou
com os demais habitantes do edifício. Descobriu que a oitava porta sem resposta pertencia a um
apartamento desocupado.
À 1h45 da manhã seguinte, ela arrombou a fechadura do apartamento vazio e procurou por
Ella lá. Nada da boneca.
Delilah estava começando a ter um problema que ia além de ser acordada à 1h35 todas as
noites. O problema era que não estava só acordando todas as noites à 1h35. Ficava apavorada todas
as noites à 1h35. Todas as noites, algum som, cheiro ou sensação entrava em seu sono e a fazia
acordar. E agora, pela primeira vez na vida, ela estava tendo problemas para dormir. Esse problema
teve duas fases.
Primeiro, estava tendo problemas para dormir no início da noite. Em vez de sentir o estresse
deixar seu corpo quando caía na cama, como sempre fora no passado, agora, quando ela se deitava,
seu estresse se multiplicava exponencialmente. Assim que sua cabeça tocava o travesseiro, ela tinha
a sensação de destruição iminente. Parecia que seu coração estava pulando no peito. Ela começava a
suar e tremer. Sua garganta ficava tensa. Sentia alternadamente um frio congelante e então um calor
fumegante. Apesar do quão rápido seu coração batia, ela não conseguia recobrar o fôlego.
Na segunda noite disso, que era a décima quinta noite de todo o seu sofrimento, Delilah
ligou para Harper.
— Acho que vou morrer — ela disse à amiga.
— Fala rápido — disse Harper. — Você tem dois minutos. Estou pra entrar em cena.
— Ah. Desculpa.
— Um minuto e cinquenta e cinco segundos. Fala.
Delilah descreveu o que estava experienciando.
— Você tá com ataque de pânico. O que tem acontecido ultimamente?
— Você não acreditaria se eu te contasse.
— Me conta. Mas faça isso em um minuto.
Delilah deu a Harper a versão resumida de sua tortura da 1h35 da manhã.
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— Por que está falando como se fosse algo tão terrível? Tá, então você está acordando no
mesmo horário toda noite? É só voltar a dormir.
— Você não entende.
— Parece que não. Tenta de novo amanhã. — Harper desligou. Quando o palco a chamava,
era sempre assim.
Deixada de novo por sua conta e risco, Delilah procurou sobre ataques de pânico na internet.
Encontrou várias e várias sugestões para lidar com eles: respiração profunda, relaxamento muscular,
meditação focada, visualização de um lugar feliz. Delilah concentrou-se nos dois primeiros e
conseguiu adormecer, apenas para ser acordada à 1h35 da manhã pelo barulho de sua porta sendo
arrombada. Saltando da cama, ela disparou pelo apartamento para deter o invasor. Mas ninguém
estava invadindo. A fechadura estava em segurança. E seu pânico voltou.
Isso a levou à segunda fase de seu problema de sono. As incursões noturnas de Ella ao sono
de Delilah acabam fazendo com que ela se sentisse violada e petrificada. Ela literalmente ficava
tremendo mesmo quando o que quer que a tivesse acordado voltava a ficar em silêncio. Tinha que
usar as mesmas táticas da respiração profunda e do relaxamento muscular para voltar a dormir. E
elas pareciam estar perdendo efeito.
Mas, ainda assim, Delilah tentou. Deitada de costas agora, ela contou suas inspirações e
expirações. Chegou a 254 antes de começar a se sentir um pouco sonolenta. Por volta das 273,
finalmente voltou a dormir.

— Então você acha que esta boneca está... o quê? Te assombrando? — perguntou Harper.
Ela tomou um gole de seu café expresso e virou o rabo de cavalo longo e alto que combinava bem
com o vestido floral comprido estilo anos 50 que estava usando.
— Não. Não tá me assombrando — disse Delilah. — Não é um fantasma. Não tá possuída
ou sei lá o quê. Ela é a tecnológica. Acho que tá com algum defeito de programação.
— E ela é o quê? Invisível? Tem as chaves da sua porta? Pode atravessar as paredes? —
Harper jogou as mãos para o alto e as várias pulseiras que lhe cobram os pulsos finos sacudiram. —
Quer dizer, existe tecnologia e também existe magia. O que você tá me falando aí vai um pouco
além da tecnologia, você não acha? Ainda mais pra uma boneca velha.
Delilah franziu o cenho e sacudiu a cabeça. Ficava brava com o fato de que Harper estava
trazendo à tona justamente as questões nas quais Delilah também estava travada. Sua teoria não
fazia sentido. Mas não havia nenhuma outra teoria possível, havia?
— Chegou a procurar sobre o significado do número? — perguntou Harper. Ela desviou o
olhar para o balcão e piscou para um cara bonito pedindo um café com leite. Voltando sua atenção
para Delilah, disse: — Talvez o seu subconsciente esteja tentando lhe dizer alguma coisa.
— Quer dizer, tipo a coisa do 333?
Harper deu de ombros.
— Todo número tem um significado, uma ressonância.
— Aham.
Desde que Delilah conheceu Harper, ela sempre foi um pouco esquisita. “Sou um espírito
livre do cérebro direito”, dissera Harper na primeira vez em que Delilah riu de um de seus voos
astrais imaginários. “Lide com isso”.
— Eu não tô brincando. Vamos dar uma olhada. — Harper tirou o celular do bolso e digitou
alguma coisa. — Pronto. Aqui está. Olha só, é bem interessante. — Ela ergueu o olhar.
— Eu não ligo — disse Delilah. — Não quero saber. Eu não acredito nessas coisas.
Harper deu de ombros.
— Tanto faz. É o seu funeral.

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Naquela noite, a respiração profunda não ajudou Delilah a dormir. Após ficar uma hora
inteira deitada na cama, exausta, mas ainda apavorada demais para dormir, ela se sentou, pegou o
travesseiro e o edredom e foi para a sala. Lá, ela se aconchegou no sofá, se enrolou no edredom e,
em apenas mais algumas respirações profundas, começou a dormir.
E continuou dormindo até que alguma coisa começou a se arrastar pelo teto em cima de si.
Os olhos de Delilah se abriram. Ela tateou até encontrar sua lanterna, apertou o botão e
apontou para o teto. Delilah esperava ver Ella pendurada no teto sobre sua cabeça — podia até ouvir
as unhas roçando no gesso.
Mas não havia nada lá. Absolutamente nada. Delilah passou a lanterna por todo o teto. E
ficou escutando.
Sentindo o corpo endurecer, ela apontou o feixe de luz para o canto do teto, onde alguma
coisa parecia estar arranhando a parede. Delilah apertou os olhos, como se fazê-lo pudesse ajudá-la
a ver através das estruturas opacas de seu apartamento.
É claro, não ajudou. E dormir no sofá muito menos.

O sofá também não impediu Ella de tirar o sono de Delilah à 1h35 na noite seguinte, mas
parecia ajudar Delilah a voltar a dormir. Foi só depois que o estranho som de serragem recuou em
direção à cozinha que Delilah finalmente conseguiu desacelerar a respiração o suficiente para voltar
a encontrar o sono.
Entretanto, na noite seguinte, o sofá não teve nada a oferecer. Primeiro, Delilah demorou
tanto tempo para dormir no sofá quanto na cama. Segundo, o sofá não conseguiu acalmá-la depois
que ela sentiu um leve toque no ombro à 1h35. Dessa vez, Delilah estava acordada, não precisou
acender a luz quando acordou. Ela nunca chegara a apagá-las. O fato de Delilah não ter visto Ella
assim que abriu os olhos lhe deu a Delilah uma pista sobre quão avançada era sua inimiga. Ella
podia desaparecer num piscar — ou num abrir — de olhos.
Delilah sabia que Ella havia desaparecido assim tão rápido porque a boneca estivera lá.
Tinha que ter estado. Algo tocara Delilah. O toque foi suave como o de um bebê. Suave como Ella.
Dedinhos pequenos. Apenas um pequeno toque no ombro coberto pela camisola de Delilah. Não
mais que a sugestão de um contato. Mas fora o suficiente para transformar os intestinos de Delilah
numa massa de medo emaranhada e fazer seu sangue se tornar nitrogênio líquido. Ela sentia como
se estivesse sendo congelada e quebrada por dentro.
Delilah se levantou, tomando o edredom e o travesseiro nos braços. Não podia ficar na sala.
Ela olhou em volta como uma gazela procurando um lugar onde o leão não pudesse alcançá-
la. Seu olhar pousou sobre a porta do banheiro. Ela correu para o cômodo pequenino e mergulhou
na banheira com o edredom e o travesseiro. Encolhendo-se na bola mais apertada que conseguiu,
ela cobriu a cabeça com o edredom.

Na noite seguinte, Delilah começou na banheira. E ainda assim, Ella a encontrou. À 1h35 da
manhã, Delilah ouviu algo rastejando pelos canos embaixo da banheira. Certa de que a mão de Ella
passaria pela porcelana e a agarraria, Delilah saiu da banheira aos tropeços e se enfiou no canto do
banheiro, recostada na porta, onde passou as próximas quatro horas tentando respirar. Nem sequer
tentou dormir.
Às 5h35 da manhã, Delilah se vestiu e foi até a lanchonete. Nate, como sabia que estaria,
estava assando biscoitos e enroladinhos de canela.
— O que faz aqui? — perguntou quando Delilah entrou na cozinha. — Achei que te colocar
no mesmo turno direto tinha acabado com essa sua confusão com relação às horas. Agora você está
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aparecendo para turnos nos quais não está escalada em vez de se atrasar para os que está. — Nate
cortou a massa de biscoito em quadradinhos precisos e começou a jogá-los em numa assadeira
enorme em fileiras perfeitamente retas.
A lanchonete estava com um cheiro gloriosamente comum. O cheiro de café se misturava
com o cheiro de soro de leite coalhado e canela. Os sons também eram confortavelmente normais.
Alguns dos clientes que sempre costumavam aparecer àquela hora estavam discutindo o clima no
balcão. Uma das garçonetes estava assobiando. A câmara fria zumbia.
— Preciso que você me coloque à noite — Delilah disse a Nate.
Nate parou no meio de um arremesso. Ele se virou e ergueu ambas as sobrancelhas.
— Tá brincando comigo?
Delilah sacudiu a cabeça.
— Estou tendo problemas para dormir à noite. É... bem, é uma coisa que tá acontecendo.
Acho que, se eu trabalhar à noite, consigo dormir de dia. Sei que a Grace odeia gerenciar o turno da
noite. Ela ficaria feliz de trocar comigo, tenho certeza.
— Você é uma gerente melhor. Gosto de tê-la aqui quando está corrido.
— Obrigada.
— Não foi um elogio. Foi a constatação de um fato e uma reclamação.
— Você é só um ursinho de pelúcia embaixo dessa arrogância toda — disse Delilah.
Era verdade. Nate sempre reclamava dos funcionários, dos clientes e da lanchonete como
um todo, mas amava todos eles.
— Diga a alguém e vou ter que te matar.
Delilah fingiu passar um zíper pela boca.
Nate suspirou.
— Tá. Eu troco. Mas faça o possível pra dar um jeito nessa “coisa”.
— Obrigada.
— Esteja aqui às dez. E não se atrase.
— Vou comprar dois despertadores novos agora mesmo.
— Boa menina.

Delilah não sabia por que não pensara nisso antes. Como Ella poderia atormentar Delilah à
1h35 se Delilah já estivesse acordada naquele momento? Ella não tinha como pegar Delilah na
lanchonete. Então só o que Delilah tinha que fazer era trabalhar à noite até Ella ficar sem energia ou
coisa do tipo. Problema resolvido.
Embora Delilah nunca tivesse gostado do turno da noite quando trabalhou nele antes, ficou
tão empolgada com seu plano de se libertar de Ella que foi trabalhar com seu melhor humor em
muito tempo. Estava tão animada quando bateu o ponto às 21h55 que Glen, o cozinheiro do turno
da noite, perguntou se ela estava bem.
— Liberdade, Glen — disse ela. — Essa é a cara da liberdade.
— Pra mim, parece mais a cara da esquisitice — disse ele. Mas abriu um sorriu ao deixá-la
saber que não a segurava.
Glen era um cara enorme, com um barrigão que às vezes acabava chamuscando quando se
inclinava em cima da grelha. Apesar de seu tamanho, era um sujeito enérgico. Imaginava que fosse
bem jovem, talvez com vinte e tantos anos. Ele tinha um rosto de bebê, costeletas na altura do
queixo e olhos castanhos gentis. Ela gostava de trabalhar com ele.
Por três horas e trinta e nove minutos, Delilah se sentiu ótima. Ficou de papo com todos os
clientes da noite, deixando até que dois sujeitos mais velhos flertassem com ela. Nem sequer ligou
para os casais, aqueles que apareciam depois de algum programa noturno, aqueles que costumavam
fazê-la sentir-se desesperadamente sozinha.
À 1h34 da manhã, Delilah entrou no câmara fria para pegar um pouco de queijo e alface. Por
algum motivo, as saladas estavam fazendo sucesso naquela noite. Ela estava se curvando para
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alcançar o queijo cheddar quando, de repente, ouviu um alarme disparando na cozinha. Levantando-
se, ela bateu a cabeça na prateleira mais acima. Ela ignorou a dor deu uma olhada em seu relógio de
pulso. Era 1h35 da manhã.
Saindo da câmara fria às pressas, Delilah deu uma volta completa ao redor da cozinha.
— De onde tá vindo isso? — gritou.
Glen ergueu o olhar que até então estivera voltado para a churrasqueira. Jackie, a garçonete
da noite, derrubou um prato e encarou Delilah com os grandes olhos azuis.
— De onde tá vindo o quê? — perguntou Glen.
— Isso!
O alarme era bastante parecido com o dispositivo de tortura que Gerald costumava usar.
Tinha a mesma ondulação de campainha, zumbido, sirene.
Delilah correu até a fritadeira e deu uma olhada nos controles. Não, não estava disparando.
Checou os fornos. Não estavam nem sendo usados. Foi até a sala de descanso dos funcionários.
Não, o som não vinha de lá. Estava na cozinha. Delilah voltou para o meio do labirinto de aço
inoxidável e começou a procurar em meio às panelas, frigideiras e demais utensílios. Não fez isso
de forma organizada ou metódica e, quando jogou a terceira panela, Glen a agarrou pelo braço.
— Ei, Delilah, você tá bem?
— O quê? — Delilah arrancou o braço das mãos de Glen. — Não. Você não tá ouvindo...?
O som parou. Delilah inclinou a cabeça e tentou escutar, mas tudo o que ouvia agora eram
os barulhos normais do restaurante.
Ela olhou para Glen e Jackie, que ainda a encarava como se Delilah tivesse se transformado
num elefante.
— Vocês dois não ouviram isso? — perguntou.
— Ouvi você gritando e jogando panelas por aí — disse Glen.
Delilah olhou para Jackie. Um ou dois anos mais novo que Delilah e ainda insegura de si
mesma, Jackie usava óculos de um azul bastante vivo — as lentes faziam seus olhos parecerem
enormes com o choque.
Jackie sacudiu a cabeça.
— Não ouvi nada. Quer dizer, hm, além de você, hm, e as coisas, hm, de sempre.
Isso não podia estar acontecendo.
Como Ella podia ter seguido Delilah ali?
Bem, por que ela não poderia seguir Delilah ali? Ella já não havia demonstrado que podia
fazer basicamente tudo que quisesse?
O que era loucura. Isso era só tecnologia que deu problema. Certo?
— Você vai ficar bem? — perguntou Glen.
Delilah balançou a cabeça.
— Sim.
E ela imaginou que ficaria. Pelo menos não tinha que tentar dormir com o coração batendo
tão alto que tinha certeza que Glen e Jackie podiam ouvir e só estavam sendo educados demais para
comentar a respeito.
Então seu plano não tinha funcionado, mas o lado positivo era que ela podia usar seu pico de
adrenalina no trabalho em vez de tentar combatê-lo para poder dormir. E talvez na próxima noite, já
que agora estava pronta para o barulho do alarme, ela poderia simplesmente ignorá-lo e continuar
com seu turno. Talvez seu novo plano desse certo, afinal.

Em seu segundo dia no turno da noite, Delilah se certificou de que não estaria sozinha à
1h35. Ficou perto de Glen, que não pareceu se importar com isso. Mas, mesmo ao lado dele, ela
ainda enlouqueceu. Não pôde evitar. Naquela noite, pela primeira vez, ela não só ouvir ou sentiu
alguma coisa. Ela viu uma coisa. Viu um lampejo azul brilhante na câmara fria quando Jackie abriu
a porta. Quando viu o que tinha certeza que era Ella saindo da câmara, Delilah gritou e se agarrou a
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Glen. Ele também não pareceu se importar com isso, mas perguntou por que ela estava gritando. Ela
não tinha uma resposta.
À 1h30 da terceira noite da troca de turno de Delilah, ela estava atrás do balcão. Decidira
que a única forma de garantir que nada a assustaria naquela noite era ficar num lugar aberto, bem
longe da câmara fria.
Quando a Sra. Jeffrey, uma cliente que sempre pedia pudim de arroz, entrou na lanchonete,
Delilah ficou empolgada. Poderia servir a Sra. Jeffrey e 1h35 da manhã simplesmente passaria.
— Oi, Delilah. — A Sra. Jeffrey se sentou num dos bancos giratórios acolchoados. Seus
olhos estavam inchados.
Delilah se apoiou no balcão.
— Oi, Sra. Jeffrey. Está com problemas pra dormir?
A Sra. Jeffrey afagou seus cabelos bagunçados.
— Suponho que seja óbvio. Espero que você ainda tenha um pouco de pudim de arroz.
— Com certeza. Vou só...
Delilah parou. Ela olhou por cima do ombro. Então checou o relógio. Era 1h33 da manhã.
Onde estava Jackie?
Delilah não queria voltar para a câmara fria de jeito nenhum. Tinha certeza que Ella estaria
lá esperando por ela.
— Jackie? — chamou.
Sem resposta.
— Jackie! — Sua voz saiu como um urro.
Glen enfiou a cabeça para fora da cozinha.
— Algum problema?
Delilah tentou acalmar a respiração. Estava a ponto de ter um ataque de ansiedade daqueles
e não queria isso na frente de seus clientes e dos colegas de trabalho.
Delilah olhou para a Sra. Jeffrey. Os olhos castanhos da mulher idosa estavam arregalados.
— Lamento — disse Delilah. — É que...
Ela parou de falar quando o banco ao lado da Sra. Jeffrey começou a girar de um lado para o
outro. Ela piscou e se deu conta de que Ella estava no banco. Ella estava brincando no banco!
— Para com isso! — Delilah subiu no balcão e agarrou o banco.
Foi quando Jackie finalmente apareceu no salão. Delilah olhou para ela e notou que estava
esparramada sobre o balcão com a bunda empinada. Não era de se admirar que Jackie a estivesse
encarando, boquiaberta.
— Você está bem, querida? — perguntou a Sra. Jeffrey.
Delilah escorregou do balcão.
— Você não viu a boneca no banco?
— Boneca? Essa é a minha bolsa, querida. — A Sra. Jeffrey deu um tapinha numa bolsa
azul clara que deixara no banco ao lado.
Delilah se afastou do balcão. Checou o relógio. Claro que era 1h35 da manhã.

Na noite seguinte, algo parecido aconteceu. Delilah ficou no salão, mas ainda se traumatizou
à 1h35 quando viu algo se mexendo na lixeira embaixo do balcão. Querendo acreditar que era um
rato, mesmo que isso fosse horrível para o restaurante, ela usou um garfo para vasculhar o lixo. Ela
não encontrou um rato. Mas viu um babado cor-de-rosa que a fez soltar o garfo e pular para trás.
Ela resistiu à vontade de gritar, mas não conseguiu resistir à vontade de jogar a lixeira pela porta
dos fundos da lanchonete, espalhando lixo, mas não Ella, — que, como sempre, desapareceu sem
deixar rastros — por toda a rua.
Delilah simplesmente não conseguia conter suas reações. Sabia que Glen e Jackie estavam
de olho nela, mas isso não era o suficiente para mantê-la calma.
Foi a quinta noite daquele turno que fez Delilah perder a cabeça.
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Mesmo que ainda não tivesse funcionado tão bem, Delilah ainda achava que o lugar mais
seguro para ela na lanchonete era o salão principal. Ela fazia o possível para evitar ambientes
fechados, como a câmara fria, a dispensa e a sala de Nate.
À 1h30 da quinta noite, a lanchonete estava sem cliente nenhum. Delilah e Jackie estavam
enchendo os pequenos recipientes de sal e pimenta. Delilah estava com o sal, Jackie com a pimenta.
Elas colocaram a bandeja de recipientes numa mesa perto da janela da frente da lanchonete e se
sentaram em lados opostos da mesa. Enquanto trabalhavam, Jackie falou sobre suas aulas na
faculdade. Delilah tentou prestar atenção, mas estava mentalmente contando os minutos e segundos
até 1h35 da manhã.
O que seria naquela noite?
Todos os músculos e articulações do corpo de Delilah estavam rígidos de pavor.
Mas quando Delilah avistou algo azul brilhando e flutuando pelo estacionamento em frente à
lanchonete, seus músculos e articulações se soltaram e entraram em ação. Ela pulou, derrubando a
bandeja de saleiros e pimenteiros no chão em meio a uma grande barulheira e saiu às pressas pela
porta da frente. Correndo pelo estacionamento quase vazio, ela procurou o vestido de Ella.
Tinha certeza que era isso o que tinha visto. Vira a borda do vestido fofo de Ella. A boneca
estava ali fora. Estava observando Delilah.
Quando não viu Ella, Delilah começou a olhar embaixo dos dois carros estacionados na
beira do estacionamento. Estava se abaixando para checar embaixo do primeiro quando alguém a
agarrou pelo ombro.
Ela gritou.
— Tá tudo certo, tudo certo. Você está bem. — Era Glen. Seu rosto estava completamente
pálido sob a luz salpicada.
— Você a viu? — perguntou Delilah.
— Vi quem?
Ela fitou Glen nos olhos. Ele era tão compreensivo e se preocupava tanto com ela. Delilah
caiu em seus braços e começou a chorar.

Delilah achava bem incrível ter passado por vinte e três noites de horror à 1h35 da manhã
sem chorar. Na verdade, nem sequer notara que não tinha chorado. O problema foi que, uma vez
que começou a chorar, não conseguiu mais parar. Chorou tanto que, depois que Glen a levou para
dentro, ele ligou para Nate e pediu para que ele fosse até lá. Quando Nate chegou, Jackie estava
varrendo os cacos de vidro do chão da lanchonete. Enquanto Delilah estava sentada numa mesa nos
fundos e tentava fazer seu corpo parar de se contorcer, Nate conversou com Glen e Jackie. Ela não
conseguiu ouvir o que diziam, mas imaginava que devia dizer algo em sua defesa. Ela se levantou.
— Vem comigo — disse Nate.
Ótimo. Ele a estava levando para sua sala. Ela poderia explicar as coisas lá.
Ou não. Assim que entraram na sala, Nate fechou a porta atrás de si.
— Lamento, Delilah. Vou ter que te dispensar.
Delilah fitou Nate com olhos os arregalados. Eles pareciam cansados e feridos.
— Não me olha desse jeito. — Nate deu a volta na mesa e se jogou em sua cadeira de couro.
Delilah revirou a boca e tentou não cair no choro.
— Eu peguei leve contigo um milhão de vezes por chegar atrasada. Consegui dar um jeito
pra te ajudar com a sua “coisa”, mas isso já é demais. A Jackie disse que você tem agido “super
estranha” — ele fez aspas no ar enquanto dizia isso — nas últimas quatro noites. E agora isso. Não
posso ficar com uma funcionária que assusta os clientes e que quebra bandejas cheias de saleiros e
pimenteiros.
— Nate, eu...
— Não. Nem tente me contar uma história triste. Eu não sou seu pai. O que quer que esteja
rolando que a fez fazer o que você fez esta noite é algo que você precisa resolver sozinha, fora desta
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lanchonete. Você é uma boa funcionária quando está aqui e está focada, mas não posso arcar com
os riscos de responsabilidade por você agir assim. — Ele esfregou a barba por um instante. — Vou
pedir que alguém traga seu último cheque amanhã.
Delilah ficou parada diante da velha mesa cheia de cicatrizes de Nate e olhou para todas as
suas pequenas pilhas de papel organizadas. Ela se virou. Não ia implorar pelo emprego.
Ao sair da lanchonete, não estava nem pensando no trabalho. Ela estava pensando em Ella.
A cada noite que passava, estava ficando pior. Como ela passaria por outra 1h35 da manhã?

Quando Richard pediu que Delilah se mudasse da casa de hóspedes de seus pais, ela não
tinha para onde ir, então foi atrás de Harper. Ela a recebeu de braços abertos, mas, infelizmente,
Harper morava numa casa com outros dez atores passando dificuldades. Só o que tinha a oferecer
era metade de um colchão de casal no chão do que um dia fora um closet gigante (gigante para um
closet, não tanto para um lugar para dormir).
Harper amava o seu “retiro”. Ela ficou com a cama e organizou todas as suas roupas nas
estantes e prateleiras do closet. Delilah odiava o espaço apertado. Era claustrofóbico. Além disso,
Harper roncava e falava enquanto dormia. Delilah só ficou com ela por três dias antes de conseguir
seu apartamento com o dinheiro que Richard lhe dera. Por isso, o fato de ter ligado para Harper
quando chegou em casa do trabalho e perguntado se poderia ficar em sua casa por algumas noites
dizia muito sobre seu estado de espírito.
— Claro — disse Harper. — Vamos dar uma festa do pijama. Você não vai nem ver a 1h35
chegar e passar.
Delilah queria acreditar que era verdade. Ela tentou acreditar.
Harper ia se apresentar naquela noite, como fazia seis noites por semana, então deixou
Delilah sob os cuidados de um dos colegas com quem dividia a casa, um sujeito descolado chamado
Rudolph, que passava a tarde e a noite ensinando a Delilah o jogo de cartas que havia criado. Ela
nunca chegou a entender completamente, mas tinha que admitir que era divertido. Rudolph também
era legal e engraçado.
Quando Harper chegou em casa por volta de 0h30, Delilah surpreendentemente estava até
que bastante relaxada.
— Tá bom, já deu — disse Harper, rapidamente arrastando Delilah para longe de Rudolph,
que ficou claramente decepcionado. — Ela não vai ser seu novo bichinho de estimação, Rudy — ela
o repreendeu.
Lançando o lábio inferior para frente, ele fez biquinho e então abriu um sorriso para Delilah,
que seguiu Harper até o segundo andar da casa.
— Tenho petiscos — disse Harper. — Salgados. Garantido que vão afastar qualquer boneca
de alta tecnologia cínica.
O estômago de Delilah deu um salto mortal frente à palavra boneca.
Harper levou Delilah a seu “quarto”, jogou várias sacolas e caixas de salgadinhos e biscoitos
no colchão e então disse:
— Preciso lavar a pintura do rosto. Volto logo.
Delilah se sentou no colchão, abriu uma caixa de biscoitos de queijo e mordiscou um. Seu
estômago dela continuava se revirando.
Quando Harper voltou, ela divertiu Delilah com histórias da apresentação daquela noite:
— Então, primeiro o Manny esqueceu a fala dele e aí ele disse a minha fala — disse Harper
enquanto abria um saco de salgadinhos de churrasco. — Imbecil. Eu tive que pensar rápido. Então
eu o beijei.
Delilah checou o relógio em seu pulso. Era 0h55.
— Ei, você tava olhando o relógio? — Harper agarrou o braço de Delilah. — Dá isso aqui.
Delilah não resistiu quando Harper lhe tirou o relógio e colocou embaixo de um travesseiro.
Ela não precisava dele, de toda forma. Saberia quando fosse 1h35.
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— Sem relógio. Sem 1h35. — Harper limpou as mãos num gesto que dizia “e ponto final”.
Delilah queria que fosse assim tão fácil.
Mas não foi. Ela soube exatamente quando deu 1h35 da manhã. Soube porque, de repente,
uma voz disse: “Está na hora”.
Delilah deu um pulo e bateu a cabeça na estante em cima da cama.
— O que está fazendo? — Harper perguntou ao mesmo tempo em que Delilah enfiou a
cabeça embaixo da estante e disse:
— Foi você que fez isso?
Então as duas falaram ao mesmo tempo de novo:
— O que quer dizer? — disse Delilah.
— Fiz o quê? — disse Harper.
As duas pararam. Delilah ainda conseguia ouvir a voz de Gerald em seu ouvido repetindo
“está na hora” em um eco distante.
Delilah olhou para Harper.
— Está ouvindo isso?
Harper franziu o cenho para Delilah.
— Não tô ouvindo nada além das músicas antigas do Raul e do filme que a Kate e a Julia
estão assistindo lá embaixo.
— Você não imitou o Gerald?
— Estou sentada bem aqui na sua frente. Estou comendo salgadinhos. Como poderia ter
imitado o Gerald? — Harper colocou um salgadinho na boca com ênfase deliberada e o mastigou
fazendo bastante barulho.
Delilah sacudiu a cabeça. Ela percebeu que estava tremendo. Teve que juntar os dentes para
impedir que ficassem batendo.
— Então você deve estar com a Ella.
— O quê?
O pescoço de Delilah estava começando a doer devido a sua posição contorcida embaixo da
estante do closet. E suas pernas estavam fracas. Ela afundou na cama.
— Você sabe como é a voz Gerald.
— E?
— E pode muito bem ter programado a Ella para soar com ele, ter se gravado imitando ele
ou coisa do tipo.
Harper jogou o saco de salgadinho para o lado e se inclinou na direção de Delilah.
— Quero ter certeza de que estou entendendo o que você tá dizendo. — Ela estreitou os
olhos. — Você tá dizendo que eu peguei a sua boneca maluca, de alguma forma a fiz funcionar e aí
gravei a minha imitação de Gerald na boneca para que ela pudesse tocar isso pra você. É isso o que
está dizendo?
Delilah sacudiu a cabeça.
— Não? — perguntou Harper. — Então o que está dizendo?
— É o que eu te disse. Eu tô...
— Você tá doida, isso é o que você tá. Eu não estou com essa boneca idiota. Eu nunca vi
essa boneca idiota. E se tivesse visto a boneca e pegado a boneca, certamente não teria gravado uma
coisa nela pra te assustar. Por que eu faria isso?
— Eu não sei. — Delilah olhou para as mãos. Sentiu-se um pouco estúpida. Por que Harper
faria algo assim?
Mas então se lembrou da voz que tinha ouvido. Quem mais poderia ter feito aquilo?
— Me diga você — disse Delilah. — Por que fez isso?
— Eu não fiz! — gritou Harper.
Delilah se encolheu. Então sussurrou:
— Mas não tem outra explicação.
Harper olhou para Delilah.
— Caramba. Del. Você tá doida, garota. — Ela enfiou os biscoitos e salgadinhos do lado da
cama e se enrolou em seu canto, de costas para Delilah. — Eu vou dormir.
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— Eu queria poder.
— Você pode — disse Harper. — É só sair da sua cabeça.
— Não sou eu. É a Ella.
Harper suspirou e então começou a respirar profunda e calmamente.
— Deve ser bom — murmurou Delilah.

No dia seguinte, Delilah passou a maior parte do dia na rua com Harper e seus colegas de
casa. Como não conseguiu dormir até quase 7h00 da manhã e Harper a acordou quando se levantou
às 10:00, Delilah estava zonza com a privação de sono. Sentia-se como se alguém tivesse enchido
seu cérebro com algodão doce.
Quando se levantou, Harper parecia ter se esquecido das acusações de Delilah ou a perdoado
por elas. Ela não disse nada a respeito do que ocorrera entre as duas e passou o dia inteiro com sua
mesma animação de sempre. Delilah decidiu não falar mais nada sobre Ella. Mas também decidiu
que não iria ficar lá naquela noite. Iria embora enquanto Harper estivesse no teatro.
Ela não sabia para onde ir até que saiu para pegar o carro às 16h35. Veio a ela como o estalo
de uma ideia brilhante. Ela iria para um hotel, um hotel do outro lado da cidade. Ella não seria
capaz de encontrá-la lá. Delilah também não achava que ninguém, como Harper, a encontraria lá.
Ela não usaria um nome falso ou coisa do tipo, mas Harper não processava as coisas de uma forma
tão organizada a ponto de pensar em fazer uma busca em hotéis para descobrir se sua amiga estava
pousando lá.
Então, às 18h15, depois de comer um hambúrguer e batatas fritas numa lanchonete, Delilah
fez check-in no Hotel Boa Cama, nos arredores do lado mais maltrapilho da cidade. O nível de
qualidade do hotel era evidente tanto em seu nome quanto no fato de que sua placa desbotada
anunciava “uma cama e uma TV em todos os quartos”.
— Isso é o que eu chamo de luxo — disse Delilah quando estacionou o carro sobre as ervas
daninhas que cresciam por entre as fendas no asfalto desgastado pelo tempo.
O preço, no entanto, era bom. Tentando não inalar o cheiro de alvejante e repolho cozido no
pequeno saguão marrom do hotel, Delilah pagou por três noites. Ficou feliz pelo total mal ter feito
cócegas no limite de seu único cartão de crédito. Também estava feliz por ter conseguido um quarto
bem nos fundos do prédio longo e baixo, bem longe do tráfego. A mulher pesada atrás do balcão
não estava nada interessada em Delilah. Estava muito ocupada assistindo a um documentário sobre
aranhas numa TV antiga pendurada na parede ao lado do balcão de check-in.
O velho quarto do hotel estava surpreendentemente limpo e arrumado. Montado nos mesmos
tons de marrom feios que Delilah encontrara no saguão, o quarto não ganharia nenhum prêmio por
beleza, mas tinha um cheiro fresco e tudo funcionava. A cama era até confortável.
Como as únicas outras superfícies do quarto adequadas para sentar eram duas cadeiras
cobertas de tecido com o encosto reto, Delilah se sentou na cama assim que trancou a porta e
colocou suas coisas no baú baixo em frente à cama. Ficou satisfeita ao descobrir que o hotel ficava
muito bem isolado. O tráfego na rua movimentada em frente ao hotel não passava de um shhh
distante e Delilah não conseguia ouvir mais nada. Estava pensando em assistir um pouco de TV
quando entrou no quarto, mas estava tão cansada que arriscou deitar a cabeça no travesseiro. Tensa,
esperando pelos sintomas dos ataques de pânico aos quais já estava habituada, ficou empolgada
quando não sentiu nada além de exaustão.
Ela fechou os olhos.
E o sono a levou do quarto de hotel à promessa... ou à maravilha... de seus sonhos.

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O som penetrou seu sono como uma aranha se esgueirando por suas teias e deixando rastros
sedosos pelo caminho neural. Era um som arrastado, como algo se arrastando por uma superfície
áspera. Sua mente não conseguiu compreender o som o suficiente para integrá-lo a seu sonho de
estar andando a cavalo. Então o cavalo no sonho a derrubou e ela ficou cara a cara com a aranha.
Ela gritou. E o grito a trouxe de volta à consciência.
Os olhos de Delilah se abriram e ela se deu conta de que ainda estava gritando. Ela apertou
os lábios e mordeu a língua. Queria se levantar e correr, mas não podia. Estava paralisada.
Espera. Ela estava acordada?
Acreditava que sim.
Sobre ela, alguma coisa se arrastou pelo teto. Fazia um som semelhante ao de seu sonho,
mas esse som era pior. Não era só o som de uma aranha cuidando de sua vida. Era um som
estratégico. Começava. Parava. Ia para um lado. Ia para o outro. Era o som de algo que estava
buscando, procurando alguma coisa. O som de algo com um objetivo.
E Delilah sabia que ela era o objetivo.
Ella havia encontrado Delilah. Estava procurando uma forma de entrar no quarto do hotel.
Gemendo como um gatinho sendo caçado por um coiote, Delilah lutou para soltar os
membros de qualquer que fosse a força que a mantinha imóvel. Mas ainda estava presa à cama. A
única coisa que conseguia fazer era mexer a cabeça. Então virou a cabeça e checou o relógio digital
na mesa de cabeceira. É claro que estava marcando 1:35 AM.
Assim que Delilah viu a hora, descobriu que podia se mexer. Conseguiu se soltar da colcha,
na qual, de alguma forma, havia se enrolado enquanto dormia. Ela pulou da cama e se encolheu
junto à parede ao lado da porta, o olhar fixo no teto.
A luz vermelha escura intermitente de uma placa de néon ao lado do hotel cobria o teto
como sangue derramado. Ele vez ou outra era abrilhantado pelas lâmpadas fluorescentes e
tremeluzentes dos postes que iluminavam as calçadas e o estacionamento do hotel.
Isso significava que Delilah podia ver o que precisava ver. Não havia nada se arrastando
pelo teto. Mas isso não a reconfortou. Ella tinha outras formas de entrar no quarto. E mesmo que
não entrasse no quarto, o fato de estar do lado de fora, no teto, significava que a breve pausa de
Delilah tinha acabado.
Não havia como fugir de Ella.
Delilah começou a balançar para frente e para trás como uma criança. E cantarolou até o sol
raiar. Não sabia o que estava cantarolando no começo, mas depois reconheceu a música. Estava
cantarolando a velha canção de ninar que sua mãe costumava cantar quando era pequena.

Embora Delilah tivesse pagado por três noites, ela deixou o quarto do hotel por volta do
meio dia do dia seguinte. Não havia por que ficar. Ela não conseguira dormir. Não estava segura ali.
Delilah tinha certeza de que não estava segura em lugar algum, mas imaginou que ficar em
movimento não era uma má ideia. Isso é, supondo que os circuitos de Ella não haviam gravado a
marca, o modelo, a cor e talvez até a placa do carro de Delilah. Afinal, Ella fora para o apartamento
no carro. Ela provavelmente tinha deixado algum tipo de rastreador nele. As viagens de Delilah
eram sem dúvidas uma perda inútil de tempo e gasolina.
Mas o que mais Delilah podia fazer?
Então ela dirigiu.
Dirigiu a tarde e a noite todas. Dirigiu pela cidade inteira, explorando bairros que nem sabia
que existiam. Fitou avidamente as grandes casas de famílias e as crianças que brincavam no parque.
Viajou pelo distrito comercial, lembrando-se de como era comprar o que quisesse e lembrando-se
também de quão pouco prazer que isso lhe dava. Ela nunca quis coisas. Ela queria amor.
Quando o sol começou a se pôr pouco depois das seis, Delilah notou que estava sendo idiota.
Muito idiota. Por que ainda estava na cidade? Por que não sair da cidade, dirigir pelo interior? Não
seria mais difícil para Ella alcançá-la assim?
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1:35 AM
Delilah deu a volta numa esquina movimentada e então seguiu com o carro em direção à
autoestrada. Mas ela logo deu meia-volta novamente, retornando ao bairro de onde acabara de sair.
Talvez não estivesse sendo idiota, afinal. E se fosse a cidade o que estava ajudando a mantê-la em
segurança? E se Ella ficasse livre para fazer o que quisesse com Delilah se estivessem longe de uma
área povoada?
Além disso, era escuro no interior. Muito escuro. Delilah tinha só uma lanterna pequena.
Não achava que aguentaria enfrentar suas provações da 1h35 da manhã no escuro completo. Não.
Ela ficaria na cidade. Mas onde?
Indo ao drive-through de uma lanchonete fast-food de burritos, Delilah comprou um burrito
de frango com arroz acompanhado com sour cream. Estranhamente, mesmo estando com tanto
medo que provavelmente estava a apenas mais um choque da histeria total, ainda tinha seu apetite.
Talvez seu corpo soubesse que precisava se manter nutrido para lidar com o que estava por vir.
Delilah comeu seu burrito em um cinema drive-in que descobriu na extremidade oeste da
cidade. Não fazia nem ideia que ele existia. Mas ficou feliz por encontra-lo. Ele a manteve acordada
até quase meia-noite. Foi quando o último filme — um de ação com cenas de perseguição —
terminou e Delilah teve que se juntar à fila irregular de carros que saíam do drive-in. Foi quando
teve que decidir onde deveria estar quando desse 1h35.
Pensou em estacionar o carro atrás de um prédio escuro ou num bairro tranquilo perto de
uma casa abandonada. Mas ela realmente queria deixar tão fácil para que Ella a pegasse?
Não. Seria melhor se estivesse dirigindo à 1h35 da manhã. Ela nunca tentara isso antes.
Talvez fosse a solução.
Então, quando seus membros ficaram trêmulos, sua respiração mais rápida e os pulmões se
apertaram, Delilah foi dirigindo vez mais perto do centro da cidade. Queria estar onde ainda havia
pessoas caminhando pelas calçadas e luzes brilhantes que transformavam a noite em dia.
À 1h33, Delilah teve uma ideia ainda mais inspirada. Ela dirigiria por uma das grandes
pontes do centro. Ella certamente não conseguiria chegar lá, especialmente porque a decisão de
pegar a rampa de acesso à ponte foi a mais espontânea possível.
Embora fosse o meio da noite, ainda havia pelo menos uma dúzia de carros cruzando a
ponte. As mãos de Delilah suavam e ela as reposicionou no volante. Piscou várias vezes para clarear
a visão, que estava começando a ficar embaçada. Ela se concentrou na estrada e se forçou a não
olhar para o relógio digital do painel.
Mas ela soube quando deu 1h35.
Soube porque foi quando ouviu a porta do passageiro destrancar e abrir. Ofegando e
perdendo o controle do carro por um instante, Delilah girou o volante para voltar à pista. O forte
barulho do vento entrando pela porta do passageiro aberta a atingiu pouco antes de ouvi-la fechando
novamente. Ela olhou para a direita, todo o corpo tomado pelo terror. Esperava ver Ella sentada no
carro ao seu lado.
Mas não havia nada lá.
Tudo o que viu em seu carro foi a sacola com o lixo da lanchonete fast-food em que havia
comido, sua bolsa e sua lanterna.
Quase do outro lado da ponte, ela voltou a olhar para a estrada. Então, algo bateu no teto do
carro em meio a um grande baque.
Delilah deu um grito e enfiou o pé no acelerador. Seu carro cantou pneu e ela arrancou para
ultrapassar uma minivan, quase batendo com tudo no para-choque traseiro. Ela então puxou o carro
de volta para a faixa da direita, a fim de pegar a primeira saída da ponte. Dirigindo como louca,
disparou pela estrada industrial paralela ao rio e parou quando chegou a uma fábrica abandonada.
Seu carro derrapou até parar, jogando cascalho por todos os lados.
Delilah desligou o motor e saiu do carro no instante em que o veículo parou de se mexer.
Não se deu sequer ao trabalho de trancá-lo. Apenas pegou sua bolsa e lanterna, bateu a porta do
motorista atrás de si e saiu correndo.
Ela correu em direção ao rio atrás da fábrica. Com os pés estalando sobre o concreto rachado
e o lixo espalhado, ela correu até finalmente ficar escondida da estrada. Seu carro também não

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estava mais à vista. Delilah ainda podia ver para onde estava indo porque a fábrica, embora vazia,
estava bem iluminada.
Ela parou de correr e olhou em volta. Não tinha ideia de onde estava, mas não se sentia
segura. Onde será que voltaria a se sentir segura?
Girando num círculo completo, ela examinou seus arredores. Talvez se conseguisse se
esconder de Ella agora, a boneca não a encontraria mais tarde.
Mas onde poderia se esconder?
Delilah viu um cano de drenagem no lado oposto da fábrica. Era enorme, com mais de um
metro de diâmetro. Tinha certeza que conseguia facilmente se esgueirar por ele.
Atravessando um lote de terra e cascalho cheio de buracos, Delilah se seguiu em direção ao
cano de drenagem. Mas no meio do caminho, ela parou. Não podia levar a bolsa consigo. Não podia
levar nada consigo. Ela não sabia o que a ligava a Ella.
Girando em outro círculo, Delilah viu uma pilha de trilhos ferroviários. Dava para o gasto.
Ela checou os arredores de novo. Continuava sozinha. Ela correu até os trilhos e escondeu a bolsa
numa fenda. Então deu mais uma olhada em volta e correu para o cano de drenagem. Ela se arrastou
para dentro e se agachou. Percebeu que estava tonta. Estava hiperventilando.
Inclinando-se com a cabeça entre os joelhos, ela tentou normalizar a respiração, absorvendo
menos oxigênio do que sabia que precisava. Queria ter um saco de papel consigo. Tinha um no
carro, mas ela não podia voltar lá.
Não podia voltar a nenhum lugar onde já estivera antes. Não podia voltar à sua vida.
Ella a encontraria em qualquer lugar.
Até ali.
Delilah caiu de costas e se enrolou numa bola, abraçando as pernas. Tentou ficar em
silêncio, mas não conseguiu. Ela começou a chorar.
O som que vinha dela não se parecia em nada com nenhum som que já tivesse feito antes.
Nem quando seus pais morreram.
Nem quando sua primeira família adotiva se recusou a ficar com ela.
Nem quando seu quarto pai adotivo a espancou.
Nem quando Gerald programou quando ela podia assoar o nariz.
Nem quando Richard a expulsou.
O som continha toda a mágoa, o medo e a decepção esmagadora que já tinha sentido — tudo
misturado num repúdio gritante da dor. O som que ela fez foi o som de uma mulher que não tinha
mais forças. Ela não conseguia mais lutar.
Delilah fechou a boca. Sua garganta doía. Seus pulmões doíam. Seu coração doía.
E ela não parava de tremer. Seu corpo inteiro estava quase convulsionando de apreensão.
Não, não apreensão. Delilah estava tão além de qualquer versão conhecida de medo que não
se sentia mais humana.
Ela nunca mais estaria segura de novo.
Enquanto se apoiava sobre os joelhos e as mãos, Delilah soluçou de tanto chorar. Ela não
podia ficar ali. Ella saberia onde ela estava.
Rastejando o mais rápido que pôde, as mãos ardendo em contato com a superfície áspera de
concreto que esfregava na pele, Delilah saiu do cano de drenagem. Ela parou.
Para onde poderia ir?
Delilah começou a correr novamente. Correu junto ao rio, examinando tudo de um lado e do
outro, procurando uma saída, procurando uma válvula de escape, um assento ejetor, algo que a
levasse o mais longe possível de Ella.
Ela não sabia por quanto tempo tinha corrido quando tropeçou no que parecia um canteiro
de obras abandonado. Sua silhueta irregular estava encoberta pela escuridão, mas os postes na rua
lhe iluminavam o suficiente para revelar seus contornos básicos. Ela diminuiu o passo, apontou a
lanterna e viu a placa que anunciava o projeto. Parecia um complexo de escritórios.
Empurrando um quadro sujo que cobria uma abertura ao lado do que parecia uma estrutura
de três andares, Delilah entrou no local. A resposta para sua provação estava ali. Ela tinha certeza.
Em algum lugar ali, ela encontraria uma forma de fugir de Ella para sempre. Mas onde?
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Avançando pelo piso de tábuas de madeira crua salpicadas com pregos e parafusos, dando a
volta pilhas de madeira e gesso cerrados, Delilah entrou numa sala que estava quase pronta. As
paredes de gesso ali não estavam apenas erguidas — também haviam sido texturizadas e pintadas. E
lá, no alto de uma das paredes, estava sua resposta.
Era um duto de ventilação, descoberto, do tamanho preciso para que ela entrasse. Essa era a
solução. Era ali que poderia parar de fugir de Ella.
Vasculhando a sala em busca de uma forma de se erguer até a abertura, ela viu um cavalete
tombado. Ela foi até ele, o ajeitou e então o levou para um ponto embaixo da abertura. Era forte e
estável. Parando para escutar, para ter certeza de que estava sozinha, Delilah se ergueu no cavalete,
ficou nas pontas dos pés e conseguiu se segurar na frente da abertura do duto. De lá, fez um
movimento de flexão, agradecida por toda a força da parte superior do corpo que conseguira com a
limpeza pesada na lanchonete.
Uma vez com a cabeça na altura da abertura do duto, ela colocou um braço para dentro,
procurando por algum tipo de apoio. Não encontrou um, mas sua mão suada grudou no metal o
suficiente para lhe segurar, ainda que só um pouco.
Conseguiu se enfiar no duto revirando a parte superior do corpo, avançando uma mãozada
de cada vez. Quando já estava com metade do corpo para dentro, só o que precisou fazer para
terminar de entrar foi remexer o corpo inteiro, como uma cobra.
Mas ainda não se sentia segura.
Ela parou de se remexer por um momento, avaliando sua situação. Acendendo a lanterna, ela
viu uma curva que ia para baixo no duto. Ela seguiu em sua direção. Sim. Era isso.
Enfiando a cabeça no espaço em forma de rampa, ela avançou.
Um pouco mais em frente.
E um pouco mais em frente.
Sua lanterna escorregou de sua mão suada e tilintou enquanto batia contra as paredes de
metal do duto, caindo longe do alcance de Delilah. Ela a ouviu bater em alguma coisa em meio a
um estalo agudo. Devia ter quebrado porque o espaço ficou escuro.
Os ombros de Delilah a travaram com tanta força no invólucro de metal compacto que ela
soube que finalmente havia encontrado. Aquele lugar era onde Ella não conseguiria encontrá-la.
Ninguém a encontraria ali.
Tentando se mexer só para ter mesmo certeza, ela confirmou que estava presa, completa e
absolutamente presa.
Sua respiração desacelerou. Ela relaxou.
Não conseguia se mexer em nenhuma direção.
Ela nunca mais teria que fugir de Ella de novo.

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P
ara dizer bem a verdade, Stanley não gostava muito do lugar. Alguma coisa na forma como
era escondido dos transeuntes o fazia se perguntar que tipo de segredos eram guardados ali.
Era mesmo um negócio legítimo ou um havia algo suspeito rolando por debaixo dos panos?
Stanley não sabia. Quando foi contratado, seu supervisor disse que ele só precisava saber o
essencial para exercer o seu trabalho e, no que dizia respeito aos negócios, Stanley não precisava
saber de nada. Depois de um ano e meio no trabalho, a única coisa que Stanley sabia com certeza
era que seus pagamentos sempre caíam na conta.
Para chegar ao trabalho, ele tinha que percorrer um depósito cheio de pilhas altas de madeira
serrada, blocos de concreto e vigas de aço. Escondida em meio a todos os materiais de construção,
havia uma escada que levava ao subsolo. Uma única lâmpada de baixa voltagem iluminava os
degraus escuros o suficiente para que conseguisse descer em segurança. Ao final da escada, tinha
que passar pela mesma lixeira fedorenta de resíduos biodegradáveis pela qual passava todas as
noites. Tinha sempre exatamente a mesma mistura de odores fétidos — algo químico, algo que mais
parecia comida podre e o mais perturbador de tudo, algo que imaginava ser o cheiro de carne em
decomposição. O fedor dava o tom para a noite que Stanley estava prestes a ter.
Assim como a lixeira de resíduos biodegradáveis, o trabalho de Stanley era nojento.
Ele escaneou seu cartão de identificação e a grande porta de metal se abriu em meio a um
gemido que sempre parecia expressar como Stanley se sentia em relação ao turno que se iniciava.
Às vezes, gemia junto com a porta.
O complexo era escuro e não tinha ventilação adequada. Devido à localização subterrânea,
sempre tinha um nível de umidade no ar que fazia Stanley se sentir viscoso. Em tese, a instalação
era uma fábrica, mas, mesmo por dentro, não fornecia nenhuma pista sobre que tipo de trabalho era
feito ali. O edifício era um amontoado de corredores escuros parcamente iluminados por lâmpadas
verdes enjoativas. Mais acima, uma série de tubos negros passavam por cima uns dos outros. Em
meio aos corredores, havia gigantescas portas de metal trancadas. Stanley não fazia a menor ideia
do que acontecia atrás delas.
Se o lugar era uma fábrica, fazia sentido que houvesse pessoas nas instalações fabricando
alguma coisa. Às vezes, Stanley ouvia as batidas e roncos de algum tipo de maquinaria atrás das
grandes portas trancadas. Imaginou que devia ter outros funcionários no local, pessoas operando a
maquinaria, mas, ao longo de todo o tempo que passou no trabalho, ainda não tinha sequer avistado
outro ser humano.
Era estranho ser um vigia e não saber o que de fato estava vigiando.
Stanley passou por um dos corredores, ouvindo os chiados e ruídos que vinham de trás de
uma das portas de metal e então escaneou seu cartão de identificação para entrar na sala de
monitoramento. Ele se sentou em sua mesa, de onde podia ver todas as entradas e saídas do edifício
nos monitores de alta tecnologia do complexo.

Stanley havia sido contratado para trabalhar naquele complexo há um ano e meio. Durante a
entrevista para o emprego, ficara óbvio que o trabalho era diferente de qualquer outra posição de
vigia que já havia ocupado antes. O supervisor que o contratou era um sujeito esquisito, baixo e
careca, que usava um terno grande demais para sua estrutura e que parecia ter um tique nervoso,
com uma grande dificuldade de olhar nos olhos de Stanley.
— Não é um trabalho difícil — dissera o sujeito. — Você fica sentado na sala de
monitoramento, vigia as saídas do prédio nos monitores e se certifica de que nada vá sair.
— Que nada vá sair? — perguntou Stanley, na ocasião. — Em outros trabalhos, eu sempre
vigiei para garantir que ninguém entrasse.
— Bem, este não é outro trabalho — disse o homenzinho nervoso, parecendo subitamente
interessado nos papéis em sua mesa. — Apenas vigie as saídas e vai dar tudo certo.
— Sim, senhor — disse Stanley. Estava confuso, mas não queria causar problemas. Havia
sido demitido de seu último emprego e as contas estavam se acumulando. Ele precisava do trabalho.
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— Quando acha que pode começar? — perguntou o sujeito, meio que olhando na direção do
rosto de Stanley, mas ainda sem fitá-lo nos olhos.
— Assim que precisar de mim, senhor. — Stanley estava esperando uma entrevista mais
rigorosa. Geralmente, para trabalhos de segurança, havia muitas perguntas, testes de personalidade,
referências a serem seguidas e uma extensa verificação de antecedentes. As empresas queriam
garantir que não estavam contratando uma raposa para vigiar o galinheiro, como a avó de Stanley
costumava dizer.
— Excelente — disse o homem com o que quase parecia ser um sorriso. — Receio que esta
vaga tenha ficado disponível de repente e precisamos com urgência de alguém para preenchê-la.
— O cara simplesmente meteu o pé? — perguntou Stanley.
— Por assim dizer — disse o homem, olhando para além de Stanley. — Infelizmente, nosso
último segurança... faleceu de súbito. Muito trágico.
— O que aconteceu com ele? — perguntou Stanley. Ele sabia que havia perigos inerentes ao
trabalho, mas se o vigia anterior tinha sido morto no cumprimento do dever, ele sentia que devia ser
informado a respeito. Se esse trabalho fosse especialmente perigoso, ele precisava saber no que
estava se metendo e tomar uma decisão consciente.
— Um grande ataque cardíaco, receio — disse o homem, olhando para baixo e folheando
alguns papéis em sua mesa. — Nunca sabemos quanto tempo ainda nos resta, sabemos?
— Não, senhor — disse Stanley, pensando em seu pai, a quem havia perdido recentemente.
O homem assentiu, pensativo, e então olhou para Stanley.
— Mas acredito que você achará o trabalho bastante fácil. Basta ficar de olho nessas saídas,
certificar-se de que tudo que deveria estar no prédio fique no prédio e vai dar tudo certo.
— Sim, senhor — disse Stanley. — Obrigado. — Ele estendeu a mão para apertar a
mãozinha fria e ossuda do homem e, simples assim, conseguiu o emprego.
Como resultado, Stanley passou o último ano e meio monitorando saídas para se certificar
de que “nada fosse sair”, mesmo que não tivesse certeza do que essa frase sequer significava. Por
que o homem que o havia contratado disse “nada” em vez de “ninguém”? O que exatamente Stanley
estava vigiando? Ele pensou em perguntar ao homenzinho estranho e inquieto sobre isso algum dia,
mas desde aquela breve entrevista de emprego, Stanley nunca mais voltara a vê-lo.
Stanley desenroscou a tampa da garrafa térmica de café e se preparou para outra noite longa
e solitária. Ele não se importaria tanto com as noites solitárias se seus dias também não fossem
solitários. Até duas semanas antes, quando Amber, sua namorada por mais de dois anos, terminou
com ele, seus dias eram mais brilhantes. Ao longo de suas horas de trabalho árduo, Stanley esperava
ansiosamente pelo que o aguardava quando saísse às 7h da manhã. Ele ia à lanchonete do outro lado
da rua para tomar um grande café da manhã — ovos, bacon, torradas e batatas fritas crocantes com
bastante cebola. Depois de encher a barriga, voltava a seu apartamento e caía num sono profundo
por algumas horas. Mais tarde, acordava, comia um sanduíche, fazia uma pequena limpeza ou
lavava as roupas e depois jogava videogame até Amber sair do trabalho no supermercado às cinco.
Amber sempre trazia ingredientes para o jantar. Ela amava os programas de culinária da TV
e adorava experimentar novas receitas, o que para Stanley era ótimo. Ele adorava comer e tinha sua
barriga para provar. Não era exatamente gordo, tinha só com uma camadinha de gordura aqui e ali,
como um sofá confortável. Costelinha ao molho de ameixa, frango adobo, espaguete à carbonara —
qualquer receita nova que Amber quisesse testar, Stanley ficava feliz em comer. Amber e Stanley
preparavam o jantar juntos e depois sentavam um de frente um para o outro em sua pequena mesa
da cozinha, onde comiam e conversavam sobre seus dias. Como Amber de fato via pessoas em seu
trabalho, ela costumava ter histórias engraçadas sobre coisas que aconteciam no mercado. Depois
de colocarem os pratos e talheres na lava-louças, eles se abraçavam no sofá e assistam a programas
na TV ou a um filme até que fosse a hora de Stanley se preparar para o trabalho. A maioria de seus
encontros eram noites aconchegantes em casa, mas quando Stanley tinha uma noite de folga, eles
saíam para jantar — geralmente na Casa de Espaguete do Luigi ou no Palácio Wong — e assistiam
a um filme no cinema ou jogavam boliche.

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O tempo que Stanley passou com Amber foi sempre feliz e confortável e ele achava que ela
sentia o mesmo. Mas no terrível dia em que ela terminou com ele, ela disse: “Esse relacionamento
está tão estagnado quanto um tanque de sapos. Não estamos indo a lugar nenhum”.
Pego de surpresa, Stanley disse na ocasião: “Bom, pra onde você queria que fôssemos?”
Ela olhou para ele como se sua pergunta fosse parte do problema: “É justamente isso,
Stanley. Você não devia ter que perguntar”.
Stanley mal havia completado vinte e cinco anos e Amber era a primeira namorada séria que
já tivera. Ele a amava e disse isso a ela, mas não se sentia emocional ou financeiramente pronto para
noivar ou casar. Achava que o que ele e Amber tinham era suficiente por ora. Foi uma pena que ela
não sentisse o mesmo.
Alguns dias antes, Stanley havia ido à quinta festa de aniversário de seu sobrinho, Max, na
casa de sua irmã, Melissa. Era a primeira vez que saía de casa para ir a algum lugar que não fosse o
trabalho depois da separação. A princípio, ver aquelas crianças brincando e a festividade familiar
dos balões, bolo e presentes o animou um pouco. Tinha ido de uniforme porque sabia que Max
achava legal e, no fim, os outros garotos da idade de Max também acharam. Eles imediatamente o
cercaram, dizendo coisas como “seu distintivo é tão brilhante!” e “você corre atrás de bandidos?”.
Eles eram umas figuras. Stanley gostava de crianças. Sempre gostou.
Depois que as crianças voltaram às brincadeiras da festa, Stanley ficou ouvindo os pais que
estavam parados ali em volta conversando e rindo sobre coisas que seus filhos diziam ou faziam.
Começou a pensar: e se Amber tivesse sido sua última chance de sossegar e ter filhos e ele tivesse
estragado tudo? E se estivesse condenado a ser sempre o tiozão solteiro na festa de aniversário do
sobrinho, sempre ficando de lado, nunca o marido de alguém, o pai de alguém?
Não ajudou que Todd, cunhado de Stanley, se aproximou dele e disse:
— Ei, cara, eu tava pegando uma marmita no Luigi na outra noite e aí vi a sua ex num
encontro com o gerente do Snack Space.
Stanley quase se engasgou com o bolo de aniversário.
— Ela já tá saindo com outra pessoa?
— Olha, com certeza parecia um encontro pra mim. Ela já devia tá de rolo com ele antes até
de terminar contigo — disse Todd. — Você conhece o cara? — Stanley sacudiu a cabeça. — Bem,
odeio ser o portador de más notícias, mas ele é alto e malhado. Também se veste muito bem. Dei
uma olhada no carro dele no estacionamento quando saí. Um carro esporte.
Stanley era baixo e atarracado e não tinha um carro e, se tivesse, com certeza não seria tão
caro quanto um carro esporte. Talvez fosse por isso que seu relacionamento com Amber estava
estagnado. Ela queria subir na pirâmide social e ele estava contente onde estava.
Stanley Estagnado, esse devia ser o seu nome.
Tinha que parar de ficar remoendo essas coisas, disse a si mesmo. Estava no trabalho, então
devia estar trabalhando. Ele bebeu seu café e monitorou a falta de atividade no edifício. Todas as
saídas estavam vazias. Sempre estavam vazias. Ele não queria nada perigoso, mas seria bom ter
algo para fazer.
Mesmo com a cafeína, suas pálpebras começaram a ficar pesadas e sua cabeça mais parecia
uma bola de boliche que ele tentava carregar nos ombros. Ele começou a cochilar. Era típico. Em
qualquer um de seus turnos, Stanley provavelmente passaria quatro das oito horas dormindo
profundamente. Esse era um dos motivos pelos quais não tentara procurar outro emprego, apesar do
tédio e da solidão. Quantos lugares te pagariam para dormir? Stanley logo estava cochilando em sua
cadeira, a cabeça inclinada para trás e os grandes pés estirados em cima da mesa.
Bip! Bip! Bip! Bip!
Stanley foi acordado por um alarme. Desnorteado por um segundo, ele o confundiu com o
despertador que tinha em casa, mas então se lembrou de onde estava e checou os monitores. Um
sensor de movimento fora ativado num duto de ventilação bem ali na sala de monitoramento. Bem,
pelo menos não teria que ir muito longe para verificar as coisas. Stanley se espreguiçou, levantou-se
da cadeira e pegou sua lanterna.
Ele se agachou no chão, tirou a tampa do duto e apontou o feixe da lanterna em direção à
escuridão. Não viu nada. De fato, o duto era pequeno demais para que algo muito perigoso pudesse
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passar. Talvez um rato ou um camundongo tivesse ativado o sensor. Se o problema continuasse,
podia preencher um relatório (embora não soubesse ao certo quem recebia e lia os relatórios que
enviava) e sugerir que a gerência contratasse uma empresa de dedetização.
Stanley deu um longo bocejo e voltou para a cadeira. Estava na hora de voltar a seu sono.
Duas horas depois, ele acordou assustado. Sentou-se, limpou a baba da boca e então deu
uma olhada nos monitores. Nada. Mas, em sua mesa, havia um objeto que não estava lá antes. Não
ficou imediatamente claro do que se tratava.
Após uma análise mais próxima, parecia ser um brinquedo — um tipo de boneca com braços
e pernas articulados. Usava um pequeno tutu branco e seus pezinhos eram pintados de branco, de
modo que parecia usar sapatilhas de balé. Seus braços estavam erguidos como uma bailarina prestes
a fazer uma pirueta. Stanley abriu um sorriso diante de seu conhecimento rudimentar a respeito das
terminologias do balé. Todas aquelas vezes em que fora arrastado para os recitais de balé da irmã
mais velha quando criança pelo menos lhe ensinaram alguma coisa.
A boneca articulada simples também o lembrava um pouco das bonecas articuladas que
ficavam na sala de artes da escola onde cursara o ensino médio. As bonecas de madeira podiam ser
dispostas em várias posições para ensinar os alunos a desenhar a forma humana. Mas, diferente das
bonecas da sala de artes, que não tinham rostos, essa boneca bailarina tinha um.
Mas não era o rosto que se esperaria que tivesse.
Parecia lógico pintar o rosto de uma boneca bailarina para parecer o de uma linda garota.
Mas essa não. Seu rosto era branco como o de um palhaço. Suas grandes órbitas oculares eram
completamente negras e vazias. Não tinha um nariz perceptível, mas sua grande boca sorridente era
um buraco negro e sem dentes. O rosto não combinava em nada com o corpo. Por que alguém
pintaria o rosto de uma boneca bailarina de um jeito tão macabro?
A mente de Stanley estava cheia de perguntas. O que era aquela coisa estranha e o que
estava fazendo em sua mesa? Quem a colocara lá?
Ele pegou a boneca. Passou alguns instantes mexendo nas articulações para colocá-la em
diferentes posições. Olha! Agora ela está fazendo uma abertura total! Agora está fazendo uma
dança russa! Stanley riu da facilidade com que se divertia. Realmente vinha passando muito tempo
sozinho ultimamente. Devia arranjar um hobby. Ele balançou a boneca para fazê-la dar uma pirueta.
Uma pequena voz de dentro do corpo da boneca disse:
— Nós gostamos de você!
— O que foi isso? — disse Stanley, balançando a boneca outra vez. Devia ter algum tipo de
placa de som que reagia a movimentos.
— Nós gostamos de você! — Era a voz de uma garotinha, aguda e risonha. Fofa.
— Quem somos nós? — disse Stanley, sorrindo para a boneca. — Só estou contando uma.
— Ele a balançou.
— Eu gosto de estar com você! — cantarolou a boneca.
— Bom, pode acreditar, já faz um tempo que uma garota não me diz isso — disse Stanley,
erguendo a boneca para olhá-la melhor. — Pena que você é minúscula e não é um ser humano de
verdade. E também é meio esquisitona. — Ele a balançou de novo. Ficou imaginando quantas frases
pré-gravadas tinha em seu vocabulário.
— Você é uma bolinha quente e macia! — disse a boneca, em meio a uma risadinha.
Bom, isso era novidade. Mas era verdade, ou pelo menos a parte da “bolinha”. Ele vinha
comendo feito um elefante desde que terminara com Amber. Sempre comeu muito bem, mas agora
era diferente. Agora estava comendo por tristeza — banheiras inteiras de sorvete de biscoito com
gotas de chocolate, embalagens tamanho família de salgadinhos mergulhados em creme de cebola,
meia dúzia tacos da lanchonete da esquina de uma só vez. Compulsão alimentar, era como os
especialistas da internet chamavam. E a compulsão alimentar realmente fizera dele uma bola quente
e macia. Ele devia começar a comer de maneira mais saudável — saladas, frutas e frango grelhado.
E precisava voltar à academia. Ele era membro de uma academia. Só não conseguia se lembrar de
qual fora a última vez que fora lá... talvez antes de ele e Amber namorarem.
— Olha, tô achando que você é uma boa influência pra mim — ele disse à boneca, sorrindo
enquanto a balançava.
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— Leve-me para casa com você! — disse a boneca, com a mesma risadinha na voz.
Ele a colocou de volta na mesa.
— Bem que eu podia fazer isso, bonequinha — disse. — É quase como se você tivesse sido
deixada aqui de presente pra mim. — Mas quem a teria deixado para ele? Ele olhou novamente para
o corpo de bailarina da boneca e para seu rosto estranho, que mais parecia a uma máscara. — Um
presente bizarro, mas sei lá... eu até que gosto de você.
Balançou.
— Nós gostamos de você! — disse a boneca.
— Então o sentimento é mútuo — disse Stanley, dando mais uma risada. Ele levou a boneca
de volta à mesa e checou os monitores. Nada nas saídas. Estava na hora de terminar aquela soneca.

Stanley estava na Casa de Espaguete do Luigi comendo sozinho numa das mesas. Estava
cortando o espaguete em pedacinhos pequenos com a faca de manteiga, que usava para deixar
Amber doida. “Você tem que enrolar no garfo”, ela dizia, “usando a colher para impedir que o
macarrão caia”. Para Stanley, isso sempre pareceu um atraso desnecessário para levar a comida à
boca. Ele sentia o mesmo com relação aos pauzinhos de quando comiam no Palácio Wong, que
Amber sempre insistia em usar enquanto Stanley acabava eficientemente com seu frango do
General Tso usando um garfo.
Mas Stanley e Amber não estavam mais comendo juntos em lugar nenhum. Ela estava
sentada numa mesa aconchegante mais ao canto com um homem bonito e bem vestido. Eles
estavam conversando e rindo enquanto davam pedacinhos da comida de seus pratos um para o
outro. Stanley se sentiu envergonhado por estar sentado em sua mesa sozinho, mas Amber e seu
companheiro não pareciam vê-lo. Era como se ele fosse invisível. Stanley olhou em volta pelo
restaurante para evitar olhar para Amber e seu novo namorado. Nos fundos da sala, onde
costumava haver um piano, havia agora um caixão. O pai de Stanley estava dentro, suas bochechas
fundas rosadas demais por conta da maquiagem que o agente funerário usara para tentar disfarçar
a palidez da morte.
Aonde quer que olhasse, Stanley via alguém que amara e perdera. Ele abaixou o olhar para
o prato para evitar ver mais alguém. Mas seu espaguete havia se transformado num emaranhado
de vermes se contorcendo. “Os vermes entram, os vermes saem; eles te comem por dentro e depois
se esvaem” — Stanley se lembrou da horrorosa música que cantavam no parquinho quando era
criança. Era mórbida, claro, mas o que eles sabiam sobre a morte naquela época? Mas agora sua
infância se fora, seu pai se fora, Amber se fora... Por que tudo que era bom tinha que ir embora?
Ele pegou o prato de vermes e o arremessou pela sala. O prato se estilhaçou por inteiro contra a
parede, deixando uma mancha vermelha de molho de tomate salpicado com macarrão picado.

Stanley acordou ofegante.


Tá tudo bem, disse a si mesmo. Foi só um pesadelo. Faltavam cinco minutos para seu turno
acabar e a boneca que estava em sua mesa havia desaparecido. Era estranho. Ninguém além dele
jamais ia ali. Quem teria entrado na sala de monitoramento e a levado embora? Talvez a mesma
pessoa que entrou e a deixou ali para início de conversa — quem quer que tivesse sido.
Por uma fração de segundo, ele considerou fazer um relatório sobre o ocorrido, mas se deu
conta de que não podia fazê-lo. O ia dizer? Eu peguei no sono no meu posto às 3h02 da manhã.
Acordei com uma boneca na minha mesa. Peguei no sono de novo, acordei e ela não estava mais
lá. Seria uma maneira bem rápida de ser demitido.
Se Amber ainda estivesse lá, seria a primeira vez que ele teria uma história para contar sobre
algo interessante que acontecera no trabalho. Esses eram alguns dos momentos mais tristes dos dias
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já tristes de Stanley, quando ele pensava “espera só até eu contar pra Amber!” e aí se lembrava que
não havia mais Amber para contar.
Stanley cobriu o nariz ao passar pelo lixo biodegradável do lado de fora do complexo. Ele
emergiu das escadas em meio a um dia claro e ensolarado. Após ficar num buraco escuro por oito
horas, sempre levava alguns minutos para que seus olhos se ajustassem à intensidade da luz do dia.
Ele apertou os olhos e piscou, como uma toupeira que acabara de subir de seu túnel subterrâneo.
Stanley atravessou a rua até a lanchonete, sentou-se em seu banco de vinil vermelho de
sempre e virou sua xícara de café que estava de cabeça para baixo para a posição normal. Quase
como num passe de mágica, Katie, a garçonete, estava lá para atendê-lo. O pouco que Stanley sabia
sobre Katie era por conta das poucas ocasiões em que trocaram algumas palavras. Ela tinha cerca da
mesma idade que ele e estava estudando na faculdade comunitária agora que seu filho começara a
frequentar o jardim de infância.
— Vai querer o de sempre hoje, Stan? — perguntou ela. Seu sorriso era amigável e seus
olhos eram muito azuis. Ela era mais bonita do que Stanley se lembrava de ser.
Talvez ele só estivesse se sentindo solitário. Desde a separação, ele costumava passar dias
inteiros nos quais Katie era o único outro ser humano que conversava com ele.
— Na verdade, acho que vou querer dar uma olhada no cardápio hoje, Katie. — Se ia fazer
escolhas mais saudáveis, podia muito bem começar agora, embora fosse difícil com o cheiro
irresistível de bacon flutuando pela lanchonete.
Ver o que as outras pessoas estavam comendo também não ajudava. O sujeito da mesa em
frente à sua estava comendo uma gigantesca pilha de panquecas douradas, encharcadas de manteiga
e melado. Pareciam deliciosas.
Katie lhe entregou o folheto laminado.
— Vai mudar as coisas esta manhã, é?
— Acho que é bom. — Ele examinou o cardápio, procurando opções mais saudáveis.
Nenhuma delas parecia tão saborosa quanto o que costumava pedir, mas se queria parecer menos
com uma “bolinha”, teria que fazer alguns sacrifícios. — Acho que vou querer uma omelete de
claras com champignon, uma linguiça de peru e uma torrada de pão integral.
Katie sorriu enquanto anotava seu pedido.
— Estou impressionada. Está entrando de dieta, é?
Ele sorriu e deu um tapinha na barriga.
— Estou cogitando a ideia.
Depois que Katie saiu para entregar seu pedido, Stanley deixou seu olhar vagar pela
lanchonete. Na última mesa do canto, um velho estava sentado, segurando uma xícara de café e
lendo o jornal. Ele ia à lanchonete toda manhã, sempre sozinho, continuando parado diante de seu
café por um bom tempo, mesmo depois de terminar seu prato de café da manhã. Stanley podia
sentir a solidão do velho com a mesma certeza com a qual sentia a sua própria. Ele se perguntava
se, agora que Amber o largara, seu destino seria o mesmo do velho. Ele envelheceria e seria tão
sozinho que ficaria sentado por horas em locais públicos apenas para ter a ilusão de companhia?
Não era isso que o próprio Stanley estava fazendo agora?
— Aqui está — disse Katie, entregando seu café da manhã com um sorriso no rosto.
A omelete de claras estava surpreendentemente decente, mas quando Stanley provou a
torrada de pão integral, teve dificuldade para engolir. Sua garganta de repente começou a doer e
parecia estar um pouco inchada, como se algo a estivesse obstruindo. Era estranho. Ele não se
lembrava de qual fora a última vez que tivera dor de garganta. Ele empurrou para dentro o resto da
comida que ainda tinha no prato.
— Comida saudável não é tão gostosa? — perguntou Katie, limpando os pratos. — Você
normalmente é membro do clube de pratos limpos.
— Não, estava bom — disse Stanley, a voz rouca. — É que a minha garganta tá bem
dolorida. Fica difícil comer.
— Bem, tem todo tipo de inseto por aí. Várias crianças e professores estão ficando doentes
na escolinha do meu filho. Espero que você não esteja pegando alguma coisa — disse Katie.

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— Eu também — disse Stanley. Mas era perfeitamente possível que estivesse. Quem podia
imaginar a quantidade de germes que rondavam por aquele complexo subterrâneo úmido e escuro
onde não havia nem sinal de ar fresco ou luz do sol?
No caminho para casa, ele parou na farmácia e comprou umas pastilhas para a garganta.
Tomou uma assim que pagou por elas. Engolir estava ficando cada vez mais doloroso e difícil.
Quando Amber o visitava todos os dias, Stanley mantinha seu apartamento razoavelmente
limpo. Agora, quando entrou, parecia uma surpresa duplamente desagradável. Havia a bagunça,
mas também havia o significado por trás da bagunça: um lembrete de que Amber se fora. A mesa de
centro estava cheia de latas de refrigerante pela metade, embalagens de hambúrguer, caixinhas de
frango frito e pacotes de comida chinesa. Tinha roupa suja espalhada em pilhas aleatórias no chão.
Parte dele queria limpar, mas o resto dele disse: “De que isso adianta? Ela não vai voltar e não tem
ninguém aqui além de mim para ver a bagunça”.
Stanley desembrulhou uma pastilha para a garganta e a enfiou na boca. Com certeza estava
ficando doente. Ótimo. Era exatamente do que precisava. Mais uma coisa para tornar sua vida um
pouco mais miserável.
Sua mãe sempre acreditara que vapor era o melhor remédio quando ele ou sua irmã ficavam
resfriados, então ele decidiu tomar um banho quente. Se o que estava causando sua dor de garganta
fosse congestão, respirar um pouco de vapor podia ajudar. Tirando a camisa do uniforme de
segurança, ele teve dificuldade para puxar o braço esquerdo da manga. Quando finalmente tirou a
camisa, ele viu o problema. Seu braço esquerdo estava inchado, quase o dobro do tamanho do
direito. O braço também estava com uma sensação estranha. Anestesiado, como quando um pé fica
“dormente”. Ele começou a sacudir o braço, tentando acordá-lo, mas ainda não sentia nada.
Que tipo de doença bizarra dava dor de garganta e ainda adormecia e inchava o braço? Ele
não era médico, mas sabia que esses dois sintomas não apareciam juntos.
Stanley aumentou a temperatura do chuveiro para o mais quente que conseguia suportar.
Quando pôs o braço esquerdo embaixo do jato do bocal, não conseguiu sentir nem o calor e nem a
água batendo em sua pele. Depois que saiu do banho, vestiu uma camiseta e uma calça de moletom,
tomou dois ibuprofenos, engoliu outra pastilha e se enfiou na cama. Qualquer que fosse essa
doença, talvez descansar resolvesse.
Ele dormiu por oito horas, um sono sombrio e sem sonhos. Quando acordou, sentia como se
alguém lhe tivesse cortado a garganta. Ele levou a mão ao pescoço e então a puxou de volta,
olhando para ela quase esperando ver sangue. Sentou-se devagar, a cabeça zonza, dolorida e
desorientada. Seu braço esquerdo ainda estava anestesiado, pesado e fraco, como um pedaço de
chumbo que era forçado a carregar consigo, mas que de nada lhe servia.
Ele pegou outra pastilha para a garganta, embora a primeira não tivesse nem começado a
fazer cócegas no seu nível de dor. No banheiro, ele olhou para si mesmo no espelho. Seus olhos
estavam vermelhos e ele parecia que não dormia há dias, mesmo que devesse estar bem descansado.
Uma dor de garganta... o que a sua mãe costumava lhe dar para dor de garganta quando era criança?
Ele tentou se lembrar dos dias em que não ia para a escola porque estava doente e ficava em casa
com sua mãe cuidando dele. Chá quente com limão e mel — era o que ela sempre fazia para ele.
Stanley tinha certeza de que tinha alguns pacotinhos de chá em algum lugar. Ele foi até a cozinha e
vasculhou os armários até encontrar uma caixa de pacotinhos de chá que estavam lá desde sabe
Deus quando. Chá não vence, né? Pensou.
Ele colocou um copo d’água no micro-ondas e submergiu o pacotinho de chá nele. Achou
uma pequena embalagem plástica de mel na gaveta que estava cheia de pacotes de mostarda,
ketchup e molho de soja. Ele misturou o mel com o chá. Lembrou-se de sua mãe dizendo que o mel
era calmante porque revestia a garganta. Não se lembrava para que servia o limão, mas teria que
viver sem ele.
Ele ligou a TV para dar uma olhada no resultado dos jogos e tomou um gole de sua bebida
quente. Ajudou um pouco. Quando terminou, ele voltou para a cozinha e abriu uma lata de canja de
galinha com macarrão. Em teoria, canja de galinha era boa para pessoas doentes, certo? Ele
esquentou a canja no fogão e depois levou uma tigela dela até a sala para comer na frente da TV.

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Ele logo descobriu que só o que conseguia fazer era bebericar o caldo. Os pedaços de galinha e o
macarrão machucavam muito quando desciam goela abaixo. Parecia que estava engolindo pedras.
Stanley tomou mais um ibuprofeno e engoliu outra pastilha para a garganta, na esperança de
se sentir melhor à medida que a noite passasse. Mas a sensação de dor na garganta continuou tão
persistente quanto a dormência em seu braço esquerdo. Ele brincou com a ideia de ligar e dizer que
estava doente, mas sabia que não podia perder oito horas de pagamento. O dinheiro estava apertado
demais. Ele mal tinha o suficiente para o aluguel e as compras do mês. Quando colocou o uniforme,
a manga esquerda da camisa ficou tão apertada que ele mal conseguia dobrar o cotovelo.
A viagem até o trabalho não foi fácil com a garganta dolorida e o braço esquerdo inanimado,
mas ele finalmente conseguiu chegar ao depósito e desceu as escadas. Como sempre, prendeu a
respiração ao passar pelo lixo biodegradável fedido e escaneou seu cartão de identificação na porta.
No complexo, deixou seus olhos se ajustarem à fraca luz esverdeada por um momento antes de ir
para a sala de monitoramento. Ele checou os monitores e não viu nada fora do comum. Bom. Estava
cansado, dolorido e pronto para uma soneca. Ele se recostou na cadeira e deixou o bem-vindo
esquecimento do sono tomar conta de si.
Ele acordou ofegante, sentindo como se estivesse sendo observado. Olhou em volta e checou
os monitores. Nada.
Mas a boneca estava em sua mesa outra vez. Ele a pegou e sorriu para ela.
— Você de novo? — disse. Sua voz estava ficando mais rouca. — De onde você veio? Tem
alguém fazendo algum joguinho comigo? — Talvez ele tivesse uma admiradora secreta, pensou,
mas imediatamente rejeitou a ideia, era ridícula. Que tipo de admiradora secreta esquisitona
deixaria uma boneca bailarina para ele? Não o tipo de admiradora secreta que ele queria, isso era
certeza. Ele balançou a boneca para ativar sua voz.
— Nós gostamos de você — cantarolou ela, com sua vozinha feliz de menininha.
— Também gosto de você, bonequinha — disse Stanley. — Não sei por que, mas gosto. —
Talvez ter a boneca falante lá com ele no trabalho fosse como as pessoas que mantinham a TV
ligada o tempo todo em suas casas. Um pouco de barulho era para elas como um lembrete de que,
mesmo que não parecesse, não estavam sozinhas no mundo. Triste, mas compreensível. O mundo
era um lugar solitário. Ele balançou a boneca outra vez.
— Leve-me para casa com você — disse ela.
— Bem, eu ia te levar para casa comigo ontem, mas quando acordei, você tinha sumido.
Acho que perdeu sua chance, né? De quem você é, afinal? — Ele a balançou.
— Leve-me para casa com você.
Ele examinou a boneca.
— Talvez você seja da filha de outra pessoa que trabalha aqui. Não quero tirar o brinquedo
de uma criança. Você ficaria bem melhor com uma garotinha do que comigo. — Balançou.
— Leve-me para casa com você — disse a boneca outra vez. Era uma pena que as mulheres
reais não fossem tão insistentes assim para terem sua companhia.
— Tem uma garotinha por aí que vai acabar ficando bem chateada se a boneca dela sumir. E
eu já sou um homem feito. Não me interesso por bonequinhas. — Então por que estava conversando
com a boneca como se ela pudesse entender o que estava falando, só para deixar sua garganta ainda
mais dolorida no processo? Esse vírus ou o que quer que fosse o estava deixando maluco, pensou. E
lá foi ele de novo, balançando a boneca para ouvir o que ela diria.
— Leve-me para casa com você.
Ele largou a boneca na mesa. Ela oficialmente tinha cruzado a linha entre fofa e irritante.
— Tá, tá bom. Se você ficar nessa mesa até meu turno acabar, eu te levo pra casa comigo.
Mas agora tá na hora da soneca. Boa noite. — Ele se recostou na cadeira e pegou no sono de novo.

Stanley estava atrasado para o trabalho. Tentava se arrumar, mas seus dedos grandes e
gordos eram desajeitados demais para abotoar a camisa do uniforme ou amarrar os cadarços dos
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sapatos. Ele precisava de ajuda, mas estava completamente sozinho. Finalmente, sabendo que se
atrasaria muito além da conta se não saísse naquele exto momento, ele saiu correndo pela rua com
a camisa parcialmente abotoada e os sapatos ainda desamarrados. Mas quando olhou em volta,
todos os marcos familiares de seu bairro haviam sumido. Onde estava a Mercearia Greenblatt?
Onde estava a Lavanderia Holandesa? Ele olhou para a placa de uma rua e viu que os nomes
estavam diferentes. A placa que antes dizia “Avenida Forrest” agora dizia “Avenida Fazbear”.
Não fazia o menor sentido, mas ele estava perdido. Como podia estar perdido se estava a apenas
dez passos da porta de seu prédio?
Finalmente, ele chamou um táxi e disse ao motorista o endereço do depósito que ocultava
seu local de trabalho. Nenhuma das ruas ou edifícios parecia familiar enquanto seguia pela cidade,
mas o motorista parecia saber aonde estava indo. Stanley disse a si mesmo para respirar e relaxar.
Estava tudo bem — as coisas estavam sob controle agora.
O táxi parou numa rua escura que Stanley não reconheceu. Talvez o motorista não soubesse
aonde estava indo, afinal.
— Ei, amigo — disse Stanley. — Acho que você não entendeu qual era o endereço certo.
Quando o motorista se virou, seu rosto não era humano. Era uma versão robótica bizarra
do rosto de um animal, rosa e branco com um longo focinho, orelhas grandes e os olhos amarelos
brilhantes. O rosto, aparentemente articulado, se abriu, revelando as órbitas inteiras dos olhos da
criatura e uma boca cheia de dentes afiados como facas. Ele abriu as mandíbulas ainda mais e se
lançou para cima de Stanley no banco traseiro, quebrando o painel de vidro que os separava.

Ele tinha gritado? Stanley ponderou a respeito disso enquanto tentava deixar o pesadelo para
trás. Sua dor de garganta provavelmente o deixara tão rouco que ele não conseguiria gritar mesmo
que tivesse tentado. Mas ainda que o tivesse feito, quem o teria ouvido, enfurnado em sua salinha
escura? Ele podia morrer ali e ninguém notaria. Ninguém vigia o vigia.
O que era aquela coisa no seu sonho, afinal?
Quando ele finalmente acordou por completo e conseguiu se reorientar em seu ambiente
familiar, notou que a boneca havia sumido novamente. Era estranho. Ele meio que queria contar a
alguém sobre aquilo, mas a quem poderia contar?
Na lanchonete, Katie encheu sua xícara de café.
— Parece que você tá precisando — disse ela.
Stanley estremeceu quando tentou tomar um gole do líquido escaldante. Café provavelmente
foi uma má ideia.
— Vai querer o de sempre ou quer continuar com a ideia da dieta? — perguntou ela.
— Aveia — disse Stanley, a voz rouca. — Só um prato de aveia.
Katie franziu o cenho.
— Você tá legal, Stan? Você não me parece muito bem.
Era bom que ela se importasse o suficiente para perguntar.
— A dor de garganta tá pior. — Ele esfregou o pescoço. — Acho que não consigo comer
comida sólida.
— Certo. Aveia, então. Mas você chegou a procurar um médico? Sabe, na farmácia aqui da
esquina tem um ambulatório. Quando eu tive uma infecção no ouvido no mês passado, eles me
deram uns remédios que me ajudaram rapidinho. Também são bem barateiros.
— Não. Nada de médico. — As pessoas sempre achavam que médicos podiam curar tudo.
Mas quando o pai de Stanley ficou tão doente a ponto de não conseguir mais trabalhar, ele foi ao
médico, tomou todos os remédios e fez todos os tratamentos torturantes que lhe instruíram a fazer.
Seis meses, estava morto mesmo assim.
— Na verdade, é uma enfermeira e não um médico no ambulatório — disse Katie. — Ela é
muito legal. Só vai te fazer algumas perguntas, dar uma olhada nos seus ouvidos, nariz e garganta e
aí vai te escrever uma receita.
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— É só um vírus ou qualquer coisa do tipo. Logo passa — murmurou Stanley. Mas tinha
que admitir que sua voz parecia terrível.
— Você que sabe — disse Katie. — Vou pegar sua aveia. E também vou te trazer um suco
de laranja grande, por conta da casa. Um pouco de vitamina C a mais não vai fazer mal.
— Obrigado. — Stanley ficou impressionado com quão atenciosa Katie era. Imaginou se era
solteira. Seria bom ter alguém que se importasse com ele.
Comer a aveia foi como engolir areia quente. Esperando um pouco de alívio, ele tomou um
gole do suco de laranja, mas queimou sua garganta como ácido de bateria. No caminho para casa,
ele passou na farmácia e comprou pastilhas para a garganta que teoricamente eram mais fortes do
que as que estava usando. Duvidava que seriam fortes o suficiente. Quando finalmente voltou ao
apartamento, ele tirou os sapatos e desabou na cama sem nem tirar o uniforme. Dentro de alguns
segundos, já estava dormindo.
Ele acordou sete horas depois com o telefone tocando. Sua boca estava seca como poeira e
sua garganta ardia e doía. Ele ergueu o braço bom para atender o telefone, mas logo descobriu que
ele também estava dormente e inchado agora. Meio sem jeito, ele conseguiu tirar o telefone do
gancho e levá-lo ao ouvido.
— Alô? — Sua voz era um sussurro áspero.
— Stan? É você? — Era sua irmã mais velha, Melissa.
— Sim. Oi, mana. — Ele não a via desde a festa de aniversário do sobrinho, mas ela
costumava ligar de tempos em tempos para saber como ele estava.
— Você parece horrível. — Stanley podia ouvir a preocupação em sua voz. — Está doente?
— Peguei um resfriado — disse ele. Não queria ter que dizer mais que o número mínimo de
palavras necessárias para comunicar uma ideia clara. Falar doía demais.
— Não é de se admirar — disse Melissa. — Trabalhando noites à fio naquela fábrica escura
e sem ventilação. É como estar numa catacumba. Fico surpresa que você não adoeça o tempo todo.
Ei, escuta, as crianças estão na casa da mamãe e o Todd vai jogar boliche essa noite. Eu fiz um pote
de chili e pão de milho. Tava pensando em levar um pouco aí, pra gente jantar juntos.
Mesmo se sentindo horrível, Stanley ainda se sentia grato pela oferta de companhia. Pelo
menos não teria que encarar outra noite sozinho.
— Parece legal — murmurou.
— Tá bom, eu chego às seis. Precisa que eu te leve alguma coisa da farmácia?
Uma garganta nova, pensou Stanley, mas disse:
— Não, obrigado.
Com dificuldade, ele se arrastou da cama e foi até o banheiro. Olhou no espelho para avaliar
os danos, que eram bastante significativos. Sombras escuras haviam se formaram sob seus olhos
vermelhos e sua pele estava com um aspecto acinzentado e nada sadio. O que mais o preocupava,
no entanto, era seu braço direito. Assim como o esquerdo, ele agora estava tão inchado que a manga
do uniforme mais parecia a embalagem de uma salsicha gorda. Ele não sabia se conseguiria tirar a
camisa sem rasgá-la. Provavelmente era melhor só continuar com ela por enquanto.
Ele jogou um pouco de água no rosto e conseguiu controlar o braço direito dormente o
suficiente para passar um pente no cabelo e espremer um pouco de creme dental em sua escova de
dentes. Escovar os dentes foi tão torturante que lágrimas brotaram em seus olhos. Sua garganta
parecia uma ferida aberta e sua boca também estava em carne viva e inflamada por dentro. Quando
enxaguou a boca e cuspiu a água, ela estava cheia de fitas vermelhas de sangue. Ele se olhou no
espelho de novo. A arrumação que tinha conseguido fazer não havia melhorado muita coisa. Seu
queixo e mandíbula estavam sombreados com barba por fazer, mas ele não confiava em seu braço
dormente o bastante para usar uma navalha. Teria que ficar assim mesmo. Ele cambaleou até a sala
e caiu no sofá, incapaz de encontrar energia o suficiente para pegar o controle da TV.
Melissa, que aparentemente era uma pessoa responsável desde que nasceu, chegou às seis
em ponto, como prometido, carregando um grande pote de metal e umas sacolas recicladas que
usava para fazer compras. Seu cabelo castanho encaracolado estava amarrado atrás da cabeça num
rabo de cavalo muito bem arrumado e ela ainda estava usando a camisa de botão e a calça cáqui que
usava no trabalhar.
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— Oi, maninho — disse ela, entrando pela porta. Sua saudação foi seguida por: —
Caramba! O que aconteceu aqui?
Stanley sabia que as coisas estavam bagunçadas, mas não tinha parado para pensar muito na
aparência do apartamento. Mas vendo pelos olhos de Melissa, ele sabia que o lugar mais parecia
uma zona de desastre. Estava com vergonha, mas não queria demonstrar. Ele se sentou no sofá e
tentou dar de ombros, como se estivesse indiferente.
— A Amber terminou comigo — ele resmungou.
— É, eu sei disso — disse ela, olhando em volta com a mesma expressão de repulsa que fez
quando ainda era uma garotinha e ele colocou minhocas em seu cabelo. — Mas o que aconteceu
com este lugar? Não era a Amber que fazia a limpeza, era?
— Não, era eu. Só comecei a me importar menos quando ela parou de vir. — Sem Amber, a
limpeza não parecia valer o esforço. Poucas coisas valiam.
O olhar de Melissa mudou de nojo para simpatia.
— Pobre irmãozinho. Aguenta aí, deixa eu colocar o chili no fogão para aquecer. — Ela
desapareceu na minúscula cozinha do apartamento e depois reemergiu com um punhado de sacos de
lixo nas mãos. — Tá meio ruim lá também. Todos os seus pratos estão sujos?
— Basicamente — disse Stanley.
Melissa respirou fundo.
— Tá, olha só o que eu vou fazer por você. Vou pegar todas essas latas e garrafas, colocar
no meu carro e levar pra reciclagem. Vou tampar o nariz, juntar os lixos e jogar tudo fora. E aí vou
encher sua máquina de lavar louça e deixar ela ligada, enquanto lavo à mão quaisquer outros pratos
sujos que ficarem de fora. — Ela olhou para as peças de roupa aleatórias que estavam jogadas pelo
chão. — Só vou me recusar a tocar nas suas meias cuecas sujas. Essas são problema seu.
— Justo — resmungou Stanley. — Obrigado. Queria poder ajudar. — Seus braços estavam
tão fracos e pesados que ele não conseguia se imaginar recolhendo nada.
— Não, descanse. Você tá parecendo a morte com um biscoito na mão, como a vovó
costumava dizer. — Ela jogou uma caixa de frango frito velha no saco de lixo. Stanley se permitiu
sorrir um pouco.
— Sim, eu nunca entendi essa expressão. Por que a morte estaria com um biscoito na mão?
— Eu também nunca entendi — disse Melissa. — Pra que o ceifeiro de almas iria querer um
biscoito? Ele não é basicamente só um esqueleto? — Ela olhou pelo quarto como um general
bolando um plano de ataque. — Escuta, vou te fazer uma xícara de chá com mel e limão como a
mamãe costumava fazer pra gente e aí vou começar pra valer com essa limpeza.
— Não tenho limões — disse Stanley.
— Eu trouxe o chá, o limão e o mel — disse Melissa.
Claro que trouxe.
— Você pensa em tudo — disse Stanley.
Melissa sorriu.
— Eu faço o meu melhor.
Quando eram pequenos, Melissa sempre organizava quais jogos eles iam jogar e como iam
jogar. Na época, ele achava esse seu jeito mandão e irritante, mas agora via que tinha seus pontos
positivos, principalmente agora que sua vida caíra no caos.
Em alguns minutos, Stanley estava sentado com uma caneca de chá nas mãos enquanto
Melissa lançava uma ofensiva de uma só mulher contra todo o lixo da sala de estar.
— Você é incrível — disse ele. Se não podia ajudá-la, podia pelo menos elogiá-la.
— Bem, é bom ter uma audiência grata. Meus filhos com certeza não são — disse Melissa,
franzindo o nariz enquanto pegava um pacote de comida chinesa passada entre o dedo indicador e o
polegar e jogava num saco de lixo. — Que nojo. Me pergunto o que isso costumava ser.
— Lo mein, acho — disse Stanley. Ele estremeceu ao tomar um gole de chá. — Me
desculpa por deixar as coisas ficarem tão ruins. Não é seu trabalho limpar a minha bagunça.
— Não, não é — disse Melissa, jogando algumas embalagens de taco amassadas no saco de
lixo. — Mas é meu trabalho garantir que você esteja bem e eu não estive fazendo o meu trabalho.
— Isso não é verdade. Você me ligou...
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— Sim, eu te liguei várias vezes desde o término para garantir que você estava bem e você
sempre disse que estava. E você apareceu na festa do Max, o que eu achei que fosse um bom sinal.
Mas eu claramente devia ter passado aqui antes para ver como estavam as coisas. — Ela deu um nó
no topo da sacola de lixo já cheia. — Porque você, meu irmãozinho, com toda certeza não está bem.
— Não, não estou — disse ele, a voz ligeiramente sussurrada. Sentia que estava a ponto de
chorar, o que seria constrangedor, chorar na frente da irmã mais velha como se fosse um bebê outra
vez. Stanley não costumava ser de chorar. Ele não chorava desde que seu pai morrera. Mas dando
uma olhada em sua vida bagunçada pelos olhos de Melissa, podia ver quão ruim ela era. A vida dela
era tão organizada — ela tinha um diploma universitário, um emprego que gostava no tribunal, um
bom marido e dois filhos aos quais era completamente devotada. Comparada à dela, sua vida era
patética e vazia. E sua garganta doía tanto que só a dor quase lhe trouxe lágrimas aos olhos.
Melissa devia ter sentido sua angústia porque lhe deu um tapinha no ombro e disse:
— Quer saber? Vou dar uma pausa na limpeza arrumar o jantar pra nós. O chili já deve estar
quente agora e acho que você vai se sentir um pouco melhor depois de comer alguma coisa.
Stanley fungou e assentiu.
O chili era uma receita de família e, normalmente, uma das comidas favoritas de Stanley.
Costumava comer pelo menos duas tigelas cheias — às vezes até três. Mas naquela noite, mesmo
que o chili estivesse perfeito, com queijo cheddar ralado por cima e pão de milho para acompanhar,
do jeito que ele gostava, ele não conseguiu comer muito. O caldo apimentado desceu queimando,
fazendo parecer que havia alguém segurando um fósforo aceso em sua garganta já inflamada.
— Esse não é o Stan que eu conheço — disse Melissa quando ele afastou sua tigela ainda
praticamente cheia. — Você se lembra de como a mamãe costumava te chamar enquanto comia?
Stan sorriu um pouco.
— Seu garotão esfomeado.
— Ela costumava dizer que as suas pernas deviam ser ocas porque não conseguia entender
onde você enfiava aquilo tudo. — Melissa recolheu as tigelas e começou a carregar a lava-louças
com duas semanas de xícaras, pratos e talheres sujos. — Escuta, eu sei que você vai discutir comigo
sobre isso, mas por que não me deixa marcar uma consulta pra você com a médica com quem eu, o
Todd e as crianças nos consultamos? Ela é muito legal e fácil de conversar.
— Nada de médicos — resmungou Stanley. A imagem indesejada de seu pai no leito de
hospital apareceu em sua mente, pálido e esqueleticamente magro, amarrado a tubos de plástico que
serpenteavam por seu corpo inteiro.
Melissa revirou os olhos.
— É, eu sabia que você diria isso. Olha, eu sei que você nunca gostou de ir ao médico e
parou de ir quando ficou velho demais pra mamãe te levar. E começou a se estranhar ainda mais
com médicos depois que o papai ficou doente...
— Não é questão de eu me estranhar — disse Stanley. — Os médicos só o deixaram mais
doente e aí ele morreu. Quimioterapia, radiação, eles o encheram de veneno.
Melissa balançou a cabeça. Esse era um argumento antigo entre eles.
— Stan, o papai sabia que tinha algo de errado e ele esperou tempo demais para procurar
ajuda médica. Meses e mais meses. Quando finalmente resolveu ir ao médico, já era tarde demais
para ajudá-lo. Tentaram fazer a quimioterapia, mas o câncer já tinha se espalhado. Provavelmente
teria funcionado se tivessem feito antes. — Ela o fitou nos olhos. — E agora você também está
teimando para não ir ao médico. Parece até uma tradição de família bizarra. Bem, não é uma
tradição que precisamos manter.
— Acontece que eu não estou com câncer — disse Stanley. Pelo menos ele tinha isso a seu
favor. — Vou ficar bem.
— Eu sei que não está com câncer — disse Melissa. — Mas está com uma combinação
estranha de sintomas. Sua garganta dói e os seus braços parecem duros e inchado. Talvez seja só um
vírus qualquer, mas acho que você tinha que dar uma olhada.
— Vai melhorar — disse Stanley. Ele também sabia que era uma combinação estranha de
sintomas, mas não ia admitir isso para ela.
Melissa suspirou.
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— Sabe de uma coisa? Vou vir dar uma olhada você daqui a três dias e, se você não tiver
melhorado até lá, eu vou te levar ao médico, nem que tenha que trazer o Todd e seus amigos
grandalhões da liga de boliche pra me ajudarem a te arrastar pra lá.
— Tá bom — disse Stanley, porque sabia por experiência própria que, em última análise,
não havia como discutir com a irmã mais velha. — Três dias.
Dentro de uma hora, Melissa recolheu todas as garrafas e latas vazias e lavou todos os pratos
sujos. Exceto pela roupa suja no chão, a sala agora estava livre de desordem.
— Bem, já é alguma coisa — disse ela, olhando em volta para as superfícies recém-limpas.
— Não sei nem como te agradecer — murmurou Stanley. Estava deslumbrado com todo o
trabalho que ela havia feito enquanto ele só ficou sentado no sofá sem fazer absolutamente nada.
— Não quero que me agradeça — disse Melissa, vestindo a jaqueta. — O que eu quero que
você faça é que ligue dizendo que está doente e não pode trabalhar esta noite e descanse um pouco.
— Vou pensar — disse ele, mas sabia que não podia ficar sem o dinheiro do dia.
— Não pense. Apenas faça. — Melissa se inclinou sobre o sofá e deu um rápido abraço
nele. — E lembre-se, se você não melhorar em três dias, eu vou te levar ao médico. "
— Vou lembrar. — Ele sabia que ela não o deixaria esquecer.
— Tá, vou te deixar descansar a cabeleira agora. — Ela lhe deu um tapinha em cima da
cabeça. — Ou o que restou dela.
Stanley riu. Ele definitivamente tinha herdado a calvície do pai.
— Você sempre foi a malvada.

Stanley não pretendia ligar para o trabalho para dizer que estava doente. Como já estava de
uniforme, não precisava fazer muita coisa para se arrumar depois que Melissa partiu. Claro, a
caminhada para o trabalho foi mais cansativa que de costume. Sua garganta ardia e doía bastante e
seus braços dormentes e inchados estavam tão pesados que ele praticamente os arrastava como se
fossem uma corrente e uma bola de ferro. Ainda assim, ele conseguiu. E agora, lá estava ele de
novo, descendo as escadas escondidas e passando pela lixeira fedorenta para chegar em seu local de
trabalho escuro no subsolo.
Stanley avançou pelo corredor escuro. A luz esverdeada dava à sua pele já bem pálida uma
aparência ainda mais enferma. Ele escaneou o cartão de identificação e se aconchegou em sua mesa
na sala de monitoramento para checar os monitores. Como sempre, não havia nada de incomum.
Era o trabalho menos exigente de todos os tempos. Ele sabia que sua irmã queria que ele ficasse em
casa e descansasse, mas por que não vir trabalhar onde poderia tirar uma soneca e ser pago por isso?
Ele se recostou na cadeira e logo começou a roncar levemente.
Quando a dor na garganta o acordou algumas horas depois, a boneca bailarina estava em sua
mesa mais uma vez. Era estranho como aquela coisa continuava aparecendo assim, apenas para
sumir de novo depois. Ele realmente devia perguntar a alguém sobre isso, mas nunca via ninguém
para quem perguntar.
Por hábito, ele pegou a boneca e a balançou.
— Nós gostamos de você — disse ela.
Ele estudou os olhos vazios e o vão negro em forma de sorriso no rosto da boneca. Sério,
quem foi que achou que seria uma boa ideia fazer uma boneca assim?
— Pois é, pois é, você tá sempre dizendo isso — disse ele.
De onde vinha aquela boneca? Quem a havia fabricado? Era feita ali na fábrica? Ele a virou
para ver se conseguia encontrar algum tipo de marca nela.
— Leve-me para casa com você — disse a boneca.
— Olha, você também tá sempre dizendo isso, mas toda vez que eu me preparo pra ir pra
casa, você sempre vai lá e some. Essas suas mensagens são meio confusas, bonequinha — disse
Stanley. Ele realmente devia conservar sua voz. Saía pouco mais que um sussurro. Ele balançou a
boneca outra vez.
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— Leve-me para casa com você.
Stanley colocou a boneca em cima da mesa e pegou outra pastilha para a garganta.
— Vou te dizer uma coisa. Eu não posso te levar pra casa se você continuar desaparecendo,
mas se você ficar quietinha aí e ainda estiver em cima da mesa quando eu acordar, pode vir para
casa comigo.
Ótimo, Stanley, pensou consigo mesmo. Tentando argumentar com um objeto inanimado.
Seu estado era mesmo lamentável.
Ele se recostou na cadeira e fechou os olhos.

Stanley estava no trabalho, mas, por algum motivo, as luzes esverdeadas que costumavam
ser a única fonte de iluminação do edifício estavam desligadas. Ele se lembrou de uma excursão
escolar que fizera a uma caverna. O guia havia explicado que os peixes no lago subterrâneo da
caverna não tinham olhos porque, mesmo que tivessem, seria escuro demais para verem qualquer
coisa. O prédio estava tão escuro quanto.
Sua lanterna era a única coisa que lhe permitia encontrar o caminho pelo corredor. Ele
iluminou as paredes, as portas de metal, o chão à sua frente, criando pequenos círculos de luz na
escuridão. Perguntou a si mesmo se a energia tinha caído no prédio inteiro. Não devia ser, porque
ele ainda ouvia os chiados e ruídos das máquinas atrás das portas de metal trancadas.
Ele tinha um forte pressentimento de que alguma coisa não estava certa. Precisava voltar
ao escritório para ver se os monitores de segurança estavam funcionando ou se estavam desligados
devido à queda de energia. Se estivessem, imaginou que teria que andar pelo escuro e checar se
cada saída estava segura. Ele lançou o feixe da lanterna em frente, iluminando a placa com a
inscrição “Sala de Monitoramento” em sua porta. O scanner pelo qual passava seu cartão de
identificação não estava funcionando, então ele usou a chave que guardava em caso de
emergência.
A sala de monitoramento estava tão escura quanto o resto do prédio. Todos os monitores
estavam desligados. Ele deu uma volta pela sala com a lanterna, passando com o feixe sobre
objetos familiares: a mesa, a cadeira, o arquivo. Ele levou o feixe da lanterna para o canto
esquerdo da sala.
O feixe iluminou um rosto. O rosto não pertencia a um humano.
Era o rosto de um animal cartunesco — um urso, talvez? — que usava uma gravata-
borboleta e uma cartola. Enquanto Stanley o iluminava, os dois lados do rosto se abriram como
portas duplas, revelando um crânio metálico horrendo, feito de fios e cabos que serpenteavam por
toda a sua extensão. Ele fitou Stanley com olhos vazios e esbugalhados e então se lançou contra
ele, suas mandíbulas estalando.

Stanley acordou assustado. Ele nunca teve pesadelos como vinha tendo nessas últimas noites
enquanto cochilava no trabalho. O que eram essas estranhas criaturas mecânicas que assombravam
seus sonhos? Estaria esse pavor todo sendo causado por sua tristeza pela perda de Amber ou era um
sintoma de sua doença física? Ou talvez as duas coisas estivessem conectadas. De uma coisa ele
tinha certeza: nunca estivera tão física e emocionalmente doente ao mesmo tempo.
Ele olhou para a mesa. Estava vazia. A boneca não seguira sua ordem de ficar quieta.
Stanley se levantou e espreguiçou. Ele balançou a cabeça, como se isso pudesse organizar
seu cérebro confuso.
É claro que a boneca não tinha seguido sua ordem de ficar quieta, ele pensou — porque era
uma boneca. Não conseguia entender o que ele dizia. Não importava quantas vezes dissesse o
contrário, a boneca não queria de fato ir para casa com ele — não queria nada, porque não estava
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viva e as palavras que parecia dizer eram apenas sons pré-gravados. Nada disso explicava, porém,
como a boneca aparecia em sua mesa e depois simplesmente desaparecia. Ela não podia se mexer
sozinha, então quem a estava colocando lá e levando embora? Será que alguém estava lhe pregando
uma peça ou coisa do tipo?
Mas quem pregaria uma peça em Stanley? Até onde saiba, ninguém mais que trabalhava ali
já o havia visto.
Após terminar seu turno, Stanley resolveu não ir à lanchonete. Ele até que gostaria de ver
Katie, mas sua garganta doía demais para comer qualquer coisa e só pensar na comida já o deixava
enjoado. Foi quando viu seu reflexo de canto de olho na vitrine de uma loja. Rosto suado,
acinzentado com a barba por fazer e braços inchados e flácidos. Não restava dúvidas — se estivesse
com um biscoito na mão, estaria exatamente igual à Morte.
Ele se lembrou de Katie recomendando a enfermeira no ambulatório. Talvez devesse dar
uma passada lá. Enfermeiras não eram iguais a médicos — lembrava que a enfermeira da época da
escola era muito gentil. Ele tinha que fazer alguma coisa. Não podia continuar se sentindo tão mal.

A enfermeira era mesmo legal — uma mulher loira com um jeitão materno e que tinha mais
ou menos a mesma idade de sua mãe de verdade. Assim que o viu, ela disse:
— Nossa, você se sente terrível, não é?
— Tá tão óbvio? — perguntou Stanley. Sua voz estava fraca e rouca.
A enfermeira assentiu.
— Dor de garganta?
— Sim, senhora. Das piores. — Ele não contou a ela sobre o braço dormente. Tinha muito
medo do que ela poderia dizer. Não queria acabar em um hospital. Quando seu pai foi para o
hospital, não saiu de lá vivo.
— Bem, vamos dar uma olhada em você e ver se podemos te fazer se sentir melhor. — Ela
gesticulou para que ele a seguisse até o pequeno consultório na parte de trás da farmácia.
Ela enfiou um termômetro em seu ouvido e leu o resultado.
— Sem febre. Mas ainda acho melhor tirar uma amostra da garganta para ver se não está
com alguma bactéria.
O teste não foi nada agradável. Ela lhe disse para abrir bem a boca e foi até ele com um
cotonete de cabo longo, que enfiou em sua boca até descer pela garganta. O algodão macio doía
tanto ao toque quanto metal afiado em sua garganta inflamada e ele engasgou. Quando ela puxou o
grande cotonete, o algodão estava manchado de sangue.
— Bem, isso não é bom — disse ela, franzindo o cenho. — Deixe-me fazer o teste e aí nós
vemos o que fazer.
Em alguns minutos, ela voltou.
— Sem bactéria, mas inflamada do jeito que a sua garganta está, acho que é pelo menos uma
infecção. E o sangue é preocupante. Vou te prescrever alguns antibióticos, mas se você não notar
nenhuma diferença até segunda-feira, quero que me prometa que vai ver o seu médico de sempre.
— Eu prometo — disse Stanley, apesar do fato de ele não ter um “médico de sempre” e nem
planos de arranjar um.
Mesmo que ainda se sentisse fisicamente péssimo enquanto ia para casa, também estava um
pouco esperançoso. Ele tomara uma atitude. Tinha remédios de verdade agora. Isso certamente
consertaria as coisas.
Stanley se olhou no espelho do banheiro. Não estava bonito. Estava usando seu uniforme há
quase quarenta e oito horas. Estava pálido e suado e fedia tanto quanto a lixeira pela qual passava
todos os dias. Tinha que tirar o uniforme. Ele desabotoou a camisa, depois desabotoou os punhos
das mangas. Puxou a manga esquerda, mas seu braço estava tão inchado que era como se estivesse
firmemente embalado dentro do tubo de tecido. O braço direito não estava melhor. Ele puxou a

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manga e revirou o corpo, esperando achar uma posição mágica que faria seus braços se libertarem
da prisão de poliéster.
Finalmente, em total desespero, ele pegou uma tesoura. Passou uma das lâminas por baixo
da manga esquerda. Ficou bem apertado, mas conseguiu um ângulo em que podia cortar a manga
por toda a extensão de seu braço. Embora trabalhar usando a mão esquerda fosse mais difícil, ele
fez o mesmo com a outra manga e então tirou a camisa suja e surrada. A camisa nem era dele. Os
uniformes eram todos da empresa e ela apenas os emprestava aos funcionários. O custo certamente
viria descontado do seu salário.
No chuveiro, ele mal conseguiu ficar de pé e se apoiou na parede para que não escorregasse
e caísse. Deixou a água quente bater em suas costas, na esperança de que isso aliviasse a tensão.
Não sentia nada — nem o calor e nem a água — em seus braços inchados, tanto no direito quanto
no esquerdo.
Exausto pelo esforço hercúleo que se tornara tirar a roupa e tomar banho, Stanley pegou uma
camiseta e uma calça de pijama. Empurrou, em meio a uma dor excruciante, um dos comprimidos
antibióticos à força na garganta com um pequeno gole de água e depois caiu na cama.

Quando acordou e tentou se levantar, imediatamente caiu no chão. Sua perna direita não
estava suportando seu peso como uma perna devia fazer. Assim que tentou se erguer, ela se dobrou
sob seu peso, como se não tivesse músculos ou ossos. Sentado no chão, Stanley tocou sua coxa
direita e não sentiu nada. Ele deu um tapa nela, depois a socou forte com o punho. Nada ainda. O
braço e a mão que usara para bater também estavam dormentes. O que estava acontecendo com ele?
Seria algum tipo de doença degenerativa que poderia deixá-lo numa cadeira de rodas pelo resto da
vida? Mas se fosse, não era meio estranho que uma doença degenerativa progredisse tão depressa?
Talvez ir ao ambulatório não tivesse sido o suficiente. Talvez devesse deixar que Melissa lhe
marcasse uma consulta médica. Provavelmente precisava ver um especialista. Mesmo que o médico
o machucasse, não podia ser pior do que o que estava sentindo agora. Ficou imaginando se, assim
como seu pai, tinha esperado até que fosse tarde demais para procurar ajuda.
Com grande esforço, Stanley se virou, apoiou as mãos na cama e empurrou seu peso até
conseguir ficar de pé. Foi andando devagar, arrastando a perna direita atrás de si e deixando a perna
esquerda fazer a maior parte do trabalho. Quanto tempo já havia passado desde que tinha comido ou
bebido alguma coisa? Não conseguia se lembrar. Água. Precisava pelo menos beber água.
Ele se arrastou até a cozinha, ainda limpa graças aos esforços de Melissa, e pegou um copo
no armário. Ele o encheu com água da torneira e tentou beber.
Agonia. Engolir ainda que um só gole de água gelada era como engolir vidro moído. Ele se
apoiou sobre a pia, cuspindo água vermelha de sangue. Pensou que podia tentar esquentar um pouco
de sopa, mas se não conseguia nem beber, comer estava fora de cogitação. E a própria ideia de
engolir algo quente já lhe era insuportável.
Seu telefone tocou, o fazendo lembrar, miseravelmente, que o havia deixado no quarto. Ele
se arrastou rumo ao toque insistente, mas, quando finalmente chegou lá, ele parou. O identificador
de chamada dizia “Mãe”. Ele sabia como ela era. Se não ligasse de volta, ela automaticamente
acharia que ele estava morto.
— Alô? Stanley? — Ela atendeu no primeiro toque.
— Oi, mãe. — Stanley tentou fazer sua voz parecer normal, mas ela saiu rouca, com um
guincho que mais parecia o som de um rato no final.
— Você parece terrível.
— É, tá todo mundo me dizendo isso. — Ele se deitou na cama para falar. Não precisava
desperdiçar a energia necessária para ficar de pé.
— A Melissa veio buscar as crianças depois de passar na sua casa ontem à noite. Ela disse
que você estava um desastre.

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— Bom ouvir isso. — Não havia nada como descobrir que sua mãe e sua irmã estavam
falando sobre como você é um perdedor.
— Não é algo para ficar de brincadeira, Stanley. — Sua mãe estava usando sua voz severa, a
que havia dominado quando ele pegar o hábito de se meter em problemas quando ainda era criança.
— Ela acha que você precisa ir ao médico.
— Fui a um ambulatório esta manhã, mãe. A enfermeira me prescreveu uns remédios. Eles
só não fizeram efeito ainda. Eu vou ficar bem. — Ele não acreditava de verdade que ficaria nem
perto de “bem” assim tão cedo, mas não queria assustar sua mãe. Ela tinha passado por tanto medo
e preocupação quando seu pai ficou doente. Merecia viver o resto de sua vida em paz.
— A Melissa também disse que acha que você devia sair mais, ver umas pessoas. Quando
estiver melhor, é claro. Ela disse que você está muito sozinho.
— Ela provavelmente tá certa. É que é difícil. Ainda não superei a Amber. — Ele sentiu um
caroço se formando na garganta já dolorida. Exatamente o que ele precisava. Chorar para a mamãe.
— Claro que não superou, querido! Fazem só duas semanas. Mas com o tempo, seu coração
vai se curar e você vai encontrar outra pessoa. Alguém quem te valorize por quem você é. Sei que
sou suspeita para falar, mas nunca achei que a Amber fosse boa o bastante para você. Você sabe, eu
nunca pensei que namoraria de novo depois que seu pai faleceu, mas um ano e meio depois, eu
conheci o Harold. E você tem que admitir que o Harold é um cara muito legal.
— É sim, mãe. — Stanley não quis gostar de Harold no começo. Sentia como se fosse
desonrar a memória de seu pai. Mas Harold foi bom para sua mãe e a fez se sentir menos solitária.
Eles saíam para jantar toda sexta à noite. Aos domingos, passeavam pelo parque se fosse um dia de
sol ou iam ao shopping se estivesse chovendo. Eles sempre andavam de mãos dadas, o que Stanley
achava uma graça. Ele se sentia feliz por eles terem um ao outro.
— Muito bem, você precisa que eu vá até aí e te leve uma sopa, umas compras ou algo
assim? — perguntou sua mãe.
— Não, obrigado, mãe. Eu só preciso tomar meu remédio e descansar. — Ele não queria que
ela visse quão mal ele estava. Sabia que, se ela visse, o arrastaria para o pronto-socorro.
— Certo, mas vou te ligar amanhã para ver como você está. E se precisar que eu dê um
pulinho aí, eu vou.
— Obrigado, mãe.
— E se você não melhorar até depois de amanhã, promete que vai deixar a Melissa marcar
uma consulta com a médica dela?
Ele sabia que não adiantava discutir com ela. Melissa tinha herdado a teimosia de sua mãe.
— Prometo.
— Eu te amo, Stanley.
— Também te amo, mãe. — Dizer essas palavras o fez se sentir triste e vulnerável. Se era
para ficar assim tão doente, quase desejou que pudesse ser um garotinho de novo. Ele poderia ficar
na cama de pijama e sua mãe poderia cuidar dele e trazer chá quente, pudim de chocolate e revistas
em quadrinhos. Ninguém nunca cuidava de você assim quando adulto.
Depois que desligou, ele sabia que não podia ficar na cama. Se ficasse, apagaria de novo e
acabaria não indo para o trabalho. Com uma mão apoiada na parede, foi mancando até a sala, se
jogou no sofá e ligou a TV. Em teoria, ele estava acompanhando os resultados dos jogos, mas não
conseguia se concentrar o suficiente para isso. Ficou só olhando vagamente para as luzes e cores na
tela, pensando apenas no quanto sua garganta doía e em quão rápido seu corpo estava falhando com
ele. Era como se tivesse se transformado num velho decrépito da noite para o dia.

Rápido até demais, chegara a hora de se arrumar para o trabalho. Quando vestiu sua calça do
uniforme, a perna direita estava muito apertada. Era meio estranho ter uma perna da calça normal e
uma que apertava sua coxa como um par de calças femininas. A camisa do uniforme ainda estava
jogada no chão do quarto, rasgada. Ele decidiu que ele usaria uma camiseta branca lisa para ir ao
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trabalho e depois tentaria encontrar uma camisa de uniforme substituta no almoxarifado quando
chegasse lá. Ou não. De que importava? Ninguém o via lá de toda forma. Ele podia ir trabalhar de
cueca e ninguém saberia.
Como a perspectiva de caminhar até o trabalho parecia impossível, decidiu pegar o ônibus.
A curta caminhada até o ponto por si só já foi bastante difícil e, quando o ônibus chegou, ele mal
conseguia erguer a perna dormente e inchada o bastante para entrar no veículo. Podia sentir as
pessoas atrás dele mudando o apoio de um pé para o outro, esperando impacientemente. Enquanto
seguia aos tropeços em direção a um assento, os outros passageiros o olhavam com preocupação.
Ele se sentou ao lado de uma senhora mais velha que se levantou e foi para outro assento mais atrás.
Provavelmente parecia ter algo contagioso.
Quando chegou a seu ponto, ele se levantou do assento com grande dificuldade e cambaleou
em direção à porta. Ele tropeçou enquanto descia e caiu no meio da calçada. A queda devia ter
doído, mas seus braços e pernas não sentiram nada. A ausência da dor era mais assustadora que a
dor normal teria sido.
— Você está bem, amigo? — perguntou o motorista do ônibus.
Stanley assentiu e então ergueu o braço direito dormente para acenar para ele. Sabia que não
estava bem, mas não era como se o motorista do ônibus pudesse ajudá-lo. Não sabia nem se um
médico poderia ajudá-lo a essa altura. Tinha certeza que os antibióticos não resolveriam aquilo. Ele
se segurou na placa do ponto e a usou para se levantar. Estava sem equilíbrio em ambos os pés. Ele
se abaixou e bateu na perna esquerda. Não sentiu nada. Devia ter dito à enfermeira do ambulatório
sobre a dormência de seus membros. O que estava pensando?
Ele cambaleou e tropeçou na calçada. Todos com quem cruzava ficavam olhando para ele,
alguns parecendo preocupados, outros apenas irritados, como se os incomodasse ver outra pessoa
sofrendo. Ele seguiu até o depósito e se apoiou nas pilhas de madeira para se equilibrar enquanto
tentava se impulsionar em direção às escadas que levavam às instalações subterrâneas. Ele agarrou
o corrimão com ambas as mãos e focou em dar um árduo passo de cada vez. Seu progresso estava
muito lento e ele estava com medo de chegar atrasado, então finalmente se sentou num degrau e foi
deslizando de bundo, degrau por degrau, como seu sobrinho quando era criança e tinha medo da
escada. Não era algo nobre, mas o levou aonde precisava ir.
Ele passou pela lixeira fedorenta de resíduos biodegradáveis. Pelo menos seu nariz ainda
funcionava. Já era alguma coisa, no fim das contas.
Quando escaneou seu cartão de identificação e a porta se abriu aos grunhidos, Stanley estava
tão exausto que precisou usar toda a concentração para simplesmente colocar um pé na frente do
outro. Pensou que talvez devesse ir ao almoxarifado para encontrar uma camisa nova, mas a
aparência profissional já não lhe parecia mais uma prioridade. Descansar. Era sua única prioridade.
Ele se arrastou até a sala de monitoramento, escaneou seu cartão de identificação e se jogou na
cadeira, ofegando como um cachorro doente e suando profundamente.
Ele não estava em condições de estar no trabalho. Não estava em condições de nada.
Olhando para baixo, viu que suas pernas, tanto a direita quanto a esquerda estavam agora
igualmente inchadas, esticando tanto o tecido das calças que estava a ponto de rasgar. Tudo parecia
apertado. Seus braços inchados, suas pernas inchadas. Até seu peito parecia apertado. Seria essa a
sensação de ter um ataque cardíaco? Será que estava tendo um ataque cardíaco agora? Pela manhã,
ele ligaria para Melissa e diria a ela para marcar logo aquela consulta médica. Chega de brincadeira
com ambulatórios e antibióticos. Aquilo era sério e ele agora estava com menos medo dos médicos
do que daquela doença.
Amber. Não conseguia parar de pensar em Amber. Quando ela terminou com ele, ele só a
ficou encarando com cara de tacho, chocado demais para dizer qualquer coisa. Tinha tanta coisa que
podia ter dito a ela, tanta coisa que precisava dizer. E se nunca tivesse a chance de dizer?
Com as mãos trêmulas e suadas, ele vasculhou a mesa e encontrou uma caneta e papel. Com
alguma reserva emergencial de energia dentro de si, ele escreveu:
Querida Amber,
Com o braço dormente e a mão trêmula, as palavras pareciam ter sido escritas por alguém da
segunda série. Mas ele não podia deixar que isso o impedisse. Ele continuou escrevendo:
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Você se lembra de como nos conhecemos no supermercado? Eu levei as minhas coisas para
o seu caixa. Você olhou para mim e eu fiquei aquele tempo todo olhando para você. Estava nervoso
demais para te chamar para sair, mas continuei indo para o mercado comprar coisas que nem
precisava só para poder te ver. Finalmente, você disse: “Você gosta de mim ou coisa assim?” Acho
que eu corei, mas disse que sim e aí você disse: “Então por que não me chama para sair?” Quando
eu chamei e você disse sim, acho que foi o dia mais feliz da minha vida.
Amber, eu sei que nem sempre fui o melhor ou mais emocionante namorado do mundo, mas
quero que saiba que eu realmente te amei e ainda amo. Tenho estado muito doente ultimamente e¨,
se você está lendo isso, é provavelmente porque algo ruim aconteceu comigo. Por favor, não fique
triste por mim. Eu só quero que saiba que eu lamento por não tê-la feito mais feliz e não ter dado o
que você precisava, mas não foi porque eu não te amava. Eu amo e muito. Eu te desejo muita
felicidade na sua vida, tanta felicidade quanto você me trouxe quando estávamos juntos.
Com amor,
Stanley.
Pronto. Era isso. Ele não era nenhum poeta e sua letra estava terrível, mas tinha dito o que
precisava dizer. Tremendo e exausto, ele dobrou a carta e a pôs no bolso para guardar. Mas então,
quando se recostou na cadeira e fechou os olhos, não pegou no sono como de costume. Em vez
disso, desmaiou como se alguém o tivesse acertado na cabeça com um taco de beisebol.

Quando recobrou a consciência, estava se sentindo trêmulo e suado. E apertado. “Apertado”


era a única forma que conseguia pensar para descrever o que estava sentindo agora, como se de
alguma forma seu corpo estivesse esticado até o limite. Suas calças estavam completamente coladas
e esticadas em suas pernas e agora sua camiseta, larga quando a vestira poucas horas antes, estava
agora grudada em cada uma de suas dobras e contornos. Mas não eram só as roupas que estavam
apertadas. Sua pele também estava tensionada, como se pudesse estourar como a casca de uma fruta
madura demais.
A boneca bailarina estava em cima da mesa. Ele não estava no clima para brincar. Ele não a
pegou. Não queria nem tocá-la.
— Eu gosto de estar perto de você — disse ela.
— Pelo visto, gosta mesmo — murmurou ele, mas então pensou: Calma. Ele levou as mãos
ao rosto e tentou entender sua mente confusa. A boneca não fala só quando é balançada? Antes, ela
só falava quando eu a balançava. Talvez eu não tenha ouvido isso de verdade. Talvez esteja tão
doente que estou alucinando.
— Leve-me para casa com você — disse a boneca.
Stanley tinha certeza que ouvira dessa vez, mas não respondeu. Um de seus muitos
problemas recentes era sua tendência de conversar com objetos inanimados. Melissa estava certa.
Ele precisava sair mais — toda essa solidão não era boa para ele. Já estava preocupado com sua
saúde física. Não queria ter que se preocupar também com sua saúde mental.
Mas como a boneca estava falando se ninguém a estava ativando? Talvez estivesse quebrada
— talvez houvesse algum problema no mecanismo que ativava a voz. Seja lá qual fosse a causa,
Stanley não gostou do efeito.
— Nós gostamos de você — disse ela com aquela mesma risadinha que Stanley uma vez
achara charmosa.
Com uma mão trêmula, ele pegou a boneca para inspecioná-la. Talvez houvesse um botão
que não havia notado antes que controlava o mecanismo de voz. Talvez pudesse desligar a boneca.
A boneca estava sem um dos braços. Estranho. Ela estava intacta na noite anterior.
— O que aconteceu com o seu braço? — perguntou Stanley.
— Leve-me para casa com você — disse a boneca de um braço só.
— Não. — Ele dissera que não ia mais falar com a boneca. Por que ainda estava falando?

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Por algum motivo, a boneca não parecia mais tão fofa. Não sabia dizer por que, mas a ideia
de tê-la em seu apartamento lhe parecia assustadora. E também não estava gostando muito de tê-la
ali em sua sala.
Stanley se lembrou que, quando pegara a boneca na noite anterior, havia notado um pequeno
arranhão na pintura de seu rosto. Hoje, o arranhão não estava lá. Em outra noite, se lembrou agora,
ele havia notado que havia um pequeno rasgo no tutu da boneca. Hoje, assim como na noite
anterior, o tutu estava normal.
Nós gostamos de você.
Nós.
De repente, Stanley entendeu. Não era a mesma boneca em sua mesa todas as noites. Era
cada vez uma boneca diferente. Claro, era o mesmo tipo de boneca, mas sempre tinham pequenas
diferenças. Mas o que isso queria dizer? O que quer que fosse, era estranho e perturbador e ele não
queria se envolver com o assunto. Ele abriu uma gaveta na mesa, jogou uma boneca de um braço só
lá dentro e fechou a gaveta com força. Pronto. O que os olhos não veem, o coração não sente.
Depois que se consultasse com a médica e resolvesse todos aqueles problemas de saúde,
Stanley decidiu que procuraria um emprego novo, como Melissa sempre o encorajara a fazer. Tinha
mencionado que estavam sempre procurando bons seguranças no tribunal onde trabalhava. Assim,
ele poderia trabalhar de o dia e realmente ver pessoas, conversar com elas. Talvez ele e Melissa
pudessem almoçar juntos de vez em quando. Se trabalhasse de dia, sua agenda não seria mais o
oposto da de todos os seus amigos e talvez pudesse voltar a sair com a rapaziada de novo. Poderia
convidá-los para seu apartamento, que manteria rigorosamente limpo, e poderiam pedir pizza e
assistir futebol juntos.
Quem sabe? Poderia até começar a namorar de novo. Começaria chamando Katie para sair.
Mesmo que ela o rejeitasse, chamá-la já seria um bom treino, um passo na direção certa.
Assim que recuperasse sua saúde, um emprego no tribunal podia ser a solução para todos os
seus problemas. Seria um ambiente de trabalho ensolarado e sociável — não como aquele, todo
escuro, assustador e solitário. Stanley pensou no futuro e sentiu um pequeno senso de esperança.
Ele disse a si mesmo que não ia pegar no sono outra vez. Ia fazer seu trabalho. As telas eram
chamadas de monitores porque ele devia monitorá-las. Mas seu corpo, por algum motivo médico
bizarro, estava esticado além dos limites e a exaustão o dominou. Sua cabeça pendeu para trás e ele
se soltou na cadeira, os olhos se fechando. Ele afundou em meio à escuridão.

Ele estava numa cadeira de dentista. O assistente dentário era um robô vestido como uma
bailarina. Diferente da boneca, seu rosto estava pintado para parecer feminino e formoso, com
cílios alongados, lábios rosados e círculos também rosados nas bochechas. Seu “cabelo” de metal
azul era esculpido num coque de balé. Ela pairava sobre ele, segurando o que parecia uma série de
cintas largas.
— Precisamos amarrá-lo — disse ela, sua voz feminina e sensual. — O doutor não gosta
que se contorçam. Ela amarrou Stanley à cadeira com tiras de couro ao redor de seus ombros, seus
braços, suas pernas. Ele queria se mexer, queria lutar contra sua prisão, mas não conseguiu fazer
com que seu corpo agisse. Estava paralisado.
O dentista entrou usando óculos de proteção de lentes escuras e uma máscara cirúrgica.
Stanley estava recostado na cadeira, a boca aberta, os nós das mãos brancos enquanto apertava os
braços da cadeira. O dentista era quieto e ríspido e estava tentando esticar a boca de Stanley para
abrir cada vez mais. Não, Stanley dizia em sua cabeça. Para! Não vai abrir tanto assim! Não vai! O
dentista estendeu a mão e arrancou os óculos e a máscara. O rosto que Stanley viu era uma
máscara de palhaço branca com grandes orifícios negros no lugar dos olhos e do sorriso. Duas
írises amarelas brilhavam em meio aos vãos dos olhos. O rosto. Ele conhecia aquele rosto...
As mãos da coisa abriram sua boca ainda mais, mais do que ele podia aguentar. Seus lábios
estavam se partindo nos cantos, seu maxilar estava a ponto de quebrar...
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Stanley acordou, mas a sensação de que seu corpo estava esticado não tinha passado.
Aquele rosto no sonho. Stanley conhecia aquele rosto. Era...
Stanley se distraiu de seus pensamentos devido a uma sensação em seu próprio rosto. Havia
algo se movendo em seu rosto.
A boneca bailarina estava de pé em seu queixo, usando seu único braço e uma das pernas
para tentar abrir sua boca o suficiente... mas o suficiente para quê?
O coração de Stanley disparou quando ele finalmente entendeu. Abrir o suficiente para que
ela pudesse caber.
Stanley ergueu o braço direito dormente e jogou a boneca longe. Ela era leve e cruzou a sala
inteira, acertando a parede num baque e aterrissando numa pilha desengonçada em meio ao chão.
Ele apoiou as mãos na mesa para poder se levantar. Assim que o fez, sentiu um aperto nos
braços, nas pernas, na barriga, no peito. Ele sabia agora que o que estava sentindo eram dezenas de
membros minúsculos pressionando sua pele por dentro. Dentro de seus braços, de suas pernas, de
seu peito, de sua barriga — quantas delas estavam lá?
A dor de garganta havia começado depois da noite em que a primeira boneca apareceu. Não
era à toa que doía tanto para comer ou beber qualquer coisa. Noite após noite, aquelas bonecas
estavam subindo em sua boca e descendo por sua garganta enquanto ele dormia, avançando pelas
passagens estreitas de seu corpo como exploradoras numa caverna escura e úmida. A constatação o
enojou. Ele sentiu vontade de vomitar, mas não havia nada em seu estômago para botar para fora.
Nada além de ácido e medo.
Ele desejou que pudesse voltar a não saber o que havia de errado consigo, achando que só
havia contraído algum tipo de vírus ou uma infecção estranha. Sempre diziam que, quando se trata
de condições físicas, saber era melhor que não saber. Nesse caso, estavam errados. Saber era muito,
muito pior.
Stanley saiu cambaleando da sala e atravessou o corredor. Tudo em sua cabeça gritava para
que corresse, mas ele estava fraco demais para correr. As paredes do complexo pareciam estar se
fechando à sua volta. Ele nunca gostara daquele lugar. Tinha que sair dali de uma vez por todas, ele
disse a si mesmo, e faria isso mesmo que tivesse que ir engatinhando. A pressão dentro de si estava
aumentando. Era como se agora as bonecas estivessem com raiva, como se suas várias mãozinhas o
estivessem socando e seus vários pezinhos o estivessem chutando.
Mas então ele viu a placa verde de SAÍDA brilhando à frente. Verde significa siga, disse a si
mesmo. Se conseguisse sair dali, se conseguisse chegar à luz dor luar, com ar fresco para respirar,
poderia pensar no que fazer. Ele se apoiou na parede e mancou até a placa de SAÍDA.
Uma vez lá fora, tentou respirar um pouco de ar fresco, mas, em vez disso, respirou o ar
fedorento da lixeira de resíduos biodegradáveis. Estava tão cansado e doente que só queria deitar na
calçada, mas tinha que achar uma forma de subir as escadas. Subir as escadas, pegar um táxi e ir
direto para o pronto-socorro, onde diria a eles... o quê? Tem dezenas de bonequinhas vivas dentro
de mim. Elas se enfiam na minha garganta quando eu durmo. Não havia dúvidas de para qual ala
do hospital uma declaração dessas o levaria. Mas se conseguisse convencer um médico a fazer um
raio-x, eles veriam que as bonecas eram de verdade...
Vozes. Os pensamentos de Stanley foram interrompidos de súbito pelo que pareciam vozes
de garotinhas, baixas e abafadas. Estavam abafadas porque vinham de dentro dele.
De seu braço esquerdo: “Eu gosto de estar perto de você”.
De sua perna direita: “Nós gostamos de você”.
De sua barriga: “Você é tão quente e macio”.
Stanley tropeçou para trás, quase caindo. Ficar de pé estava se tornando cada vez mais
difícil. A pressão estava aumentando dentro dele, se tornando insuportável. Ele sentia que estava a
ponto de explodir. Isso podia acontecer? Uma pessoa realmente podia explodir?

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A pequena boneca de um braço só estava parada bem na frente da porta do complexo, numa
pose que era como se estivesse prestes a fazer uma pirueta. As írises amarelas de seus olhos negros
cavernosos estavam focadas em Stanley como lasers. Seu sorriso era largo. Ela inclinou a cabeça de
uma forma que em outras circunstâncias poderia ter sido fofa.
— Não tem lugar só para mais uma? — cantarolou.
Toda a força de Stanley se foi. Ele caiu de joelhos. A boneca de um braço só saltou em sua
direção com a graça de uma bailarina.
Stanley não conseguiu evitar. Ele abriu a boca para gritar.

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—É
um dia claro e ensolarado, daqueles que te fazem sentir que você tem que fazer
alguma coisa. Fazer algo divertido ou “ser produtivo”. — Devon usou os dedos
para fazer aspas no ar, esperando que ninguém notasse suas unhas roídas e
cutículas mordidas. Ele então continuou num tom que esperava soar sinistro: — É
um daqueles dias que a sua mãe te faz cortar a grama. Mas hoje não é dia de tarefas. Hoje é dia de
uma festa de aniversário.
Devon ouviu cochichos pela sala. Alguém deu uma risada baixa, mas ele não tirou os olhos
do papel. Manteve sua cabeça inclinada, seu cabelo jogado para frente como um escudo protetor
entre ele e o resto da turma.
Normalmente, ele odiaria ter que ficar na frente da sala por... qualquer que fosse o motivo,
mas, hoje, ele estava numa missão. Se tivesse que ler um trabalho idiota para a aula de português,
ele daria um jeito.
Devon continuou sua história, descrevendo uma festa de aniversário com um bando de
pirralhos barulhentos. Ele falou dos balões, dos palhaços e do pula-pula inflável montado no meio
da grama verde.
— Mas não é um pula-pula qualquer — leu Devon. — Ninguém sabe ainda, mas vão
descobrir... agora. — Devon fez uma pausa para dar um efeito de suspense. Ele não ouviu nada. Até
onde sabia, sua professora, a Sra. Patterson, e seus colegas de sala podiam muito bem ter sumido da
face da Terra. Mas ele não ia olhar para saber.
Devon prosseguiu:
— Porque agora a pequena Halley está subindo no pula-pula. Ela é a primeira da fila. Sua
irmã gêmea, Hope, está logo atrás dela.
Teria sido um suspiro de surpresa o que Devon ouvira vindo da terceira fileira? Ele achava
que sim. Bom. Tinha chamado a atenção dela. Ele sorriu enquanto continuava a leitura:
— Halley está quase terminando de entrar no pula-pula, seu vestido cor-de-rosa esfregando
no vinil vermelho do piso. “Anda”, Hope pressionou Halley, empurrando ela por trás. Halley foi
engatinhando devagar, até que, de repente, foi puxada para frente. Hope deu uma risada e a seguiu.
Devon parou de ler novamente. Estava chegando na parte boa.
— Mas logo, logo, Hope vai desejar nunca ter seguido a irmã. Num momento, ela está
olhando para baixo enquanto engatinha para entrar no pula-pula, mas agora já está dentro. Ela ergue
o olhar e vê o corpo parcialmente comido de sua irmã estirado no vinil vermelho. Não, espera! O
vinil não é vermelho. Ele está coberto de sangue. — Teria sido um gritinho baixo o que Devon
acabara de ouvir? Ele continuou a ler: — E o pula-pula não é um pula-pula. É uma boca gigante. E
ela está mastigando e se abrindo ainda mais, e Hope, que agora está gritando, está escorregando
para dentro da...
— Já chega! — gritou a Sra. Patterson.
Devon piscou. Ele não levantou a cabeça. Ainda não tinha terminado.
— Devon Blaine Marks. — A Sra. Patterson pronunciou os nomes de Devon como se
estivesse cuspindo cada um deles. Antes que ele pudesse responder, a grande mão quadrada da Sra.
Patterson apareceu diante da cara fechada de Devon e arrancou as folhas da história de suas mãos.
As folhas sacudiram e Devon sentiu um corte na pele feito pelo papel entre a junção de seu polegar
e seu indicador.
A sala estava tão quieta que Devon podia ouvir um pássaro cantando do
lado de fora da janela. Ele finalmente olhou para o rosto da Sra. Patterson.
— Sim?
— Sim? — A Sra. Patterson balançou a cabeça, fazendo seu rabo de cavalo sacudir de um
lado para o outro.
A Sra. Patterson era professora de português, mas era também a treinadora de basquete do
time feminino. Era uma mulher grande, alta e de ombros largos. Ela encarou Devon, que já tinha
quase 1,80m — bem alto para sua idade. Só faltava um pouco mais de coordenação para ser um
jogador de basquete. E talvez assim pudesse...
— Devon. — A Sra. Patterson suavizou o tom de sua voz e Devon finalmente ergueu o olhar
para fitar seu rosto largo. Ele até conseguiu olhar diretamente em seus intensos olhos azuis. Os
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olhos da Sra. Patterson eram assustadores. Todos da turma concordavam. Ela podia te fazer virar
fumaça e cinzas só com o olhar. Devon se sentia agradecido por ainda estar vivo. — Vá para a sala
do Sr. Wright — mandou a Sra. Patterson.
Devon olhou para a sua história, toda amassada nas mãos da Sra. Patterson. Ele até queria
argumentar, mas deu de ombros e seguiu em direção à porta da sala.
Heather sentava na segunda cadeira da terceira fileira. Quando passou por lá, a olhou nos
olhos. Quer dizer então que tinha funcionado? Heather estava olhando diretamente para ele.
Diretamente para ele! Isso!
Heather Anders, uma das garotas mais populares de toda a sala e de longe a mais bonita,
nunca, nem uma vez sequer, tinha olhado para Devon. Até onde Heather e provavelmente todas as
outras garotas do primeiro ano sabiam, Devon nem existia. E ainda que existisse, ele não era nada
mais que parte da paisagem da sala, como uma lousa ou uma cadeira. Se não fosse por Mick, seu
melhor — e único — amigo, e sua mãe bem-intencionada, mas também muito irritante, até mesmo
Devon se questionaria se ele realmente existia. Tinha vezes que ele não tinha tanta certeza.
Mas hoje sim, ele existia. E Heather o vira. Triunfante, ele lhe abriu um sorriso e ergueu o
polegar enquanto saía da sala.
Heather revirou os olhos e disse:
— Credo, Devon. Aquilo foi doentio.
Devon abriu um sorriu ainda maior, acenou com a cabeça e então passou pela porta como se
estivesse indo para um encontro superimportante em vez da diretoria.
Ele tinha conseguido.
Mesmo que Heather nunca tivesse notado Devon, ele havia feito uma pesquisa minuciosa
sobre ela. Ele a observava. Ele a escutava. Queria saber tudo sobre ela.
Na semana anterior, enquanto Mick tagarelava sobre seu último super-herói favorito, Devon
ficou escutando Heather falando com as amigas. Estava reclamando de suas irmãs gêmeas de quatro
anos, Halley e Hope. “Elas me deixam louca”, dissera a Valerie, sua melhor amiga. “Tipo assim, de
verdade mesmo, elas me tiram do sério. Eu sempre tenho que cuidar delas e eu odeio isso. Elas
sempre se metem em confusão, quebrando algo ou coisa do tipo e aí eu que me meto em confusão.
Eu odeio elas!”
E naquele mesmo dia, a Sra. Patterson deu a tarefa de escrever um curta original. Foi quando
Devon viu sua chance. Ele a viu. Ele a agarrou. E não a desperdiçou.
Quem se importava se isso lhe custara uma visita à diretoria? Os artistas mais criativos do
mundo tiravam suas ideias das profundezas mais escondidas... e, normalmente, essas profundezas
eram mal compreendidas.

Devon e Mick se encontraram depois da escola no lugar de sempre, nos fundos da escola,
perto do estacionamento dos professores. Devon mal podia esperar pra falar com Mick sobre o que
acontecera com Heather. Ele nem pensara em olhar para Mick antes de sair da sala. Não sabia ao
certo se seu amigo vira o que tinha acontecido. Mick costumava sonhar acordado. Ele quase sempre
era visto olhando pela janela para sabe Deus o quê.
Quando Devon viu Mick, ele estava praticamente fazendo malabarismo para carregar sua
mochila roxa, um tigre de papel machê, um copo de plástico com canudo espiralado, uma pilha de
livros que obviamente não cabiam na mochila já entupida e um pacote de cupcakes de chocolate
pela metade. Ainda tinha restos do glacê branco do cupcake já comido no canto de sua boca.
Devon apontou para o glacê.
— Hã? Quê? Ah. — Mick esfregou a boca com as costas da mão com a qual segurava o
tigre. Isso fez parecer que o tigre o estava atacado. Também o fez derrubar a pilha de livros, que se
esparramaram pelo chão.

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Devon balançou a cabeça e se inclinou para pegá-los. Ele os guardou na própria mochila
azul-marinho, que estava quase vazia. Ele tinha feito o dever de casa daquele dia enquanto estava na
sala do Sr. Wright, e ao contrário de Mick, Devon nunca lia um livro a menos que fosse obrigado.
— Desculpa. Ah, você pegou pra mim? — perguntou Mick. — Valeu. — Mick olhou para
Devon por trás de seus óculos de arame redondos. Ele passou a mão pela franja ruiva, a fim de tirá-
la de cima da testa cheia de sardas — e acabou deixando o cabelo todo de pé.
— Cadê o seu trabalho de artes?
— Joguei no lixo.
— Por quê? Aquele polvo de quatro cabeças era irado.
Devon deu de ombros. Não contou a Mick que achava que fazer bichinhos de papel machê
era coisa de criança e não disse que o professor de artes, o Sr. Steward, dera um 0 para o seu
trabalho e lhe repreendera por fazer que queria em vez de seguir as instruções. “Era para serem
representações de animais reais, Sr. Marks”, dissera o Sr. Steward.
“E como você sabe que não existem polvos de quatro cabeças?”, Devon respondera. “Só
cinco por cento do fundo do oceano foi explorado”. Isso fora o suficiente para calar a boca do Sr.
Steward. Devon não gostava de ler livros, mas isso não queria dizer que ele não lia. Ele passava a
maior parte de seu tempo livre na internet.
Mick enfiou o segundo cupcake na boca. Os garotos foram deixando a escola. Em meio a
um grande barulho, Mick puxou um pouco do que quer que fosse o que estava bebendo pelo canudo
espiralado.
— Aquela sua história foi bem grotesca, Dev. Quase me fez vomitar. Devon empurrou Mick
de brincadeira.
— Nojento.
— Não mais que a sua história.
— Tanto faz. Mas você viu o que a Heather fez?
— Ela tava bem branca, tipo, com a cara pálida. Achei que ia desmaiar. — Sim, mas você
viu ela olhando pra mim?
Mick olhou para Devon, que se abaixou para pegar uma pedra. Ele a atirou numa placa de
PARE e a acertou bem no centro, em meio a um sonoro clink metálico.
— Bom, eu a vi olhando pra você como se quisesse te matar.
— Que nada. Você não ouviu o que ela disse?
Mick ajeitou a mochila nas costas.
— Sim. Ela disse que a história era doentia.
— Não, ela quis dizer no sentido de “irada”.
Mick revirou o rosto redondo.
— Hm, acho que não.
Devon deu de ombros de novo, pegou outra pedra e a atirou num poste. Recebeu um sonoro
bong em resposta.
— A questão é que ela me notou. Ela falou comigo.
Mick torceu a boca pequena.
— E isso é grande coisa?
— Lógico que é!
Os garotos chegaram à ferrovia que ficava a quase um quilômetro da escola. Eles foram
atravessando os vagões abandonados e completamente cobertos de pichação. A estação cheirava a
óleo e creosoto e era repleta dos ruídos que as rodas dos trens faziam quando passavam pelos trilhos
enferrujados. Já do outro lado da ferrovia, os garotos entraram na floresta, que se estendia por
quilômetros ao norte da estação e seguia por vários outros a leste, levando aos fundos do bairro
deles, mais a oeste. A floresta era densa, com pinheiros e outras árvores enormes, tão próximas
umas das outras que bloqueavam o sol, criando um crepúsculo perpétuo. Num dia nublado, a
floresta era ainda mais escura, como se fosse uma sombra gigante encobrindo e calando a loucura
barulhenta, luminosa e apressada que a maioria das pessoas chamava de ‘vida real’. Devon amava o
escuro, e num dia ensolarado daqueles, era um alívio ficar sob as árvores e deixar a luz radiante pra
trás.
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No caminho entre a ferrovia e o bairro, se seguissem pelos limites da floresta, eles
chegariam a seu “esconderijo secreto”, o espaço que montaram num velho posto abandonado que
dava de frente para a floresta. Ao longo de seus seis anos de amizade, eles passavam quase todas as
tardes depois da aula — e boa parte dos finais de semana — em seu esconderijo.
Se fosse para ser sincero, — coisa que Devon não era, — ele achava que estavam ficando
um pouco velhos demais para terem um esconderijo. Era aceitável quando estavam começando o
ensino fundamental ou talvez até ano passado, no último ano, mas eles agora estavam quase
terminando o primeiro ano do ensino médio, era “infantil” demais para eles. Devon já tinha se
cansado das brincadeiras de faz-de-conta com piratas e cowboys do espaço e não via mais as
coleções de sucata que eles juntaram por anos como um “tesouro”. Ele não queria ser um dos dois
garotos que não tinham aonde ir depois da aula além de um posto de gasolina caindo aos pedaços.
Mas isso não queria dizer que ele não gostava do esconderijo. Mesmo que não fosse mais tão
divertido para ele quanto quando criança, ainda era um bom lugar para fugir de toda a porcaria da
vida real. Um lugar aonde ele podia ir e se esquecer da escola e de toda a pressão que sua mãe
colocava sobre ele precisar “ser alguém”.
“Não acabe como eu, Devon. Seja alguém”, ela lhe dissera várias e várias vezes e...
— Você não acha? — perguntou Mick.
— Oi,? — Por quanto tempo ele ficara andando e ignorando o amigo? Devon não fazia ideia
de que tipo de assunto tinha perdido, mas concluiu que provavelmente não era importante. O tema
de conversa favorito mais recente de Mick era o jogo de lógica digital que ele estava fazendo. “É
como brincar de espião, tipo, com enigmas”, Mick explicara para Devon.
No geral, Mick e Devon tiravam notas 8 ou 7 na escola, às vezes salpicadas com um 6 aqui e
ali. Isso, no entanto, não era porque eram burros. Eles não eram. Devon apenas não se importava o
suficiente com a escola para “dar duro”, como sua mãe costumava dizer. A escola era um tédio. Pra
que se esforçar tanto, afinal? Mas os problemas do Mick eram um pouco mais sérios. Ele tinha um
transtorno de aprendizagem e tendia a ter déficit de atenção. “Não vamos rotular o garoto”, dizia o
pai do Mick (segundo ele), então esses problemas nunca foram tratados. Basicamente, aos olhos de
Devon, Mick era como um sábio que não sabia aprender. E Mick não se importava se ia aprender ou
não. Só o que fazia seu coração bater mais rápido era comida (a razão de ter um físico adiposo e
ligeiramente rechonchudo) e mundos fictícios de qualquer tipo. Mick era mais alto que a maioria
dos garotos, quase tão alto quanto Devon. As calças de veludo largas e camisas de botão de manga
curta de Mick o faziam parecer um nerd, mas ele não parecia se incomodar com isso. Devon achava
que, algum dia, Mick provavelmente seria um zilionário dono de uma empresa de jogos.
— Devon! — Mick puxou a manga da camiseta de Devon.
— O quê? — Mick piscou e olhou em volta. Eles já deviam estar no esconderijo àquela
altura. Sim, o velho cedro de tronco partido estava lá, então...
Onde estava o posto?
— Sumiu... — disse Mick, a voz minúscula.
Ele estava certo. O posto de gasolina não estava mais lá. Em seu lugar, havia uma enorme
escavadeira amarela junto a uma pilha de escombros, como um dragão pronto para soprar fogo em
seu inimigo derrotado.
Mick caiu de joelhos sobre um tronco caído.
— Mas... — Ele piscou e fungou. — Os nossos tesouros...
Devon, sentindo-se estranhamente tocado pelo esconderijo demolido, desviou o olhar para o
amigo no chão. Os olhos castanhos de Mick estavam lacrimejando. Ele esfregou o nariz.
Devon se sentou ao lado de Mick e colocou um braço em volta de seus ombros.
— Ei, tá tudo bem.
— Não tá tudo bem! Olha!
— Sim, eu tô vendo.
— Todos os nossos tesouros — repetiu Mick.
— Sim. Mas a gente encontra mais. — Não que Devon quisesse, mas Mick não precisava
ouvir essa parte.
— Mas agora a gente não tem mais um esconderijo!
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Devon deu um abraço tímido em Mick, feliz por não ter ninguém que pudesse vê-los.
— Eu encontro algo pra gente.
— Tem certeza?
— Claro. E enquanto isso, a gente tem a floresta. — Devon acenou para trás com o braço.
— Bem, funciona em dias como hoje, mas...
— Deixa comigo — disse Devon. — Por enquanto, a gente fica só por aqui mesmo. Seja
como for, a gente tá nessa juntos, né? — Ele estendeu o dedo indicador.
Mick sorriu e assentiu.
— Juntos. — Ele estendeu o dedo indicador e tocou com a ponta dele no de Devon. Os dois
os pressionaram com força e então soltaram.
Devon tirou sua mochila e abriu um dos bolsos.
— Eu guardei um pacote de biscoitos do intervalo. É seu se quiser.
Mick sorriu.
— Sério? Manda brasa!
Devon involuntariamente revirou os olhos. Ele já tinha se acostumado com o hábito de Mick
de usar gírias e expressões antigas ou até inventadas, mas não queria dizer que ele gostasse.
Enquanto Mick devorava os biscoitos, Devon disse:
— Acho que hoje é um grande dia. Talvez isso — ele apontou para os escombros do posto
destruído, — seja um sinal de que algo novo tá chegando, algo grande. Quer dizer, afinal, a Heather
falou comigo hoje. Só o que tenho que fazer é trabalhar nisso e pensar em outros jeitos de chamar a
atenção dela.
Mick parou de comer. Ele limpou as migalhas em seu queixo.
— Hm... Não sei se chamar a atenção dela é necessariamente algo bom. Tem tipos diferentes
de atenção, né?
Devon deu de ombros.
— Tanto faz. — Devon estava extremamente feliz com o resultado de seu plano. Não ia
deixar que Mick acabasse com sua alegria. — Ei, — disse — que tal a gente dar uma mexidinha
naquela pilha e ver se encontra algum dos nossos tesouros?
Mick, terminando de comer os biscoitos, abriu um sorriso.

A Sra. Patterson parecia ter guardado rancor da história de Devon. Em vez de simplesmente
ignorá-lo como de costume, ela o encarou enquanto ele se sentava em seu lugar de sempre, no
fundo da sala ao lado de Mick. Heather ainda não tinha chegado.
Assim que Devon se sentou, Mick o cutucou no braço.
— Ei, Dev, você tem que conhecer o Kelsey. — Mick se inclinou e apontou para um garoto
novo sentado à esquerda de Mick. — Kelsey, esse é o Devon. Dev, esse é o Kelsey.
— E aí — disse Kelsey. E então abriu para Devon o que parecia um sorriso genuinamente
amigável. Sério isso? Devon tinha visto Kelsey mais cedo naquela manhã. Ele estava sentado perto
das escadas, observando as outras crianças. Tanto naquela hora quanto agora, Devon pensou que
Kelsey não tinha cara de quem se dava bem com pessoas como ele e Mick. E mesmo que Devon
não vestisse roupas de nerd como Mick, ele de forma alguma parecia um garoto normal.
Muito magro para sua altura, Devon sabia que tinham muitas coisas a seu desfavor: seus
dentes eram muito tortos e sua mãe não podia pagar para colocar um aparelho. Suas orelhas eram
grandes demais — e mesmo com seu cabelo grande e bagunçado, elas ainda apareciam; seu pescoço
era comprido demais; e seus olhos eram pequenos e muito grudados. Quando ainda estava no ensino
fundamental, um dos valentões da escola o chamava de “passareco”. Sua mãe gostava de dizer que
ele era um “cisne adormecido”. É, tanto faz.
Mas agora vinha esse garoto novo, esse garoto novo todo boa pinta (Devon sabia do que as
garotas gostavam nos garotos), sorrindo para Devon como se Devon fosse digno de receber sorrisos.
Devon vira Kelsey sorrindo para várias outras crianças do mesmo jeito quando estava nas escadas.
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O sorriso de Kelsey fazia Devon se sentir ridiculamente bem.
— O Kelsey acabou de se mudar pra cá — disse Mick.
Devon resistiu à vontade de dizer “avá”.
— O pai dele é empreiteiro — prosseguiu Mick. — Veio pra chefiar aquele hotel/complexo
de escritórios no qual o meu pai deu um lance, mas não conseguiu levar. — O sorriso largo e os
olhos de Mick deixavam claro que ele não tinha rancor em suas palavras. Mesmo assim, Devon
notou o sorriso de Kelsey falhar por um segundo.
Devon não sabia o que dizer, então só respondeu com:
— Sei.
Já era ruim o suficiente Mick ter mencionado seu pai frequentemente desempregado, que
gostava de reclamar sobre como os outros eletricistas estavam sempre fazendo propostas melhores
que as suas. Mas Devon torcia para que a conversa não terminasse com ele falando sobre o que sua
mãe fazia. Ela era empregada doméstica. E nem tinha um negócio próprio nesse ramo. Trabalhava
para outra pessoa. Mal tinha dinheiro pra se sustentar, mas parecia pensar que Devon tinha orgulho
por eles ao menos estarem “conseguindo”. Ele não tinha.
— Eu convidei o Kelsey pra ficar com a gente no intervalo — disse Mick.
— Claro — disse Devon, sem muita certeza se Kelsey realmente ia querer ficar com eles.
Kelsey sorriu.
— Agradeço pelo convite.
Devon ergueu uma sobrancelha e examinou os cabelos loiros ondulados de Kelsey, seus
olhos azuis, os dentes alinhados, ombros largos, calças jeans rasgadas e camiseta preta desbotada.
— Claro — repetiu.
O som desordenado de conversas múltiplas, o farfalhar de roupas por toda a volta, o ranger
das cadeiras e o baque de livros sobre as mesas fizeram Devon notar que a sala estava enchendo.
Ele sentiu o cheiro do perfume de limão de Heather e se inclinou na carteira para contemplar o
brilho lustroso de seus cabelos lisos e ruivos. Ela estava vestindo uma camisa verde escura que
combinava muito bem com seus cabelos.
— Muito bem, chega de algazarra. — disse a Sra. Patterson. — Vamos começar.

Para o choque de Devon, Kelsey realmente se sentou com eles no intervalo. Era outro dia
ensolarado e todos estavam do lado de fora, alguns aglomerados nas mesas de piquenique perto da
entrada da lanchonete, outros deitados na grama que se estendia da calçada na frente da escola até o
estacionamento. Devon e Mick estavam escorados junto aos pedestais em volta dos mastros das
bandeiras. Os pedestais eram duros, mas aqueciam bem.
Devon estava procurando por Heather e Mick estava falando sobre quão deliciosos eram os
sanduíches de mel e pasta de amendoim quando Kelsey se aproximou e acomodou perto deles,
sentando-se de pernas cruzadas. Devon se inclinou e deu uma olhada em volta para checar se havia
alguém ali para presenciar aquele acontecimento social chocante. Havia várias pessoas.
Alguns dos atletas passando por perto disseram:
— E aí, Kelsey.
Kelsey sorriu para eles.
— Oi, Kurt. Oi, Brian.
Ele também acenou para um grupo de garotas da mesa de piquenique mais próxima, diante
do que elas acenaram de volta. E então ele voltou sua atenção para Mick e Devon.
— Ouvi dizer que a comida aqui não é das melhores, então trouxe o meu próprio lanche —
disse ele.
Mick balançou seu sanduíche de pasta de amendoim “delicioso” e disse, com a boca cheia:
— Mehor eholha.
Kelsey riu. Uma risada genuína, não como se estivesse rindo de Mick, mas porque o achava
divertido. Ele abriu um pacote de papel marrom dobrado.
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— Eu gosto de um bom e velho sanduíche de frango — disse. — Minha mãe faz um que é
uma maravilha. — Ele apontou para o pacote de Devon. — Você trouxe o quê?
Devon deu de ombros.
— Na real, não tô com fome. — Ele guardou seu pacote de volta na mochila. A verdade era
que ele trouxera pão branco com mortadela. Sua mãe tinha comprado um estoque inteiro dos dois. E
ele odiava ambos. Odiava o gosto e odiava que o lembrassem do ensino fundamental, época em que
ele achava mortadela a melhor coisa do mundo. Ele agora tinha enjoado, mas o dinheiro não
acompanhava suas preferências.
Kelsey mordeu seu sanduíche e olhou em volta.
— Eu gosto daqui. Gosto do sol.
— Viu, Dev? Pessoas normais gostam de sol. — Mick cutucou Devon com o pé e disse a
Kelsey: — O Dev gosta de dias nublados. Se eu não o conhecesse, diria que é um vampiro.
Kelsey inclinou a cabeça e examinou Devon por um instante. Nesse instante, Devon teve a
estranha sensação de que estava sendo avaliado. Mas então Kelsey riu e se inclinou em sua direção.
— Bom, ele não brilha no sol como aqueles vampiros dos filmes. — Ele riu outra vez. —
Provavelmente não é um vampiro.
— Non querro sugar seu sanguer. — disse Devon, fazendo uma voz de vampiro assustadora.
— Oi, Kelsey — disse uma garota cuja voz parecia um sino.
Devon ajeitou a postura. Era Heather.
— Oi, Heather — disse Kelsey. — Já achou aquele livro que eu te falei?
Ela se aproximou mais alguns passos deles e abriu um enorme sorriso para Kelsey.
— Achei sim, vou começar a ler essa noite. — Por um instante, ela desviou o olhar para
Mick e Devon. — Ah, oi, Devon.
O tom da voz de Heather quando disse “oi” para Devon foi totalmente diferente do que o
que usou para falar com Kelsey. Devon notou isso, é claro. Parte de seu cérebro lhe dizia que os
tons afiados e pesados de cada sílaba de seu nome representavam sarcasmo. E outra parte não
ligava, o que importava era que ela lhe dera um oi.
— Oi, Heather.
Ela torceu o nariz para ele, abriu outro grande sorriso para Kelsey e então foi embora.
— Bonitinha — disse Kelsey, a voz suave, depois que Heather já tinha se afastado. Ele a
observou por alguns segundos, passando o olhar então pelos demais alunos, parando vez ou outra
em alguém específico antes de avançar para outra pessoa.
— É — disse Mick — O Devon acha que...
— Sim, ela é — interrompeu Devon. Ele se virou e encarou Mick com um olhar que
claramente dizia “cala a boca”. Mick foi esperto o suficiente para entender e voltar quietamente a
comer seu sanduíche.
Kelsey começou a falar sobre o experimento que eles haviam feito na aula de ciências e
Devon se desligou da conversa. Ele observou Heather conversando animada com suas amigas
enquanto ouvia só por cima Kelsey e Mick discutindo sobre reagentes químicos. Era assim que era
se enturmar? Talvez não, mas era o mais próximo que tinha chegado disso em anos.

Devon ficou praticamente viajando o resto do dia inteiro. Fazia muito tempo que não se
sentia tão bem assim. Até chegou a levantar a mão para uma pergunta de matemática e respondeu
corretamente. O Sr. Creenshaw ficou de queixo caído.
Enquanto andava pela escola para se encontrar com Mick depois da aula, Devon passou por
Heather e suas amigas, fofocando perto dos armários. Heather estava de costas voltadas para o
corredor. Suas amigas formavam um semicírculo à sua volta. Lá estavam Valerie e Juliet, junto com
sua terceira melhor amiga, Gabriella. O namorado de Gabriella, Quincy, também estava lá — por
algum motivo que Devon não entendia, Quincy sempre parecia andar junto com as três garotas.

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— Eu decidi que vou fazer os meus próprios filmes. — Heather jogou o cabelo por cima do
ombro. — Eu não quero ser atriz, quero estar por trás das câmeras.
Devon sequer parou para pensar. Simplesmente parou perto de Heather e começou a falar.
Ignorando suas amigas, ele se enfiou de lado na frente de Heather e disse:
— Se for pra fazer um filme, você devia fazer filmes de terror. Até filmes de terror com
acampamentos dão audiência.
Heather recuou um passo e olhou para Devon de cima a baixo.
Ele continuou falando:
— Se um dia você decidir fazer filmes de terror, me avisa. Eu tenho um primo que tem
várias maquiagens e fantasias de palhaço. Você podia fazer uma história de terror com um palhaço.
Heather enfiou seu dedo indicador com a unha pintada de vermelho no peito de Devon.
Enfatizando cada palavra com o que parecia ser desprezo... ou talvez não fosse, ela pronunciou:
— Você não tem imaginação. Isso já foi feito, desfeito e feito de novo. — E com isso, ela se
virou e saiu andando. Suas amigas a seguiram, mas não antes de Valerie, com seus cachos loiros
balançando enquanto balançava a cabeça para Devon, dizer:
— Você é muito esquisito.
Devon as observou partindo enquanto esfregava o ponto onde Heather o havia tocado. Ela o
havia tocado!
Enquanto deixavam a escola, Mick ficou esperando que Devon dissesse alguma coisa sobre
sua busca por um novo esconderijo, mas Devon não falou sobre isso.
— Ela me tocou mesmo! — dizia Devon. Ele tinha acabado de contar para Mick sobre como
Heather tinha falado com ele no corredor. Para Mick, parecia que Devon tinha se feito de bobo, mas
Devon não enxergava assim. Devon realmente achava que o comentário de Heather e o fato de ela
tê-lo tocado no peito eram coisas com as quais ele devia estar animado.
Mick estava começando a se preocupar com Devon. Ele parecia estar se iludindo um pouco
demais. Não era que Mick achasse que Devon não merecia ter a atenção de Heather. Ele merecia
sim, com certeza. Os pais de Mick o haviam ensinado que aparência não queria dizer nada e que
todos mereciam igualmente ser amados e outras coisas boas. Mick tinha que admitir que ele não
sabia se o mundo realmente funcionava dessa forma. Ele não via nenhuma prova dessa atitude na
escola, isso era certeza, mas acreditava em seus pais.
Uma abelha passou voando na frente do nariz de Mick, ao que ele deu um pulo para trás,
balançando seu copo de plástico diante do rosto. O líquido lá dentro espirrou por todos os lados. Ele
fixou observando enquanto Devon atirava uma pedra na traseira de um dos vagões. Ele acertou em
cheio. Mas estava errando feio com relação às conclusões que tirava sobre Heather. A última
tentativa de conversa de Devon fora como uma tacada acompanhada de uma bola fora, bem fora.
Mick abriu um sorriso. Seu pai ficaria orgulhoso de suas metáforas esportivas. Mick não
gostava de esportes quando era mais novo, mas vinha começando a curtir beisebol ultimamente, o
esporte favorito de seu pai. Mick gostava das estatísticas.
Enquanto adentravam a floresta, Mick disse a Devon:
— Hã, Dev? E a sua procura pelo esconderijo novo?
— Quê? — Devon estava falando do cabelo da Heather. Ele piscou e olhou para Mick.
— Nosso esconderijo novo? — repetiu Mick.
— Ah, certo. Ainda estou procurando algo bom, mas, enquanto isso, já juntei um lençol,
uma lona e umas cordas na floresta hoje cedo. A gente pode construir uma minifortaleza e usar de
acampamento.
Mick sorriu.
— Maravilháximo! Aí sim!
Mick notou Devon suspirar. Ele sabia que Devon não gostava de suas gírias, mas não se
importava. Elas deixavam Mick feliz e ele sempre fazia de tudo para ficar feliz. Mick tinha certeza
que Devon achava que ele não se importava em se enturmar na escola. Mas Mick se importava.
Tanto que era até difícil para ele pensar no quanto todos ignoravam os dois, mas tinha coisa pior:
colocarem a cara à tapa e serem rejeitados — e isso era algo que Mick com certeza não queria. Ele e
Devon costumavam encarar tudo isso da mesma forma — apenas ignorando todo mundo e fazendo
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o que quisessem fazer. Agora, Devon queria se enturmar, enquanto Mick ainda queria ficar em seu
mundo de fantasia. Nesse mundo, ele se sentia bem. No mundo real, definitivamente não.
Alguns minutos depois, eles chegaram a um campo de pinheiros que abrigava uma série de
pedregulhos. Devon foi até um deles, de onde tirou o lençol, a lona e as cordas. Em meio aos dois,
eles conseguiram amarrar tudo e fazer um teto assimétrico e flácido, então colocaram o lençol no
chão, por cima dos pedregulhos.
— Vamos pensar — disse Dev, enquanto se ajeitavam, e Mick ofereceu uma batata chips de
churrasco do pacote que comprara da máquina de venda depois da aula. Todo dia, sua mãe lhe dava
dinheiro para comprar alguma coisa daquela máquina. Era a recompensa que ele ganhava por passar
por mais um dia. Às vezes, ele comprava doces e, quando o fazia, costumava comer imediatamente.
Outros dias, pegava algo salgado, que normalmente guardava para dividir com Devon.
— Sobre o esconderijo? — perguntou Mick. — É sobre isso que vamos pensar?
— Quê? — disse Devon, colocando uma batata na boca. — Não. Sobre a Heather e como eu
posso me enturmar mais com ela.
— Hã? Cara, não sei nem se você sequer tá se enturmando com ela. Devon ignorou Mick.
— Tenho que dar um jeito de impressionar ela — disse.
— Isso nunca é uma boa ideia — disse Mick.
— O que não é?
— Fazer algo pra tentar impressionar alguém. Minha mãe diz que é aí que os garotos
cometem erros idiotas.
Devon pegou uma pedra junto a um arbusto crescendo na base de uma das árvores que
segurava a tenda.
— Bom, quem se importa com o que a sua mãe fala?
— Hm? Eu?
— Bom, é, pois não devia.
— Que tal a gente falar da exploração que vamos fazer no sábado? — perguntou Mick. —
Meu pai disse que se formos alguns quilômetros ao norte de onde normalmente vamos, a gente
encontra uma cachoeira bem bacana.
— Talvez a gente devesse caçar umas locações pros filmes dela. — disse Devon. — Eu
podia dar uma lista de lugares legais pra ela. Isso pode deixar ela feliz.
— Parece que tem uma planta rara que cresce perto da cachoeira. — Mick tentou de novo.
— Seria um barato se a gente achasse.
— E por que a Heather ia querer algo barato? — disse Devon.
Mick riu, mas então percebeu que Devon estava com uma expressão séria. Ele não estava
prestando atenção em nada do que Mick dizia. Mick suspirou. Era como se Devon tivesse sido
enfeitiçado. Mick pensou em como poderia quebrar o feitiço.

Para a surpresa de Devon, Kelsey se encontrou com Devon e Mick no intervalo de novo no
dia seguinte. Ele até levou sanduíches de frango para os novos amigos.
— Achei que iam querer provar — disse Kelsey. — Minha mãe também faz o próprio pão.
É muito bom.
Naquele dia, o clima estava mais do gosto de Devon. Haviam tantas nuvens juntas e
apertadas que elas bloqueavam a maior parte do sol.
— Olha só — disse Kelsey, apontando para o céu — Seu tipo de clima. Ele se lembrou
disso? Devon sorriu.
— Isso aí.
Devon vinha observando Kelsey nas aulas que tinham juntos. Parecia que Kelsey estava
fazendo amizade com todo mundo da sala. Como é que ele fazia isso? Era só porque era boa pinta?
Por causa das roupas? Naquele dia, estava com calças pretas largas e uma camiseta cinza. Estava
com uma blusa vermelha e preta amarrada na cintura. Devon nunca se importou o suficiente com o
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que vestia para saber o que caía bem e o que não caía. Não tinha por que se importar. Sua mãe só
podia comprar dois pares de calças e uma ou outra camiseta por ano. Isso limitava suas escolhas
com relação à moda.
— Então, você conhece todos os tipos de nuvens? — perguntou Kelsey. — A gente
aprendeu sobre elas ano passado na escola e as stratus são as únicas que eu me lembro. Qual é essa?
— Ele apontou para cima.
— Cumulus — disse Devon, sem pensar.
Talvez fosse isso. Kelsey conversava com você como se realmente se importasse com o que
você gostava. Mas ele realmente se importava ou será que era só fingimento? Devon estreitou os
olhos e examinou Kelsey enquanto ele perguntava a Mick sobre as maratonas de super-heróis que
ele acompanhava.
— Eu vi aquele último filme — disse Kelsey. — Achei muito top. Kelsey estava começando
a deixar Devon irritado.
Calma aí. O quê? Por quê? Devon franziu o cenho. Por que Kelsey o estava incomodando?
Ele devia estar feliz pelo garoto novo estar se dando bem com eles. Ele estava feliz. Mas irritado
também. Tinha sido tão fácil para Kelsey. Fácil demais. Não era justo.
Devon bufou.
Mick e Kelsey olharam para ele.
— Que foi? — perguntou Mick.
— Ah, desculpa. Só tava com uma bobeira na cabeça. Nada importante. Kelsey inclinou a
cabeça e olhou para Devon com tanto afinco que mais parecia estar mirando sua alma. E então
Kelsey sorriu e assentiu como se tivesse entendido perfeitamente. Mas como?
— Você não odeia quando o seu cérebro começa a pensar em coisas nada a ver? O meu faz
isso o tempo todo — disse Kelsey. — É como se ele tivesse uma mente própria. — Ele riu.
Mick também deu risada.
— Um cérebro ter mente própria. Essa é boa.
Devon forçou uma risada.
— É, ha, ha.
Ele na verdade estava rindo de si mesmo, porque parecia um bebezão quando pensou que
não era justo. Até parece. Àquela altura, ele mais que ninguém devia saber que a vida não era justa.
— O que vocês vão fazer depois da aula? — perguntou Kelsey. — Eu tava procurando algo
pra fazer mas ainda não decidi nada.
Devon não queria responder à pergunta. Ele e Mick não estavam envolvidos em nenhum
esporte ou clube... exceto seu “clube de dois”. Eles não tinham nada. Mick, no entanto, não ficou
intimidado pela pergunta. Com uma inocência honesta, ele respondeu:
— A gente tinha um esconderijo, um clubinho bem legal num posto de gasolina
abandonado, mas demoliram. O Dev disse que tá procurando um lugar novo pra gente.
Kelsey terminou seu sanduíche e limpou a boca com um guardanapo preto. Quem usava um
guardanapo preto?
— Um esconderijo? — Ele se inclinou. — Bom, sabem, os melhores lugares pra isso são
construções abandonadas. Eu e os meus amigos da minha escola antiga gostávamos muito de
exploração urbana. A gente encontrou uns lugares bem legais. Quando fiquei sabendo que ia vir pra
cá, perguntei pra um colega meu se tinha algo legal pra dar uma conferida aqui. Ele tá procurando.
— Legal — disse Mick.
— Mas até lá, ainda posso ajudar com esse lance do esconderijo.
— Mesmo? — Mick também terminou seu sanduíche, mas não limpou os restos de frango
em sua bochecha.
Kelsey apontou para ele e, sem fazer graça, alertou:
— Ainda tem um pouco aqui.
— Ah, valeu. — Mick limpou o rosto com as costas da mão.
Kelsey sorriu.
— Meus pais compraram uma casa de campo enorme nos limites da cidade. Minha mãe
disse que é histórica ou sei lá. Eu não ligo muito pra esse tipo de coisa, mas o legal é que tem uma
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oficina bem grande atrás da casa. Tá uma bagunça, caindo aos pedaços, e precisa de uma demão de
tinta, de um telhado novo e tal. Meu pai tá construindo um escritório e uma lojinha do outro lado da
casa, então ele disse que eu posso ficar com a oficina e usar como um salão de festas ou coisa assim
se eu consertar tudo. Querem me ajudar? Ele disse que compraria tudo que eu precisasse. Só tenho
que fazer o trabalho. Ele me ensinou, então eu sei construir coisas. Mas é mais legal com amigos. A
gente pode reformar a oficina e usar como um clubinho nosso.
Ele tinha mesmo dito que era “mais legal com amigos”? Devon estava tentado a esfaquear
Kelsey para ver se ele não era um robô. Crianças não falavam essas coisas.
Mick não parecia ter problemas com a ideia. Estava praticamente pulando de animação.
— Isso é show demais da conta!
Kelsey riu.
— Que bom que acha isso. — Ele sorriu para Devon. — E você?
— Show — disse Devon, o mais seco possível. Mas então também abriu um sorriso. —
Parece mesmo legal.
E parecia. Mesmo que se sentisse ressentido com o quão fácil fora para Kelsey se enturmar
com a sala, ele tinha que admitir que seria incrível se ser amigo dele significasse ter um passe livre
para entrar num círculo social. Se eles o ajudassem a reformar o celeiro e Kelsey desse uma festa,
eles estariam convidados.
— Ótimo — disse Kelsey. Ele pegou seu celular e enviou uma mensagem. — Tem um cara
mais velho, o George, um vizinho que eu fiz amizade. Mandei uma mensagem pra ele perguntando
se ele pode levar a gente na loja de material de construção amanhã depois da aula. Ele disse que
podia me levar a hora que eu precisasse.
Segundos depois, o celular de Kelsey tocou um solo de guitarra. Ele olhou para o celular por
um instante e assentiu.
— É, ele tá dentro. — Ele olhou para o relógio e se levantou.
Mick e Devon fizeram o mesmo. Já era hora de voltarem para a sala. — Encontrem a gente
amanhã depois da aula perto das bandeiras — disse Kelsey. — Meu pai tem uma caminhonete de
cabine dupla. Vai ter espaço pra todo mundo. É vermelha, não dá pra não ver.
— Tenha uma excelentíssima tarde, meu senhor — disse Mick, fingindo um tom formal.
Kelsey riu e levantou o punho para Mick bater com o dele.
— Igualmente, vossa mercê — disse ele, brincando em resposta. Também ofereceu um
punho para Devon tocar.
Devon deu um soquinho e disse “até depois” enquanto voltavam para as salas. Ele notou e
ignorou o frio na barriga quando foi buscar seus livros no armário. Estava empolgado com a
proposta de Kelsey, mas não tinha certeza se era uma boa ideia se animar com isso. A vida sempre
dava um jeito de desapontá-lo.
Mas vai saber? Talvez as coisas melhorassem. Quando Heather passou por ele e o encarou
com um olhar gelado, ele se deixou crer na possibilidade de que as coisas estavam mudando.

Mick estava tão ansioso que mal conseguia ficar parado num lugar só. Não tinha conseguido
dormir na noite anterior porque estava empolgado com a ideia de ajudar Kelsey a construir o novo
esconderijo. Ou, enfim, o clubinho. Esconderijo. Clubinho. Tanto faz.
A mãe de Mick notou que ele estava com os olhos inchados de sono quando levantou, então
lhe deu uma xícara de café. Ele agora estava sob o efeito da cafeína. No caminho para a escola, não
parou de falar no ouvido de Devon e, durante as aulas, suas pernas balançavam feito uma bola de
basquete sendo driblada por um profissional. Caramba. Outra metáfora esportiva e ele nem gostava
de basquete. Que tal essa?
Já era a terceira aula do dia, sociologia. Não era sua aula favorita, mas ele aguentaria.
Como sempre, Mick e Devon estavam sentados nos fundos da sala, junto às paredes cobertas
por mapas, enquanto o temível Sr. Gentry ficava na fileira da frente, observando as crianças. Mick
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notou Kelsey no fim da terceira fileira, sentado com alguns dos jogadores do time de futebol.
Kelsey estava sentado de lado, olhando para as crianças do outro lado da sala em vez de ficar de
frente para o Sr. Gentry. Mick observou enquanto o olhar de Kelsey pousava sobre ele e Devon.
Kelsey lhes abriu um breve sorriso e assentiu.
— Hoje, — disse Sr. Gentry, — vamos falar de justiça. — Ele olhou por cima de seus
óculos de hastes pretas que geralmente ficavam na ponta de seu nariz pontudo.
Mick achava que o Sr. Gentry parecia um pouco com uma águia. Tinha cabelo branco e
normalmente vestia marrom. Também tinha os olhos bem juntos, assim como Devon. E aí tinha
aquele nariz.
— O que é justiça? — perguntou o Sr. Gentry.
Ninguém levantou a mão. Eu consigo reconhecer uma pergunta retórica quando ouço uma,
pensou Mick.
— Toda cultura tem o seu próprio conceito de justiça — prosseguiu o Sr. Gentry. — Esse
conceito geralmente deriva de muitos campos de estudo. O nosso sistema de justiça, por exemplo,
vem da ética, do pensamento racional, da lei, da religião e de outras ideias gerais sobre o que é
justo. Mas, por trás de tudo isso, costuma haver alguma forma de intuição. A justiça é, na maioria
das vezes, intuitiva. Nós sabemos o que é justo quando sentimos que é justo. — Ele observou a sala.
— Então, o que é justiça para vocês?
Não era uma pergunta retórica. Mas Mick nem pensou em levantar a mão. Levantar a mão
na aula significaria que ele teve um transplante de cérebro ou talvez que foi possuído ou infectado
por um simbionte alienígena.
Foi quando Kelsey levantou a mão e disse:
— A justiça é como uma balança.
— O que quer dizer? — perguntou o Sr. Gentry.
— Ela remove os problemas para que eles não se tornem maiores e, bom, mais pesados que
as coisas boas.
— Perspectiva interessante — disse o Sr. Gentry.
Heather levantou a mão. Mick franziu o cenho.
Heather.
O que tinha em Heather que tanto fascinava Devon?
Claro, ela era bonita, mas parecia bem normal para Mick. E nem era tão bonita assim. Tinha
garotas bem mais bonita na turma. Ele achava Devon um pouco gado demais por Heather, apesar
que Devon parecia um pouco desmiolado num sentido geral.
Mick começou a pensar que talvez fosse Devon que tinha sido tomado por um simbionte.
Tinha algo nos olhos dele, algo que não parecia... certo.
— Eu acho que justiça é dar o troco — disse Heather.
— O troco — repetiu o Sr. Gentry.
— Sim — disse Heather. — Tipo, alguém mexe com você e você vai e dá o troco.
— “Dar o troco” me parece um pouco vago demais. — disse o Sr. Gentry. — Talvez seja
muito aberto a interpretação. E se, para dar esse troco, alguém for longe demais?
Heather deu de ombros.
— Acidentes acontecem. — Ela deu uma risada e a sala toda fez o mesmo. Devon foi quem
riu mais alto.
Mick notou que Kelsey não estava rindo. Mick também não estava rindo. Ele sentiu um
calafrio na espinha.

Devon achou que o dia nunca fosse acabar. Todas as aulas foram lentas e entediantes, com
sociologia sendo a pior. Tirando o comentário hilário de Heather de que “acidentes acontecem”, o
resto da aula fora mais seca que que frango assado que sua mãe fazia, que era tão seco que difícil
acreditar que o pássaro algum dia estivera vivo.
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Mas, finalmente, o dia tinha terminado e ele e Mick estavam indo para a frente da escola
para se encontrarem com Kelsey. Na frente da escola. Isso não era incrível? Chega de sair pelos
fundos e ir para um esconderijo de perdedores.
Mick se encontrou com Devon pouco antes de chegarem às portas da escola. As crianças
passavam por eles às pressas, uma esbarrando na outra enquanto corriam até os ônibus. Pela
primeira vez, Devon não se incomodou com a agitação de fim de tarde de sexta-feira. Ele também
sentia a agitação, como pequenas enguias elétricas percorrendo todo o seu corpo.
Ele notou que Mick passara o dia inteiro agindo como se estivesse ligado numa tomada. Ele
estava agitado e afobado. Mas Devon entendia. Também estava estranhamente feliz com aquilo
tudo. Pela primeira vez, estava gostando das paredes amarelas da escola (que na maior parte do
tempo o lembravam de uma massaroca de ovo malcozido e lhe davam ânsia de vômito). Também
não estava ligando muito para os cheiros da escola — o perfume artificial do carpete, o cheiro
poeirento do giz, o suor, o chiclete, o bafo de alho do lanche daquele dia. Em vez de se sentir
deslocado, aquilo tudo lhe pareceu familiar.
— Tá pronto? — perguntou Mick, puxando Devon pela manga.
Devon sorriu.
— Pronto.
Eles passaram pelas portas de vidro e começaram ambos a procurar na rua pela caminhonete
vermelha de cabine dupla. Kelsey estava certo. Não dava para não ver. Eles foram até ela e se
encontraram com Kelsey, que vinha da quadra de esportes.
— Vocês vieram.
Kelsey parecia genuinamente contente. Devon ficou surpreso.
Kelsey ergueu a mão e acenou para um homem barbudo atrás do volante da caminhonete. O
homem acenou de volta, sorrindo.
Devon imaginou como devia ser ter um homem adulto sorrindo para ele. Não, sério, de
verdade. Ficou imaginando como devia ser ter um homem adulto como, digamos, um pai, por
perto... ponto final.
A única memória que ele tinha do pai era de um homem bravo jogando coisas em sua mãe.
Devon tinha três anos quando seu pai foi embora. Ele e sua mãe estiveram sozinhos desde então.
Kelsey guiou Devon e Mick até a caminhonete. Devon notou algumas crianças olhando para
ele e Mick, como se eles fossem homens das cavernas que escaparam da Idade da Pedra. Um
aviãozinho de papel passou voando pela cabeça de Devon, quase o acertando no nariz — ele não se
incomodou de virar para saber de onde tinha vindo. Simplesmente manteve o olhar fixo na grande
caminhonete vermelha.
— Oi, George — disse Kelsey quando chegou na caminhonete. Ele e George fizeram um
cumprimento elaborado, começando nos dedos e terminando com uma batida de ombros. — Esses
aqui são o Devon — Kelsey sinalizou com a cabeça — e o Mick.
— Prazer em conhecê-lo, senhor. — Mick estendeu a mão... e derrubou os livros que
segurava embaixo do braço.
Antes que Devon pudesse pegá-los, Kelsey se agachou e os recolheu. George, que parecia
estar na casa dos sessenta e tantos anos, apertou a mão de Mick.
— Nada de “senhor”. Me chame de George. — Ele se virou pra Devon e ofereceu a mão.
Devon a apertou. A pele era grossa e calejada.
— Oi, uh, George.
Kelsey empilhou os livros de Mick e os devolveu. Mick os pegou de volta e sorriu.
— Valeu!
— Certo — disse George. — Que tal se...?
— Oi, Kelsey! — exclamou Heather, interrompendo-o.
Devon se virou para vê-la. Ela estava vestindo uma blusa apertada de um vermelho vibrante.
Ele passara boa parte da aula de inglês olhando para ela e agora ficou feliz por poder vê-la de novo.
Heather ignorou o olhar de Devon, mas Gabriella o encarou com um olhar de desprezo, a
fim de fazê-lo sentir-se como um verme. Ele respondeu com uma careta, ao que ela se agarrou em
Quincy, que a puxou para perto e disse pra George:
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— Possante legal.
— Valeu! — George sorriu e deu um tapinha no capô da caminhonete, como se fosse um
cachorro. — Tem um motor V8 de 6.2 litros aqui embaixo, com 420 cavalos de potência e 63 quilos
de torque.
— Uou — disse Quincy. — Maneiro. — Ele se escorou na frente da caminhonete como se
estivesse posando para um comercial. Gabriella riu e posou junto com ele.
Devon cerrou os dentes.
Quincy e Gabriella eram os alunos mais bonitos da escola. Gabriella era hispânica e, algum
dia, era bem possível que realmente se tornasse uma estrela como todos diziam. Ela era linda
mesmo. Quincy tinha cabelo escuro e pele clara, com um estilo de bad boy que Devon tentou
incorporar uma vez, abrindo buracos nas calças, picotando as camisetas e andando de um jeito mais
largado. Não funcionou para Devon — tudo o que conseguiu foi uma bronca da mãe sobre cuidar
melhor de suas coisas e andar direito.
— O que vai fazer esse fim de semana, Kelsey? — perguntou Heather.
Kelsey apontou para Mick e Devon.
— A gente vai dar uma passada no material de construção pra pegar o que precisamos pra
reformar uma oficina velha e fazer um clubinho.
Heather deu uma olhada para Devon e então sorriu para Kelsey. — Parece divertido. Eu amo
decoração.
Kelsey sorriu.
— Legal.
Heather colocou a mão no ombro de Kelsey.
— Sabe, eu sou uma ótima designer. Ajudei a minha mãe a fazer um cantinho de lazer pro
meu pai. — Ela se virou para as amigas. — Lembram da gente montando aquelas estantes de livros
que cobriam a parede toda?
As três garotas riram, todas empolgadas com alguma piada interna. Devon queria vomitar.
Valerie, uma garota baixinha que usava maquiagem suficiente para dez garotas, tinha uma voz
fanha que mais parecia uma buzina quando ela ria. E Juliet, alta e magra, tinha uma risadinha
infantil que fazia os dentes de Devon doerem.
Quincy se desencostou da caminhonete.
— Eu sei martelar muito bem.
Por um momento, Kelsey fitou Quincy com um olhar vazio. Então abriu um sorriso e disse:
— Bacana.
Para Devon, Kelsey não parecia achar aquilo bacana. Ele parecia irritado. Mas por quê?
Heather pegou na mão de Kelsey.
— Que tal você fazer uma festinha da reforma esse fim de semana? A gente pode ajudar.
Kelsey abriu a boca, mas, antes de responder qualquer coisa, George sorriu e disse:
— Ei, parece uma boa. Eu posso ajudar com o churrasco.
Heather apontou para a caminhonete.
— Então vamos comprar o que precisamos.
Kelsey olhou para Heather e suas amigas e depois para Devon e Mick. Heather continuou:
— O irmão do Quincy ia levar a gente pra casa, mas ele teve que ir pra algum lugar. Será
que a gente pode ir junto pra essa loja e depois talvez vocês pudessem nos dar uma carona pra casa?
— Claro — disse George. — Não seria problema nenhum, mas... — Ele olhou para o grupo.
— Não vai caber todo mundo.
— Claro que vai — disse Heather. — Tem só nós cinco, você e o Kelsey.
— Vocês sete, eu e o Kelsey — disse George, apontando para Devon e Mick. Heather olhou
para eles e então balançou a mão no ar.
— Ah, eles podem ir na caçamba.
— Não, sinto muito — disse George. — É contra a lei.
Desde que Heather e suas amigas apareceram, Devon sentiu como se estivesse assistindo
tudo de dentro de um casulo de vidro. Entendia o que todos estavam dizendo, podia ouvir a risada
irritante das garotas, mas estava tudo abafado. Mesmo que estivessem a poucos metros de distância,
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Devon se sentia muito afastado, como se os estivesse vendo numa tela de cinema. Seus outros
sentidos pareciam desligados. Ele não sentia mais o cheiro do escapamento do motor dos ônibus
soltando fumaça enquanto eles davam a partida e deixavam a escola. Não sentia as roupas em seu
corpo ou o asfalto sob seus pés. Agora sentia como se houvesse uma névoa invadindo seu casulo,
como se estivesse entrando nele, envolvendo seu cérebro nas trevas e fazendo com que pensar se
tornasse quase impossível. Talvez tenha sido por isso que ficou surpreso quando Mick deu um
passo em frente e disse a Kelsey:
— Hein? Eu achei que só eu e o Devon íamos com você hoje.
Kelsey franziu o cenho e depois olhou para todos. Devon sabia qual era o problema. Kelsey
devia estar se perguntando: “Eu devia ser um babaca e dispensar esses dois perdedores ou devia
ignorar as garotas bonitas?”
Não seria uma escolha difícil. Kelsey ainda estava segurando a mão de Heather!
George quebrou o silêncio:
— Que tal assim? A gente faz duas viagens. Eu levo alguns de vocês pra lá, depois volto e
busco o resto. São só dez minutos até lá. Não vai demorar.
Kelsey soltou um suspiro aliviado.
— Valeu, George — disse.
Heather sorriu para Kelsey e o puxou para a porta do carona da caminhonete.
— Vem. Podemos ficar os dois no banco da frente. Eu sou pequena o suficiente pra caber
nós dois no mesmo cinto. — Ela deu uma risadinha.
Kelsey deu de ombros e deixou que Heather o levasse até a frente da caminhonete. Os outros
entraram no banco de trás. Quincy empurrou Mick enquanto se apertava depois das três garotas
entrarem. Por um segundo, pareceu que George ia reclamar da quantidade de crianças no banco de
trás, mas ele deu de ombros e subiu atrás do volante. As quatro portas bateram.
George abaixou sua janela.
— Já volto pra pegar vocês.
Assim que George deu a partida no motor V8 de 6.2 litros, — seja lá o que isso queria dizer
— Devon sentiu seu casulo desmoronar. Ele chegou a sentir um estalo em seus ouvidos enquanto o
ar à sua volta parecia se ajustar novamente ao tempo e espaço do mundo real. Seus sentidos também
ficaram mais aguçados.
A primeira coisa que ele sentiu foi o cheiro do refrigerante de uva no copo de Mick. E então
o cheiro de gasolina da grande caminhonete vermelha que acabara de partir levando junto o
otimismo fugaz de Devon. Ele sabia que era bom demais para ser verdade.
Ele sentiu Mick puxando sua camisa de leve.
— Quer sentar ali e esperar? — Mick apontou para o meio-fio e bebeu o refrigerante pelo
canudo. Ele se sentou e empilhou sua mochila com os livros a mais que carregava ao lado.
Um carro cheio de crianças passou por eles e alguém deu um assobio alto e estridente. Outra
delas gritou:
— Perdedores!
Devon deu as costas para a estrada. Ele se virou para a floresta e disse: — Eu não vou
esperar. Vou pra casa.
Mick tirou a boca do canudo. Seus lábios estavam manchados de roxo. — Hã? Por quê?
Devon olhou para Mick. Ele parecia patético, sentado lá com seu copo na mão. Devon só
queria gritar com ele e sair andando, mas os dez anos de amizade e seus milhares de juramentos de
dedinho prometendo “encarar tudo juntos” mantiveram seu temperamento sob controle.
— Sério? Você tá me perguntando por quê?
Mick franziu o cenho e então assentiu.
Devon suspirou e se sentou ao lado de Mick no meio-fio.
— Você acha mesmo que depois dos trinta minutos até o George levar eles lá, voltar, buscar
a gente e nos levar lá também, nós vamos ser bem-vindos no grupo? Não acha que vai ser só um
pouquinho, e eu tô sendo muito, muito sarcástico agora, caso não tenha percebido, constrangedor?
Mick precisou pensar a respeito por alguns segundos. Devon esperou.
Por fim, Mick suspirou.
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— É, entendi o que quer dizer. — Ele fungou e então voltou a beber o refrigerante. — Por
que o Kelsey fez isso? Por que não fez eles esperarem?
— De novo. Sério? Tá mesmo perguntando isso? Não viu ele dando em cima da Heather?
Mick torceu os lábios e desviou o olhar, como se estivesse assistindo a uma reprise numa
telinha minúscula mais à direita. Ele franziu o cenho.
— Achei que ela que tava dado em cima dele.
— Que seja! Ele foi na dela quando ela sugeriu que os dois ficassem no banco da frente.
Mick pensou a respeito e assentiu.
— Verdade.
Devon se levantou.
— Você vem comigo ou não?
Mick suspirou.
— É, acho que vou. — Ele pegou sua mochila e Devon pegou a pilha de livros de Mick.
— Então quer dizer que a gente não vai mais fazer o nosso esconderijo na casa do Kelsey?
— perguntou Mick, enquanto os dois seguiam em direção à floresta.
— Sim, acho que é exatamente o que quer dizer.

Na manhã de sábado, quando se encontrou com Devon para que pudessem sair para sua
exploração, Mick ainda estava um pouco chateado com o que acontecera com Kelsey. Ele tentava
não deixar que essas coisas o aborrecessem tanto. Se deixasse, ficaria triste o tempo todo. E ele não
queria ficar triste.
Mick e Devon moravam num bairro que não era tão bom quanto Mick queria que fosse. Não
era terrível — ele já tinha visto piores. Mas também não era bom. Datando de quando a cidade era
propriedade da empresa madeireira, as casas no bairro eram pequenas, velhas e praticamente
idênticas, tirando os carros e o lixo do lado de fora.
Quando Mick e seus pais se mudaram para sua casa, eles disseram a Mick que era algo
temporário — ele não teria que dividir seu quarto com a irmã mais nova para sempre. Mas lá estava
ele, ainda no mesmo quarto que sua irmãzinha, Debby, algo que só era tolerável porque Debby, que
gostava de costurar, fizera uma cortina para dividir o quartinho minúsculo. Isso e o fato de ambos
terem fones de ouvido e passarem a maior parte do tempo lendo ou usando seus computadores os
impedia de quererem matar um ao outro.
Às vezes, Mick invejava Devon por ele ter seu próprio quarto, mas aí se lembrava que
Devon não tinha um pai, nem sequer um pai preguiçoso que nunca conseguia arranjar dinheiro o
suficiente. Pelo menos Mick tinha um pai, um pai que o amava. Isso era melhor que ter um quarto
só dele, imaginou.
Mick, com sua mochila cheia de guloseimas, salgadinhos, refrigerantes, água, sua pequena
câmera e um frasco extra de protetor solar, marchava pela rua cheia de terra e buracos em direção à
porta da casa de Devon, de um azul quase completamente apagado. Todas as casas do bairro tinham
paredes cinzas e portas azuis — algumas mais conservadas que outras.
Mick estava quase com medo de bater na porta. E se Devon não estivesse lá?
A forma como Devon estava agindo na noite anterior fez Mick refletir. Devon estava cada
vez menos parecido com o amigo que Mick conhecia. Era quase como alguma coisa o estivesse
comendo de dentro para fora. Estava consumindo seus sorrisos e, bem, sua personalidade.
Mick piscou quando a porta azul se abriu.
— Oi, Sra. Marks — disse à mulher alta e magra com cabelos negros curtos e bagunçados.
A Sra. Marks estava com um uniforme composto por uma camisa amarela clara e calças azul
escuro. Seus olhos castanhos estavam inchados e seus lábios finos estavam bem apertados. Assim
que viu Mick, ela abriu um pequeno sorriso.
— Ele já está quase pronto, Mick.
Devon apareceu atrás de sua mãe. Mick notou que a casa cheirava a aveia e limão.
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— Divirtam-se. — disse a Sra. Marks.
Em meio a um sorriso, Devon levantou sua mochila.
— Vamos sim!
Mick quase recuou um passo. Devon parecia sinceramente empolgado com a exploração. O
velho Devon estava de volta?
Se sim, seria incribilíssimo.

A cachoeira estava onde o pai de Mick prometeu que estaria e era tão incrível quanto disse
que seria. Os garotos encontraram um pedregulho plano junto à base da cachoeira, longe o
suficiente para ficarem fora do alcance da água que espirrava por todos os lados, mas perto o
bastante para verem a espuma se agitando. A cachoeira não era assim tão alta, mas era larga e muito
forte, provavelmente porque era primavera e estava sendo alimentada pelo derretimento da neve do
inverno. Mick amava ouvir o som da água jorrando do alto do penhasco e caindo até a bacia de
pedras abaixo.
A cachoeira era rodeada por um campo de pinheiros que cercavam a toda a área — era como
se os garotos estivessem numa clareira exuberante de uma terra distante. Mick achava bem mágico.
Não seria nenhuma surpresa para ele se de repente saíssem esquilos dançando do meio da floresta e
começassem a cantar. É claro, ele sabia que isso não ia acontecer, mas o ambiente fazia parecer
possível. E o humor de Devon também.
Devon passara a manhã inteira vidrado. Estava tentando agir — como se dizia? Descolado.
Dando uma de descolado. Como se quisesse se aparecer. Era hilário.
Mas Mick tinha que admitir, gostava mais desse Devon do que o outro que o estivera
preocupando tanto nos últimos dias. Sim, Devon ainda estava obcecado por aquela garota, Heather,
mas pelo menos ele estava falando e sorrindo.
Devon se posicionou e tirou uma foto do pinheiro mais alto perto da cachoeira.
— Acho que aqui seria um ótimo lugar pra gravar uma cena pra um dos filmes da Heather
— disse Devon.
— Aham. — Mick não fazia ideia do que dizer quando Devon falava de Heather. Apontar
que ela obviamente não gostava dele não parecia dar em nada. Então ele usava a técnica “SAFE”
que sua mãe lhe ensinara — “Sorria, Acene, e Finja Escutar."
Devon tirou mais algumas fotos, se sentou e então tirou um pacote de biscoitos com
manteiga de amendoim da mochila. Ele cutucou Mick.
— Tenho uma surpresa pra você.
— Você me trouxe um doce? — Mick já tinha comido seu pacote de cupcakes, mas ainda
estava com fome.
Devon riu.
— Não. Sem doce. Foi mal. Mas achei um esconderijo novo pra gente.
Mick se endireitou.
— Sério? Onde?
— Isso é parte da surpresa. Eu fiz o que o Kelsey sugeriu. Procurei por lugares abandonados
aqui perto e achei um. Vou te levar lá na segunda, depois da aula.
— Por que não hoje?
Devon abriu um sorriso maroto que fez Mick prender o fôlego por um segundo.
— É muito longe. A gente teria que ir pelo outro lado dos trilhos em vez de seguir pro
caminho de casa, como sempre fazemos.
— Hm... tá bom. — Por que Mick sentia que Devon estava escondendo alguma coisa? Ele
chegou a abrir a boca para perguntar, mas então desistiu. Talvez precisasse de uma abordagem mais
sutil. Seja lá o que Devon estivesse aprontando, Mick achou que seria mais inteligente só esperar e
ver em vez de confrontá-lo.

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Devon terminou de comer, limpou as migalhas do rosto, e se levantou. — Vamos. Quero
procurar mais lugares pra Heather.
Mick suspirou.
— Tá. — Guardando as embalagens vazias dentro da mochila, Mick disse: — Mas você não
acha que seria mais legal brincar de caça ao tesouro?
Eles brincavam disso desde crianças e Mick sempre adorou. Um deles escolhia um objeto
para encontrar e quem achasse a coisa mais próxima ganharia algo para comer do outro. Tinha sido
assim que eles conseguiram a maioria dos tesouros que perderam quando seu velho esconderijo foi
demolido. Um lacre de uma lata de refrigerante era um anel prateado. Um galho de árvore gigante
era um avião. Uma rocha gigante com manchas redondas era uma pizza de pepperoni.
Devon deu de ombros.
— Tá bom, podemos fazer isso também.
Mick sorriu e se levantou aos tropeços.
— Beleza, eu escolho o primeiro objeto. Vamos achar um ventilador.
Devon começou a andar.
— Claro. Por que não?
Levou quase uma hora para eles voltarem da cachoeira até uma parte mais familiar da
floresta. Levou esse tempo todo porque Mick ficou correndo por todo canto em busca de algo que
parecesse um ventilador. Quando encontraram uma folha de samambaia gigante, decidiram que
daria para o gasto até acharem algo melhor. Não parecia que iam achar algo melhor... até um corvo
defecar no ombro de Devon.
Mick viu acontecer. Eles estavam andando pelo chão cheio de pinhos da floresta e Devon
estava fazendo malabarismo com três pedras enquanto avançavam. O corvo estava sentado num
galho alto, bem em cima de suas cabeças. Ele grasnou assim que os dois se aproximaram de sua
árvore. Mick ergueu o olhar para ele. Assim que passavam por baixo dela, o corvo ergueu as penas
da cauda e uma grande mancha branca surgiu no ombro de Devon em meio a um ressonante splat.
Mick deu risada, mas prendeu a respiração por um segundo quando Devon imediatamente
pegou uma das pedras que carregava consigo e a atirou como um míssil em direção ao corvo. A
pedra acertou o corvo em cheio no estômago e ele tombou em direção ao chão quase que em slow
motion, caindo alguns metros na frente deles. Enquanto Mick tentava processar o que acabara de
acontecer, Devon apontou para o pássaro morto.
— Se você quiser, uma asa daria um ventilador melhor — disse.
Mick olhou para o pássaro. A floresta começou a girar à sua volta e ele recuou um passo, aos
tropeços, apoiando-se numa árvore.
— Você tá legal? — perguntou Devon.
A boca de Mick estava tão seca que ele não conseguia falar. Devon logo voltou a andar,
tirando a camisa enquanto avançava. Mick pegou uma garrafa de água em sua mochila e tomou um
grande gole.
— Não, não preciso de um ventilador melhor — disse Mick, quando conseguiu recuperar a
voz, que não parecia nada normal.
Devon deu de ombros.
— Pode me dar um pouco da sua água pra eu limpar a minha camisa?
Mick entregou a garrafa sem dizer nada. Ele não fazia ideia do que dizer. Ou talvez estivesse
com medo de dizer qualquer coisa.

Na manhã de segunda, Kelsey estava esperando por Mick e Devon junto a seus armários.
Mick ficou surpreso, mas feliz. Talvez eles pudessem sair com Kelsey, afinal.
— Oi, Kelsey — disse ele.
— E aí, Mick. E aí, Devon.

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Mick não sabia bem o que esperar de Devon. Só o que sabia era que Devon estava chateado
com Kelsey.
Mas Devon sorriu e deu um soquinho no ombro de Kelsey. Mick notou que Devon estava
com um curativo na mão, mas antes que pudesse perguntar a respeito, Devon disse a Kelsey:
— Maninho! Como foi o fim de semana?
Mick sentiu suas sobrancelhas se erguerem. Hã?
Kelsey também ergueu as sobrancelhas de leve. Ele fitou Devon por um segundo, os olhos
apertados. Então, abriu um sorriso e disse:
— Olha, gente, foi mal mesmo pelo que aconteceu na sexta. Aquilo foi constrangedor. Eu
não sabia bem o que fazer. E quando o George voltou pra buscar vocês, ele disse que não estavam
mais lá. E eu não tinha o número de vocês pra poder ligar.
— Relaxa, sem problema — disse Devon. — Foi mó zoadeira, mas não foi culpa sua.
Mó zoadeira? Mick nunca ouvira Devon dizer isso antes.
Kelsey suspirou aliviado. O sorriso tímido que ele esboçava desde que chegara agora se
abriu genuinamente.
— Que alívio! Achei que vocês fossem ficar bravos comigo. E teriam todo o direito de ficar.
Devon sacudiu a cabeça.
— Que nada, tá susse no mousse.
Susse no mousse? Mick sentia que estava ouvindo um clone defeituoso de Devon.
— Beleza — disse Kelsey, acenando para várias crianças que passaram correndo dando oi.
Então, ele deu uma risada e disse: — A gente não fez muito progresso no clubinho esse fim de
semana. O Quincy e a Gabriella me deixaram na mão. E... — Kelsey olhou em volta. — Sendo bem
sincero, a Heather e as outras amigas dela não foram de muita ajuda. — Ele piscou. — Mas ainda
não ligo de tê-los por perto, sabem?
Devon abriu um sorriso fechado pra Kelsey. E então disse:
— Sei.
A boca do Devon tinha se contorcido um pouco? Antes que Mick pudesse responder à
pergunta em sua cabeça, Devon se inclinou em direção a Kelsey.
— Olha, eu encontrei um lugar, uma construção abandonada que nem você tinha dito. A
gente podia usá-la como clubinho em vez da sua casa, ou então podíamos levar as coisas mais legais
que encontrarmos lá pro clubinho que você tá fazendo. Dá pra montar uns espaços supercriativos
com coisas velhas que se acha por aí.
Isso é melhor que um filme de ficção científica, Mick pensou consigo mesmo. Montar uns
espaços supercriativos? Mick abafou uma risadinha.
Kelsey sorriu.
— Sério? Você achou uma construção abandonada? Que legal. O meu colega nunca chegou
a me dar uma resposta. Você tá sugerindo que a gente faça uma exploração urbana?
— Exatamente — disse Devon, — Podemos nos encontrar depois da aula, nos fundos da
escola. Não é longe. Dá pra ir andando.
— Beleza. — Kelsey cumprimentou Devon com um soquinho no punho e foi para a
primeira aula.
Devon olhou pra Mick. Aparentemente vendo algo em seu olhar, ele perguntou:
— Que foi?
Mick balançou a cabeça.
— Nada não. — Ele ainda achava que era melhor não comentar sobre o comportamento
estranho de Devon.

Devon não ficaria surpreso se Kelsey não tivesse aparecido depois da aula. Imaginou que
Kelsey podia suspeitar de alguma coisa. Mas não. Ele aparentemente não suspeitou de nada porque

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já estava esperando nos fundos da escola com Mick quando Devon fechou a porta de metal atrás de
si. Bom. Até agora, sem problemas.
— Então, onde fica esse lugar? — perguntou Kelsey, apertando os olhos diante do sol
impiedosamente brilhante e seguindo os outros garotos.
— Fica meio que na floresta, quase um quilômetro ao leste da ferrovia — disse Devon,
enquanto os garotos iam se afastando da escola.
— Como é que a gente nunca ouviu falar desse lugar? — perguntou Mick. — A gente mora
aqui desde que nascemos — ele disse a Kelsey.
Devon deu de ombros.
— Sei lá.
Com Devon à frente, os garotos foram avançando cuidadosamente pela ferrovia, andando
por entre os trilhos e seguindo em meio às enormes fileiras de vagões de carga de metal pontilhando
as vias aqui e ali. Já no outro lado da estação, Devon os guiou pela floresta e eles seguiram por uma
trilha cheia de troncos apodrecidos e arbustos cheios de mirtilos. O ar estava úmido e tinha um
cheiro de lama que fazia Devon pensar em dias de chuva. Ele gostava de dias de chuva pelo mesmo
motivo que gostava de dias nublados.
Mick e Kelsey conversavam enquanto andavam, principalmente sobre programas de TV.
Mick estava falando de uma série de ficção científica que mostrava uma sociedade pós-apocalíptica
na qual as pessoas eram mortas pelos erros mais fúteis.
— Parece interessante — disse Kelsey. — Bem do meu tipo, coisa extrema.
— Como assim? — perguntou Mick.
Kelsey deu de ombros.
— Ah, é que eu gosto de séries assim, dramas políticos. Acho que vou cursar direito algum
dia pra ser um juiz de verdade no futuro.
Um juiz de verdade? Devon se perguntou o que aquilo queria dizer.
— Você não quer ser construtor igual o seu pai? — perguntou Devon. — Não. Eu gosto de
construir coisas, mas acho que sou mais apegado à justiça. Meu pai entende. Ele diz que só o que
temos que fazer é aquilo o que mais gostamos.
Verdade, pensou Devon.
Quase cem metros antes de chegarem ao destino, as árvores foram diminuindo e a luz do sol
começou a tocar suas peles. Devon sentiu a luz e o calor alcançarem seu rosto e, por um segundo,
seu pé cambaleou.
— Você tá bem? — perguntou Kelsey.
— Tô, só tropecei.
Tão rápido quanto apareceu, o sol se foi. Devon saiu da trilha e seguiu até uma parte mais
densa e escura da floresta. Os outros garotos o seguiram.
— A gente tá chegando? — perguntou Kelsey... e depois riu. — Minha irmã sempre fala
isso quando estamos no carro.
— A minha também — disse Mick.
Devon os ignorou. Estavam quase lá. Ele os levou até uma árvore velha e retorcida e, dando
a volta por ela, lá estava. Ele parou e esperou que Kelsey e Mick o alcançassem.
Quando o fizeram, ele os ouviu suspirarem em uníssono:
— Uau — disse Kelsey.
— Fantasmático — disse Mick.
Kelsey riu. No meio da floresta, quase desabando diante deles, estava um prédio rebaixado
com telhado baixo e janelas cobertas de tábuas, mal dando sinal de vida.
Ainda que intacto, o prédio estava torto e decaído, como se mal conseguisse se aguentar de
pé. Por conta de uma claraboia abobadada que, embora imunda, ainda estava inteira e se assomava
em meio ao teto do prédio, o mesmo parecia estar usando uma cartola gigante. Era difícil dizer de
que cor era o prédio em seus dias de glória — agora, estava verde e preto, tomado por mato, mofo e
musgo. Também estava sendo consumido pelos arbustos de amora. Um regimento de trepadeiras
agressivas e cheias de espinhos cobria o prédio por todos os cantos que os garotos podiam ver de

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onde estavam. Elas eram baixas, mal conseguindo alcançar as poucas janelas do prédio, mas eram
grossas, compactadas em uma barreira impossível de se atravessar sem um sacrifício de sangue.
— Você não espera que a gente passe por aqui né? — Mick perguntou a Devon.
Devon riu.
— Eu tenho cara de trouxa? — Ele riu ainda mais alto. — Calma. Não responde.
Suas risadas soavam agudas, como as de garotas. Mick estava olhando para Devon com
estranheza.
— Vamos — disse Devon, dando a volta no prédio.
— O que isso era? — perguntou Kelsey.
Devon apontou para a parede pela qual estavam passando. Havia uma placa velha e
desbotada pendurada precariamente sob o beiral desgastado pela ação do tempo. A placa estava tão
apagada que só era possível ver um F, um z e um P. Mas junto às letras, a imagem de algo redondo
resistira ao desgaste.
— Isso é uma pizza? — perguntou Mick.
— Acho que sim — respondeu Devon. — Acho que era uma pizzaria.
— Eu amo pizza! — Mick disse a Kelsey.
Kelsey sorriu.
— Eu também. Ei, Mick, pega o seu celular e vê se consegue encontrar alguma coisa sobre
esse lugar. Eu mesmo faria isso, mas esqueci meu celular em casa. Percebi só depois do lanche.
Acho que nunca fiz isso antes. Tô me sentindo pelado sem ele.
Mick riu e pegou o celular.
— Nem perde tempo — disse Devon. — Não tem sinal nos arredores desse prédio.
Mick levantou o celular e o girou em círculos.
— Bom, isso é medonhasso.
— Anda, vamos. — Devon sinalizou para que os garotos o seguissem até o lado oposto do
prédio. Quando seus tênis começaram a fazer sons de raspagem em vez dos baques ocos que faziam
na floresta, ele apontou para o chão. — Viram? Acho que aqui era o estacionamento.
— É, olha. — Kelsey apontou para a placa pregada no tronco de uma árvore no outro lado
do terreno. Provavelmente costumava ser branca, mas agora estava cinza e quando Devon forçava a
vista, conseguia identificar as letras. — “Penas pa cli”?
— “Apenas para clientes” — disse Kelsey.
— A gente devia estar aqui? — perguntou Mick.
Devon olhou para ele.
— Por que não? Parece pra você que mais alguém liga pra esse lugar? Além do mais,
ninguém ligava quando a gente ficava no posto de gasolina.
— Ele tem razão — disse Kelsey.
— Vem, por aqui — disse Devon. Embora aquele lado do prédio parecesse tão encoberto
pelos arbustos de amora quanto o outro, Devon sabia o que fazer. Ele subiu numa pilha de concreto
e se abaixou. — Façam o que eu fizer — ele disse aos outros.
Quase completamente agachado, Devon enfiou a cabeça no que parecia ser um arbusto
impenetrável, mas, quando se chegava perto, dava para ver que o arbusto estava crescendo em volta
de alguma coisa. Devon não fazia ideia do quê, mas tinha uma abertura. Ele se ajoelhou.
— Vocês vão ter que engatinhar — ele disse aos outros garotos.
Mick resmungou, mas Kelsey deu de ombros e disse:
— Essa é a vida de um explorador urbano.
Devon sorriu. Kelsey estava usando uma calça de joelhos rasgados. Devon tinha certeza que
era do tipo que já se comprava assim, do tipo que custava pelo menos cem dólares, mais do que sua
mãe jamais pagaria por um par de calças.
— Vai valer a pena, eu juro. Só vão com calma — encorajou Devon.
Ele foi em frente, engatinhando. Sabia que Mick e Kelsey o seguiriam. Eram curiosos
demais para não fazê-lo. Engatinhando por pouco mais de um metro através de um túnel estreito,
ele chegou a um espaço onde podia se levantar. Assim o fez, limpando os joelhos enquanto
esperava pelos outros.
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Ele ergueu o olhar e para ver à sua volta. Ainda não sabia muito bem que lugar era aquele.
Era uma espécie de sala circular, como uma entrada, talvez, para o restaurante. Ele achava que parte
da entrada havia desabado, o que por sua parte acabou formando a abertura em forma de túnel e
protegeu aquela área do clima e do ar úmido da floresta.
— Isso é do balacobaco — disse Mick, brotando atrás de Devon. Seu hálito cheirava a seu
refrigerante de uva favorito e seu cabelo cheirava a suor.
Kelsey se levantou e olhou em volta. Devon notou que um dos joelhos de Kelsey estava
sangrando.
— O que foi? — perguntou Mick.
— Nós costumávamos morar perto do oceano — disse Kelsey, — e tinha uma loja de
lembrancinhas que tinha uma cabeça de tubarão na entrada. Acho que esse lugar é tipo isso. Não é
um tubarão, claro, mas é a cabeça de um animal. Tá vendo? Tem até os olhos.
Devon olhou para onde Kelsey estava apontando. Ele não percebeu isso quando foi ali antes.
Em sua defesa, na primeira vez que fora ao local, estava muito escuro. Fora naquela sexta à noite.
Ele queria achar uma construção abandonada antes do “colega” de Kelsey da outra cidade. Então
saiu depois de jantar. Sua mãe tinha pegado no sono no sofá, como sempre. Ele foi até a floresta
para explorar. Não sabia bem por que resolveu fazer isso à noite. Talvez quisesse se perder. Não
estava nem aí. Só queria esquecer o que tinha acontecido naquela tarde.
Mas em vez de se perder, ele encontrou aquele lugar. E enquanto o explorava, ele teve uma
ideia. Ele cultivou essa ideia durante todo o sábado e no domingo de manhã, enquanto comia com
sua mãe. Quando ela pegou no sono, de novo, ele voltou e deu mais uma olhada no lugar, ao que
sua ideia evoluiu para um plano engenhosamente arquitetado.
Os “olhos” que Kelsey mencionara eram duas janelas sujas e redondas, posicionadas onde
estariam os olhos se o lugar de fato fosse uma cabeça. E o ponto onde estava a área desabada era
onde ficaria o focinho do animal.
— Acho que você tá certo — disse Mick. Ele olhou em volta e então apontou para a porta
coberta de tábuas. — Tá, o que a gente faz agora? — indagou ele, virando de volta para Devon.
À esquerda da porta, havia duas tábuas apoiadas na parede. Devon as pegou e tirou dali,
revelando uma janela lateral na porta. O vidro da janela estava quebrado.
— Foi você que fez isso? — perguntou Mick.
— Pode apostar. Vai me levar pra polícia?
— Ha, ha. — Mick franziu o cenho. — Você quer que eu passe por aí? Era verdade, a janela
era estreita, mas Devon passou sem problema, então imaginou que Mick também fosse conseguir se
apertasse a barriga e eles lhe dessem um empurrãozinho.
— Quero sim. Foi por isso eu trouxe isso. — Ele tirou um rolo de fita adesiva da mochila e,
enquanto Mick e Kelsey observavam, Devon passou a fita pela parte de dentro do batente da janela.
— Assim você não vai se cortar quando for passar — ele disse a Mick.
Kelsey olhou para Devon por alguns segundos e depois disse:
— Esperto.
— É, valeu — disse Mick.
Esse sou eu, pensou Devon, o Sr. Cara Legal.
Quando terminou de passar a fita, ele se virou de lado e passou pela abertura. Uma vez lá
dentro, ele disse:
— Mesmo com a claraboia suja, ainda passa luz do sol o suficiente pra enxergar por aqui.
Mick, por que não vem você primeiro? Se você ficar preso, eu te puxo e o Kelsey empurra.
— Beleza — Mick e Kelsey disseram em coro.
O ombro rechonchudo de Mick passou pela abertura. Ele estendeu uma mão, ao que Devon
a pegou e puxou.
— Ai! — resmungou Mick, atravessando abertura e se equilibrando aos tropeços do outro
lado. Kelsey também passou atrás de Mick.
— Você tá bem?
Mick esfregou a barriga.
— Tô sim.
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Os três olharam em volta.
— Que barato! — disse Mick.
Eles estavam no meio de uma grande sala quadrada cheia de imagens de personagens
animais engraçados em meio a diversas formas geométricas doidas e coloridas. Havia uma pilha de
cadeiras recostada numa das paredes, enquanto uma pilha de mesas enfileiradas cobria outra. Em
um dos lados da sala, um palco, as cortinas de veludo vermelhas abertas. E em cima do palco...
— Catapimbas! — Mick ficou inteiramente plantado no piso vermelho liso e empoeirado,
seu olhar grudado nas três figuras sobre o palco.
— O que é aquilo? Uma galinha? — perguntou Kelsey, olhando para a mesma direção.
— Acho que sim — disse Devon.
— Por que ela tem um cupcake? — perguntou Mick.
— Talvez ela seja uma galinha cozinheira — disse Kelsey, gargalhada logo em seguida.
Devon não conseguiu segurar. Ele riu.
— Boa, boa.
Mick riu também.
— Sim. — Seu estômago roncou. — Queria que fosse um cupcake de verdade.
— Vamos. — Kelsey seguiu em direção ao palco.
Bom. Ele estava entrando na onda. Devon sorriu.
Ele e Mick seguiram Kelsey até o palco e examinaram as figuras mais de perto. Elas
pareciam estar olhando de volta para eles, mas, é claro, isso não era possível.
Devon tinha que admitir que se sentia mais confortável estando ali agora do que no dia
anterior. Ontem, ele ficara assustado. Só tinha voltado hoje porque...
— São animatrônicos — disse Kelsey.
— É — disse Devon. — Foi o que eu pensei.
— Animatrônicos? Tipo robôs? — perguntou Mick.
— Mais ou menos — disse Kelsey. — Animatrônicos podem ser energizados de vários
jeitos diferentes. Às vezes, usam sistemas hidráulicos ou pneumáticos, às vezes eletricidade. Outras
vezes é por computador.
— Como você sabe disso tudo? — perguntou Devon, sem jeito.
— Meu pai trabalhou no projeto de um parque de diversão-resort uma vez. Eles tinham uns
pássaros animatrônicos lá.
— Por que uma galinha, um coelho e um urso? — perguntou Mick.
— Uma galinha, um coelho e um urso entram numa pizzaria — disse Kelsey e os três deram
risada. Kelsey era engraçado, Devon tinha que admitir. Era mesmo uma pena que ele tivesse...
Mick arquejou.
— Aquilo é um gancho?
À esquerda do palco, um relevo em forma de caverna encoberto por uma enorme cortina
preta se apresentava como a Baía Pirata. Devon não tinha olhado atrás daquela cortina. Tinha
alguma coisa naquele gancho...
— Vamos logo — disse ele. — Tem mais coisa pra ver.
Como uma fila de conga sem música guiada pela lanterna de Devon, os garotos fizeram um
tour pela pizzaria empoeirada. Quando Devon explorou a pizzaria pela primeira vez, sentiu como se
tivesse viajado no tempo. Embora o interior do prédio fosse úmido e tivesse mofo em alguns pontos
do teto e das paredes, não tinha a aparência destruída que se esperaria de um lugar abandonado. Era
quase como se o restaurante tivesse fechado e, desde então, ninguém mais tivesse entrado.
Eles acharam a cozinha, desprovida de quaisquer eletrodomésticos e outros equipamentos,
mas, estranhamente, havia vários garrafões de água destilada enfileirados no chão junto a uma das
paredes. Havia também um pequeno escritório com uma mesa velha e desgastada que abrigava um
gabinete intrigantemente trancado. Se Devon já não tivesse outros planos, tentaria abri-lo. Kelsey
sugeriu isso, mas Devon disse que podiam voltar para fazer isso depois. Ele levou os garotos até
uma sala com vários painéis de controle e telas de computador antigas, daqueles monitores de tubo
enormes, e depois visitaram banheiros nojentos com os pisos quebrados, as pias rachadas e canos
expostos. Enquanto estavam no banheiro, Devon teve certeza de que tinha ouvido alguma coisa
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resvalando por dentro das paredes. Ele não disse nada. Mas a julgar pelos rostos pálidos dos outros
garotos, sabia que eles também tinham ouvido. Ninguém chegou a dizer nada a respeito, mas os três
saíram correndo pela porta do banheiro e acabaram de volta no corredor estreito.
— A melhor parte é por aqui — disse Devon, sinalizando para que os outros o seguissem.
As batidas do coração de Devon começaram a ganhar velocidade. Ele quase podia ouvir sua
adrenalina acelerando, como um carro na largada de uma corrida. Ele escondeu um sorriso. Por que
tinha pensado nisso? Nem gostava de carros. Motor V8 de 6.2 litros, ele cantarolou em sua cabeça.
— Um depósito? — perguntou Mick. — Era isso que você queria que a gente visse?
Devon sorriu.
— É, vem logo.
Ele abriu a porta com um empurrão, iluminou a sala com sua lanterna e recuou um passo
para que os outros pudessem ver. Era como olhar dentro do armário de uma pessoa perturbada.
Animais sem cabeça pendurados em longas hastes que cobriam duas das paredes da sala.
Bom, tá, não eram animais sem cabeça de verdade, mas fantasias de animais sem cabeça. As roupas
estavam completamente sujas e empoeiradas. Algumas estavam escuras e mofadas. Todas pareciam
ásperas, esfarrapadas e maltrapilhas, com pelo faltando em alguns pontos. Na parede oposta, três
prateleiras abrigavam as cabeças dos animais — ursos, coelhos, pássaros e cachorros. Todas as
cabeças pareciam um pouco surradas, como se tivessem sido usadas como bolas de boliche ou coisa
do tipo, mas, em todas elas, os olhos estavam no lugar. Todas pareciam olhar diretamente para
frente, como se estivessem em formação, prontas para uma chamada.
— Horripilássimo — disse Mick.
Devon olhou para Kelsey. Os olhos de Kelsey estavam brilhando. Ele logo começou a mexer
nos armários que haviam junto às paredes de ambos os lados da porta.
— Olha só isso tudo! — disse. Ele apontou para os potes de pregos, parafusos, suportes,
cabos e o que pareciam articulações de metal. Ele se virou e abriu um grande sorriso para Devon. —
Você é um gênio, Devon. Acho que dá pra gente recolher algumas dessas fantasias e talvez montar
o nosso próprio animatrônico pro meu clubinho.
Devon notou o uso da palavra “meu”. Na semana anterior, Kelsey dissera “nosso”.
Um som que mais parecia água corrente preencheu seus ouvidos. Ele tinha certeza que era o
som do sangue correndo em suas veias de tanta ansiedade.
— Olha isso aqui. — Ele gesticulou para Kelsey o seguisse e então seguiu para os fundos da
sala, onde havia um pequeno closet no canto. Seus pés raspavam o chão em meio a um ruído áspero
que soava bizarramente ameaçador.
Devon encontrou o closet na primeira vez que fora ali, parcialmente escondido atrás das
fantasias penduradas junto à parede da sala. Ele vira potencial nele e tinha sido isso que lhe dera sua
ideia. Entretanto, foi sua segunda visita que fez tudo se encaixar, por assim dizer.
Kelsey olhou para Devon e então levou a mão à maçaneta de metal do closet. Recuando um
pouco para o lado, ele abriu a porta devagar, só alguns centímetros. Satisfeito por nada pular em
cima dele, ele abriu o resto. A luz da lanterna de Devon refletiu um par de grandes olhos redondos.
Mick se apertou atrás deles.
— O que é isso?
Kelsey tocou o braço do urso amarelo de tamanho adulto diante deles. Devon sabia o que ele
tinha descoberto. O braço era pesado. Aquilo não era uma fantasia qualquer como as que estavam
penduradas nas hastes. Esse traje...
— É um traje animatrônico — disse Kelsey. — Tem, hã, habilidades animatrônicas, acho,
mas pode ser usado como uma fantasia. Eu li sobre umas coisas bem legais que fazem com essas
roupas. Quando você entra nela, ela lê seus sinais vitais e responde ao seu pulso, à sua temperatura
e tal. Algumas podem até responder à comandos específicos, como deixar a pessoa que vestir falar
na voz do personagem. Mas tenho certeza que essa aqui não faz tudo isso. É muito velha. Como
será que funciona?
Ele tocou o braço de novo.
— Vamos tentar abrir. Acho que vai precisar de nós três juntos.
— Claro — disse Devon. — A gente consegue.
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Estava indo tudo ainda melhor do que ele tinha imaginado. Achou que teria que convencer
Kelsey a fazer aquilo, mas parecia que ele já estava disposto a tentar por conta própria.
Era como se já estivesse tudo predestinado.
Os três garotos grunhiram com o esforço, Mick espirrando vez ou outra quando poeira e
alguns tufos do pelo do urso se soltavam. Trabalhando juntos, eles conseguiram tirar o urso de
dentro do closet e arrastá-lo para o meio do depósito. Eles deitaram o urso de costas no chão.
Respirando fundo para tentar recuperar o fôlego, eles olharam para o estranho personagem, cujos
olhos cegos fitavam o teto sob a luz da lanterna e as sombras negras da sala.
— Vamos arrastá-lo até o salão principal pra podermos ver melhor. — sugeriu Devon.
— Vamos — disse Kelsey.
Mais alguns grunhidos e espirros depois, o traje de urso amarelo estava na área principal da
pizzaria. Quando eles o posicionaram no meio do chão, Devon sabia que era a hora.
— Mick, por que você não volta lá e procura as tampas daqueles potes de parafusos e tal?
Você pode empilhar eles e trazer pra cá. Aí a gente pode levar com a gente pro clubinho do Kelsey.
Mick olhou por cima do ombro para o corredor obscuro.
— Leva a minha lanterna — disse Devon.
— Tá bom — ele concordou.
Assim que Devon saiu da sala, Devon disse a Kelsey:
— Esse urso é a sua cara.
— Hein?
— Bom, ele não é maneiro igual a você, mas o pelo é quase da mesma cor do seu cabelo e
ele fica sorrindo que nem você costuma fazer. Se você conseguir fazer o traje funcionar, ele pode
ser a mascote do seu clubinho.
Kelsey sorriu.
— Não é uma má ideia. — Ele se inclinou e segurou a cabeça do urso com as duas mãos. —
Essa parte sai? — Ele puxou, ao que a cabeça do urso se soltou do traje. Ele olhou pelo topo do
tronco e deu uma cheirada. — Não cheira tão mal, não tá tão diferente do resto do prédio.
— Pois é. Também tinha notado isso. — Ele deu uma cotovelada de leve em Kelsey e riu.
— Tenta vestir.
Kelsey examinou a abertura no pescoço do traje e então deu de ombros. — Por que não?
Ele se sentou e começou a se sacudir para entrar no tronco. Uma vez lá dentro, disse:
— É bem confortável. — Ele riu. — Agora a cabeça.
Devon tinha acabado de encaixar a cabeça quando Mick voltou para a sala carregando uma
pilha de potes de plástico.
— Nada de tampas. Não sei como vamos conseguir levar essas coisas lá pra fora... — Ele
parou e olhou para o urso no chão. Então olhou em volta.
— Cadê o Kelsey?
— Tô aqui — disse Kelsey.
Os olhos de Mick se arregalaram.
— O que você...?
Kelsey se sentou e disse:
— Ainda não sei como levantar nessa coisa, mas olha, eu consigo dançar. — Ele começou a
balançar os braços numa série de movimentos de dança bem elaborados.
Quando ele jogou ambos os braços para os lados, um estalido metálico ensurdecedor ressoou
por todas as quatro paredes ao redor deles. O estalido foi seguido por um som agudo, como unhas
arranhando um quadro-negro. Tão abruptamente quanto começou, o som de arranhão terminou em
meio a um barulhento SLAP. Isso acionou uma sequência sons de estalo, como uma dezena de
armadilhas de urso fechado com tudo, uma atrás da outra.
Kelsey começou a gritar logo depois do primeiro estalo.
Uma vez, quando Devon ainda era pequeno, sua mãe o estava levando para a escola quando
acabou atropelando um gato na rua. O gato não morreu imediatamente. Em vez disso, fez um som
que era como todos os sons de sofrimento misturados num só — gritos, gemidos, urros de dor e

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outros vocais que Devon não sabia nem descrever. Essa assinatura sonora ficara gravada no cérebro
de Devon. Ele sempre achou que essa seria a pior coisa que ouviria em toda a sua vida.
Ele estava errado
Essa era a pior.
E o som não era a parte ruim. Claro, era ruim. Mas a parte ruim — a parte ruim de verdade
mesmo — foi como o traje começou a sacudir em meio a uma dança horripilante e espasmódica. Era
como se o urso dourado, completamente tomado pelo mofo e pelo bolor, estivesse convulsionando.
Mas não era o urso. Devon sabia que não era o urso.
Era Kelsey.
O que foi que eu fiz? Pensou Devon.
— O que tem de errado com ele? — gritou Mick.
Devon deu um pulo. Ficara tão hipnotizado com o sofrimento de Kelsey que esqueceu que
Mick estava ali.
Os berros de Kelsey pararam, como se alguém — ou alguma coisa — tivesse cortado suas
cordas vocais. E o traje parou de se mexer.
Foi quando Devon notou que a fantasia estava ficando vermelha. Um vermelho forte, escuro
e molhado.
— Isso é...? — Mick apontou. Ele caiu de joelhos. — Isso é sangue! Sim, era sangue.
Devon se sentou no chão e abraçou os joelhos. Em questão de segundos, o sangue encheu o
pelo emaranhado do urso e começou a escorrer pelo chão. Como o piso era de linóleo vermelho, o
sangue de Kelsey se camuflava no chão. Devon só conseguia notar que era o sangue de Kelsey
porque ele se mexia. Ele formou uma poça gosmenta que parecia afastar rastejando do traje agora
encharcado de sangue.
Devon olhou para o sangue se movendo. Era como se fosse algo vivo, um líquido vermelho
consciente que continuava avançando, em busca de...
Devon se afastou ainda mais. Ele grunhiu e abaixou a cabeça, cobrindo o rosto com as mãos.
Não era isso o que ele queria fazer. Ele planejara prender Kelsey no traje de urso e deixá-lo
lá por uma hora, só para lhe dar um susto, para dar o troco pelo que tinha acontecido. Se tivesse
sequer imaginado que isso podia...
Ele estava bravo, sim, com inveja. Desde a tarde de sexta, talvez até antes, ele tinha odiado
Kelsey mais que qualquer outra pessoa ou coisa. Tinha odiado Kelsey mais do que odiava seu pai
que fora embora.
Tinha odiado Kelsey porque ele tinha tudo o que Devon queria ter. Bem quando parecia que
ele podia ter uma chance com Heather... tá, talvez ele estivesse se iludindo com isso, mas ainda
assim, ele nem teve a chance de descobrir. Kelsey chegou e fez amizade com todo mundo em, tipo,
dois segundos. Devon tinha tentado a vida inteira fazer algum outro amigo além de Mick. Kelsey
não tinha o direito de ter tudo isso tão facilmente!
Mas não queria dizer que ele merecia isso.
— Dev?
Devon enxugou as lágrimas que nem percebera que haviam se formado em seus olhos.
— Dev!
Ele esfregou o rosto e olhou pra Mick. Ele estava sentado no chão no lado oposto do traje de
urso que continuava sangrando. Sim, claro. O traje de urso estava sangrando. Devon ainda estava
iludindo a si mesmo. Não era o traje de urso que estava sangrando. Era Kelsey.
Devon ouviu Mick soluçar e notou que ele estava chorando. Seu rosto sujo estava coberto de
lágrimas, dando a ele um estranho aspecto tribal, como se tivesse listras verticais de pintura de
guerra em suas bochechas. Coitado, pensou Devon. Mick não tinha maturidade o suficiente para
lidar com algo desse nível.
E Devon tinha? Ele deu uma risada baixo.
A atenção de Mick, que estava cravada no traje de urso e no sangue que continuava
escorrendo, se voltou para Devon.
— Por que você tá rindo? — Sua voz soou extremamente aguda. Devon balançou a cabeça.
— Não... não é nada. Eu... acho que eu... talvez seja o choque.
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Mick olhou para ele por alguns segundos, então desviou a atenção de volta para o traje. Ele
hesitou por um instante antes de dizer:
— Olha pra ele. Ainda tá se mexendo. Ele ainda tá vivo. Temos que tirar ele dali.
Devon olhou para o traje. Ele meio que estava pulsando, como se fosse um grande coração
ensanguentado em seus últimos batimentos.
Mick repetiu:
— Temos que tirar ele dali.
— Não dá — disse Devon.
— Do que você tá falando?
Mick, com a boca aberta, lágrimas ainda caindo e o nariz escorrendo, continuou olhando
para o traje que vez ou outra tremia por... quanto tempo? Devon não tinha certeza.
Ele não sentia mais que estava mesmo ali. Obviamente, ele estava. Mas não estava. Ele
estava no passado. Vendo seu pai pegando o carro no dia em que foi embora e nunca mais voltou.
Vendo sua mãe exausta e ainda assim fazendo mais uma refeição de macarrão com queijo em caixa.
Vendo todas as crianças da escola rindo e brincando umas com as outras. Vendo ele e Mick juntos
em seu esconderijo no posto abandonado. Vendo Heather e torcendo para que ela o notasse. Vendo
o momento em que ela disse seu nome. Ouvindo-a falar de justiça na aula de sociologia.
Ele podia vê-la, vestindo seu suéter vermelho, e podia ouvir sua voz cintilante: “Eu acho
que justiça é dar o troco”.
Dar o troco. Era tudo o que Devon queria. Justiça. Dar o troco.
Kelsey o havia magoado. Fizera Devon sentir que fazia parte de alguma coisa e então o
descartou. Isso doía, quase como ser esfaqueado.
Ele só queria que Kelsey sentisse algo parecido. Talvez quisesse que Kelsey saísse com uma
cicatriz, assim as cicatrizes que Devon carregava de cada rejeição que teve que suportar.
Mas ele não queria isso. Não isso.
“Acidentes acontecem”, a voz de Heather ecoava em sua cabeça. Devon se assustou quando
Mick sacudiu seu ombro. Como Mick tinha chegado ali? Devon franziu o cenho e sacudiu a cabeça.
— Por que você não tá me respondendo? Eu perguntei do que você tá falando. Por que não
dá pra tirar ele? — Mick estava perto, perto demais.
Devon podia ver o catarro secando embaixo do nariz de Mick.
— Quer dizer, a gente não pode porque... — disse Devon, gemendo. Mick o encarou por
alguns segundos e então lentamente se afastou de Devon.
— Você fez isso de propósito?
Devon não respondeu.
— Você fez?!
Devon tentou salivar o suficiente para poder engolir.
— Você matou ele? — gritou Mick.
— Não! — Devon se levantou do chão e começou a andar de um lado para o outro. De
repente, lágrimas começaram a escorrer de seus olhos e ele não conseguiu pará-las. — Não!
— Mas então o que aconteceu? — Mick abraçou os joelhos e começou a se balançar.
Devon olhou para o traje ensanguentado. Ele esfregou o rosto.
— Eu queria dar o troco nele.
— Matando ele?! — Mick se levantou, aos tropeços.
— Não!
— Então o quê?
— Quando eu vim aqui antes, eu achei o traje e tentei vestir o braço.
Suas palavras soavam distorcidas pelo choro, ele sabia. Dava para ver Mick concentrado,
tentando entendê-lo.
— O traje tem umas travas por dentro. Quando você as coloca no lugar, é quase impossível
de tirar sozinho. — Devon tocou o curativo nas costas de sua mão, onde parte da pele havia sido
arrancada quando tentara puxá-la de dentro do braço pesado do traje.
— Então você sabia que isso ia acontecer?

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— Não. Quer dizer, sim. Mas não. Tipo, eu só queria assustar ele! Eu pensei que quando ele
ficasse preso lá dentro, a gente podia deixar ele aqui até o sol começar a se pôr... só pra deixar ele
com medo! Eu queria que ele sentisse algo injusto, igual ao que ele fez com a gente! Igual a como
eu me senti quando ele e o vizinho dele foram embora com a... Eu queria que ele se machucasse.
Mas não que se machucasse de verdade... não desse jeito!
O traje dourado estremeceu e Kelsey gorgolejou.
— Ele ainda tá vivo — sussurrou Mick. Ele começou a ir em direção ao traje, mas Devon
segurou seu braço.
— Não toca!
Mick se soltou, encarou Devon por um segundo e então correu para a entrada do prédio.
— Temos que buscar ajuda!
Devon correu até ele e segurou seu braço outra vez.
— Não podemos fazer isso!
— O quê? Por quê?
— A gente vai ser preso.
— Você vai ser preso.
— Você quer que eu seja preso?
— Não! Claro que não.
— A gente não encara tudo sempre juntos?
— Bom, sim.
— Estamos juntos nessa também. — Devon se virou e olhou para Kelsey e para o sangue
derramado no chão. As poças vermelhas não estavam se espalhando tão rápido, mas ainda estavam
se mexendo, rastejando como um exército vermelho pelo piso. — A gente não vai conseguir ajudar
ele a tempo. Ele já perdeu muito sangue. Se tentarmos fazer alguma coisa, só vamos acabar nos
metendo em encrenca.
Mick encarou Devon com uma expressão ainda mais feia.
— Você sequer se arrepende do que aconteceu?
— Claro que sim! — gritou Devon.
Mick levantou as mãos.
— Tá bom. — Ele suspirou, a respiração entrecortada. — Tá bom.
Devon percebeu que estava tremendo. Ele sentiu tremores em ambas as pernas. Teve que se
concentrar para continuar de pé.
Ele era um assassino.
Um calafrio lhe cruzou o pescoço. Ele não sabia bem se o que estava sentindo era por conta
do que tinha feito ou pelo medo de se meter em encrenca por conta do que tinha feito.
Ele respirou fundo e ajeitou os ombros.
— Tá. Eis o que vamos fazer.
Mick esfregou o nariz e olhou para Devon como se ele pudesse fazer tudo melhorar.
Devon jamais conseguiria fazer tudo melhorar.
— Nós não podemos mudar o que aconteceu — disse ele.
— Nós? — protestou Mick. — Você faz parecer que eu participei disso de alguma forma.
Eu não tenho nada a ver com isso!
— Tá. Eu. Eu não posso. Então agora nós temos uma escolha. Ou contamos o que aconteceu
e eu vou preso ou não contamos e eu não vou preso. De qualquer forma, o Kelsey continua na
mesma. Eu queria não ter feito isso. Eu sinto muito. Muito, muito mesmo. Mas isso não vai ajudar o
Kelsey. Eu ir preso também não vai.
— Você tá dizendo que vamos só deixar ele aqui? — A voz de Mick soou sussurrada.
Devon respirou fundo e exalou o ar.
— Sim. É o que estou dizendo.
Por pelo menos um minuto, os garotos ficaram parados.
Do lado de fora, um corvo grasnou. Outro respondeu. Lá dentro, os únicos sons eram as
respirações ofegantes de Devon e Mick. Ambos estavam com os rostos inchados de tanto chorar. Os
sons irregulares e entrecortados de suas respirações eram horripilantes.
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Mas não mais que aquele som seco e farfalhante. O que era aquilo? Devon segurou Mick
pelo braço.
— Vamos. Onde você deixou a sua mochila?
Mick apontou. Estava encostada na parede perto da entrada, do lado da mochila de Devon.
Devon se virou e procurou sua lanterna. Estava no chão, perto da pilha de potes que Mick trouxera
do depósito. Dando uma volta bem longe do traje de urso e do sangue, Devon caminhou até o outro
lado da sala e pegou a lanterna.
— Você deixou mais alguma coisa? — Ele tentou ignorar o fato de que o farfalhar estava
vindo do traje de urso.
Mick, que estava com os olhos vidrados, piscou e olhou em volta.
— Acho que não.
Devon lutava para que suas pernas funcionassem direito. Ainda sentia que estava tremendo
por inteiro e ainda não conseguia respirar direito. Mas ele tinha que tirá-los dali. Guardando a
lanterna na mochila, ele pegou Mick pelo braço.
— Vem.
Devon passou pela janela lateral e puxou Mick para fora. Mick grunhiu, mas não reclamou.
No entanto, quando eles saíram em meio ao sol do fim de tarde, Mick disse:
— E a mochila do Kelsey?
Devon olhou para prédio atrás de si. Ele devia voltar para pegá-la? E fazer o que com ela?
Não. Ninguém iria lá. E se fossem, encontrariam Kelsey. Não encontrariam? Então de que
importava se a mochila também estivesse lá?
Devon olhou para Mick, que olhava para a floresta como se tentasse entender onde estavam.
Devon o pegou pelo braço.
— Vamos embora.

Devon teve medo de dormir naquela noite. Achou que teria pesadelos. Mas não teve. Estava
tão cansado ao fim do dia que o sono foi como um vácuo negro. E o vácuo negro era seu amigo. Era
como um manto de um vazio completo que varreu todos os eventos que aconteceram no dia, mas
não só isso — o efeito pareceu permanecer na manhã seguinte. Ele agia meio que como uma das
cortinas que sua mãe havia pendurado na cozinha. Ainda dava para ver por elas, mas os detalhes
ficavam indefinidos.
Na manhã de terça, Devon sabia o que tinha feito no dia anterior. Ele se lembrava de tudo,
mas os detalhes eram tão turvos que parecia irreal, como se ele tivesse assistido a um filme de terror
em vez de ter vivido.
Antes de se separarem para voltarem para casa na noite anterior, Devon disse Mick que
estavam “encaravam tudo juntos”. Mick tinha repetido as palavras num tom baixo, como um robô
cuja energia estava acabando. Isso deixara Devon preocupado antes de ir para cama na noite
anterior. Naquela manhã, ele não estava preocupado. Mick ficaria quieto.
E Mick estava, de fato, quieto. Quieto demais.
Uma das coisas com a qual Devon tinha se acostumado nos últimos dez anos era que os dias
de aula começavam com Mick conversando. Hoje, no entanto, Mick não estava conversando.
Os garotos agora estavam encostados no mesmo muro de pedra onde costumavam lanchar e
Mick não tinha dito nada além de “oi, Dev” desde que se encontraram para irem para a escola.
Devon ainda estava em fase de negação, mas ela já estava passando. Quando a Sra. Patterson
notou a ausência de Kelsey na sala, a barreira transparente entre Devon e o que ele havia feito
pareceu rachar um pouco. Os detalhes estavam voltando.
Mick abriu o pacote do lanche sem todo aquele seu entusiasmo de sempre. Devon tentou
animar o amigo:
— O que você trouxe hoje?
A mãe de Mick sempre colocava ao menos uma “guloseima” no lanche de Mick.
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— Hã? — Mick fungou. — Ah, não sei.
Devon suspirou.
Mick abaixou o pacote e se inclinou em direção Devon. Ele sussurrou: — Eu não consigo
parar de pensar nele.
— Shh — sibilou Devon. — Aqui não.
Os olhos de Mick marejaram e seu rosto ficou vermelho.
Devon olhou em volta e então tocou na mão de Mick.
— Tá tudo bem. A gente fala disso mais tarde, tá? Vamos pro nosso esconderijo.
Ele esperava que as palavras “nosso esconderijo” acalmassem Mick. Ele gostava quando
Devon chamava o cantinho temporário deles, feito a mão e coberto por um lençol de “nosso
esconderijo”.
Mick enxugou os olhos.
— Tá. — Mas ele falou tão baixo que Devon mal conseguiu ouvi-lo.

Sentado de pernas cruzadas no chão frio, mas seco da floresta, Mick brincava com uma pilha
de gravetos finos. Devon olhava para ele, esperando o amigo falar. Ele esperou por alguns minutos.
Finalmente, Mick disse:
— E se ele ainda estiver vivo? — Ele ergueu o olhar dos gravetos, mas então olhou para eles
novamente. — É nisso que eu não consigo parar de pensar. E se ele ainda estiver vivo?
Devon não respondeu. Ele também estava pensando nisso, mas tentava não pensar.
— Eu quase passei mal quando chamaram o nome dele em sala — disse Mick.
Devon entendia muito bem o que ele queria dizer, mas não comentou nada a respeito. Em
vez disso, ele disse:
— Não acho que ele ainda esteja vivo.
Mick ergueu a cabeça e piscou para Devon.
— Mas você não tem certeza.
Devon balançou a cabeça. Quase podia ouvir o som da barreira invisível que o protegia do
dia anterior se rachando um pouco mais. Ele fechou os olhos com força... como se isso fosse ajudar.
— Não, eu não tenho certeza.

Quarta. Quinta. Sexta.


Na quarta, pânico, medo e mistério agitaram a escola como ondas de choque irradiando de
uma zona de impacto. Era só sobre o que todos estavam falando. Onde estava o Kelsey? A polícia
tinha sido acionada.
Mick ficou em casa de atestado por três dias. Quando Devon foi visitá-lo, Mick jurou que
não havia dito nada a ninguém. Mas Mick não conseguia segurar a comida no estômago. Sua mãe
achava que ele estava com diarreia.
Devon estava lidando com aquilo tudo melhor que Mick. Seus anos de experiência vivendo
fora dos círculos sociais da escola lhe deram a habilidade de parecer neutro, independentemente de
como se sentia por dentro. Ele podia seguir com sua vida quase como se fosse invisível. Ele tinha
certeza de que parecia normal... mesmo que estivesse se sentindo tudo menos isso. Todos os
músculos de seu corpo pareciam rígidos. Se mexer doía. Mas ele também não podia ficar parado.
No fim da semana, Devon já tinha quase roído as unhas por inteiro.
Na tarde de sexta, o Sr. Wright anunciou para a escola que a polícia chegara à conclusão de
que Kelsey havia fugido. Aparentemente, ninguém tinha visto Kelsey saindo da escola com Devon
e Mick e, aparentemente, Kelsey não tinha contado para ninguém aonde ia. Nenhuma dessas coisas
surpreendeu Devon. Até onde sabia, só ele e Mick saíam da escola daquele jeito — eles eram os
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únicos que cortavam caminho pela ferrovia. E, é claro, Kelsey não contaria a ninguém que estiva
indo a algum lugar com Mick e Devon. Você só precisava estar na escola por alguns dias para ver
que era um suicídio social andar com Mick e Devon. Kelsey era esperto o suficiente para perceber
isso. Devon continuava surpreso por Kelsey sequer ter se desculpado com eles naquela segunda. Ele
achou que seria bem mais difícil de atrair Kelsey para...
Acidentes acontecem.

Devon visitou Mick no fim da tarde de sexta. Mick estava tomando uma tigela de sopa
quando Devon chegou.
— Ele não pode ficar sem comer — disse a mãe de Mick, abraçando Devon na frente da
porta do quarto de Mick. — Eu duvido que seja algo contagioso ou coisa do tipo. Pode entrar.
— Obrigado, Sra. Callahan. — Devon sorriu para a mulher ruiva, rechonchuda e cheia de
sardas. Ele sentia como se houvesse besouros subindo por seus braços. Era o abraço dela. Devon
sentia o mesmo toda vez que sua mãe o abraçara ao longo da semana. Ele não merecia abraços.
— Quer um pouco de sopa, querido? — perguntou a Sra. Callahan. — Tem bastante.
Devon balançou a cabeça.
— Nah. Quer dizer, não, obrigado.
Sra. Callahan o espremeu embaixo do queixo.
— Vocês estão crescendo tão rápido! — disse ela, soltando-o.
Devon se jogou no pufe vermelho do quarto de Mick e Debby.
— Oi — disse. Então olhou para a cortina amarela e azul com bolinhas que dividia o quarto.
Mick, enfiado embaixo de uma coberta vermelha de super-herói em sua cama com os travesseiros
combinando, limpou a boca.
— Oi. — Ele parecia que ia dizer mais alguma coisa, mas então voltou a tomar sua sopa na
grande tigela laranja.
Devon deu uma olhada na metade do quartinho minúsculo.
Diferente do quarto de Devon, que não tinha nada além de uns pôsteres de paisagens da
natureza e uma coleção de pedras, o quarto de Mick era cheio de brinquedos. Não parecia o quarto
de alguém de quinze anos — parecia um quarto de criança. A parte de Mick do quarto não tinha
muita mobilha — só uma cama, uma cômoda e algumas estantes com uma mesa embutida. As
prateleiras tinham livros, mas também estavam lotadas de bonecos de super-heróis e ficção
científica, além de pilhas de jogos de tabuleiro.
Devon olhou para a cortina de novo. Mick devia ter notado.
— A Debby tá na casa de uma amiga.
Devon assentiu.
Mick soltou sua colher. Ela bateu na tigela em meio a um tinido agudo. Ele limpou a boca e
então disse com o guardanapo ainda no rosto:
— E se ele ainda estiver vivo?
Devon se virou para ter certeza de que a porta ainda estava fechada.
— Ela tá na cozinha — disse Mick. — E o meu pai não tá em casa. — Ele afastou a bandeja.
— Eu não contei pra ninguém e não vou contar. Mas não consigo parar de pensar nele. E se ele
estiver vivo?
— Já fazem seis dias.
— Sim, mas...
— Ele não está vivo.
— Mas poderia estar.
— Como? Ele não conseguia se mexer. E ele não tinha água.
— Quanto tempo as pessoas aguentam ficar sem água? — perguntou Mick. Antes que
Devon pudesse tentar responder à pergunta, Mick disse: — Espera! Tinha água. Na cozinha.
Devon ficou tenso. Mick tinha razão.
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— E se o Kelsey conseguiu chegar lá? — perguntou Mick.
— Como? Aquele traje era muito pesado e ele perdeu muito sangue. — Eufemismo do ano.
Mick torceu a boca e pensou a respeito.
— Verdade, mas e se o traje ajudou ele? Ele disse que alguns desses trajes faziam isso. E se
ajudou ele a chegar na cozinha?
Devon achava que aquilo tudo soava fantasioso demais, mas que parte do que aconteceu não
era fantasioso?
— Se isso tiver acontecido, ele ainda pode estar vivo e a gente não pode deixar ele lá
daquele jeito! — Mick se inclinou para frente. — Eu vou ficar quieto. Eu juro. Mas primeiro, temos
que voltar lá e ter certeza que ele está, bom, você sabe... ou não. Se ele estiver vivo, precisamos
ajudar ele. Precisamos. Só isso.
Mick não ia mesmo desistir disso.
— Tá bom — disse Devon. — Mas nós não vamos. Eu vou.
— Mas...
— Não tem como a sua mãe te deixar ir pra floresta. Ela acha que você tá doente. E se você
estiver certo, a gente não pode esperar mais. Eu vou.
— E se ele estiver vivo? Como você vai levar ele pra um hospital?
— Eu ligo pra alguém depois de dar uma olhada nele. — Lembrando que o prédio não tinha
sinal de celular, ele disse: — Quer dizer, eu levo uns curativos e tal pra poder... como se diz?
Estabilizar. Pra poder estabilizar ele. O que eu posso fazer é ficar lá e cuidar dele até ele melhorar.
Posso levar comida e coisa do tipo. Quando ele ficar melhor, eu saio e arranjo sinal para pedir
ajuda. Isso também vai me dar um tempo, pra convencer ele a não contar nada pra ninguém.
Mick esfregou o nariz e pensou a respeito. Por fim, ele disse:
— É uma boa ideia.
Devon olhou para o amigo inocente. Mick não sabia de nada.
Devon levantou do pufe com alguma dificuldade e foi até a cama de Mick. Ele colocou uma
mão em seu ombro.
— Você vai ter que me fazer uma promessa.
— O quê?
— Eu não sei quanto tempo vai levar até eu conseguir tirar o Kelsey daquele traje e ajudar
ele a melhorar. Você vai ter que me dar cobertura.
Mick assentiu.
— Como?
— Eu vou dizer pra minha mãe que vou ficar alguns dias aqui porque você precisa de
companhia já que a Debby não tá aqui. Ela vai acreditar.
— Tá bom.
— Se eu não voltar até segunda, você precisa dizer pros professores que eu fiquei doente.
Entendeu?
— Claro. Posso fazer isso.
— E pelo tempo que for necessário, você tem que continuar dizendo que eu tô doente. Tem
certeza que consegue?
Mick assentiu.
— Aconteça o que acontecer, você não pode contar pra ninguém onde eu estou.
— Tá, juramento de “encarar-tudo-juntos” se você quiser.
Devon deu de ombros.
— Claro. — Ele ergueu o dedo indicador e escutou o juramento de “encarar-tudo-juntos” de
Mick, dizendo que ia dar cobertura para Devon pelo tempo que ele precisasse. — Você é um bom
amigo — disse Devon.
Mick sorriu.

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Quando chegou em casa depois de visitar Mick, Devon disse à sua mãe que voltaria lá.
— Ah, isso é legal da sua parte, filho — disse. Ela parecia aliviada. Devon percebeu que ela
estava pensando em dormir mais cedo.
Devon foi até seu quarto. Ele olhou em volta. Ainda não tinha certeza do que faria quando
voltasse do que estava indo fazer na pizzaria, mas se fosse voltar lá, precisaria de equipamentos.
Ele se sentou na beira da cama. Ela afundou sob seu peso e ele ouviu uma das molas ranger.
E se ele não voltasse e simplesmente dissesse a Mick que voltou e encontrou Kelsey morto?
Não, ele não conseguiria. Mesmo que tivesse dormido bem na noite de segunda, tivera
pesadelos em todas as outras noites desde então. Em todos os pesadelos, Kelsey era um zumbi,
perseguindo Devon, não importava aonde ele fosse.
Não. Ele precisava voltar, para ter certeza.
Ele pegou sua mochila. Tirou os livros e o celular de dentro. Ele olhou para o celular e
suspirou. Ótimo. Estava descarregado. Enfim. Ele o colocou no carregador. Não daria para usá-lo
perto do prédio de toda forma. Ele olhou em volta de novo. Seu olhar pousou sobre um martelo
caído no chão dentro do armário aberto. Ele o pegara na caixa de ferramentas de sua mãe para
consertar uma prateleira algumas semanas antes, mas ele nunca chegou a guarda-lo. Ele serviria
para abrir o traje... caso fosse necessário fazê-lo.

O sol estava começando a afundar no horizonte quando Devon chegou ao prédio engolido
pelos arbustos de mirtilos. Antes de se enfiar na abertura desabada com forma de cabeça de animal,
ele pegou sua lanterna e o martelo.
Como vinha fazendo desde que entrara na floresta, ele deu o melhor de si para ignorar o
farfalhar, os rangidos e os estalos que ouvira na mata. São só os animaizinhos da floresta, continuou
dizendo a si mesmo enquanto comia nervosamente sua barra de chocolate que serviria de jantar.
O que o estaria esperando dentro do prédio?
Respirando fundo, Devon engatinhou pela abertura exterior do prédio e então hesitou por
alguns segundos antes de entrar pela janela lateral da porta. Uma vez lá dentro, no entanto, ele
congelou, apontando sua lanterna para todos os lados em meio a uma série de espasmos bruscos.
Ele meio que esperava que Kelsey, no traje de urso coberto de sangue, pulasse diante dele e
o atacasse. Estava pronto para fugir de volta pela janela.
Mas nada partiu para cima dele. Ele estava sozinho. Bom, exceto pelo corpo de Kelsey no
traje de urso e pelos animatrônicos no palco.
Devon deu um passo curto e então parou. Tentou ouvir alguma coisa. O prédio estava
completamente silencioso. Era sinistro. Devon sentia o ímpeto de sair correndo, mesmo que nada
estivesse se mexendo, que nada o estivesse perseguindo.
Ele reprimiu seus medos e avançou.
Passando pelo traje de urso ensanguentado no meio do chão, Devon fez um tour pelo prédio
inteiro. Entrou em cada sala e apontou a lanterna para cada canto e recanto. Ele já tinha assistido
TV o suficiente para saber que precisava “varrer o perímetro” antes de baixar a guarda.
Estava tudo exatamente como eles haviam deixado quando estiveram lá na segunda... exceto
pelo cheiro. Devon sentiu o odor metálico do sangue de Kelsey assim que entrou no prédio.
Também havia outro cheiro, camuflado junto ao cheiro do sangue. Era um cheiro ligeiramente doce
e nauseante, enfermiço. Devon tinha quase certeza de que era o cheiro da decomposição. Mas não
tinha certeza.
Certo. Ele suportaria tanto quanto conseguisse.
Com passos lentos e desordenados, Devon se aproximou do traje de urso. Ele parou quando
chegou à beira da poça de sangue. Estava fácil de enxergar. O sangue tinha escurecido depois de
seco. Agora era mais escuro que o piso e os contornos se destacavam nitidamente sob o brilho da
lanterna de Devon. Batendo os dentes, Devon se inclinou e tocou a borda do sangue. Ele puxou a
mão de volta. Ainda estava um pouco pegajoso.
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Certo. Estava tudo bem. Ele estava preparado para aquilo. Embora não soubesse exatamente
quanto tempo levava para sangue secar por completo, imaginava que a atmosfera úmida do lugar
desacelerava o processo.
Devon pegou sua mochila e tirou a lona de plástico que havia dobrado e guardado lá dentro.
Em vez de levar a comida e os curativos que prometera à Mick, ele trouxe a lona. Ele sabia que
Kelsey não estaria vivo e não queria ter que sentar no sangue para checar o...
Devon se obrigou a parar de pensar. Ele deixou a mochila encostada na parede e estendeu a
lona sobre o sangue perto da cabeça do traje. Ele teve que respirar pela boca porque, ali, o cheiro de
sangue e decomposição eram mais fortes. Kelsey tinha que estar morto.
Mas Devon não conseguiria dormir se não se certificasse. Ele apontou a lanterna para a
cabeça do urso. Um segundo depois, seus músculos enrijeceram porque Devon esperava ver os
olhos de Kelsey olhando para ele atrás das órbitas da cabeça do urso. Mas...
Nada.
As órbitas estavam vazias, escuras.
Devon se inclinou mais perto, apontando a luz para os buracos. Por que ele não conseguia
ver o rosto de Kelsey?
Deu uma olhada por cima do ombro para ter certeza de que ainda estava mesmo sozinho. Os
personagens no palco tinham se mexido? Ele prendeu a respiração e apontou a lanterna para eles.
Franziu o cenho. Não conseguia se lembrar de como estavam posicionados antes. Ele os observou
por mais vários outros instantes antes de desviar a lanterna de volta para sua tarefa. Ele aproximou o
rosto do rosto do urso. Ainda não conseguia ver nada.
Teria que tirar a cabeça. O que significava que precisaria tocar no pelo ensanguentado. Que
bom que também tinha se preparado para isso.
Devon enfiou a mão no bolso da calça e pegou um par das luvas de limpeza de sua mãe. Ele
as colocou. Apoiando a lanterna no peito do urso para apontá-la para o pescoço e hesitando por um
segundo para ter certeza de que o peito não estava se mexendo, Devon começou a apalpar em busca
do mecanismo de trava que segurava a cabeça no lugar. Levou apenas alguns segundos para
encontrar. Mas não estava soltando. Ele empurrou. Ele puxou. Ele apertou. E finalmente bateu nele
com o martelo que trouxera consigo. Mas a cabeça não saiu do tronco.
Muito bem. Devon inseriu a parte traseira do martelo na boca do urso. Usando a outra mão
como alavanca, ele abriu a boca.
Ele prendeu a respiração frente ao enorme chiado que a boca fez quando se abriu. Era como
dentes rangendo. O que não fazia sentido. Estava abrindo, não fechando.
Voltando a soltar o fôlego, Devon iluminou a abertura com a lanterna. Ele inclinou a cabeça
e olhou o mais fundo que pôde dentro dela. Não havia nada dentro. Sério?
Devon apontou a lanterna um pouco mais para dentro da cabeça. Com certeza vazia. Será
que o traje de urso tinha cortado a cabeça de Kelsey? Claro, e fez o que com ela? Comeu?
Devon sentiu calafrios lhe subindo os braços porque se lembrou de sua história do pula-pula.
Se um pula-pula podia comer uma criança, um traje de urso podia comer um adolescente. Certo?
— Se controla — murmurou.
Em algum lugar do prédio, algo estalou de leve. Devon virou a cabeça em volta e apontou
sua lanterna por toda a sala. Tinha soado como um chiado, como uma exalada rouca. Tinha vindo
de trás dele?
Ou da frente?
Ele virou de volta depressa para inspecionar o traje de urso de novo. O pelo ensanguentado
brilhava sob a luz, mas não estava se mexendo.
— Vai logo com isso — Devon comandou a si mesmo.
Ele se inclinou e apontou a lanterna para a boca do urso de novo. Dessa vez, se concentrou
em tentar ver dentro do tronco. No começo, não viu nada, mas então pensou ter visto alguma coisa
mais abaixo. Kelsey tinha de alguma forma afundado no traje? Aquilo que Devon estava vendo era
o cabelo dele? Ele apontou o feixe de luz de um lado para o outro, mas não conseguiu ver melhor.
Teria que tocar.

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Feliz por estar usando luvas, Devon endireitou os ombros e respirou fundo. Em seguida, ele
deslizou o braço pela boca do urso, para dentro do traje, até que só a parte superior de seu braço
estivesse para fora. Ele tateou tudo o que havia em volta e, mesmo assim, ainda não sentiu nada.
Mas ouviu algo. Alguém — ou alguma coisa — chamou seu nome:
— Devon!
Devon estremeceu e começou a puxar o braço para fora do traje. Mas a boca rapidamente se
fechou em seu braço e travou em meio a um clank e um crack simultâneos. O crack foi do osso do
braço de Devon.
Devon gritou em meio à dor abrasadora que disparou de seu bíceps e seguiu até a ponta dos
dedos. Lágrimas brotaram de seus olhos. Ele gemeu de agonia e medo. Também tentou puxar o
braço para fora do traje de urso. Péssima ideia. Ele urrou de dor e ficou bem parado. O suor se
juntou às lágrimas que escorriam por seu rosto. Mexer o braço era pura tortura. Parecia que o urso
estava tentando arrancar o braço de seu corpo.
Uma sensação nauseante lhe subiu pelo estômago e o sufocou. Incapaz de conter a ânsia, ele
virou a cabeça e vomitou sobre o próprio colo. O cheiro ácido e o líquido marrom pútrido o fizeram
regurgitar novamente em meio a outra jorrada de vômito.
Agora de fato chorando, Devon berrou por ajuda, mesmo sabendo que a ajuda não viria:
— Socooooorrooooo! — O som que ele fez foi ainda pior que o som que Kelsey fez quando
o traje o empalou. Foi definitivamente pior que o som do gato morrendo. Era o som da angústia e
do desespero. Era o som da impotência.
Escorreu saliva de sua boca à medida em que seu grito se dissolvia até se tornar um mero
soluço. Ignorando o tormento da dor quente como lava em seu braço direito, Devon usou a mão
esquerda para bater na boca do urso, sem sucesso. Ele continuou batendo no braço com o martelo e
gritava toda vez que o fazia. Ainda assim, ele continuou tentando abrir a boca.
Quando finalmente perdeu a força para segurar o martelo e ele caiu no tronco do urso e
bateu no chão ensanguentado em meio a um baque, Devon começou a tentar arrastar o traje de urso
pelo chão. Estava fora de si, não pensava de forma lógica. Sabia que não conseguia carregar o traje.
Desmoronando em seu próprio odor nojento, Devon se encolheu de lado, chorando a cada
nova onda de dor que penetrava seu braço. Tentou ignorar a leve sensação de calor úmido que lhe
escorria pelo bíceps.
Se acalma, disse a si mesmo. Mick sabia onde ele estava. Mick viria buscá-lo.
Devon gemeu.
Não, ele não viria. Mick faria o que Devon disse para ele fazer. Quanto tempo levaria para
ele sangrar até a morte? Imaginava que não muito, se estivesse sangrando demais. Mas não parecia
estar sangrando tanto assim. O calor que escorria por seu braço parou junto ao cotovelo e não estava
mais se mexendo. Ele não ia sangrar até a morte.
Então quanto tempo levaria para morrer por falta de água? Era isso que ia acontecer. Ele não
levara água porque não planejava ajudar Kelsey. Então agora não podia se ajudar.
Dentro do traje, ele flexionou os dedos, gemendo quando o movimento enviou outra rajada
de dor por seu braço. Então ele congelou, prendeu a respiração e cerrou os dedos num punho.
Ele tinha sentido algo se movendo dentro do traje?
— Não, não... — Outro toque leve de algo se movendo roçou entre os nós de seus dedos. —
Insetos — sussurrou Devon. Já tinha assistido TV suficiente para saber sobre que insetos gostavam
de cadáveres.
Eram insetos, certo? E não... não. Não poderia ser... o Kelsey?
Devon debateu o corpo inteiro, contorcendo-se violentamente em um pânico enlouquecido.
Ele sacudiu todo o seu corpo, gritando com a dor que o movimento causara em seu braço. O vômito
se espalhou pela lona de plástico estendida à sua volta. Ele não parou. Ele lutou para se libertar com
toda a força que tinha.
Mas não foi o suficiente.
Na verdade, só estava piorando as coisas.

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Depois de um de seus movimentos bruscos para tentar se soltar, Devon sentiu seu braço
afrouxar por apenas um instante, mas, no segundo em que isso aconteceu, ele não começou a sair.
Foi mais para dentro.
Apavorado, Devon olhou para o traje e notou que a boca havia aberto um pouco mais. O
traje agora estava preso em volta de seu ombro, não mais em seu bíceps.
Agora ele sabia. Ele ia morrer ali. Não conseguia soltar o braço e não conseguiria carregar o
traje. E Mick se certificaria de que ninguém viesse atrás dele. Mick discordara de Devon várias
vezes ao longo dos anos, mas nunca ficara contra Devon. Nem uma única vez.
Devon se lembrou de um filme que tinha visto, onde um sujeito cortava braço para se
libertar quando ficara com ele preso embaixo de uma pedra. Ele engasgou e vomitou. Não era uma
lembrança boa. E também não ajudou muito. Mesmo que tivesse uma faca ou uma serra, não achava
que conseguiria fazer isso.
Devon se revirou em mais uma tentativa de se libertar. A boca abriu ainda mais e Devon
teve um súbito vislumbre de dentro do traje.
Ele arfou e, por um momento, o choque bloqueou sua dor.
Lá embaixo, mais abaixo do que onde estava seu braço, Devon viu um corpo, um cadáver,
assim como pensou que encontraria quando voltasse ali para verificar. Mas não era exatamente o
que achava que encontraria. O corpo que achou que encontraria tinha cabelos loiros. Este tinha
cabelos pretos cacheados.
O corpo no traje não era o de Kelsey.
Devon teve apenas um segundo para tentar entender o que estava acontecendo antes de seu
ombro ser sugado para dentro do traje.
Devon gritou, mas ninguém o ouviu.

Na manhã de segunda, Mick ficou decepcionado quando Devon não se encontrou com ele
para ir andando até a escola. Mick esperava encontrar Devon esperando por ele nos armários, para
dizer que Kelsey ficaria bem, ou até para dizer que Kelsey estava morto. Não seria tão bom quanto
se ele estivesse vivo, mas seria melhor que deixar as coisas do jeito que deixaram na semana
anterior. Não saber se Kelsey estava morto era como ser comido vivo, como ser digerido por aquele
pula-pula sinistro da história que Devon lera na aula de português uma ou duas semanas antes.
Aquilo tinha sido só duas semanas antes?
Falando na aula de português, Mick precisava ler um poema em voz alta hoje. Lembrar disso
o fez ficar com um frio na barriga. Fez seu estômago revirar tanto que ele nem se preocupou tanto
com o fato de Devon não ter ido para a escola. Devon tinha dito que podia demorar um pouco para
que Kelsey melhorasse o suficiente para conseguir se mexer. Algo nessa história parecia...
Alguém esbarrou em Mick e ele acabou derrubando a mochila. Ele se abaixou para pegá-la e
então foi para a sala.
Na aula de português, Mick estava lendo seu poema de novo e de novo enquanto a Sra.
Patterson fazia a chamada. Estava tão concentrado que quase pulou quando ela chamou seu nome:
— Mick!
— Presente!
— Sim, eu sei que você está presente. Eu estava perguntando se você sabe onde está o nosso
aprendiz de escritor de terror.
— Hã?
— O Devon. Cadê o Devon?
— Ah, desculpa. Ele está de atestado.
— Certo.
Mick sorriu. Tinha feito a sua parte.
Estamos nessa juntos, pelo tempo que for preciso.

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Kelsey estava encostado na coluna de um espaço coberto em sua nova escola. Estava de olho
nas outras crianças e sorria ou acenava para todos que passavam por ele, dizendo “oi” quando
alguém o cumprimentava.
Seu olhar, no entanto, sempre parecia se voltar a dois garotos que continuavam do lado de
fora da escola, junto aos portões. Um deles estava todo vestido de preto, enquanto o outro usava um
par de calças rasgadas e uma camiseta desbotada. As outras crianças entravam na escola e pareciam
simplesmente ignorar os garotos ou os encaravam com olhares duros. Vez ou outra, os dois tiravam
sarro das crianças que passavam.
Kelsey se desencostou da coluna e foi até os garotos quando eles enfim entraram na escola.
Ele parou diante deles e disse:
— Oi, eu sou o Kelsey. Sou novo aqui.
Os dois garotos olharam para ele com as sobrancelhas erguidas. Ele abriu um sorriso largo e
amigável para eles.
— E aí — disse Kelsey. — Conhecem algum lugar legal por aqui?

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L
arson estava sentado na velha escrivaninha de carvalho elegante que dominava um canto de
sua sala de estar que, de outra forma, seria tudo menos elegante. Quando se sentava à mesa
sobre a qual tinha uma velha luminária de banqueiro verde e onde em cima tinha pendurada
uma folha com a imagem impressa de uma águia voando sobre um campo, suas costas
ficavam voltadas para o resto da sala. Dali, podia fingir que a outra parte de sua sala não existia.
Todo o resto na sala — a mesa de jogos manchada, duas cadeiras dobráveis, uma poltrona surrada e
um pufe de vinil azul — só fazia o lugar parecer mais vazio e triste.
Tomando um gole do copo que equilibrava no peito, ele olhou para a foto emoldurada de
Ryan que a luminária de banqueiro iluminava. Ryan tinha seis anos quando a foto foi tirada. Tinha
acabado de perder os dois dentes de leite da frente. O vão resultante deu ao rostinho cheio de sardas
e a seus olhos azuis uma aparência travessa que Larson adorava.
As pessoas diziam que Ryan era a imagem cuspida e escarrada do pai. Larson achava que
conseguia ver. Ele e seu filho certamente compartilhavam do mesmo cabelo loiro escuro, sardas,
olhos azuis e boca larga. Ryan tinha o nariz da mãe, o que era bom para ele. Mas às vezes, só o que
Larson via quando olhava para o filho eram as diferenças entre eles. Para Larson, seu próprio rosto
parecia duro e fechado, enquanto o de Ryan ainda era ávido e aberto.
Por quanto tempo continuaria assim?
Alguns dias antes, Larson teve um vislumbre de como Ryan ficaria quando as possibilidades
da infância ruíssem e dessem lugar às obrigações da vida adulta. Larson havia prometido, jurando
por nada mais, nada menos que uma pilha de histórias em quadrinhos, que levaria Ryan para ver a
estreia de um filme. O trabalho acabou ficando no caminho e Larson teve que cancelar. Ryan não
aceitou muito bem.
“Você nunca faz nada que diz que vai fazer!” Ryan havia gritado. Seu rosto estava vermelho
e contorcido com a decepção esmagadora.
“Sinto muito, Ryan.”
Ryan choramingou: “A professora fala que os pais são como super-heróis. Mas você não é.
Super-heróis não quebram promessas.”
O celular de Larson tocou e ele o pegou. Qualquer coisa que pudesse salvá-lo da lembrança
de seus muitos arrependimentos seria mais que bem-vinda.
— O Fantasma Remendado foi visto de novo — disse o Delegado Monahan, a voz áspera.
— Quero que vá para lá.
— Onde?
— O velho lugar do incêndio... você lembra daquele incêndio bizarro?
— Claro. — Larson baixou sua bebida sobre a mesa, feliz por só ter dado umas goladas. —
Chego em dez minutos. — Ele se levantou. — Espera. Não é a segunda vez que ele é visto lá?

Don abriu a porta de metal pesada da velha ex-fábrica e, junto a Frank, seguiu para o food
truck estacionado no meio do que costumava ser uma das salas de reunião do lugar que mais parecia
um cemitério. O caminhão, não mais móvel, ficara permanentemente parado na sala, e estava
cercado por mesas de piquenique de madeira. Era uma instalação esquisita, mas no fim das contas,
o Dr. Phineas Taggard, o dono do lugar, também era.
Don viu Phineas sentado no banco de uma das mesas de piquenique e logo cutucou Frank.
Eles observavam enquanto Phineas tirava a cauda do jaleco branco impecável com todo o cuidado
de baixo de si e a alisava para depois, com tanto esmero quanto, abrir um guardanapo de linho
branco sobre a mesa áspera à frente. Ele tirou um pequeno grão de poeira do canto do guardanapo e
então o abriu para revelar seu sanduíche, embrulhado precisamente no centro do mesmo.
— Obrigado — disse Phineas, como se para o sanduíche. — Células, por favor, processem
esta comida com amor.
— Ainda falando com a sua comida, Phineas? — disse Don. Ele desviou o olhar e deu uma
piscadela para Frank.
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Frank apenas sacudiu a cabeça.
Eles viram Phineas fechar os olhos. Parecia estar rezando, mas ele uma vez lhes dissera que
criava “um escudo mental de luz” quando fazia isso. Seja lá o que isso queria dizer.
— Olá, Don — disse Phineas. — Como expliquei antes, não estou falando com a comida
propriamente dita. Estou falando com as células, tanto as da comida quanto as do meu corpo.
— Certo, certo. — Don cutucou Frank de novo. — Isso é o que eu chamo de piquenique dos
malucos — murmurou.
Frank, que tinha os mesmos rosto e antebraços bem bronzeados e ombros largos que Don,
pôs seu capacete de obra sobre a mesa de piquenique ao lado de onde Phineas estava sentado e
seguiu até o food truck para pedir sua comida.
— Como tá indo a coisa do “escudo”? — perguntou Don, jogando seu capacete ao lado do
de Frank. Phineas viu Ruben anotar o pedido de Frank e então olhou para Don.
— Posso dizer que estou desenvolvendo um mínimo de competência referente à criação do
escudo — disse Phineas.
Após fazer o pedido, Frank voltou e se jogou com tudo no banco da mesa de piquenique.
Suas coxas levantaram poeira quando ele se sentou. Don notou o nariz de Phineas se contrair. Ele
provavelmente não estava muito empolgado com o cheiro de suor emanando dele e de Frank.
Phineas era um pouco fresco.
— Você tem que ouvir essa, Frank — disse Don. Ele acenou com a cabeça para Phineas. —
Conta pra ele.
Phineas olhou para seu sanduíche, mas então ajeitou sua gravata vermelha fina e ajustou o
colarinho engomado de sua camisa cinza. Pigarreou.
— A criação de um campo pessoal tem sua origem no trabalho de um psicólogo que fez uma
série de experimentos sobre o efeito de ser observado.
— Por que alguém estudaria isso? — perguntou Frank.
Don, que estava agora no balcão de Ruben pedindo sua comida, disse:
— Eu odeio ser observado. Me deixa todo arrepiado. — Ele adorava deixar Phineas
empolgado e ouvi-lo tagarelar sobre todas as coisas esquisitas que ele gostava.
— Precisamente — disse Phineas. — Era por isso que esse psicólogo estava estudando o
fenômeno. Por que nos incomoda quando alguém olha para nós? Para mensurar os resultados do
teste, o psicólogo usou leituras de AED, atividade eletrodermal. As leituras mostram respostas do
sistema nervoso simpático.
— Isso faz todo o sentido — mentiu Don. Ele piscou para Frank, que abriu um sorrisinho.
Phineas não notou seu divertimento. Apenas continuou com a descarga de informações:
— Os resultados de seus experimentos foram que os que eram observados apresentavam
atividade eletrodermal significativamente maior quando estavam sendo observados do que se
esperava por casualidade.
Frank deu de ombros.
— E daí? — Ele virou os olhos para Don, que deu risada.
— Então, — prosseguiu Phineas — esse homem fez ainda outros experimentos. Ele queria
saber se era possível que alguém influenciasse outra pessoa com intenções negativas. Se fosse, era
possível para esta pessoa se proteger dessas intenções negativas? Ele conduziu mais experimentos,
nos quais um grupo de voluntários não recebeu nenhuma instrução e outro grupo foi instruído a
visualizar um escudo ou barreira protetiva que os protegeria contra a interferência da mente de outra
pessoa. Os pesquisadores então tentaram elevar os níveis de AED dos voluntários olhando para eles
e desejando que os níveis aumentassem. O resultado foi que o grupo que se protegera apresentou
menores efeitos físicos que os voluntários que não projetaram um escudo.
— Então esse seu escudo pode parar uma bala? — Don riu enquanto pegava seu porco
assado com queijo no balcão de Ruben.
Phineas sorriu.
— Balas não são nem de longe tão perigosas quanto as emoções humanas. — Ele pegou seu
sanduíche e deu uma mordida.
Frank segurou o riso. Com a boca cheia, disse:
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— Isso é bobagem. A raiva do meu vizinho não pode me abrir um buraco no bucho, mas a
espingarda da velha pode.
— Você só está olhando para a linha do tempo em curto prazo — disse Phineas. — Você
pode ver o resultado da energia da espingarda, então ele parece maior para você. O impacto da
emoção humana é mais lento, mais traiçoeiro. Ela emana de nós ou nos é extraída, se assim preferir,
como o suor ou as lágrimas, e sai flutuando como uma nuvem tóxica, molhando tudo o que houver
em volta. Já há algum tempo, eu tenho estudado os efeitos dessas emoções. Estou chegando perto
de uma grande descoberta.

Phineas deixou seus amigos de faz-de-conta junto ao food truck e voltou à área principal da
ex-fábrica — sua área privada. Também queria que o food truck fosse sua área privada, mas,
infelizmente, Ruben não concordaria com isso.
Na época que Phineas costumava trabalhar no Laboratório Evergreen, o food truck de Ruben
ficava estacionado na frente do prédio de concreto feio que alojava o laboratório. Quando Phineas
se aposentou, pediu que Ruben se instalasse na fábrica-convertida-em-laboratório de Phineas,
porque adorava a comida de Ruben. Ruben concordou, mas só se pudesse continuar aberto para o
público em geral. Por isso a presença de homens como Don e Frank. Phineas sabia que eles — e
tantos outros — o achavam louco, mas, ocasionalmente, ainda apreciava sua companhia.
Phineas escovou os dentes após o almoço e se certificou de que ainda estava elegante. Estar
aposentado não era desculpa para ser desleixado. Então Phineas ainda se vestia como o fazia para o
trabalho e ainda mantinha seus cabelos grisalhos bem aparados e seu rosto redondo sempre com a
barba feita. Quando era pequeno, sua mãe lhe dissera que ser feio não era desculpa para ser
relaxado. Ela também frequentemente lhe perguntava para quê precisava de boa aparência quando
tinha um cérebro como o seu.
Phineas concordava com sua mãe e, por isso, o trabalho de sua vida — não aquele trabalho
farmacêutico inútil que fazia em seu antigo emprego, mas sua verdadeira vocação — era o estudo
do paranormal, o estudo da energia e seus efeitos em toda a matéria, seja ela animada e também a
supostamente inanimada.
Satisfeito por estar apresentável, Phineas deixou o banheiro e seguiu pelo corredor estreito
até sua Sala Protegida. Inserindo seu código de segurança e desativando o selo pneumático que
protegia seus tesouros de energias errantes como a de esporos de bolor e coisa parecida, Phineas
entrou na sala completamente branca, revestida de prateleiras e estantes de vidro. Permitindo-se
ficar mais à vontade, como fazia todos os dias, ele foi andando de um lado para o outro em meio às
fileiras, examinando todo o tesouro que havia acumulado.
Phineas sabia que para o olho destreinado, os objetos naquela sala ou pareceriam lixo ou a
coleção de um fã de filmes de terror. Tudo dependia da perspectiva. Apenas Phineas sabia que cada
um dos objetos naquela sala era supostamente “assombrado”.
“Assombrado” não era um termo que ele mesmo usasse. Normalmente usada para se referir
a algo que fora encarnado por um fantasma, a palavra também podia significar parte do que Phineas
sabia ser verdade para todas as coisas. Algo “assombrado” podia na verdade ser algo que mostrava
sinais de tormento ou de algum tipo de angústia mental. E essa era a definição mais importante da
palavra. Os objetos nas prateleiras de Phineas não estavam possuídos por fantasmas — os que
estavam realmente assombrados estavam energizados com agonia.
O cavalete, o esmagador de cabeças, a roda do despedaçamento, o berço de Judas — esses
dispositivos de tortura eram alguns dos exemplos mais puros que Phineas havia coletado, mas ele
tinha de tudo, desde a imagem de Madonna numa torrada a bonecas não mecânicas que abriam os
olhos por conta própria e até uma cadeira de balanço que balançava sozinha. Ele adquirira todos
esses objetos especiais em leilões pela internet. E amava todos e cada um deles.
Mas não podia ficar ali parado o dia todo. Tinha trabalho a fazer.

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Saindo da Sala Protegida, Phineas voltou a seu pequeno escritório, onde havia um pequeno
notebook sobre uma mesa simples de carvalho. Nele, começou a digitar suas últimas descobertas.
“Conforme esperado,” digitou, “emoções humanas extremas, quanto mais negativas forem,
parecem ter um impacto muito mais poderoso em seus arredores. A agonia, estou convencido,
emana muito mais das pessoas do que qualquer outra emoção. O amor também tem sua influência,
bem verdade, mas os experimentos feitos com cristais de água foram mal interpretados. Só porque
o amor forma cristais de gelo bonitos, isso não significa que ele seja a emoção mais poderosa.
Ontem, eu reproduzi a metodologia dos cristais de gelo e, ao permitir que a dor e a raiva que
costumo manter muito bem sob controle explodissem, observei a água manifestar um cristal
horrendo em uma questão de segundos.”
Phineas se levantou e seguiu até sua coleção de flores exóticas sob a luz de uma lâmpada de
cultivo. Passou a ponta dos dedos pelas pétalas em forma de garra de lagosta da helicônia laranja e
amarela, pela satisfatoriamente simétrica flor de lótus cor de lavanda, pelo agrupamento vermelho
de uma flor-de-gengibre que começava a florescer e, finalmente, pelas flores-da-paixão perfumadas
e de um vermelho ainda mais vivo, que o lembravam uma estrela do mar encharcada de sangue.
Outros pesquisadores tinham sua água. Phineas tinha suas flores. Acreditava que flores, não
água, eram os receptáculos de emoção mais puros da natureza. Sentia-se particularmente atraído
pela flora-da-paixão, pois esta era conhecida por ter uma vibração tão pura e inocente que sua
energia podia alterar a consciência. Phineas se inclinou sobre a flor e inalou o aroma pungentemente
doce. Esta flor, havia aprendido com um especialista em essências de energia floral, era conhecida
por corrigir o ego. Era capaz de literalmente consertar o superego e facilitar a iluminação. Ele
acreditava que se aproximava o dia em que estaria tão sintonizado com o fluxo de sua própria
energia que poderia entrar em ressonância com essa flor extraordinária.
Mas não agora. Phineas checou seu relógio. Estava na hora.

Todas as semanas, Phineas recebia outro novo carregamento de objetos emocionalmente


carregados. Naquela semana, tinha coisas muito especiais chegando. Atravessando às pressas o
corredor que levava à plataforma de carga nos fundos de sua velha fábrica de tijolos, Phineas
praticamente saltou sobre o chão de pedra. Mal podia esperar para ver suas novas compras.
— Fala, Phin — disse um sujeito careca e corpulento, quando Phineas chegou à plataforma
de concreto.
— Olá, Flynn. — Phineas saltitava sobre as palmas dos pés e esfregava as mãos. Ele se
inclinou para dar uma olhada no caminhão de Flynn. — O que tem para mim?
Flynn se abaixou e pegou uma caixa. Ele abriu um sorriso.
— Tá tirando uma comigo, né? Você sabe o que pediu. Hoje é o dia especial, certo?
Phineas riu. Flynn se ergueu novamente e arregalou os grandes olhos castanhos.
— Eita, chefia. Baita risada de cientista maluco essa tua aí.
— Gostou? Estive treinando.
— Mandou ver. — Flynn, a cabeça cor-de-rosa brilhando sob o sol e os músculos das costas
se contorcendo embaixo da camiseta preta, começou a descarregar as caixas na plataforma de carga.
Phineas não se deu ao trabalho de explicar a Flynn que ele sequer tinha uma risada natural.
Um dos motivos pelos quais era tão fascinado por toda o leque emoções humanas era porque ele
próprio nunca parecera ter acesso a uma grande gama de emoções. Ele não tinha uma risada natural
porque nunca sentira alegria de verdade.
Mas o que estava sentindo agora devia chegar perto. Flynn descarregou a quarta caixa do
carregamento de Phineas, checou a nota e disse:
— Então é isso, doutor. Deixa só eu pegar o carrinho de mão que aí levo tudo isso lá pro seu
laboratório.
— Obrigado, Flynn. — Phineas cuidou para não acrescentar um “logo com isso” no final,
mesmo que quisesse muito. Flynn não era um sujeito enrolado. Phineas só estava impaciente.
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Flynn jogou o carrinho de mão na plataforma e então pulou sobre ele, onde começou a
empilhar as caixas. A torre ficou mais alta que o próprio.
— Pronto — disse, enfim, e seguiu pelo corredor, segurando a parte de cima das caixas no
carrinho com a mão esquerda enquanto o empurrava com a direita. Phineas o seguiu a passos largos.
Levou apenas alguns segundos para chegarem ao laboratório principal, que era o núcleo
abobado da fábrica, o que um dia fora o chamado chão de fábrica.
Antes repleto de equipamentos de montagem automatizados, o espaço era agora lar dos
vários métodos de mensuração de energia de Phineas. Como Braud, ele tinha sua AED. Tinha
também sua EEG, seu REG, sua MRI e suas máquinas de raios X. Havia usado todos uma vez ou
outra em experiências desenvolvidas para mensurar a energia emocional deixada para trás em
objetos que estiveram próximos do local de uma tragédia.
— Bem aqui, Flynn. — Phineas apontou para duas grandes mesas vazias, ao que Flynn
deixou a pilha de caixas no chão entre elas.
Ele deu a Phineas um cumprimento.
— Tenha um bom dia.
— Terei.
Antes que Flynn sequer desse um passo, Phineas já estava se atirando na primeira caixa.
Olhando lá dentro, viu uma pilha de pratos de festa.
— Maravilha — disse.
Ele abriu a segunda caixa, que era retangular e achatada. Quando abriu a caixa, Phineas se
viu olhando para o próprio reflexo. Aquele era o espelho de parede decorativo que observara um
homem assassinar sua família inteira. Ah, a agonia que não deve conter, pensou Phineas, passando
as mãos sobre a superfície brilhante.
Ele então respirou fundo e partiu para abrir a próxima caixa: uma bem grande e quadrada.
Como já suspeitava, essa caixa continha ainda outra caixa — uma caixinha de surpresas vazia.
Maravilha. Aquilo certamente teria uma grande quantidade de agonia suculenta.
E por último, mas não menos importante... sim, lá estava ele! Deitado numa cama de isopor
picotado havia um endoesqueleto de tamanho humano, só esperando para ser ativado e receber um
propósito. Phineas tirou o endoesqueleto da caixa e franziu o cenho quando ele tombou em seus
braços, completamente inerte. Não esperava que estivesse tão quebrado assim. Bom, não importava.
No momento, ele não parecia nada — só uma rede de metal rompido, feita para fazer o papel de
ossos humanos. Mas não seria nada por muito mais tempo.
— Não se preocupe — disse Phineas. — Vou te prover.
Phineas imediatamente começou a trabalhar. Conectando os cabos e eletrodos de seus vários
dispositivos de mensuração de energia, montou o que via como uma cascata de energia. A máquina
despejaria a energia já capturada de objetos anteriores no primeiro objeto novo — neste caso, os
pratos — e então conduziria esta energia por todos os outros novos objetos até que tudo culminasse
no endoesqueleto.
Phineas recuou um passo para assistir ao processo. Não que houvesse algo para ser visto.
Infelizmente, a transferência de energia emocional ocorria em uma frequência que o olho humano
não era capaz de discernir. Se Phineas apagasse todas as luzes e usasse uma luz azul, seria capaz de
detectar um pequeno vislumbre do fluxo de energia. Ele descobriu, no entanto, que a luz azul tendia
a distorcer o campo. Não podia arriscar recorrer a ela agora.
Em vez disso, ouvindo seu estômago que começava a roncar, Phineas decidiu voltar ao food
truck para um jantar antecipado.

— Como está sua filha? — Phineas perguntou a Ruben enquanto ele fritava os champignons
para seu sanduíche vegano.
Ruben deu de ombros, seu rabo de cavalo preto balançando.
— Ainda tímida pra um cacete.
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— Eu bem que podia te dar um remédio para isso, uma essência da flor chamada Mimulus.
Ruben se apoiou no balcão e inclinou a cabeça para Phineas com um sorrisinho no rosto.
— O que é uma essência de flor? — Ele deixou claro que estava tirando sarro da ideia.
Phineas ignorou o tom de Ruben.
— Na primeira metade do último século, um homeopata descobriu que a energia diluída de
diversas plantas e flores tinha um impacto na emoção e no corpo físico. A essência da flor Mimulus
transforma medo em força.
— Então quer dizer que uma flor deixaria ela menos tímida? — Ruben balançou a cabeça e
olhou para o teto com uma expressão do que Phineas reconheceu como “agora eu já ouvi de tudo”.
Phineas também ignorou o desprezo.
— Não exatamente. A energia de uma flor a tornaria mais confiante. Apenas uma molécula
ou duas de qualquer flor é suspensa numa solução de água e álcool para cada composto floral.
— Puta merda. — Ruben notou que havia queimado os champignons. — Foi mal. — Ele
começou de novo. — Então, é nisso que tu tá trabalhando? Energia... de flor?
— Não é bem isso. — Phineas endireitou as costas e juntou as mãos. — Perceba, eu estou
convencido de que a agonia tem uma força e um alcance energético e muito maior que qualquer
outra emoção. Conduzi numerosas experiências para mensurar, capturar, conter e estudar os
resíduos de emoção incrustados em objetos que estiveram próximos a uma tragédia. Meu trabalho é
focado em minha hipótese de que é possível extrair uma saturação de agonia, acrescentar qualquer
tipo de inteligência, até mesmo artificial, e elas irão se combinar e transmutar a energia da emoção
em energia de ação física. Isso, acredito eu, é a explicação para o que as pessoas chamam de objetos
“assombrados”.
Ruben riu, sacudiu a cabeça e conseguiu terminar de preparar os champignons de Phineas.
— Sem querer desrespeitar, doutor, mas que bom que eu não acredito em mágica. Essas suas
essências de flor parecem um monte de abracadabra. Mas o resto das coisas que você disse aí... elas
são ainda piores. É tipo uma vibração ruim.
— Talvez — admitiu Phineas. — Mas talvez essa seja a chave para compreender a energia
de todas as coisas.

Quando Phineas voltou a seu laboratório, o endoesqueleto se iluminou feito uma árvore de
natal assim que Phineas testou seus níveis de energia. Estava pronto. Ele agora só precisava dar-lhe
um pouco mais de presença, a fim de que pudesse expressar adequadamente a agonia que havia
absorvido dos outros objetos.
Phineas foi correndo até sua Sala Protegida. Ele sabia exatamente do que precisava, então só
levou alguns minutos para colocar os objetos em caixas separadas e voltar ao laboratório. Lá, pôs as
caixas na mesa ao lado do endoesqueleto exposto.
Passando as mãos pelo esqueleto de metal, ele se deleitou na energia elétrica que dançava
nas pontas de seus dedos.
— Primeiro, uma cabeça — sussurrou.
Levando as mãos à primeira caixa que colocara sobre a mesa, Phineas pegou uma boneca
branca de um metro de altura, coberta de desenhos feitos com canetões coloridos. A boneca era de
fato uma abominação da decoração exagerada. Tinha dedos de arco-íris, joelhos verdes, borrões
marrons em seu corpo e pernas, além de várias quinquilharias coladas nela, uma das quais parecia
se tratar de uma borracha em forma de um rosto sorridente.
Sem o menor interesse no corpo da boneca, Phineas segurou seu rosto liso e riscado com
canetão preto e o arrancou do pescoço da boneca. Então afixou a cabeça ao topo do endoesqueleto.
— Assim está melhor — disse. — Te dá um pouco de personalidade.
Ele foi até a segunda caixa.
— E agora, um coração.

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O objeto que separara na segunda caixa era um cachorro animatrônico que claramente já não
funcionava mais. Phineas enrijeceu os ombros e se preparou para tocá-lo. O cachorro era feio, tão
feio quanto o próprio Phineas, com seu pelo opaco castanho acinzentado, a cabeça em forma de
triângulo e a boca enorme cheia de dentes afiados. Mas não era só feio.
De alguma forma, também era errado.
De todos os itens na coleção de Phineas, ele achava este cachorro o mais ameaçador. Sentia
que o cachorro fora o responsável por uma agonia muito poderosa. Nunca se sentira inteiramente
confortável com ele por perto. Mas agora, ia desmontá-lo e ele já não seria mais uma ameaça.
Usando uma tesoura afiada, Phineas abriu um buraco na pele cheia de pelo do cachorro.
Então usou um alicate para tirar os cabos e circuitos. Em questão de minutos, revelara o conjunto de
baterias do cachorro, localizado no peito do mesmo, onde ficaria seu coração, caso se tratasse de um
cachorro vivo. Erguendo a grande unidade revestida de plástico presa a um emaranhado de cabos
enrolados, Phineas examinou o endoesqueleto. Onde poderia instalá-la? Phineas descartou plugues
na cabeça e pescoço do endoesqueleto. Em vez disso, encontrou um encaixe adequado em seu peito.
Phineas sorriu quando olhou para ele.
— Ha. Pronto. Agora, meu Homem de Lata tem um coração. — Deu uma breve risada.
No momento em que o endoesqueleto recebeu seu coração, ele se tornou mais um que um
endoesqueleto. Se tornou um ser animatrônico de grande energia. E se mexeu.
Phineas riu, genuinamente, em puro deleite.
O ser de grande energia reagiu à risada de Phineas virando-se para ele com seus olhos de
canetão preto. Phineas continuou rindo e o ser ergueu um dos braços para tocar seu criador.
Phineas segurou o fôlego quando os dedos de metal lhe tocaram a pele.
Então, num instante conturbado, três coisas aconteceram: Phineas viu o conjunto de baterias
do ser pulsar em meio à uma luz vermelha brilhante. Ele subitamente sentiu o perigo e tentou erguer
um escudo mental. Ele começou a convulsionar, agarrando a cabeça na tentativa de conter a dor
excruciante que aniquilou sua consciência.

Embora Phineas fosse o dono do prédio onde Ruben geria seu negócio, Ruben pensava na
câmara cavernosa onde tinha seu caminhão e as mesas de piquenique como o seu próprio espaço. O
resto do prédio era o espaço de Phineas e Ruben nunca havia colocado os pés no espaço de Phineas.
Não que fosse uma zona proibida. Só lhe parecia uma grande falta de educação sair andando pelo
domínio de Phineas.
Naquela tarde, no entanto, Ruben resolveu se aventurar rumo ao coração do velho prédio de
tijolos. Estava preocupado com Phineas. Nos dois anos desde que ele e Phineas fecharam acordo,
Phineas nunca perdera uma única refeição no food truck de Ruben. Naquele dia, ele se ausentara
tanto no café da manhã quanto no almoço. Havia algo de errado.
Então Ruben foi aonde nunca fora antes e, em questão de minutos, descobriu porque Phineas
perdera as refeições.
Phineas estava morto.
Não só estava morto, estava pálido, quase ao ponto da mumificação, a boca aberta no que
parecia um grito, as órbitas vazias.
Quando Ruben encontrou Phineas, ele imediatamente voltou correndo aos tropeços para seu
caminhão. Chamou a polícia, que veio, investigou e declarou que suspeitava que algum tipo de
descarga elétrica matara Phineas.
Ruben não tinha tanta certeza.
Ele passou o resto do dia tentando não ver o corpo de Phineas em sua mente. Não queria ver
isso e nem o estranho laboratório com suas flores exóticas murchas. E acima de tudo, não queria ver
as manchas negras no rosto do cientista, como lágrimas sob seus olhos.

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No meio da pilha de pertences de Phineas no caminhão de Flynn, o ser energizado estava
jogado sob uma lona grande e pesada que cheirava a terebintina.
Com suas extremidades de metal vibrando com o ronco do motor do caminhão, o ser se
sentou. Virando-se, ele examinou seus arredores até seu olhar pousar sobre uma pilha de roupas.
O ser pegou um manto em meio à pilha e se enfiou nele.

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