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Tá Tranquilo Tá Favorável
Tá Tranquilo Tá Favorável
a cobertura brasileira
dos Jogos Olímpicos
do Rio de Janeiro 2016
José Carlos Marques
resumo abstract
ferente ao Cristo Redentor, um dos ex-libris do povo brasileiro. E até jornais que não são vol-
da cidade do Rio de Janeiro. Se levarmos em tados ao leitor carioca encarnaram o discurso de
conta que o Cristo também aparece em outras que se tratava de uma conquista nacional, e não
seis capas sobre os festejos de Copacabana apenas de uma cidade específica. Destacamos al-
(trata-se de uma bandeira estendida por sobre guns desses casos no Quadro 1.
a multidão), teríamos nesse caso 14 capas (ou Nesse clima de “tá tranquilo, tá favorável”1,
26,4%) com referência ao ícone religioso; poucos veículos se lembraram de colocar em
d) três jornais (5,6%) exibiram imagens com pai- discussão em suas primeiras páginas o fato de
sagens da cidade do Rio de Janeiro; que os custos para organizar os Jogos Olímpi-
e) apenas um jornal não exibiu foto ou imagem cos atingiriam uma cifra próxima dos R$ 30 bi-
na primeira página associada à escolha do Rio lhões, ao câmbio da época. Quando o fizeram,
como sede olímpica. Foi o Jornal de Santa esses jornais diluíram a informação em meio às
Catarina, que preferiu apenas uma manchete imagens dos festejos populares ou das celebra-
secundária, no canto direito da capa: “Rio Des- ções oficiais na reunião de Copenhague. Entre-
banca Potências e Fará a Olimpíada”. tanto, em meio às 53 capas de jornais recolhidas,
uma única (a do jornal O Globo) chamava-nos a
Chama-nos a atenção que o clima de alegria atenção por tratar de diversas questões polêmi-
vivenciado na Praia de Copacabana pelos cario- cas e disfóricas em meio à euforia generalizada.
cas ou no auditório de Copenhague pela delega- A despeito de trazer a festa na Praia de Copa-
ção brasileira tenha contaminado também, de ma- cabana na metade superior da primeira página,
neira quase unânime, nossa mídia impressa, que com a manchete “2016, o Ano que Já Come-
de forma geral se preocupou em relevar mais os çou”, o jornal trazia, na metade inferior, uma
aspectos relacionados à festa, ao ineditismo da fa- submanchete (“Agora só faltam 7 para”) e quatro
çanha (primeira vez que a Olimpíada aconteceria chamadas dissonantes: fazer uma estação de Me-
na América do Sul), ao protagonismo geopolítico trô por ano; duplicar as vagas da rede hoteleira;
e esportivo do Brasil (que também organizaria a despoluir a baía e as lagoas da Barra; construir
Copa do Mundo Fifa em 2014) e à paixão típica e reformar 33 instalações esportivas.
quadro 1
Jornal Manchete
1 Referência ao funk de autoria de Mc Bin Laden, con- o funk mais tocado de todos os tempos da última
siderado um dos hits nacionais do início de 2016 (ou semana).
A iniciativa de O Globo é tanto ou mais zendo eco ao próprio slogan “Viva sua paixão”
surpreendente quando recordamos que se trata criado em 2008 como peça da candidatura do
de um órgão de imprensa vinculado ao grupo Rio de Janeiro.
Globo, cujos canais de TV fechada e aberta são Matéria publicada no site oficial do Rio 2016
justamente parceiros dos Jogos Olímpicos, haja justificava a escolha do slogan ao afirmar que ele
vista a compra de direitos de transmissão te- traduziria “a maneira do brasileiro de se envol-
levisivos envolvidos no negócio (voltaremos a ver apaixonadamente em tudo o que faz” 2. Não é
essa questão mais à frente). Nenhum outro jornal de estranhar, portanto, que aspectos emocionais
colocou em questão, em sua primeira página de tenham ganhado tanto protagonismo e visibili-
3 de outubro de 2009, as dimensões estruturais dade, seja no discurso da candidatura oficial ou
que envolviam aspectos de logística, turismo,
meio ambiente e economia. O que se viu na
mídia impressa, de resto, foi a sublimação de 2 Disponível em: http://www.rio2016.com/noticias/rio-2016-
-lanca-slogan-viva-sua-paixao-no-reveillon-2009. Acesso
aspectos mais emocionais do que racionais, fa- em: 10/mar./2016.
evento (ver foto da revista IstoÉ, com a delegação A esse respeito, o antropólogo francês Da-
brasileira na reunião do COI3). niel Dayan e o sociólogo norte-americano Elihu
Tal fenômeno nos parece ter sido cristali- Katz publicaram, em 1994, um trabalho sobre os
zado especialmente com os Jogos de Barcelona grandes eventos televisados, os quais eles preferi-
1992, que inauguram um novo paradigma na or- ram chamar de “eventos midiáticos”: aqueles que
ganização desse tipo de megaevento – seja pela empregariam a potência eletrônica dos meios de
repercussão da cobertura midiática, seja pelas comunicação para atrair a atenção mundial e con-
soluções que os organizadores locais procura- tar simultaneamente uma história. Esses eventos
ram divulgar sobre a competição, como atesta a promoveriam um “convite ao rompimento da roti-
obra Las Claves del Éxito (Moragas & Botella, na diária” e um convite à união em torno de uma
1996). As explicações do sucesso de Barcelona “experiência festiva”. A diferença mais óbvia entre
tinham a ver com um trabalho muito bem ar- os “eventos midiáticos” e as demais fórmulas ge-
ticulado em torno de vários aspectos, como os néricas televisivas é que os primeiros não são roti-
meios de comunicação, a política, a sociedade, o neiros, mas sim uma interrupção do cotidiano feita
urbanismo, a economia, a tecnologia e os Jogos de maneira monopolística, pois qualquer emissora
Paralímpicos. Não podemos deixar de conside- estará dedicada a falar do mesmo assunto. Além
rar o papel da mídia na divulgação e propagação disso, os “eventos midiáticos” seriam sempre
de conceitos que, no caso de Barcelona 1992, transmitidos ao vivo e planificados previamente,
poderiam ser enquadrados como um fenômeno apesar de seu elemento de imprevisibilidade. Por
típico das “tradições inventadas”, do qual trata fim, tais eventos promoveriam “ocasiões cerimo-
Eric Hobsbawm (1984). Nessa lógica, a capital niais”, nas quais se conjugaria um tratamento es-
da Catalunha passou a ser modelo de gestão pú- tilístico reverente e protocolar, como se o público
blica, de recuperação urbana, de sustentabilida- fosse transportado para o “centro sagrado de nossa
de e de planejamento. sociedade” (Dayan & Katz, 1994, p. 334 – apud
Cascale Ramos & Sánchez Dorado, 2008, p. 17).
Os “eventos midiáticos” esportivos, tais quais
3 Disponível em ht tp://w w w.istoe.com.br/repor ta-
gens/18717_SIM+NOS+FAREMOS (edição 2.082, de os Jogos Olímpicos e as copas do mundo, passa-
07/10/2009). Acesso em: 15/mar./2016. ram a exigir cada vez mais atenção e investimen-
tos dos meios de comunicação para “contar uma cia, trava-se outra disputa, alheia àquela que ocorre
história”, por um lado, e acompanhar uma cres- no plano esportivo: trata-se, aqui, da briga pelo
cente sofisticação e mercantilização da própria furo ou pela audiência, resultado de pressões por
atividade esportiva, por outro. Interessante notar vezes maiores do que aquelas com que os atletas
que diversos pensadores europeus, já a partir das se deparam no campo de jogo. A mentalidade em
décadas de 1960 e 1970, passaram a denunciar torno do “índice de audiência” apontaria primor-
aquilo que caracterizaria o acirramento da com- dialmente para a obtenção do sucesso comercial,
petitividade esportiva em detrimento dos aspec- como uma “instância legítima de legitimação”:
tos lúdicos em torno do esporte. Cito aqui apenas
dois deles, para não cansar o leitor. “Nos anos 50, a televisão estava pouco presente
O primeiro exemplo é do sociólogo francês no campo jornalístico; quando se falava de jor-
Jean-Marie Brohm (1976), para quem as caracte- nalismo, mal se pensava na televisão. [...] Com os
rísticas do esporte moderno refletiriam as carac- anos, a relação inverteu-se completamente, e a
terísticas da sociedade global capitalista. Nesse televisão tende a tornar-se dominante econômica
sentido, a propriedade privada e a lei do lucro no e simbolicamente no campo jornalístico. Isso é
esporte reproduziriam a competição mercantil e assinalado sobretudo pela crise dos jornais: há
a quantificação do ganho; a hierarquia social pre- jornais que desaparecem, outros que são obriga-
sente no esporte reproduziria a classificação e a dos a se colocar a cada instante a questão de sua
seleção social; e o rendimento técnico simbolizaria sobrevivência, da conquista ou da reconquista de
no esporte o maquinismo industrial. Além disso, o sua audiência” (Bourdieu, 1997, p. 59).
incremento do rendimento corporal implicaria um
treinamento racional, metódico, intensivo, conti- A TV passou a exercer uma forma particu-
nuado e progressivo; uma crescente tecnificação larmente perniciosa de violência simbólica, com
dos agentes esportivos (atletas, treinadores); uma a cumplicidade tácita daqueles que a exercem e
hiper-especialização esportiva; e uma seleção me- daqueles que a sofrem; ela produz o que se cha-
tódica dos atletas. Em segundo lugar, não se pode ma de “efeito de real”, segundo a terminologia de
ignorar a contribuição do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1997, p. 29): caminha-se cada vez mais
Bourdieu, que tem vasta produção a respeito das rumo a universos em que o mundo social é descri-
relações sociais do esporte moderno. Um de seus to-prescrito pela televisão. A televisão se tornou o
textos, contudo, é bastante pontual no que diz res- árbitro do acesso à existência social e política. O
peito às Olimpíadas: trata-se de “Os Jogos Olímpi- pesquisador catalão Miquel de Moragas partilha
cos”, artigo derivado de uma conferência proferida da mesma impressão ao examinar o caráter mer-
por ele em outubro de 1992 em Berlim (Alemanha) cantil da mídia, que usaria grandes eventos espor-
e para a qual Bourdieu levou em conta muito do tivos como vitrine para seus negócios:
que ocorrera em Barcelona meses antes.
O interessante das reflexões de Bourdieu é que “Las nuevas tendencias de los estudios de eco-
ele analisa o evento esportivo também a partir de nomía política de la comunicación han señalado
sua relação com os meios de comunicação. Para que los grupos de comunicación, más que vender
ele, o atleta e sua performance fazem parte de um contenidos, lo que realmente venden son audien-
espetáculo que é produzido duas vezes: numa pri- cias en donde colocar los mensajes publicitarios o
meira instância, temos a produção operada pelos para conectar a la gente con los nuevos servicios
agentes esportivos stricto sensu, ou seja, todos de telecomunicaciones” (Moragas, 2012, pp. 24-5)
aqueles indivíduos que estão diretamente envol-
vidos na realização e condução do jogo (atletas, Desse modo, os meios de comunicação –
juízes, treinadores, médicos, organizadores e pla- especialmente as emissoras de TV – acabaram
teia); numa segunda instância, há a produção do por tornar-se parte implicada do evento, uma vez
espetáculo realizada pela mídia (seja pelo discur- que é preciso rentabilizar os largos investimen-
so radiofônico, televisivo ou jornalístico, seja pela tos realizados em torno da aquisição dos direitos
edição de imagens da TV). Nessa segunda instân- de transmissão. Essa necessidade leva, por sua
natureza carioca e para a sublimação dos aspectos Para finalizar, apenas uma impressão der-
emocionais. E, não raro, os meios de comunica- radeira: o termo “legado”, que invadiu o nos-
ção têm sido abduzidos em torno da criação de so léxico de maneira inesperada por força dos
expectativas diversas – uma delas, propagandeada megaeventos esportivos, não tem sido utilizado
pelo Comitê Olímpico Brasileiro, defende a ideia atualmente de forma tão indiscriminada para
de que o Brasil poderia permanecer entre os dez justificar os gastos olímpicos e as promessas de
países com mais medalhas na Olimpíada de 2016. campanha. Talvez porque a organização do Rio
Como se vê, poucas coisas parecem ser capa- 2016 esteja repetindo problemas e desmandos a
zes de perturbar o clima de “tá tranquilo, tá fa- que já havíamos assistido por ocasião dos Jogos
vorável” que cerca a organização atual dos Jogos Pan-Americanos de 2007 também no Rio de Ja-
Olímpicos do Rio, evento ainda não atingido pela neiro, como o atraso na entrega das arenas es-
turbulência política que o país atravessa no início portivas, a incompletude das obras de transporte
de 2016. E, ao contrário do que ocorreu com os e infraestrutura, a não despoluição da Baía de
momentos que antecederam no Brasil a Copa do Guanabara, etc. Melhor assim. Até porque, lega-
Mundo de 2014, quando a própria realização do do por legado, o melhor emprego do termo ainda
mundial esteve na berlinda com a voz das ruas parece ser o que encerra o romance Memórias
e o lema “Não vai ter copa”, os Jogos Olímpi- Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis:
cos do Rio não galvanizaram nenhum grande “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma cria-
movimento de oposição ou boicote até agora. tura o legado da nossa miséria”.
Bibliografia