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luiz

fernando
venegas

AERONAVE CHEGA
BIRUTAS TREMULAM
AERONAVE CHEGA
BIRUTAS TREMULAM
projeto gráfico
Toco Ruivo Produções

fotografia
Gui Aquilini

arte final
Caseira e Brincante Limitada

todos os deveres liberados


Luís Fernando Venegas Soler

Sampa, outono de 2015.

luiz.fernando.venegas@gmail.com
e suma a diva rude
enormes sobrados
aviões subindo obstinadamente
descendo

a pandorga indo embora


sobraram umas vaquetas
trança linhas e dobra papel
cola soltando outra com rabiola

barulho na mes
a posta
uma grande avenida
e dure a vida musa
as ilusões de maca
sobre o alimento da lagarta
estique até que o nato vire de costas
saia pra ver o voo de miranda

o inseto hábil fia a ma


mata e arranha
na banda ejá
garfa

seguindo trilhos
vi pelo espelho um tucuru
de quebra na garoa bem fina
mocozeei um treco ajustando a cama
mineiro era meu avô
o mouro morreu de silicose
meu pai carpinteiro andaluz
de pulmonar enfisema

alô aos fonemas que tragam afeto


pois mamãe tem nostalgia da tergüel
de seu vaso saiu uma lira que desacorrenta
algum conserto pra rima sob o antigo céu

administrando bem a auto sugestão


sem assustar nenhum plasma
dá pra tomar lcd brasileiro
aí o buraco menor abala
é da vontade
mas a potência de sábios
cândidos e cínicos
inverte

impõem a extrema
dieta dos abduzidos
sussurram que há muito
mau no lito do espaço

via de regra é fluxo


nada de atravessar a bateria
estou contíguo sendo uma linda vaga
peregrina que celebra o sul da livre águia
nasce o sol e encara
o brilho da lâmina fria
rema lenta
a ponderada balança

oeste está pra quilo


vendo a lua se espanta
cogitando sobre a náusea
provocada ao ler este

a saudade quase sempre


encerra sorrindo muita utopia
nós com elas na garganta
os mirabolantes bólides
sob o terraço em arco
aquele vergado gaio
imune ao tema insiste
na partilha do bocado

um bípede de tênis matutando


sobre o cuidado de encapar
as palmas da médica baralham
moderadamente

comemora fazendo cenas a giz


logo maquia o óbito da silva
aí então vai cuchillar a corda
sai do círculo de himens perfeitos
coloca em pé um fardo
com alguma astúcia medeia
o improvável ponto de vista
sobre a fidelidade aos fatos

no lamento monada virou bules


razão trás dos feixes como
se nos emociona também
aquele par pegado quando vem bá

sam rachada sem a taquara seca


quer rodopiar em varal bem despido
então escuta as pardalocas atenta
sempre dividindo os muitos maços
frequenta biroscas deslizantes
observa ninfas mangando no asfalto
o anhangá apodrecido vai fisgando
a moçada na rede dos autos

pano rami cá muito ruim


verme rasgando no carnaval
tanto baú cômico prevendo o fim
da cena trágico escaldante do canavial

bolacha na vitrola com pique ouvia


a contraparente peleja no íntimo
sob amor e ira arranjei tempinho
boa a romã de amostra em fatias
o áudio da tríade programando um ódio
a explícita ebulição contra esses ciclos
faz tempo que tudo desmancha no ar
dos anéis à flatulência dos bispos

é demais encenar muitos chiliques


a plêiade com o indicador em riste
brada mesquinha maldizendo qualquer feliz
que ouse assumir outro minúsculo palpite

quando estiver na imensa rua


muito gogó prometerá chã e lei
tiê viciada em soja com crua
a revolta da irma contra o rei
riso entra sim neste pedaço
de torta articulando prazer
a tomata da moça de óculos
no bixiga quando tinha pra ser

vez em quando a surpreendo


assoprando pro fundo do quintal
enquanto ativa a caninha embebida
arriscamos sardinha na telha com sal

vinha reconhecendo na aurora


uma destoada sequência de muros
esquece a bagana visto que abordam
enxerga pro futuro um envergado sumo
quais fontes básicas do gosto
ou índices de éter na grama
a elástica em grafite deitaria
uma pestana sobre os rumos

hesita mas descobre porque vão


passando a ausência de nexo
daí entende porque se ajeitam os tipos
no barulho da trilha simulando dormentes

muitos dedos pro sucesso da mão


a topetuda sacando da cartola
uma ferramenta sinistra
um alvo ao alcance de muitas cacholas
ela passa refletindo
sobre a narrativa realista
o encouraçado
meio adjetivo

ele enfim pôde sair


fez teia
sobreviveu
agora faz casulo

múltiplo
esse bicho discursivo
distintamente muito avesso
pra saciar o apetite num cubículo
como uma grande angústia
borrada de curiosidade
sai à francesa sabendo do vilão

corte longitudinal
esperar jamais que isto seja lápide
ou role tentando incinerar pedra

um corpo crítico
em estado de composição
revela a incerteza das miudezas
o grande empório arrivista
gritando inútil porque o mundo
é fetiche destro e muitos

todos aqueles fortes músculos


das conas se movendo na tv
a canção prensada acabou

em geral os dígitos do filme


o propósito imanente desta fita
é batucar processando boas marmitas
o porto hispânico e farfalhante de brasileto
caprichoso na beira de um abismo pressentia
a ida de geni ali com aquele bambolê

gangorra
um desejo penso
por isso é preciso fuçar

a heroína cafifa de muvuca


na onda particular desqualifica
as fregonas postadas nas trincheiras
a maré pluriguejo
sua vermelha há muito tomada
brincando no verde gafanhotinho

uns regozijos na malharia dos traços


areiaferrocimento feito bairro bruto
as almofadas de sala sobre os tacos

a rosa dispensava roupas


menos o látex da camisinha
que bom trazer o bochicho pro chão
um ato
sublime
a moela

uma birra
o botequim
aparecendo

sem vírgula
pelas três
apronta
totó fox paulistinha
tutu tens titica
fora tabu

tua curvatura
nada profunda
mente penere

átona e à toa
boia só
falta
o drama debaixo do lençol
um evento de líquido
uma farsa de casual

da dama esconde o banal


uma paisagem de córrego
um retrato de urinol

depois de consumir uma grana


sente calafrios no terminal
o metrômano e o caracol
chega de fazer coisas pela metade
quando partir não chore
abusando das metilas sem qualidade

quebre promessas estupidificantes


veja o alógeno claro
soul quase pinho lendo uns instantes

toda lágrima tende quando encurva


e mesmo um rosto com pressa
orgasmo tenta nessa cidade dura
cor
a cova dá cansão
não flagrar um fio de saliva

aonde não tem goela


se faz a cresta
e quase nenhum som

muito anuro de salto pra descer


sirva mais vinho com cardo
sem fel pra velar surdas
gostávamos da fa
vela bem aguda no meio
os dissonantes pingentes

agora a lábia diante do sol


a comunidade cercada
ao longo dos leitos

vagais em área de ricos


o tirete despencará
a gravidade é o limite
beba das referências
a cloaca estrela
ovo pulando pra fora da panela

a experiência da mãe
na invenção deixa
o cânone sangrar

solte a garrafa
quando puder todas as cacas
vazia de memórias sobre a queda
a bela faz plexo com o meu
duplo polifônico cortiço
após descartes incluí outros lados

toda capital oprime muita operária


é natural que o sêmico pólen termine
mas a produção dos alvéolos persiste

anoitece
amanhece
anoitece
n b a
m á a ç
a c a t s
s t q ê u a
d e ã v o r
e e r o
b à ç o m b
c e e a c e e a
a m b m a c
e e s o
m o ã i v t
n s q n e a
i c e n m
m a a ç
n b a
Múltiplo, esse bicho discursivo

No Aeronave Chega Birutas Tremulam sempre en


contramos antigos textos retrabalhados na forma de
novos poemas. Este permanente remodelamento tal
vez seja a principal característica da poética do
Luiz Fernando Venegas. Tais hesitações, que tam
bém existem em outros escritos, são indícios de
como o Luiz, sem pudores, vai apresentando ao lei
tor os sulcos que o tempo desenha em sua produ
ção, o que possibilita ao seu público acompanhar a
multiplicidade de visões, referências e ritmos regis
trados pelo remodelamento de seus textos. Esse
temperamento de ceramista, que nunca deixa a argi
la secar, fazendo com que ela sempre assuma for
mas novas, me parece ser sua maior lição: priorizar
o processo em detrimento do produto final, não se
deixando obcecar pela ilusão do acabamento perfei
to da obra de arte. Para aqueles que têm o fetiche
pelo escrito-cristal, tal ensinamento é relevante, já
que sugere menor pudor no trato com textos própri
os, o que não quer dizer flerte com algum tipo de
efusão lírica mística, mas sim maior liberdade de
experimentalismo, que, sabemos, é o elemento-fon
te da invenção.
Na invenção, deixa o cânone sangrar

Outra característica da poesia do Luiz é a ruptura


com o marasmo sujeito-verbo-predicado existente
em boa parte da produção poética contemporânea.
O uso de frases embaralhadas, a inversão de letras
nas palavras, a sonoridade ambígua e a sintaxe que
por vezes foge, via parataxe, à hierarquização lógi
ca, são elementos que trazem à leitura tanto estra
nheza quanto prazer. Um bom exemplo disso é o
poema que começa com “as ilusões de maca”, ex
pressão que compõe um anagrama de “Luís de Ca
mões”. Tal exemplo indica que o trabalho escritu
ral do Luiz, à sua moda, dialoga com as referências
clássicas. Ao longo de sua obra, outros intertextos
se farão visíveis: Marx, Beat Generation Brasileira,
etc. Vale destacar que as formas engendradas pelo
Luiz não são meras mimetizações de Cummings, da
Poesia Concreta ou da Language Poetry; não são,
também, mera roupagem da moda, como costumam
ser as formas 'criadas' por muitos dos escritores
contemporâneos; são, sim, construções que tensio
nam a leitura, que obrigam o leitor a parar, a reler,
a tentar decifrar. Trata-se de uma escritura que não
aceita o paradigma da leitura fluida, da leitura-pista
-de-patinação-no-gelo, mas, ao mesmo tempo, ace
na simpaticamente ao leitor com o “enquanto ativa
a caninha embebida”, com a personagem que “tran
ça linhas e dobra papel”, ou com o latido do “fox
paulistinha”, fugindo da masturbação de arcaísmos
e preciosismos que se dá, por exemplo, na diluição
da tendência neobarroca (que, em sua matriz, tam
bém é contrária à leitura dita fácil e previsível).
Esse processo de sangria das referências culturais
já estabelecidas seguida por uma ruminação e por
um engendramento de obras novas, originais, é visí
vel até mesmo no projeto visual desse 'novo' livro
do Luiz. Em sua capa, o livro joga com a mais sim
ples montagem digital. Há uma cena de rua em que
esplende uma árvore imponente, florida. Na contra
capa surge um retrato do poeta gargalhando em
cena doméstica. Essa configuração visual um tanto
quanto jocosa parece aludir ao amadorismo das edi
ções da já canonizada poesia marginal, mas a inten
ção, aqui, parece ser acentuar ironicamente, e com
bom humor, a precariedade da edição digital de um
livro que, por não ser fácil e por ter como autor um
homem que não costuma fazer o jogo social da
literatura, recebeu diversos 'no, thanks'. Esperemos
enxergar, no futuro, a chance potencial desse subs
tancioso sumo “alcançando o alvo das cacholas”.
Vagais em áreas de ricos

No que diz respeito aos assuntos vivificados por


sua poesia, destaca-se o processo de construção te
mática que parte de uma micromitologia do mundo
suburbano de São Paulo (especialmente da zona
norte, onde mora) para abordar questões variadas;
do mundo dos bares, dos encontros ao som de sam
ba e pagode nos fundos de quintal, das trilhas do Tu
curuvi, dos interlúdios sexuais, o Luiz aborda a rea
lidade da periferia, a realidade brasileira, a condi
ção humana, etc. Ponto de articulação de todas es
tas temáticas, a política é uma dimensão capital de
sua poesia. Em alguns casos aparece na forma de
intertextos, “faz tempo que tudo desmancha no ar”;
em outros, aparece ligada até mesmo a temas amo
rosos ou sexuais, como atesta o último poema, em
que a relação íntima com uma "bela" é tecida com
imagens que se referem ao mundo das abelhas (fa
vos, cortiço, pólen) e que são aproveitadas para
uma investida como “toda capital oprime muita ope
rária”. Em todos os casos, a política aparece tam
bém no baixo contínuo das construções formais
que, como já dito, pertencem a uma escolha estética
que rompe com as mesmices 'mediocrizantes' que
não atingem o nível de excelência do registro cultu
ral (alta, média ou baixa cultura) em que se aventu
ram e que não oferecem ao leitor problematizações
rítmicas que deem conta de abordar satisfatoria
mente as várias questões da nossa vida.

Qual, no entanto, é o registro ao qual o Luiz se diri


ge? Pelo que percebo, sua intenção é produzir - atra
vés de uma mescla de repertórios de vários regis
tros culturais - uma arte que possa ser fruída tam
bém pelos públicos pertencentes à chamada (talvez
imperfeitamente) baixa cultura (não havendo, aqui,
hierarquização preconceituosa; todos os registros
são igualmente válidos; o que há é que são diferen
tes em público e em referências culturais). Trata-se,
então, de uma tentativa de 'crossover', de fazer
mediações entre repertórios distintos. Sua participa
ção em saraus de trabalhadores e de moradores da
periferia revela tanto este interesse na difusão de
sua obra pelas camadas populares quanto uma críti
ca ao mundo dos “enormes sobrados” das institui
ções culturais oficiais, onde geralmente impera a
lógica do favor e da rasgação de seda mútua. Sua
visão político-social é a de maior inclusão das co
munidades historicamente esquecidas pelos gover
nos e pelas elites. Prega, nesse sentido, sempre com
ironia ácida, que haja “vagais em área de ricos”.
Neste contexto, a poesia do Luiz assume a difícil
(mas não impossível, como prova o trabalho de
Paulo Leminski, por exemplo) tarefa de atingir a
excelência no registro mais popular. Cabe a ele,
como artista inventivo e inquieto, buscar o seu
caminho e seu público, processo que pode ser 'in
progress', como sua própria obra. Em qualquer que
seja o caminho, seus leitores encontrarão sua 'poesi
aeronavilouca', bem lúcida, sempre descendo, tre
mulando birutas e levando barulho aos finos recin
tos que têm a mesa-posta garantida.

Anderson Lucarezi
poeta e tradutor

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