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CONFERENCIA 1 “A ALEGRIA DE VIVER” Phippe La Sagna* “Prgita, AME de Ele de a Cause Freudian ECF. Mero de Asecardo Munda de scene (AMP) Professor de See tic de Bordeaux Peli. AME of he Eel def Cause Freduene (EOF and AMP Member. Professor of incl Seton n Baden Ema plaagraire st Eu me perguntei por que vocés escolheram este tema para a jornada, ¢ ao chegar aqui compreendi o porqué. F. por que vocés so muito alegres. Ou seja, esse tema nao corre o risco de deixar vocés tristes. Escolhi comecar hoje pelo mais triste, pelo mais sério. Aman pode- remos fugir um pouco em direcio & filosofia e & psiquiatria. Hoje, entio, falarei a vocés sobre psicanilise ¢ sobre 0 modelo da melancolia, A melancolia é, na psicanilise, o modelo da depressio, um modelo incontornével ¢ que continua a nos intrigar, mesmo que a psiquiatria, como vimos esta manhi, nao tolere mais o peso da histéria, nem tampouco o peso do drama e ignore o tesouro cultural que existe em torno da palavra melancolia, © problema da melancolia é que ela é hoje uma palavra da lingua. Ela ico, € no fundo, mesmo o termo depres- nio se parece mais com um termo mi sio — que € mais vago, menos nobre, — esti com seus dias contados. Actedito que em pouco tempo, nao falaremos mais em depressio. Eu penso que nés esta- mos diante do campo do signo da depressiio. Nés falaremos de transtorno da regulacio do humor e no mais de depressio. Freud, o primeito psicanalista, valcu-se do termo dipressao, mesmo que tenha, no inicio, utilizado newrastenia, A primeira coisa simples a se reter, é que a neurose de transferéncia era, para Freud, ligada a um excesso de libido. A neu- rastenia ¢ a melancolia provinham de uma falta de libido psiquica. Fo que é a libido psiquica? Muito cedo, Freud evoca 0 furo do psiquico que pode ser com parado com um furo mais banal, o fato da tealidade que produz.a perda de obje- to, por exemple, no luto. Mas 0 que € 0 furo da realidade? O que é que muda, quando o objeto nio falta na realidade, mas no eu? Essa é, em termos, a posigio de Freud. Vocés podem ver que ha muitas questdes sem xesposta e, portanto, varios psicanalistas depois dele preferiram a explicacio de Abraham, Abraham coloca em primeiro lugar a raiva, o édio, a0 invés da melancolia. A raiva, o ddio do sujeito melancé- Revista Curinga | £8P - MG | 9.30 | p.27~82 | Jan-jun | 010 \e7| PhiTlippe La Sagna lico em relagio aos outros, s¢ volta contra cle mesmo. E isso foi muito bem suce- dido, pois foi a base de claboracio de Melanie Klein, e serviu de biissola para as estratégias de transferéncia de alguns psicanalistas no que diz respeito a depres sao, Como fazer com relagio a agressividade do paciente? Sera que temos que aceitar ficar no lugar desse supereu cruel do paciente depressivo? Ser que é pre-~ ciso liberar a agressividade para o exterior, para evitar a autoagressividade? Vemos no fundo, que esses psicanalistas pés-freudianos, colocaram 0 problema da depressio na coluna, na série das reclacdes de objetos problematicos. Por qué? Porque isso fazia parte das neuroses narcisicas, entio eles sabiam que o recurso a0 inconsciente nio era, de modo algum, evidente, no havia transferéncia psi- quica. O que diferencia a neurose é que hd uma claboragio psiquica, ou seja, uma transferéncia no nivel psiquico, no nivel inconsciente, de problemas do Isso. F, no fundo, é essa transferéncia que no ¢ localizével nas neuroses narcisicas. Por muito tempo, a depressio foi referenciada como um problema de transferéncia. Entio, de onde vem o problema? Pois bem, o que Freud afirmou bem cedo é que hd na melancolia uma alteragio do Eu (Iehrerinderung): isso existe na melancolia ¢ na homossexualida- de. E quando 0 eu renuncia ao que ha de mais precioso: a vida ¢ a identidade sexual. O que coloca, alis, a questo da relacio entre a melancolia e a depressio com a homossexualidade. © que os psiquiatras haviam percebido h4 muito tempo ~ como, por exemplo, Binswanger ~ é que na melancolia havia uma alteragiio particular do ser do sujeito, porque o tempo estava alterado; particularmente, as estases do tempo: © passado, o presente ¢ o futuro, O melancélico refugia-se inteiramente no pas- sado e, tudo que para ele € possivel é algo que também se situa no pasado: “isso no sera jamais pos » foi possivel, ¢ eu no fiz nada”. Esta é a base do pensamento do remorso, Sé hé futuro remetido ao passado, ou seja, nfo existe iv fururo, € nos casos mais graves nfio ha sequer presente. $6 h4 o vazio. Vemos, enti, o lago entre o furo do psiquico com essa falha do tempo, Uma vez que, para haver uma realidade psiquica supde-se 0 passado, o presente ¢ o futuro. E, foi isso, sem diivida, que fez, Freud dizer que a particularidade de investimento do objeto na melancolia era a nostalgia. Talvez aqui no Brasil vocés saibam melhor que nés, os franceses, 0 que a nostalgia, A nostalgia da qual fala Freud, o vienense, nio sera jamais a saudade da qual podemos falar aqui no Brasil. Bem, que para nds é certo é que a fungao do tempo, tal como mostrou Jacques-Alain Miller, é dependente da funcao do objeto pequeno a, Isto é 0 que Miller (2000) chama de a erética do tempo®. Se ha um problema no nivel do objeto pequeno ana melancolia, é que ele nfo assegura mais as suas fangdes habituais, O que nao quer dizer que cle esteja ausente, ele esta alojado no eu do sujeito, mas cle nio pode mais cau », fazer existir as instincias do tempo, criar a “sigue”, a surpresa, materializar o inconsciente e, sobretudo, permitir a operagio de trans ro des ta Curinga | EP MG | m.30 | p.27-52 | Jamun | 2010 Somindrio “A Alegria de Viver feréncia, A dificuldade do tratamento do melancélico é de ser um tratamento sem a ajuda do objeto pequeno a, Enquanto que na neurose basta deixar 0 obje- to pequeno « funcionar. Ao psicanalista basta deixar-se ser 0 semblante do obje- co pequeno a. Ao passo que, na melancolia, como nas outras neuroses narcisicas em geral, o psicanalista deve fazer muito esforco para introjetar o objeto @, para coloci-lo do seu lado, ou mesmo simplesmente para fazé-lo existir. [sso esclare- ce muito mais a questio da depressio no que diz respeito 4 relagio de objeto. O ue aio funciona na relagio de objeto é 0 objeto a. Isso permite esclarecer certo ntimero de comorbidades esclarecidas por Fenichel, ¢ esquecemos sempre que foi Fenichel quem descobriu isso. Ble colocou em série a psicopatia, 2 delinquéncia, a adigio, o distarbio alimentar como a anorexia ¢ a depressio. Ele tinha como argumento um proble- ma comum ao nivel do eu desses sujeitos, um transtorno do sentimento do valor de si, o que os modernos chamam de autoestima, Aquilo que Fenichel assinala € que 0 sujeito depende dos aportes, das contribuigdes extetioses, ou seja, dos recursos que vém dos outros, para encontrar um sentimento do seu proprio valor, Todo o seu narcisismo se alimenta do Outro. Quer dizer que ele nfio pode existit por ele mesmo, um narcisismo que se alimenta sempre de uma estima exterior. Evidentemente, entio, desde Fenichel nés passamos 4 cultura do sarci- sismo. Foi o que descreveu 0 socidlogo inglés Lash, essa cultura do narcisismo da contemporaneidade desereve a nova face do homem modemno, Ele nfo chega a identificar os sintomas precisos, ele sofre de um mal-estar, de uma desordem, de uma insatisfacio vaga e difusa, uma sensacio de uma vida amorfa e sem obje- tivo, Ele faz uma avaliacio oscilante de si mesmo € desenvolve um sentimento de ctescente incompeténcia, particularmente na relacio com os outros. Voces reconhecem isso no sujeito moderno? Nio, talvez. nfo no Brasil, isso acontece na Inglaterra. Mas esse sujeito moderno no se entende mais com seus psicote- apeutas. Os psicoterapeutas descobrem que 0 sujeito moderno est sempre meio deprimido, ele se desvaloriza, mas, sobretudo, desvaloriza o diseurso. B. essa desvalorizagio do discurso est em paralelo com a desidealizacio dos tera- peutas e dos psicanalistas, 0 que produz sessdes silenciosas. No fundo, « civil cdo moderna leva o sujeito a atrair para si investimentos afetivos, mas em com> pensacio, ele evita se colocar em uma rclagio de se investir, porque ele sabe que as relagdes humanas sio liquidas e precétias, [sso se nota na clinica do neuroti- co deprimido, que espera toda a solugio do tratamento, mas que é muito dificil coloci-lo a trabalho, Isso também tem a ver com uma tendéncia mais classica da depressio que é a tendéncia & inibicao. E 0 modelo da inibigio é justamente a melancolia. Eu nio vou ensinar nada a vocés insistindo que a inibigio nao € um sintoma, Ontem, Jésus Santiago me contou que quando ainda era aluno, fez um. trabalho sobre a inibicio, e o professor lhe disse que cle no havia compreendi- do bem o que eta a inibigio. Para ajudat Santiago, eu Ihe disse que ninguém com- Revista curtngs | EB? - MG | 9.30 | p.27-52 | Jan-Jun | 2016 129| Phillippe La Sagne preende realmente bem o que é a inibi¢io. O que é certo é que se trata de uma recusa do simbélico. Serd que ela é um meio de economizar a libido psiquica que falta ao sujeito melanc6lico? Sera que cla é um meio de economizar sua energia, para guardé-la para o dificil trabalho de Iuto? Sera que ela nos sinaliza uma morte simbélica do sujeito melancélico? Seri que essa inibig&o participa de uma iden- tificagio imaginaria ou real ao objeto perdido, como no caso do luto, por exem- plo? Ou sera cla uma maneira de estar morto-vivo? O que é certo em relacio a melancolia, é que essa inibico nfo € algo que se situa no nivel do sujeito. Ela é uma questio do corpo, uma questio do ser, ela é a “mostragio” da existéncia da pulsio de morte. Ou seja, uma inétcia do proprio gozo, uma “mostracio” de um gozo que nfo tem sentido. FE preciso elucidar esse mecanismo, pot exemplo, pelas notas dos clinicos do século XIX, que diziam que a pessoa é mais sensa- so corporal, uma ver que o sujeito se representa por meio das sensaces perce- bidas no corpo. E isso ¢ algo que é patente na clinica da melancolia. E. por isso que, parte dos clinicos contemporincos se interessa muito pela lentificagio psi- comotora, eles querem fazer disso 0 espectro da depressio, como vimos esta manha, uma docnga da motricidade, ou seja, uma doenga da capacidade de ago motora do sujeito, uma doenga cerebral. Se essa lentificacio motora existe real- mente, ela nfo coloca em questo a motricidade, mas o que é um ato humano. E 0 que mostra a inibi¢io melancélica é uma recusa do ato, que nio vem do sujeito, mas do set. No horizonte dessa recusa do ato, ha sempre 0 ato que amea- ga na melancolia, tal como mostrou Jésus Santiago esta manhi, é a passagem ao ato, que nesse caso também é um ato do ser, ou seja, que nfo passa necessaria- mente por uma elaboragio psiquica € por isso é muito mais perigoso. E envio, 0 momento moderno, hé um ato um tanto novo, que é ao mesmo tempo novo € muito antigo. Seri que o sujeito poder realizar uma decisio por si? O sujeito livre deverd decidir quem ele é e quem cle seri, ¢ isso € massacrante, No tempo em que o sujeito nfo é livre decide-se por ele — 0 que ele é € quem seri ~ entio hd, portanto, uma inibi¢io de civilizagio, que é o inverso da liberdade possivel, A decisio de si parte do principio da liberdade de escolher sua identidade, Entio, 2 melancolia ¢ sua inibicio marcam bem uma recusa do ser, de se envolver em uma identificacio simbdlica. Para Freud, a melancolia supde que a libido retira- da do objeto, por razdes variaveis, nfo retorne sobre outro objeto, sobre a fan- tasia, por exemplo, mas que ela se fixe diretamente sobre o eu. E esse perigo, que falamos a pouco, ou seja, a alteragio do eu, a “Ichverdriingung? & devido a esse excesso de libido, Porque 0 eu nao deve conter um excesso de libido de objeto. A questiio, evidentemente, da relagio entre melancolia ¢ luto é porque acredita- mos saber 0 que é o luto, Podemos dizer, que se Lacan no escreveu muita coisa sobre a melancolia, por outro lado, escreveu seminérios inteitos sobre o luto, chegando mesmo a conceber a transferéncia psicanalitica como centrada em, torno do luto do objeto, Desse lado, a psicandlise esclarece o luto ¢ talvez 0 Revista Curtngs | £8 - HG | 9.30 | p.27-52 | Jen-jun | 2030 Seminério “A Alegria de Viver” exame do luto venha para nos esclarecer 0 tipo de identificacio que est4 em jogo na melancolia. O estilo quase poético de Freud, ou seja, essa tirada de Freud de que é a sombra do objeto que recai sobre 0 eu, nos deixa esse enigma de saber © que é a sombra do objeto. Bem, hi pistas. Freud nos diz que o investimento psiquico do objeto é pouco resistente na melancolia. Isso se percebe, por exem- plo, no nivel da transferéncia, quando temos sempre tratamentos descontinuos. O sujeito melancélico se ausenta porque ele esta muito deprimido para vir 4 ses- sio, porque esté momentancamente curado, ou porque € hipomanfaco. Ou seja, a transferéncia é, de certa forma, um pouco cansada. Entio, por que o investi- mento do objeto é tio fragil? B. porque o que torna 0 investimento do objeto ido € a atticulagao do objeto com o significante. E, em particular na neurose, é porque 0 objeto é falicizado, ou seja, 0 objeto esté agarrado ao falo. Na melan- colia, 0 desejo € problematico porque essa significagio filica, como vimos essa manhi, falha. Entio, o que vem no lugar do desejo? No investimento do obje- to? Fo amor, que nao tem necessidade de palavra, que nao tem necessidade de significante e que pode muito bem ser narcisico. E, assim, a neurose natcfsica € também uma doenca de amor, como sabiam bem os antigos psiquiatras. Esse amor tio particular que existe na melancolia, e se vocés quiserem saber do que cle é feito, dizia Nerval, é um amor inteiramente voltado para a nostalgia. Mas € também uma paixao, e esse amor nareisico vai guardar a marca da relagio primi- tiva com os objetos. Para Freud, isso queria dizer que esse amor estava marcado por uma ambivaléncia. O amor narcisico é o “amédio”, No fando, a explicagio freudiana para isso, que essa ambivaléncia, esse “amédio” tem como referén- cia o pai. O pai é o objeto principal de um amor ambivalent que precede o apa- recimento do sujeito, que permite a incorporagio, ou seja, que é um nucleo da constituico do eu. Esse amor ambivalente é canibal ¢ primitivo. E vocés perce- bem que encontramos ai uma espécie de lago entre a oralidade e a destruicio, tal como na melancolia. Portanto, temos duas explicagdes que podem parecer contraditérias, em Freud no que diz respeito 4 melancolia. Ou o sujeito melancélico se identi- fica coisa, a0 “Das- Ding’, ou ele se identifica ao pai primitivo, ¢ a melancolia se torna uma doenga da incorporagio. Fric Laurent notou que em Lacan a morte é presente antes mesmo da existéncia do sujeito, que depende do simbolo, ou seja, ¢ a apari¢ao de alguma coisa do set que nao é ainda sujcito ¢ que depende da pulsio de morte. Como isso pode ser apreendido de maneira mais simples? Isso que vem a ser, poderia nao ser. E para Freud isso que faz vir a ser, 0 que faz o ser vir a set, € um pai. Para Lacan set outra coisa. Mas, cada existéncia pode colocar a questio, “eu poderia no ser”, ou seja, a questo de Edipo, “quisera eu nfo ser”. A boa noti- cia, quando viemos a existéncia, é que esta sempre acompanhada da m4 noticia: Seria melhor se vocé nao estivesse lA, se vocé nio tivesse existido talvez o mando Revista Curtnga | EBP - MG | 9.30 | p-27-62 J dan-sun | 2010 31] Phillippe Le Sagna fosse melhor. Isso é sempre uma questio triste. Entio, se voeé existe é na culpa~ bilidade. Sua vida sera consagrada a defender sua existéncia. Voeé pode escolher se é culpado ou inocente, e vai se defender diante do Outro. Para os antigos psi- canalistas, os da psicandlise da neurose ¢ da psicose, que eram ligados a culpabi- lidade ~ 0 especialista nesse assunto é 0 sul-americano Léon Grinberg, Voces conhecem Léon Grinberg'? Nao é tio ruim quanto parece. Ele escreveu “Culpa © Depressi”, 0 problema de hoje é que no mundo moderno, nao existe mais, tribunal para julgar o culpado, no sentido psicanalitico do termo. Isso quet dizer que a culpabilidade desapareceu do mundo dos valores, é preciso nao parecer, nao ter um ar culpado, nfo possivel mais culpabilizar os outros. Bem, 0 que ganhamos esquecendo a culpabilidade é a vergonha. Foi o que Lacan mostrou em seu Seminario “O Avesso da Psicanilise” ¢ é isso que nos mostrou Jacques- Alain Miller em um artigo publicado® em Oraicar? Nés nos desembaragamos do Outro da culpabilidade, mas para cairmos do lado do Outro da vergonha. E jus- tamente, na melancolia, nés encontramos essa vergonha particulars gonha de viver. No fundo sabemos que, em geral, as coisas se ajeitam se conse- guimos transformar essa vergonha sem palavra, em culpabilidade, Mas, com fre~ quéncia, constatamos que a culpabilidade na melancolia é uma culpabilidade deli- rante. Ou seja, a falta (falta no sentido moral) do sujeito melancélico, é uma falta imensa, ela é tio grande que ameaca a ordem do mundo, Nao apenas a vida do sujeito, mas a ordem do mundo. O melancélico pode muito bem ter medo, no tratamento, de destruir o analista, Ei preciso levar isso em conta. tos melancélicos que Ihes telefonam para vetificar se no Ihes fizeram mal, Eu penso numa paciente melancélica que exalava um cheiro de perfume irrespiré- vel. Um dia eu fiz uma observacio: sera que vocé poderia colocar um pouco menos de perfume? Bla me telefonou no dia seguinte dizendo: “se eu coloco tanto perfume é que sinto, ha anos, que cheiro como um cadaver € no faga de ‘ima, a ver- :xistem sujei- conta que nao percebia isso.” B entio descobri aquilo gue ela jamais me havia dito, que trazia com ela, ha anos, esse cheiro de cadaver. O que constitufa sua angiistia de ficar ali no consultério era esse cheito alucinado. Entdo, eu retomo a vergonha, Esse é um exemplo de vergonha ¢ também um exemplo de identi- ficagio real a0 objeto que se apoia em uma alucinagio, ¢ uma identificacio muito diferente daquela que acontece na neurose. Na neurose 0 sujeito se identifica a0 objeto, particularmente para se separar dele, para se separar do objeto, conser- yando como lembranga uma marca, um trago do objeto: um trago simbélico. Quando uma mulher, comega a se parecer com voeé, se vocé é um homem, é que ela vai deixar vocé. O que se passa na melancolia é que o sujeito se identifi- ca ao objeto, mas no real, nfo é uma identificagio a um trago simbélico do obje- to. A identificacio a0 objeto, que na neurose ¢ constitutiva de um sintoma, nao © é na melancolia. O que aparece como sintoma sio essas criticas que se ende- recam ao objeto real incorporado no sujeito. O que se conserva do objeto na Revista Curinga | FBP ~ MG | 9.30 |p. 52 | Jan-gun | 2010 Senindrio “A Alegria de Viver* melancolia é entio 0 piot, mesmo se Freud quis ali encontrar 0 pai. Mas, 20 fando, 0 que o trabalho de Lacan também mostra, é que a melancolia coloca toda a questio do paradoxo do ideal ‘Vamos continuar com 0 que diz respeito 20 ideal. Lacan € cettamente © psicanalista que melhor esclareceu sobre uma questo obscura da psicandlise: a telaio entre o ideal do eu, 0 eu eo supereu, © que ¢ 0 ideal do eu? F alguma coisa a qual devemos a qualidade da relacio social, quer dizer, é algo que herda- mos socialmente. Por exemplo, vocé sera médico. O ideal do eu é também algo que alimenta a relagio social. Cada um deve tentar desempenhar seu papel da melhor maneira que puder. Ou seja, no é jamais perigoso atrair alguém para o Jado do seu ideal do eu, exceto se cle for melancélico. Frequentemente, um dos motivos de desencadeamento € 0 fato do melancélico realizar seu ideal de eu. Por exemplo, vocé vai ser advogado e ai o sujeito se torna advogado. Quando esse sujeito se torna advogado, a depressio desencadeia. Esse ideal de eu é feito de simbolo, o famoso trago unario de Lacan, mas é também feito de palavra, Lacan precisard no inicio de seu ensino, assim como disse Freud, que, se o mode- lo do ideal do eu é sempre o pai para os dois sexos, esse ideal supde um pai que fala. Conservamos a ideia do pai que diz no, mas o pai do ideal do cu nao diz, nio. Lacan recuperou esse pai do ideal do eu, ¢ 0 colocou ao lado desse pai que diz sim, “cu sou”, e que nio diz “cu sou um pai”, mas “eu sou”, o que remete ao pai da Biblia que diz: “eu son 0 que sou”. O que devemos guardar disso? Bg que h4 uma dimensio no pai que Lacan extrai do lado do dizer: “eu digo que”. Entio ha uma parte da origem do sujeito que nasce num dizet. Tanto 0 sujeito da fala quanto o ideal nascem de um dizer. Vocés vem que isso muda a paisa- ‘gem no que diz respeito ao pai freudiano. Isso muda também ao se dizer que um sujeito nasce de um dizer ou de um dito. Ou o sujeito nasce de um dizer ou ele nasce de um dito, o que nio é a mesma coisa. Se ele nasce de um dito, trata-se de um simbolo. No simbolo ha alguma coisa que mata, que mortifica, O signifi- cante é a morte do objeto, entio poderemos pensat que hé alguma coisa no ideal de mortifero, em consequéncia da simbolizacio. Mas, se a gente escolhe a iden- tificacio e a simbolizagio, é que éramos antes da simbolizacio, esse dizer. O que éramos antes é alguma coisa que contém também algo de mortifeto, mas € uma tendéncia que nio é ligada 20 simbélico. Um exemplo clinico, que nos foi dado por Lacan, acredito que no “Seminario 5” foi sobre o escritor francés Gide, aquele que seus amigos chamavam de “dgit dé” (jogo de palavras que significa: aqui jaz ), ou seja, que respirava 0 mortifero. Bento, quando era crianca tinha fantasias erdticas particulares antes de se tornar perverso, ¢ se identificava a um ramo de Arvore que ficava a deriva em uma corrente d’Agua, o que achava muito agtadavel. Bem, o que Gide dizia Lacan vai retomar mostrando que hé ai uma identificacio do sujeito, a forma dentre as menos humanizadas da dot de existix. Ou seja, 0 que é a dor de existir? Ea forma anterior ao significante, é uma forma Revista Curinge | ERP ~ MG | n.30 | 9-27-52 | gan-Jun | 2010 133) Phit1ippe La Sagna inconstituida, dificil de imaginar, mas se vocés tém pacientes esquizofrénicos, devem compreender do que se trata. Ii um corpo despedacado, mas anterior a0 signo, e, no fundo, é isso que Lacan designa como a dor de existir. F. algo que nao é verdadeiramente subjetivavel. Essa dor de existir é um afeto do corpo, que tem um laco muito estreito com a inibicio e que participa sempre de uma recu- sa da forma, de uma recusa do simbolo. Onde é que Lacan encontra esse termo: a dor de existit? O termo “a dor de existit” veio do budismo, entio eu explico um pouquinho. De inicio, esse termo existe no que os budistas chamam de étima. Falo aqui do budismo primitivo, um budismo que precede ao proprio Buda, Entio, 0 itima é um ser tnico e simples, estranho a toda tepresentacio ¢ 4a toda multi- plicidade. Fo um sem o Outro. Muito préximo daquilo que Lacan diz quando se refere ao “Ha um”. Hum dia, esse atima que no é ainguém, e que poderi mos chamar de um deus, no entanto mais complexo que isso, se coloca a pen- sar, a imaginar e a criar 0 mundo. Ao imaginar o mundo ele o cria. Quer dizer que cle cria o miltiplo, uma vez que o mundo é a encarnacio do milltiplo. E esse mundo do miltiplo vai set 0 mundo da dor. Por que 0 mundo do miltiplo é 0 mundo da dor? Porque falta 20 miiltiplo a tinica coisa que conta, o um. A dor do mundo miltiplo ter perdido um, a ctiagio do mundo ¢ 0 assassinato do um. A dor do mundo é isso, porque vocés veem, o mundo é que sofre, e podem notar entio, como o budismo esclarece a melancolia. A dor do sujeito na melancolia se junta 4 dor do mundo. O que permite a um sujeito mortal reencontrar a dor do mundo? Fi que ele renasca incessantemente, ou seja, o drama absoluto do budismo, é que a morte é impossivel, uma vez que vocé renasce incessantemen- te. A maneira de perceber subjetivamente a dor do mundo é a dor de renascer, ow seja, nada além da dor de existir. Pois, cada vez que voeés acordam pela manhi, vocés, de algum modo, renascem. E cada vez que vocés falam, vocés par- tem para uma outra existéncia, ¢ se sio depressivos, terdo © sentimento de ir de mal a pior. Entio, qual é a fonte desta dor de existir? Fi o desejo, mas nao 0 dese- jo lacaniano, Para o budismo é 0 desejo que é uma sede, é 0 desejo pelos obje- tos do mundo, é o desejo do miltiplo. © que faz 0 desejo do miltiplo quando s6 um importa, € a ignorancia. Fi por isso que Lacan reintroduziu na psicanilise uma paixio que nao esti muito presente na obra de Freud, uma paixao que ele faz existir a0 lado do amor e do ddio, uma paixio que est4 no Amago da trans- feréncia, a paixio da ignordncia, que também esti no Amago do amor. Amamos ¢ transferimos porque nfio sabemos. Por esta raziio é ainda necessétio um psica- nalista para transformar esse amor ignorante em saber. No cimulo da ignorin- cia hi 0 suicidio. Para Lacan 0 suicidio no é o assassinato de si mesmo, mas a realizacio do “eu no quero nada saber”, é a recusa do saber. Essa recusa do saber est no horizonte de todo progresso do sujeito no saber. Ii porque o Rovista Curinga | , PMG | m.30 | p.27~52 | gan-gun | z010 Seminério “A Alegria de Viver™ melancélico sabe algo que os outros nao sabem, no que diz respeito ao gozo, que ele é ameacado por esse “eu no quero saber”. Porque ele nao consegue reduzir © gozo ao semblante tal como faz 0 neurético. Bem, hd uma particularidade na psicandlise, a ideia de que o ideal do eu é uma identificagio. Isso implica que no interior desse ideal, ha a realizacio de uma identidade sexual. Vocés sabem que aquilo que constitui o problema da neutose, é que essa realizacio sexual jamais sera totalmente realizada, devido, justamente, a0 caminho que ela escolheu, que é 0 caminho do falo, o que imp! ca um certo fracasso dessa identificagio sexual, que é o complexo de castragio. Uma parte dessa baixa estima do sujeito neurstico vem da castragio, Para os sociélogos modernos que sc interessam muito pela depressdo, a escolha da iden- tidade do sujeito, ou scja, a escolha do seu modo de gozar, é algo que, como fala- mos a pouco, csté ligado a se supor livre. A sociedade contemporinea faz com que o sujeito acredite que ele ¢ um viajante sem bagagem, que no herdou nada ¢ que ele pode construir a realidade que quiser. O que a psicanilise ensina € que, na realidade, 0 sujeito herdou o desejo de seus pais, e que pela heranca do dese jo dos pais herdou scus pecados. Certamente é um termo muito forte: aqueles que herdam do pai herdam o pecado do pai. A recusa desse pecado do pai ¢ da heranga do desejo dos pais, do desejo do Outro, vai ter um prego. Antes 0 sujei- to se construfa em luta, ou colocando-se de acordo com o desejo dos pais ou com © pecado dos pais. Tentavamos construir um mundo contra os pais ou com, 08 pais. Hoje, o sujcito deve construir seu mundo sozinho. Ele supde com quem, uta, cle deve realizar a produgao de si. Ou seja, passamos de uma sociedade do conilito para uma socicdade da negociagio € do artanjo consigo mesmo. Eatretanto, o inconsciente é encarnado para o sujeito, ele encarna para o sujeito © conflito edipiano, ¢ esse lago, € no fundo, com 0 conflito social. Nao se pode esquecet jamais que Freud escreveu “O Mal-Fstar na Civilizagio”. Portanto, 0 sujeito moderno, que no esti mais em conflito consigo mesmo, nfo ser mais © sujeito da culpabilidade, mas um sujeito da insuficiéncia, ou seja, ele se sentira sempre insuficiente. Exatamente como um esportista, 0 sujeito moderno vai temer sempre 0 que no esta de acordo com sua performance, vai buscar muito mais um treinador do que um psicanalista, e como todo esportista vai se dopat. ‘Usa os antidepressivos como doping, para melhorar sua performance. O nico pro- blema é que esse depping favorece o suicidio. © suicidio tanto dos sujeitos neur6- ticos quanto dos sujeitos realmente depressivos. E assim, fundando a moderni- dade, deixamos a sociedade das grandes pessoas, para a sociedade das pequenas pessoas: frdgeis, descartiveis, sem identidade, que treinam permanentemente, sociedade do training. Onde esperamos sempre estarmos mais fortes para os ver~ dadeiros jogos, no fando tememos o fracasso. © sucesso da depressio-doenga, se junta a tendéncia esportiva mortifera da civilizagio. Digo que no contexto esportivo, o esporte de equipe ¢ menos mortifero, como o futebol, por exemplo. Revista Curinga | EB? | n.30 | p.g7-62 | dam-gun | 201 135] Phit1ippe La Sagna Mas isso depende do treinador. Bu no digo isso para os brasileiros. Bem, o que é evidente, € que passamos de uma sociedade do ideal do eu exaltante que cul- pabiliza, para uma sociedade, a qual Lacan percebeu muito bem, que impele 20 g070, uma sociedade na qual o ideal do eu individualizado abre a porta do maso- quismo primario ¢ da depressio genetalizada. Vou parar aqui para deixar um tempinho para que vocés fagam per- guntas. Elisa Abvarenga — Voce falava da dificuldade da transferéncia do paciente melancélico, da dificuldade do amor de transferéncia com 0 melancéli- co, ¢ cu me lembrei entao das leituras da época de residéncia de psiquiatria quan- do liamos Frieda Fromm-Reichmann. Uma psicanalista, psiquiatra americana, niio me lembro a origem dela, que relatava os tratamentos dos pacientes melan- célicos como uma transferéncia muito maciga, muito penosa para o analista, que sugava 0 analista, entio um amor muito avassalador. Como € que poderfamos pensar esse amor de transferéncia em relacio a essa dificuldade de fazer um laco transferencial, como na neurose? Jésus Santiago — Minha questo é sobre algo que observamos também na clinica da melancolia: a manifestagio de uma certa queixa de angiistia por sujcitos melancélicos. Eu queria que voeé falasse um pouco de uma espécie de deslizamento, vamos dizer, do fendmeno da angustia nos quadros de melancolia que muitas vezes nos levam a uma grande dificuldade de diagnéstico, e acho tam- bém interessante ai a questio do tempo. Vocé falava do tempo na melancolia como concentrado no passado, o que seria o tempo na angiistia? Sérgio Campos — Eu gostatia que o senhor comentasse um pouco sobre a sociedade dos individuos na qual impera, a0 contratio, a falta de vergonha, a desinibicio ¢ a mania. Philippe La Sagna — Fu comego pelo fim porque é uma questio facil. Seni que a auséncia da vergonha é uma vergonha? Bum efeito de verso e inver- so? Ou sera que a vergonha melancélica tem a ver com a auséncia de vergonha maniaca? O que a sociedade prope é a mania generalizada. A questio é: seré que a mania social, todos somos manfacos, é a mesma coisa que nossa alegria, que € também um pouquinho maniaca? Nao é a mesma. Porque a nossa no esquece o inconsciente, ou seja, nao rejeita totalmente a culpabilidade que se encontra no interior do inconsciente. Quando rejeitamos a culpabilidade, ela retorna no real, E as pessoas que se ocupam dos delinquentes sabem no que isso dé, Quando se rejeita a culpabilidade, é ai que se est exposto A passagem ao ato, que é um pecado que recai sobre vocé. Eu me lembro de um jovem, que por vezes vinha me consultar, ¢ dizia: “doutor me aconteceu algo, eu roubei um carro”. Mas ele colocava isso como alguma coisa que tinha acontecido com ele e nao como algo que ele tinha feito, E cle tinha razao, isso caiu sobre ele. Sobre a transferéncia macica, penso que isso faz parte da dificuldade Revista Curinga | £BP ~ MG | m.30 | p-27-52 | Jan-Jun | 2010 Seminério “A Alegria de Viver da transferéncia. Ou assistimos a uma recusa narcisica de todo tipo de troca ¢ de todo tipo de tratamento, ou assistimos a uma idealizagio imaginaria do analista. Mas € como na vida amorosa, quando a pessoa se apaixona completamente, sabemos que isso no é muito sélido, é preciso desconfiar desse amor 4 primei- 1a vista, A transferéncia, no sentido lacaniano, é uma ttansferéncia por meio do simbélico. Fo que faz com que aquilo que se transfete ao analista, nfo se faz por idealizacio, mas por sua resposta interpretativa. Ou seja, se a resposta intet- pretativa é boa, isso ctia uma transferéncia de boa qualidade, porque a transfe- réncia imaginaria zomba do simbélico, passa pot cima de uma interpretagio pos- sivel, Isso coloca a questio em relagio a esse tipo de terapia, que no passa pelo deciftamento do inconsciente. Como falamos esta manha, isso pode ser retoma- do pela clinica do fim de anilise no neursético, Ou seja, onde ha ainda algo da transferéncia, mas nao é mais uma transferéncia tio ligada ao deciframento, é 0 que acontece com 0 inconsciente no fim de uma anilise. Sobre a angiistia melancélica. Ha melancolias ansiosas, isso € certo. Podemos dizer que o pior na melancolia € quando nao ha mais angustia, ¢ quando a melancolia est4 completamente desencadeada, por que a angiistia ainda é um rastro do desejo do Outro. Mas um desejo do Outro onde (podemos dizer que 6 seminério da angristia é um seminério sobre a melancolia) 0 que é angustiante nto éa perda do objeto, mas 0 retorno do objeto em direcio ao sujeito. O retorno do objeto que massacra a falta, ¢ isso é verdadeiramente a melancolia, ou seja, as pes- soas sentem falta da falta. Isso se traduz em algo de inimitavel que € 0 suspiro, esse suspiro da melancolia € a falta do vazio. Eno € a mesma coisa que 0 sus- piro do psicanalista, mas, felizmente, os psicanalistas no suspicam mais, no 0 tempo todo. ‘A propésito do tempo, eu creio que na angistia, classicamente, se pensa que a angistia esti relacionada ao futuro, ou seja, angistia daquilo que vai acontecer. Mas isso nao é a angistia, a angustia é o presente, ou seja, é a percep- io real do presente. F justamente na melancolia mais grave no hé mais presen- te, ha somente o passado definitivo, que é inamovivel. O sujeito teria um presen- te ¢ um futuro antes do desencadeamento. A doenca é uma espécie de saida do tempo. Em geral, nds temos a angistia do futuro, que é 0 medo, que pode ser uma angistia pessimista, que pertence 4 neurose de angiistia, o temor do que vai acontecer, Mas isso fabtica uma incerteza que protege 0 sujeito da certeza da angiistia. O sujeito moderno € 0 que os socidlogos dizem, ¢ é verdade, é um sujeito incetto, Ble € incerto em relagio a0 futuro, que no o ameaga verdadei- ramente. I interessante comparar a época em que se descobriu o tranquilizante, ‘nos anos cinquenta ¢ sessenta, quando doenga social era a angistia. Nés nos perguntivamos: sera que vamos suprimir a angistia receitando tranquilizantes? 'AS pessoas tinham uma angiistia imensa em relagio ao desaparecimento do mundo, da guerra nuclear, isso angustiava muita gente. Hoje estamos & beira de vista curtnga | £8P - MG | 9.30 | p.27-52 | jan-gum | 2010 137 Phillippe La Sagna outro desaparecimento do mundo, mas isso néo angustia muito as pessoas, isso as deprime um pouco. radu simulténea: Sérgio Lai Texto estabolecto por: Anaméris Pinto, Laura Rubio e Maria Wilma S. de Faria Revisdo final: Jorge Pimenta e Licia Grossi NOTAS 1 Esta publicacio refere-se 4 transcri¢io destas duas Conferéncias, “Alegria de viver”, proferidas pot Philippe La Sagna em 16 ¢ 17 de outubro de 2009, por ocasiio da XTV Jornada da Escola Brasileira de Psicanilise ~ Se¢io Minas eujo titulo foi: “Depressio ¢ Bipolatidade: transtorno ou dor de existe” 2 Miller, Jacques-Alain. A Eitica do Tempa, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. 3 Neologismo amédio. LACAN, J. O Seminéria, lvro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p.122. 4 Autor de: “Psicoterapia del grupo”, “Culpa y depresién”, “Introduccisn a las ideas de Bion, entre outros. 5 Esta referéncia feita a Jacques-Alain Miller esté no texto Sobre a Honra ¢ a Vergonha, subitem IL = Nota sobre a vergoaha. ~ Vergonha ¢ Culpa in: Ornizar? Rio de Janeiro: Jorge Zahat Editor, Pp 118-139, Revista Curtnaa | EBP ~ MG | n.30 | p-27~52 | dan-jun | 2010 CONFERENCIA 2 “A ALEGRIA DE VIVER™ és examinamos ontem, um novo dado em nossa sociedade do ideal do eu, patticularmente o fato de que a identidade é autoproduzida pelo sujeito. E, ainda, que o sujeito anseia por mudar de identidade, de lugas, de papel e até sua vida privada, muitas vezes ao longo da vida. Atualmente existe um drama na Franca, que talvez vocés tenham ouvido falar: a empresa é a Franca Telecom, na qual muitos fancionrios se suicidam, Houve 25 mortes por suicidio. Essa empresa adotou um método de trabalho, no qual as pessoas trocam de trabalho, de colegas, de lugar a cada trés anos. O resultado disso é que elas se suicidam. Isso ¢ uma ilustragio do que Zygmunt Bauman chama “a vida liquida”. Para nés psicanalistas torna-se evidente que a precariedade social vem despertar tendén- cias mortiferas e suicidas nos sujeitos, que resultam da identificagio. E a famosa dor de existir que falivamos ontem. ‘A distancia que Lacan colocava entre 0 ideal do cu e 0 eu ideal hoje se reduz perigosamente. E, 0 que Freud previa em “O Mal-Hstar na Civilizagio” que quanto mais se cede aos comandos do supereu, mais ele se torna severo €, a cada dia, isto se torna mais verdadeiro. Além disso, vocés sabem que o supereu empreende sua forca na pulsio do Isso, para exercer seu sadismo sobre 0 eu. Aliés, também ha uma observagio de Freud que nos ensina muito, ele diz que clinicamente no se deve confundir o sadismo do supercu, na depressio, por exemplo, ¢ na melancolia, com 0 masoquismo do eu. Nés discutiremos esse tema hoje a tarde com o caso de Ana Liicia Lutterbach. A neurose de fracasso, por exemplo, se alimenta do masoquismo do eu, Id onde a neurose de destino, que € muito diferente, realiza a exigéncia do supereu. A neurose de destino ¢ algo muito cutioso, Recentemente tratei um caso de estilo freudiano: uma pessoa que teve quatro noivos, ¢, por quatro vezes os noivos morreram, Foi necesséria uma longa anilise para descobrir que quando ela era crianca, tinha uma leve deficién- cia fisica e que sua mie, que a amava muito, teria secretamente pensado que seria melhor que cla nao tivesse nascido. Isso era impensavel para ela, ¢ o retorno real desse desejo de morte da mie & que ela se casasse com homens mortos. Assim que ela se casava com alguém, como que por acaso, cle morria. Esse é um exem- Revista Curinga | EBP~ MG | 9.30 | p.27-62 | jan-jun | 2010 139], Phillippe La Sagna plo do sadismo do supereu. A perda do objeto, no sentido da frustragio ou da privagio, nao traz necessariamente a tristeza. Essas perdas para Lacan so cons- titutivas do desejo e até mesmo do sintoma, Nés nos identificamos como ctian- 25, ou seja, a ctianca se identifica ao adulto privador, é a alquimia da mascara que é uma das ptimeisas formas ou uma das primeiras fontes do ideal do eu. Mas, no fundo, o que esti em jogo na perda de objeto € o luto, como eu disse ontem. Foi Lacan quem esclareceu esse proceso do Into de uma maneira muito especial. B, em particular, quando 0 objeto do luto se suicida, como é 0 caso de Ofélia na pega de Shakespeare, a dor do luto é infinitamente mais forte, e as reprovacdes que stio enderecadas quele que sobrevive sfo também muito mais fortes. No caso do suicfdio, se esclarece melhor a natureza das autorreprovagdes ¢ também das criticas que podemos fazer a0 objeto. Os exemplos que Lacan nos 4, apontam que se reprova 0 objeto de amor que suicidou, por este ter desvia- do do seu verdadeito descjo, para Ihe deixar abandonado. O problema do obje- to no suicidio é um problema bem mais geral. Sera que o objeto que interroga- mos por meio do nosso objeto de amor ¢ de desejo, vai suportar nossa interro- gagio sobre o desejo? Send que ele nao vai ser destruido antes de liberar o segre- do do desejo? No entanto, o objeto para Lacan, que aparece como um objeto diante do desejo, deve justamente desaparecer e se apagar para dar lugat a um novo desejo, um desejo que venha da causa do desejo. Assim, na perspectiva de Lacan, nio se deve partir somente do fato de que o sujeito ¢ incerto na sua iden- tificagio, mas o que ¢ incerto é do lado do objeto que devemos procurar. O tipo de objeto que esclarece a respeito disso é 0 objeto a. O objeto para Lacan tem duas vertentes. Como objeto diante do desejo ele € um obstéculo ¢, no fundo, ele suscita nosso amor e as vezes nossa reprovacio. E. como objeto causa do desejo, cle aparece como obsticulo do desejo, quando o objeto do desejo prece- dente se apaga. Esses objetos « podem servir, como vimos ontem, & incorpora- Gao —o exemplo de Lacan é 0 da voz. No masoquismo e no sadismo € a-voz que emuncia a lei, é a voz que ordena, é a voz que comanda, é a voz superegoica que é colocada A frente. H essa voz que é incorporada para fazer nascet 0 sujeito, ea astiicia de Lacan é demonstrat que o que a crianca considera como essa voz gros- sa no sen&o, o eco da sua propria voz. Entio comparativamente a essa voz, ha uma pequena voz, uma vozinha, ou mesmo a voz do siléncio, uma vor aféni- ca que encarna aquilo que a lei nao podera dizer: o desejo. O verdadeiro coman- do € 0 seguinte, nfio é uma interdicio, mas como escreve Lacan um interdito (“inter-di?’), 01 scja, 0 que esta situado entre as palavras. O desejo exige para se realizar, no nivel do desejo, de revelar qual é a sua causa. B isso é uma ideia de Spinoza, ou seja, nfio sabemos o que so as coisas, nés as apteendemos, as cap- tamos, sem forcosamente as compreender quando as apreendemos pela sua causa, Essa causa passa por uma separago do objeto, nflo uma separacio entre sujeito e objeto, mas a separacio entre o objeto e o Outro, ou entre o objeto ¢ a Revista Curinga | £8P - MG | n.30 | p.27-52 | Jan-Jun | 2010 Seminério “A Alegria de Viver” linguagem do significante. Vejam bem que a concepgio do desejo nasce da sepa tagao, é 0 inverso do que exige o supereu. O superen exige a incorporacio do objeto, considera que a incorporago nunca esti terminada, que o sujeito tem que reincorporar constantemente © seu goz0 ¢, € isso que da as raizes do mais de-gozar. Essa incorporacio reiterada e repetida é também uma incorporacéo desesperada, é verdade que ela pode preencher 0 vazio, mas para sempre teno- vat a exigéncia de incorporacio do objeto. Isso mostra que Fenichel no estava muito enganado quando fez uma ligagio do superea com a toxicomania e a adi- io. Entio a dimensio do mais-de-gozar é também um sinal dos tempos. Ha uma contradicao entre 0 objeto do mais-de-gozar ¢ o objeto causa do desejo que € uma produgio da transferéncia. O objeto mais-de-gozar € uma producto social, e, um excesso do mais-de-gozar pode nos cortar 0 acesso 4 fungio do objeto causa de desejo. Lacan encontrou uma saida para isso, dizendo que pode- ‘mos tornar titi esse mais-de-gozar, colocando-o no lugat de agente, ou seja, de algo que determina um processo, ¢ fazendo dele um semblante. Porque, espon- taneamente, o mais-de-gozar nio é um semblante, é uma exigéneia social desen- fFreada que tem aspectos reais, Se o objeto esté no lugar do semblante, isso quer dizer que ele no estaré no lugar do sujeito. E, na transferéncia os psicanaliseas tomam para sio mais-de-gozar para torné-lo um semblante. Fi por isso que a exi- géncia da transferéncia é cada vez mais pacifica que o supereu social. O efeito do mais-de-gozar é criar, por meio da saturagio, uma falsa felicidade, uma felicida- de paradoxal, que é acompanhada de depressio. A pergunta é — Como se faz. a passagem do mais-de-gozar para o semblante, introduzindo ai a falta? O analis- ta deve saber que esse objeto deverd desaparecer. Simbolicamente ele acompa- ha, se podemos dizer, 0 “suieidio do objeto” que serve para que o paciente interrogue seu desejo na transferéncia. Mas isso nvio mergulha o analista na tris- teza, isso simplesmente faz com que seu ser seja, por estrutura, tocado pelo der ser (“des dire”), palavra esctita como “desert” (deserto) que significa “des dre” (Des- ses). A diferenga essencial com relacto a melancolia é que, no fundo, hd um desa- parecimento do objeto que é calculado. O que faz a especificidade do objeto na psicandlise? Esse objeto € produzido pela transferéncia, e no se deve confundir 0 objeto do fantasma — que o sujeito carrega no tratamento —com 0 objeto pro- duzido por uma longa transferéncia, que é 0 objeto causa do desejo. A transfe- réncia quando é longa é também uma maquina de produzir objetos “causa”. Se produzirmos transferéncias curtas ¢ tratamentos curtos poderemos fazer com que a psicanilise produza novos objetos do mais-de-gozar, que seriam pedacos de anilise. Objetos mais-de-gozar, que sio “gadget”, sio pedagos de anilise. (Nesse momento da exposigio ouve-se 0 toque de um aparelho celular, em fran- ces, “portable”, Iss0 € um “gadget” que toca, € uma voz “portable”, é uma voz de celular que, como o superen, nos lembra 6 tempo todo, que nds no o respon- demos, Entao afirmo que é somente a transferéncia que permite, verdadciramen- Revista Curinga | £8 - NG | 9.30 | p.27-52 | jav-gun | 2010 Phil Sppe La Sagna te, articular o objeto ¢ o significante, para dizer de outra maneira, 0 semblante € © gozo ¢ os articula, terminando por separd-los. Ontem falei para vocés da particularidade do tempo na melancolia, € hoje vou falar da particulatidade do tempo na transferéncia. © que a psicandlise permite é fixar um pouco o futuro, que nao é mais indefinido, uma vez que o sujeito saber 0 que o desejo Ihe fara no faturo. Por um lado isso é tranquiliza- dor, mas pode ser angustiante também. Se o futuro é menos indefinido, curiosa- mente na anilise é passado que é mais indefinido, Porque, se voce conhece 0 determinante da sua histéria vocé fica mais aliviado, pois ele Ihe parece menos pesado. B entio, © que se torna o presente? Podemos dizer que o presente esti animado de certa alegria que se apoia sobre o alivio do passado e sobre alguma certeza do desejo. O sujeito nfo tem que reintegrar sua causa, ele no tem que ser como pensou Spinoza, causa de si, E hoje, é evidente que a sociedade nos conta que 0 sujeito é causa de si mesmo, quer dizer, ele ¢ infinitamente respon- savel. O que diz Lacan é que o sujeito pode reintegrar o que ha de irredutivel no objeto a, a causa de seu desejo, € que isso produz um novo desejo. Talvez essa seja a tinica operacao que para o movimento infernal da sociedade, que é o movi- mento de pedir ao sujeito que reintegre seu gozo. Vocés podem dizer que a psi- canilise € formidavel, basta reintegrar a causa do desejo ¢ estamos tranquilos, mas € certo que no, nfo funciona assim, porque nfo existe a relacio sexual (rap- port sexuel). Isso faz com que 0 irredutivel do desejo, seja apenas parcialmente reintegrado a0 objeto que 0 causa. Ou scja, © desejo permanece indefinido por causa da nfo-relacio sexual. Entlo nfo é um faturo assim tio satisfatério como estava dizendo. O que existe para os neurdticos é a perspectiva de um desejo infi- nito ¢ insaciavel. Na melancolia 0 que aparece é o inverso do desejo infinito: € uma falta infinita, O melancélico testemunha que existe uma falta real, que exis te um mau real, ¢ qual é esse mau real? Ki que o sujeito se torna imundo, no sen- tido mesmo de que ele é a fratura do mundo, Evidentemente, a questao coloca- da pela medicina é a de saber qual é a parte do corpo que esta comprometida nesse destino melancélico. Bem, nfo somes contra 0 avanco da ciéncia, como Jembrou Jacques-Alain Miller, mas nfio importa que o corpo va se tornar 0 corpo de um melancélico, mesmo que seja um corpo particular nfo vai mudar a per- gunta sobre o destino do que isso far ao sujeito. Conhecemos hoje a teoria da plasticidade neuronal, que quer dizer que todo dia seu cérebro fica liquido, o que nfo quer dizer que ele escorre pelos ouvidos, quer dizer que cada vez que vocé fala ou que encontra pessoas, ele se reconfigura realmente, Quer dizer que se a gente passar um final de semana alegre nessa reunifo, isso é bom para 0 nosso cérebto, nossas amidalas vio aumentar de volume e entio nds estaremos mais aptos a nos alegrar. Juro que nfo estou inventando, isso é um exemplo de des- coberta das neurociéncias, que € suficiente para se torturar os macacos. Bem, a questio séria, por outro lado, é — Qual é a parte de tristeza Revista Curinga | £8P - MG | 1.30 | p.27-52 | jan-jun | 2010 Semindrio “A Alegria de Viver” que integra 0 funcionamento normal do corpo? Um dos chefes do DSM, Spitzer, disse que os clinicos ainda nao sabem o que é uma doenga mental, ¢ Lacan vai mais longe quando diz que no sabem o que € 0 mental ¢, portanto, devemos nos interrogar sobre isso. Em particular, ha uma questio moderna — seri que existe um mental fixo? Ou um estado mental que niio é fixo? Descartes péde fazer do mental uma substincia, a substiincia pensante e que nos faz cret que existe alguma coisa que pensa. Hoje, todo mundo, mesmo os neurocientis- tas estio mais do lado de Spinoza, Spinoza tecusa a existéncia de um mental ow de um pensamento que se oporia & existéncia da matéria ou da extensio. Mas hoje outros vio mais longe, sera que existe um mental individual? Serd que exis- te um sujeito, ou sera que cxistem somente interagées entre os sujeitos? E uma questio interessante, porque pensar a psicanilise no interior do diseurso analiti- co € ir contra a ideia do pensamento. Mesmo quando temos afetos, quando esta- mos tristes ou alegres, 0 sujeito moderno se pergunta seriamente se esses afctos, sio seus. Se vocés véem os filmes contemporineos, vocés vero que as pessoas nunca tém cetteza se estio tristes ou alegres. Sobre esse assunto Lacan dizia que ‘um analista se faz reconhecer pelo fato de saber que set humano compreende seus afetos, cada vez melhor, quando eles sie menos motivados. O que isso quer dizer? Quer dizer que os afetos que vocés esclarecem na psicanilise, sio affetos imotivados. Quando sio motivados vocés no os compteendem muito bem por- que voces os tém. Vou dar um exemplo, trata-se de alguém que veio me ver por- que seu marido a tinha deixado ¢, por isso, ela estava extremamente triste, era guase um quadro melancélico. F. preciso dizer que ela sempre adorou esse mari- do, que o escolheu quando era muito jovem ~ cla tinha 25 anos —e acabei por compteender que era uma professora que havia se casado com um aluno. Depois de algumas sessics, seguido de um sono explicito, cu Ihe disse: “Vocé se casou com uma crianga!” O formidavel é que ela melhorou muito depois disso. Entretanto, algumas sessdes depois, ela voltou extremamente triste, ¢ me disse: “Me casei com uma ctianga porque quando eu era crianga, os meus pais nunca me amaram.” Fé verdade que seus pais a abandonaram com os livros para tra- balhar e falavam muito pouco com ela. Bla ficou muito triste e me disse: “Meu marido partiu porque eu passava a vida lendo.” E af o afeto é motivado, ela ¢ tris- te porque é verdade que seus pais no investiram nela, mas esse afeto motivado é 0 mais enipmatico € doloroso. ‘As sindromes que esto na moda sao as aledonias, ou seja, voces no sabem se alguma coisa Ihe d4 prazer ou desprazer, ou seja, voces no tém nem ptazer nem desprazer. B. dramético na época do utilitarismo, uma vez que a sociedade ¢ feita para aumentar o prazer ¢ diminuir o desprazer. Hé outra doen- ¢a contemporinea, € que voces tém 0 sentimento dos afetos, mas niio sabem 1é- Jo, a qual denominamos alexitimia. Um dos maiores efeitos dos antidepressivos é thes causar alegria, embora vocés no consigam decifrar como alegria. Vocés Revista Curinga | EBP ~ MG | m.30 | p-27-82 | jan-Sun | 2020 143] Phillippe La Sagna se sentem mais alegres, mas nao sentem a alegria como sentiam antes. E entio conseguimos fabricar falsos sentimentos, que no so sentimentos nio motiva- dos, cles so motivados pelo medicamento, mas vocés nio sabem direito como chamé-los. Talvez a gente vi inventar novos sentimentos, é possivel. Foi isso que trouxe preocupacio aos psiquiatras americanos contemporineos, particularmen- te um casal famoso, Horwitz ¢ Wakefield, autores do livro, “The last of sadnes:”, gue talver vocés tenham lido para se preparar para essa jornada. O que é muito bonito é 0 subtitulo, desculpem-me pela promincia, “How Pyhiatry Transformed Normal Sorrow into Depressive Disorder” (Como a psiquiatria transformou a tristeza normal num transtorno depressivo). Uma das questdes fundamentais do DSM- 5, que falavamos ontem, é saber se quando se esta de luto, se esse luto deve durar cerca de dois meses. B eles concordam que mais de dois meses trata-se de uma doenca ¢, portanto, se tem direito a licenca de trabalho. ‘Tem gente que diz que isso custa muito caro, existem muitos lutos que duram mais de dois meses. Ento vamos fazer anilise nas pessoas para saber se elas tém um luto normal ou pato- l6gico. Mas no nivel da andlise isso nfo tem nenhuma diferenca. E assim vamos continuar procurando. O que esti na moda hoje em dia é 0 “coming out” depres- sivo: como eu era melancélico e nfo havia percebido? O melhor livro sobre esse assunto € 0 “De / ‘exaltation a la depression — confisions d'une psyquiatre maniague- depressive? (Da exaltagio A deptessio — confissdes de uma psiquiatra manjaco- depressiva). A autora explica muito bem, como sendo professora de psiquiatria € tendo feito uma exposi¢io extraordinéria diante de dois mil psiquiatras em estado manfaco, que no tinha a menor ideia, ela que fazia pesquisa na psicose manfaco-depressiva, de que era maniaca. Nesse livro ela explica como é viver, como ela mesma diz, “‘ouch mith fire” (tocada pelo fogo). Na conclusio, ela colo- a.a questio fundamental: se pudesse escolher, eu teria escolhido nio ser mania co-depressiva? Bla diz que tendo inventado medicamentos, ¢ pelo fato de ter ido a0 encontro de psicoterapeutas, teria sim escolhido set maniaco-depressiva, Porque ela pensa que, de qualquer forma, é uma outra vida, Bla diz que alguns aspectos desconhecidos dela mesma eram bonitos de cortar 0 félego, de espan- tar, mas a ajudavam a viver”, Segundo Kay Redfield Jamison’ (2000) isso é 0 que se chama de escapadas inesgotaveis. Hoje, na América, todo mundo faz um “coming out” depressivo. Existem, até mesmo, teses de literatura sobte 0 “caming out? depressivo como género literfrio, mas 0 que esse “coming ou” revela & que esses depressivos stio grandes almas, ¢ a alma é algo complexo, Hm grego “pei- che", @ assim as palavras psiquiattia, psicologia, psicandlise tém “psizhd” na sua raiz, Foi Aristételes quem primeiro a definiu como a forma do corpo, e uma questio séria que perdurou durante a [dade Média foi: sera que a tristeza é a con- sequéncia do pecado? Ou 0 pecado é a consequéncia da tristeza? Ou os dois? O pecado nao deve scr concebido como uma simples falta do sujeito, é certamen- te um erro, mas que pode tocar uma nagio, uma descendéncia, e até mesmo a Revista Curinga | EBP ~ MG | 9.30 | p.27-52 | jan-jun | 2010 Seninrio “A Alegria de Viver” espécie humana. 3 o estado de separacao da alma com Deus. O inverso do peca- do, é a unio da alma com Deus, é a beatitude. Podemos dizer que Aristoteles inaugura a tradi¢fo, que as paixdes do corpo influenciam a alma. F. facil com- pteender, uma vez que a alma é a forma do corpo, se vocé mudar o corpo vocé muda a alma, Durante muito tempo acreditou-se que era preciso atacar as pai- x6es do corpo, até que Sao Tomas de Aquino descobre que existe a paixio ani- mal — paixéo animal quer dizer paixio da alma que se exerce sobre 0 corpo. Vocés vem todos os mal entendidos que isso pode criar. Tudo isso levou a civi- lizacio, a fazer o elogio da apatia, que pode ser resumido em algumas palavras, em saber se calar e suportar. Aposto que o DSM-5 fez uma comissio para saber se a apatia era uma doenga. Ha pouco estava falando da oposigio entre a subs- tincia extensa € a substancia pensante, ¢ para Spinoza, s6 hé uma substincia. Pensar a matéria ou a natureza faz patte da matéria da natureza, ou seja, os ideais, que temos sobre a matéria, ou a natureza, fazem parte da natureza. Sao apenas attibutos do ser, entio vocé realiza o seu set pensando, mas pensando vocé nao faz nada mais que realizar sua natuteza. Pot isso Spinoza pode dizer que o dese- jo é a esséncia do homem. Mas o que ele chama de desejo é a poténcia de exis- tir © de agir, isso é um ato. As afeccdes, ou os afetos, so os meios ¢ os momen- tos de realizacio desse ato. Dessa forma, ele pode definir a tristeza ea alegria também péde dizer que as afecgdes sio bem menos softidas, ou seja, que nds sofremos delas bem menos, que clas nfo nos séo mais conhecidas. E a tnica coisa que podemos opor a uma afece%io é uma outra afeccao. Nao se opde a razio a tristeza, 0 inico remédio para a tristeza é a alegria, e a tazio nfio pode servir sendo para realizar a natureza dos afetos e para favorecet a tealidade da alegzia, por exemplo. O que faz a particularidade do set humano é poder com- preender ou realizar 0 movimento dos seus afetos. Seus afetos nao sto paixdes € so apenas paixdes quando vocés as sofrem, quando vocés ignoram as suas causas, Quando conhecemos suas causas stio ages, isso € uma espécie de fando de quadro da reflexio de Lacan sobre a causa do desejo. Entio, nessas circuns- tancias, a alegria, “le#écia” em latim, é a passagem de uma perfeicio menor para uma maior. O que conta é o movimento, ou seja, isso nao quer dizer que as pes- soas, em geral, sejam mais alegres, quer dizer que ha cada vez mais tendéncia para alegria e, da mesma forma, para a tristeza. Na tristeza tem-se 0 contratio, ha a passagem de uma maior para uma menor perfei¢io. Bem, a partir disso, Spinoza faz, observagdes decadentes. Por exemplo, o temor, o que leva a covar- dia esta muito ligado & tristeza, e para o homem é sempre o temor de realizar 0 que comanda sua tazfio, ou seja, 0 temot é 0 que faz com que o homem se recu- se a realizar o que a razio lhe dita. Por exemplo, nés tememos examinar a ver- dadeira natureza de nossos afetos ¢ mesmo quando fugimos da tristeza perma- necemos orientados por cla. Entio, temer a tristeza é triste. Cuidar da tristeza, tratar a tristeza é sempre un pouco triste e, por exemplo, o desespero ¢ 0 remor- Revista Curinga | £8P ~ MG | n.30 | p-27-52 | Jan-Jun | 2010 145] 46] Phillippe La Sagna 80 so apenas 0 avesso da esperanca e do temor, e na esperanca ha sempre um pequeno lado de tristeza. Spinoza tem suas dividas sobre a esperanga, sobre a confianga e sobre a seguranga também, A seguranga fora da tristeza, no pode 1 mesmo estar tranquilo e consolado, nfo é estar um ser boa em si mesma. pouco contaminado pela tristeza? Spinoza foi ainda mais longe, ele pergunta: piedade? A piedade também é uma tristeza que acompanha a ideia de um mal que acontece com o Outro, entéo é também uma tristeza. A tristeza é também o pen- samento orientado pelo passado, enquanto que o desejo tende para o futuro. Entio vocés compreendem melhor de que tristeza falava Lacan em scu texto “Televisio”? Lacan diz que a tristeza nfio é um estado da alma, é simplesmente uma falta moral, como diziam Dante e também Spinoza. Um pecado quer dizer uma covardia moral, que se situa apenas a partir do pensamento, ou seja, do dese- jo de bem dizer ou de se reencontrar no inconsciente e na estrutura. Para Lacan 0 pensamento no é 0 que ha de melhor, mas o que vem alma em fungio da agio da estrutura da linguagem sobre © corpo. O que interessa Lacan sio os efeitos da linguagem sobre © corpo. © pensamento e a psique sio secundérios, so apenas efeitos do gozo da linguagem sobre 0 corpo. Qual é a devastacio que a linguagem fiz sobre o corpo? Ela recorta 0 corpo e sactifica sua unidade e, no fundo, 0 eco desse recorte é, na alma do sujeito, o pensamento. Bem, eu vou tentar explicar. Se ‘© corpo perde sua unidade por causa da linguagem, ele vai imaginar que tem uma unidade: a alma. Quando nao se tem algo, imagina-se ter alma. Mas o que vai cau- sar problemas a alma é 0 pensamento. O pensamento é a causa da perda de uni- dade que atinge o corpo. Clinicamente isso é a neurose obsessiva. F to de difracio, um pensamento contraditério ¢ contra si mesmo e, no fundo, 0 pensamento é discordante em relacio 4 alma, O sucesso da religido é a tentativa de se desembaracar do pensamento para se retornar 3 alma, mas nunca conseguimos nos desembaracar do pensamento, E isso leva Lacan a dizer que o pensamento é um afeto. Fi surpreendente, mas esti no “Seminitio 17”. Se, pata Spinoza o desti- no do ser humano conquistar a inteligéncia das coisas, para Lacan, 0 esforgo do pensamento cede lugar ao dever de bem dizer, Porque o pensamento rateia, rateia 0 sexo, Talvez, 0 dizer possa se substituir a0 pensamento e, eno, 0 que permite escapar & tristeza, para Lacan, é se reencontrar, se recuperar no saber inconscien- te, que é a verdadeira fonte dos nossos afetos. Mas trata-se de outro tipo de saber que aquele do qual fala Spinoza, mesmo se ele compreende a categoria da causa. Em Lacan, nés vamos perceber que o desejo é também um ato, um ato que reali- za a otientagio do sujeito em relacio ao seu inconsciente, Para Freud, a logica e a inteligéncia em Spinoza no sio mais suficientes, uma vez que propée examinar a parte do pensamento que é atingida pela sexualidade. O que é que nos desvia de examinar nosso pensamento inconsciente? H o medo, a angiistia do recalcado que faz com que todo sintoma, do ponto de vista da psicanilise, seja um sintoma que temos medo de decifrar, ou seja, ha sempre af uma covardia. H a palavra mesma a um pensamen- Revista Curinga | EBP~ MG | 9.30 | p.27~52 | Jan-Jun | 2010 Semindrio “A Alegria de Vive do “homem dos ratos”. Mas niio se deve opor a covardia 4 coragem ou & vontade. E. preciso, a0 contritio, deixar de lado a vontade para decifrar o inconsciente pela via da associagio livre. O que é formidével € que, associando livremente, decifra- mos o inconsciente ¢ produzimos novas alegrias, ou seja, deciftar o inconsciente produz alegria. Nao se trata de compreender um sentido, porque o sentido € 0 pensamento cléssico, que nos faz ratear no pensamento inconsciente. Mas 0 pen- samento inconsciente também precisa passar pelo pensamento estrito, € preciso passar pelo sentido, mas tentando nao colocar os pés totalmente dentro, nio se deixando se agarrar a ele. No final do deciframento, seri que encontramos a ale- gra perfeita? Nao, porque no podemos realizar nosso ser sexuado, pois o decifra- mento se choca com o pecado original, ha um recalque primordial, o que faz: com que nao haja alegria pura. Entio, em “Televisio” Lacan evoca no lngat da alegria spinozjana a. “quite (alegria) que toma emprestado de Nietzsche e, no fando, a “qaité” 6 0 que nos resta, Se nés somos exilados da beatitude, a tinica coisa que pode nos dar uma ideia do que é a beatitude, é 0 amor. Mas o amor nio dura © tampouco a beatitude. Entao, o fato de que hé recalque primordial, de que no ha relacio sexual, ndo nos impede de mergulhar num saber alegre. Hoje estamos na época do utilitarismo, ow seja, uma sociedade regulada pelo principio do prazet. Lacan se situa, resolutamente, além do principio do prazer, ou seja, numa “gaffe”, num saber alegre, que surge pelo efeito de levar a sério tudo o que tateia, Nesse nivel, a melancolia, nos diz Lacan, ¢ uma tejei¢o do inconsciente. Mas nés niio sabemos se é 0 sujeito melancélico que rejeita o inconsciente ou se o sujeito melancélico é um efcito da rejeicdo do inconsciente, O que é verdadeito clinica- mente, particularmente entre os acessos melancélicos, quando o sujeito esté “cura- do” podemos dizer que, de certa maneita, que cle no tem inconsciente, ha casos clinicos que mostram isso, embora no todos. Mas Lacan vai mais longe. Se a con- digo do inconsciente é a linguagem, ou seja, coisas fabricadas de metiforas de metonimias, sua ideia é que ha uma rejeigio da linguagem que niio mais deixa lugar pata a metéfora e a metonimia. E, consequentemente, para aquilo que permite 2 estrutura do inconsciente. O modelo disso é o discurso manfaco. Por outro lado, constatamos que, somente por meio de supléncias, podemos oferecer aos melan- célicos ¢ aos mértires o acesso ao saber alegre, justamente em fangio dessa recu- sa da linguagem. Depois de “Televisio”, Lacan vai escrever 0 Seminitio sobre 0 sinthoma, F. a questio do sinthoma & O que € esse sojeito que rejeitou, de certa maneita, a linguagem e com cla o inconsciente, tornando os dois, a linguagem ¢ 0 inconsciente inconsistentes? Quem fez isso foi Joyce. Eu niio digo que Joyce tinha psicose manfaco-depressiva, mas cle nos indica um caminho pata 0 sujeito, que nao seja apenas o caminho do deciframento. Mas esta é outta questo que nio tra tarei hoje. O que eu queria dizer a propésito do saber alegre, € que nao é a “gaite” que retiramos do saber, ov seja, que quando vocés aprendem coisas novas ficam. alegres porque sabem mais. O saber alegre é 0 contritrio do saber que vem por Revista Curinga | £8P - MG | 9.30 | p.27-52 | dan-dun | 010 147] Phillippe La Sagna causa da alegria “gaifé”. Ou seja, vocés tém uma alegria do corpo ¢ isso Ihes per- mite produzir um saber aovo. E, por exemplo, isso que obtemos com a poesia, a poesia nos mergulha na ‘“gaifé” que pode produzir um certo saber. Bem, vamos parar por aqui para que vocés facam perguntas. Laix Henrique Vidigal — Bu gostatia de centrar minha perguntar no eixo dessa recusa do inconsciente. Qual a chance do analista frente & recusa do incons- ciente? Por exemplo, nessas afeccdes muito comuns de um supereu extremamen- te forte, que produz imperativos de gozo, atuagbes, desinibigdes, que vocé, no ini- cio da sua conferéncia, opés 20 sujeito, depois introduziu uma nova oposicio, 0 masoquismo do eu, Qual 2 chance da anilise? Do analista frente a esses temas? Claro, na transferéncia, o sujeito, um dizer, uma decifracio, mas qual a questio que podemos colocar ai? Philippe La Sagna— Karl Abraham, um menino bastante razoavel, acon- selhava a hospitalizagio. Porque € preciso também conhecer os limites da psicandlise. Quando o discurso é verdadeiramente desvalorizado, quando se tem uma tecusa da linguagem que torna impossivel qualquer conversacio ¢ eu falo das verdadeiras conversas. Eu no estou falando de associacio livre, é melhor que as pessoas sejam hospitalizadas, Hospitalizada em casa ou no hospital, mas é preciso tomar conta. ‘Mas, como podemos operar quando a conversa ¢ possfvel? Eu tenho alguns exemplos de pacientes melancélicos. Hm relacio ao interesse, por exemplo, sera que existe alguma coisa no mundo que ainda lhes intetessa? E. partimos para uma conyersa neutra sobre alguma coisa que pode Ihes interessat. Penso em alguém, que atual- mente é melancélico, mas que nem sempre o foi ¢ que sempre adorou esportes radicais, ou seja, adorava arriscat sua vida permanentemente. Mas ele disse: “eu nao amava artiscar a minha vida, o que me agradava era que tudo fosse extrema- mente calculado”, e com ele entio tefizemos 0 cileulo. E ele me conta, por exem- plo, como se faz alpinismo de grande dificuldade, como atravessat um deserto, ¢ nds temos uma conversa. De tempos em tempos pode acontecer de ele sonhar ¢ ai nés mudamos de discurso. Mas a transferéncia nfo é 0 fato de que cle encontre uma raziio de vives, é 0 que possibilita a conversagio. H4 um ano esse paciente fez uma viagem e me falou que estava preocupado porque iam roubar sua coleco. Sua esposa quer que ele venda sua colecio, € 0 objeto a. Eu pergunto: — “Mas o que & que vocé coleciona?”, e ele me diz que sio metralhadoras. Bum sujeito bem par- ticular que se pergunta o que é que vai ser sem isto. F, alguém muito interessante, seu terapeuta anterior o encaminbou justamente por causa das metralhadotas. Yolanda Vilela — A minha pergunta, na verdade, eu quetia ter feito ontem. E uma pequena pontuagio a partir da correspondéncia entre Freud e Binswanger no final dos anos vinte, quando Freud reconsidera as questées tra- tadas em “Luto ¢ Melancolia”. Entio, a partir desse ponto, como o senhor deseavolveu a questo do seal da melancolia ontem, eu queria que, se possivel, falasse desse real do luto, a0 qual Freud volta nessa discusséo com Binswanger, Revista Curinga | BP - NG | .30 | p.27-52 | Jan-Jun | 2010

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