You are on page 1of 36

PAULO

E A ARTE RETÓRICA ANTIGA


«E embora eu seja um
indouto na arte do
falar
não o sou, porém,
na doutrina
como temos
demonstrado
em tudo e de todo
modo diante de vós»
Paulo fala (2Cor 11,6)
no Areópago de Atenas

«“E, embora seja falto no falar, não o sou no conhecimento; mas,


em tudo e por todos os modos, vos temos feito conhecer isto”.
Considere o tal isto: que o que somos na palavra por cartas, estando
ausentes, tal seremos em atos, quando presentes» (2Cor 10,10-11)
Os oradores antigos - os teóricos
e o ensinamento escolástico da arte retórica

Na antiguidade houve não só grandes oradores


mas também teóricos das regras retóricas
e os tratados e manuais de retórica que nos chegaram
nos permitem conhecer perfeitamente
toda aquela arte e as suas regras
Os mais famosos escritores de retórica são
- Aristóteles (384-322 a.C. - te,cnh r`htorikh. to,pika)
- Cícero (106-43 a.C. - De inventione, De Oratore,
Brutus, Orator, De optimo genere oratorum,
Partitiones oratoriae, Topica)
- Quintiliano (35-96 d.C. apr.; cf Institutio Oratoria)
Aristóteles
(384-322 a.C.)
Te,cnh r`htorikh. to,pika
Marco Túlio Cícero

(106-43 a.C.)
De inventione
De Oratore
Brutus
Partitiones oratoriae
Topica
De optimo
genere oratorum
Marco Fábio Quintiliano

(35-96 d.C. apr. )


de Institutione oratoria
Chegaram até nós também manuais anônimos
como ‘Ad Alexandrum’ (atribuído a Aristóteles
porém mais provavelmente de Anaxímenes de Lampsaco)
e ‘ad Herennium’ (obra atribuída a Cícero
mas talvez obra de um certo Cornificius)

«A paideia ou ‘instrução escolástica’ na época helenística,


tal como havia tomado forma
e como se era difundida em toda pòlis da área mediterrânea,
ao estágio superior comportava a formação
que se recebia de um mestre de retórica» (B. Standaert)
«Em todo o império romano o estudo da retórica
fazia parte da instrução escolástica
Os rapazes eram exercitados nos diversos campos da retórica
e se esperava deles que fossem capazes
de pensar através destas categorias
quando compunham um discurso
O resultado era que as regras retóricas
tinham um grande influxo sobre como se compunham
e sobre como eram lidos os escritos antigos» (R.G. Hall)
Os três tipos de discurso retórico

«Por definição, há três tipos de retórica


O escopo da retórica deliberativa é exortar ou dissuadir
O escopo da retórica forense é acusar ou defender
O escopo da retórica epidítica é louvar ou repreender

Deliberativo – discurso próprio das assembleias citadinas


nas quais o auditório deve depois decidir sobre o futuro
Forense - discurso próprio dos tribunais
onde o auditório deve julgar sobre o passado
Epidítico – discurso próprio do mercado ou do anfiteatro onde,
como expetadores, as pessoas devem julgar
sobre as capacidades artísticas do orador» (F.F. Church)
Deliberativo – discurso próprio das assembleias
citadinas nas quais o auditório deve depois decidir
sobre o futuro

O escopo
da retórica
deliberativa
é exortar
ou dissuadir
Forense - discurso próprio dos tribunais
onde o auditório deve julgar sobre o passado

O escopo da retórica forense é acusar ou defender


plataforma do juiz
agorá ou mercado na agorà de Corinto
da antiga nos tempos de Paulo
Tessalônica

«Epidítico – discurso próprio do mercado ou do anfiteatro


onde, como expetadores, as pessoas devem julgar
sobre as capacidades artísticas do orador»
O escopo da retórica epidítica é louvar ou repreender
A dispositio retórica de um discurso

Com o termo dispositio os retóricos antigos


designavam a organização do discurso e das suas partes
Quintiliano, que foi escolhido pelo imperador Domiciano
como mestre de retórica para os sobrinhos (iv, proemio, 2)
antes de definir teoricamente a dispositio,
dá dela uma ideia bem precisa com as imagens
da construção, da estátua de bronze,
da figura humana ou animal, e dos exércitos:
«Como a quem eleva uma construção
não basta acumular pedras e materiais
e outros materiais úteis à construção
se não se acrescenta habilidade em dispô-los e colocá-los
assim na eloquência a abundância de argumentos
se reduzirá a um acúmulo informe
se a dispositio não os ligar
num todo harmonioso e orgânico»
Do mesmo modo não se tem uma estátua [de bronze],
mesmo se todas as suas partes foram fundidas,
se elas não foram postas cada uma no ponto justo
E se numa figura humana ou de outro vivente
tocássemos algum membro
e o deslocássemos fora da sua própria sede,
a figura, mesmo tendo tudo aquilo que deve ter,
terminaria por ser algo de monstruoso.
Também as articulações, se deslocadas mesmo
ligeiramente, perdem o vigor de antes
Do mesmo modo os exércitos,
quando são desordenados,
atrapalham-se por si mesmos
Assim um discurso no qual falta ordem
deverá necessariamente proceder por solavancos
e correr à deriva sem timoneiro;
Será frequentemente desconexo
frequentemente repetitivo e superficial
como quem vaga de noite por lugares desconhecidos
Sem um plano que compreenda início e fim
o discurso estará confiado mais ao acaso
que a um preciso progeto

Entendemos, portanto, por dispositio


a útil distribuição de argumentos e partes
nos lugares oportunos
- Utilis rerum ac partium in locos distributio» (Quintiliano)
Toda a construção de um discurso depende em grande parte
das concretas circunstâncias às quais é dirigido
e, mudando as circunstâncias,
mudam os discursos
Por si só a primeira regra da dispositio é a liberdade
que é necessaria para se adequar à situação
Nas palavras de Quintiliano:
«a dispositio frequentemente sofre mudanças
obedecendo à utilidade;
e nem sempre é a mesma
a questão a ser afrontada por primeiro,
seja de uma como da outra parte em causa»
À parte esta necessária flexibilidade,
a dispositio ideal de um discurso se compôe de:

EXORDIUM (prooi,mion - exórdio, ou início retórico)


«o exórdio é aquilo que torna o ânimo dos ouvintes
idôneo para receber o resto do discurso» (Cícero)
O escopo do exordium é de tornar o ouvinte
benévolo, atento e maleável:
«… auditorem benevolum, attentum, docilem facere -
O único propósito do exordium é preparar os ouvintes
de tal forma que eles estarão dispostos a tornar o ouvido
pronto e benevolente
para o resto do nosso discurso» (Quintiliano)
PROPOSITIO (pro,qesij): a propositio enuncia
a tese que se procurará demonstrar
Individuar a propositio quer dizer individuar
a afirmação que resume em poucas palavras
todo o discurso
e ao redor da qual giram todos os outros elementos

PARTITIO (divisio): é o elenco dos pontos ou das partes


que se desenvolverão, é uma espécie de ‘índice’
NARRATIO (dih,gesij): a narratio remete os fatos
sobre os quais se deve discutir
selecionando aqueles mais úteis
à própria estratégia retórica
«a narratio é a exposição dos fatos;
é sobre eles que se baseia e apoia
para as partes seguintes» (Cícero)
mas, além de ser exposição dos fatos,
ao mesmo tempo é uma verdadeira e própria prova
dada através dos fatos que todos conhecem e aceitam
PROBATIONES (pi,steij - argumentos e provas)
As provas podem ser distinguidas em provas
para demonstrar a própria tese (ou confirmatio)
e provas para demolir aquela do adversário (ou refutatio)

PERORATIO (evpi,logoj - avnakefalai,wsij - conclusio - recapitulatio)


É a retomada ou recapitulação na qual se resume
tudo quanto foi dito
para que seja de ajuda à memória do interlocutor
e para condicioná-lo
com a última, estratégica apresentação do caso
O Novo Testamento - Paulo e a retórica antiga

No NT sobretudo a Epístola aos Hebreus


faz recurso à retórica antiga
Mas também Paulo deve conhecia e usava a retórica
«Paulo também empregava táticas básicas de persuasão
ensinadas e largamente praticadas no seu tempo
Se ele foi treinado em escola ou adquiriu seu talento
através de um curso natural de observação e imitação
Paulo foi um mestre de persuasão» (F.F. Church)
«Paulo pode usar prática retórica helenística
tão habilmente quanto ele argumentar um tema
com a mais sutil hermenêutica rabínica» (R. Scroggs)
Aqueles que nos últimos decênios forma em procura
de um esquema retórico em Paulo foram
H.D. Betz e, respectivamente W. Wuellner:
o primeiro pesquisou na carta aos Gálatas
o segundo na carta aos Romanos
«Deve-se sem dúvida a H.D. Betz
de ter suscitado o interesse dos exegetas de Paulo
para a retórica greco-romana» (J.-N. Aletti)
«The speech Paul addressed to the Galatians
bears witness to his professional skill as a rhetorician»
(J. Smit)
«… his professional skill
as a rhetorician» -
Sua proficional habilidade
como retórico
A objeção que frequentemente é feita contra o estudo do NT
a partir da retórica antiga
é que os autores neotestamentários raciocinam
como judeus e não como gregos

J.-N. Aletti responde que «semelhantes afirmações ignoram


o influxo helenístico sobre o modo de pensar e compôr
dos escritores judeus contemporâneos aos do NT;
e sobretudo ignoram que o sermão de Hb revela
um influxo claramente da retórica greco-helenista
e que é um escrito tipicamente helenístico»
Na mesma Palestina o influxo da paidèia helenista
era forte não só em meio àqueles que falavam grego
(se calcula de 10 a 20 por cento da população)
mas também entre os rabinos
Segundo J.L. Kinneavy os rabinos palestinos
«possuíam um conhecimento inegável, mesmo se limitado,
da cultura grega.
Eles não liam Platão nem os filósofos pre-socráticos.
O seu interesse era centrado sobre estudos jurídicos dos pagãos
e sobre seus métodos de retórica»
A precisação é importante porque Atos 22,3
fala da instrução que Paulo teria recebido
em Jerusalém na escola de Gamaliel II
A particular dispositio paulina

Segundo Aletti, Paulo aplicava a dispositio retórica


não a uma carta inteira
(como pensava Betz, Kennedy, Wuellner
e as suas escolas estatunidenses e francesas)
mas sim a cada uma das partes que compõem uma carta

Em outras palavras em Rm, por exemplo,


há uma propositio geral
para toda a carta em 1,16-17
mas há depois sub-propositiones que são desenvolvidas:
uma em 1,18-4,25; uma segunda em Rm 5-8
uma terceira em Rom 9-11, e uma última em Rm 12-15
«[A dispositio e] a argumentação [paulina]
é divisível em seções relativamente autônomas,
de cumprimento relativamente modesto,
que reproduzem, cada uma de seu modo e em modo original,
a dispositio da retórica antiga (para Rm: 1-4; 5-8; 9-11; 12-15)

A coisa merece atenção porque parece indicar


que Paulo compunha e depois ditava as suas cartas
por unidade lógicas facilmente memorizáveis
A retórica e a interpretação das cartas paulinas

Se não se vai à procura de como os antigos construiam os seus


discursos, fica-se impedido de compreender os textos que eles
nos deixaram e, portanto, «o estudo da retórica antiga nos
fornece o acesso ao código que governa a comunicação oratória
da antiguidade
Este código foi, de um lado, ensinado,
Mas, por outrolado, ele operava sem o conhecimento
dos oradores e dos seus interlocutores.
Dada a distância cultural que nos separa dos antigos,
nós devemos de todos os modos procurar individuar este código
para não estar fora do caminho ao ler as obras antigas»
(Standaert)
Para as passagens repentinas e os saltos lógicos que se encontram
entre as partes do discurso, por exemplo em Fl, Rm, ou 2Cor,
multos comentadores recorriam à hipótesiede várias cartas
fundidas em uma
A arte retórica, que requer às vezes passagens bruscas,
inesperadas e agressivas para impressionar o auditório,
pode oferecer uma hipótese alternativa
Para 2Cor e Fl Watson escreve:
«Como também é verdade de 2Cor, durante este século
tem havido uma persistente voz desposando a ideia
que Filipenses é uma obra composita.
Considerava-se composta de duas ou três cartas
escritas por Paulo aos filipenses em momentos diferentes,
sob diferentes circunstâncias, para atender a diferentes
exigências.
De fato, pode ser afirmado com confiança
que a natureza compósita de Filipenses agora é tratada
como um pressuposto em um corpo considerável de literatura.
(...)
Essa abordagem permite que o intérprete explique
os recursos literários oferecidos como evidência
para adição e interpolação em Filipenses
no contexto das convenções da retórica greco-romana»
Uma vez que Paulo utilizou as convenções retóricas
do mundo greco-romano nas outras cartas genuínas,
uma vez que a forma atual de Fl
está em conformidade com essas convenções
e uma vez que as interpolações e provas propostas
dadas para interpolação
podem ser explicados pela convenção retórica,
do que a integridade de Filipenses é melhor
assumida»
«Que em 9,1-5, exórdio de Rm 9-11,
a legislação seja reconhecida
como um privilégio ‘segundo a carne’
e que ela seja entendida de modo diferente, ao invés,
na sucessiva probatio
não surpreenderá senão aqueles
que são pouco familiarizados
com as técnicas da retórica antiga»
«Levando em conta a presença de um modelo retórico
se pode sair de um certo número de ‘impasses’
e é possível propôr uma interpretação estimulante
de um capítulo [= Rm 11] entre os mais controversos
na história da exegese contemporânea» (Aletti)
Em outros termos, certas dificuldades exegéticas
não se resolvem senão recorrendo à retórica,
porque para convencer o próprio interlocutor
(a retórica é a arte da persuasão),
Paulo ou o Autor de Hebreus
construiram o discurso de modo tão inesperado
que nós leitores não poderíamos não nos aperceber
da sua estratégia de persuasão
e, ao invés, acusá-los de escriver de modo transcurado.
A atenção aos esquemas retóricos ajuda o intérprete
a não sair fora da estrada,
e, ao invés, apreciar a habilidade retórica
dos escritores bíblicos.
PAULO
E A ARTE RETÓRICA ANTIGA

You might also like