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O milagre do amor e seu gozo1

Silvia Elena Tendlarz

Um provérbio do Talmud diz que Deus não criou a mulher fazendo-a sair da
cabeça do homem, e é por isso que ele não a comanda. Ele também não a criou a partir
do pé do homem, sendo assim, ela não é sua escrava. Ele a criou retirando dele uma
costela, para que ela fique próxima de seu coração.
Mark Twain, em Journal d’Adam et jornal d’Ève2, faz uma sátira dessa primeira
relação entre um homem e uma mulher. Eva se pergunta por que ela ama este homem, e
conclui que ela o ama ‘porque este é seu homem’. Este tipo de amor a invade, sem que
ninguém possa explicar. À guisa de epitáfio, Adão escrevera sobre sua tumba: “Onde
quer que Eva estivesse, era o Eden”.

Nas portas do inferno

Há, em Lacan, diferentes teorias do amor articuladas ao desejo e ao gozo que


levam a diferentes concepções acerca da sexualidade feminina.
A primeira abordagem do amor acentua sua versão imaginária: reversibilidade
da libido narcísica que se transforma em libido objetal. Sobre a base desta afirmação
freudiana, Lacan construiu, no Seminário 4, seu primeiro trípode da necessidade, da
demanda e do amor3. O termo que está excluído é o desejo. Com a satisfação da
necessidade, o dom, ele mesmo, torna-se um signo de amor. Lacan formula que a
frustração do gozo é também uma frustração de amor. O amor é um dom, e é este signo
de amor que demandamos...
Os três termos se modificam com a introdução do desejo: necessidade, demanda
e desejo4. O eixo central que o amor ocupava se desloca em direção ao desejo e tudo se
articula, daí em diante, ao registro simbólico. O amor se torna simbólico e se define a
partir de então como dar o que não se tem, ou seja, que ele está articulado ao falo e à
falta. A demanda é, sobretudo, demanda de amor. Jacques-Alain Miller destaca que

1
Texto publicado em Ornicar? Revue du Champ Freudien, nr 52, 2018. Traduzido por Niraldo de Oliveira
Santos, para uso interno do Cartel: “Seminário 20”. Não revisado.
2
Twain M., Journal d’Adam et jornal d’Ève, Paris, L’oeil d’or, 2005.
3
Lacan, J. O Seminário, livro 4, A relação de objeto. P.
4
Lacan, J. A significação do falo. Escritos. P.
Lacan se orienta, neste momento, por um existe a relação, tanto do lado imaginário
quanto do lado simbólico – relação imaginária própria ao estádio do espelho ou relação
intersubjetiva da inclinação simbólica do amor5. O ponto de ruptura será a afirmação
não há relação.
A necessidade leva a demandar algo para alguém – àquele a quem supomos que
tem -, no amor, demandamos alguém – é uma demanda de ser. A demanda de amor visa
o ser do Outro. Uma vez que o amor é dar o que não se tem, a demanda de amor é uma
demanda de castração. J-A Miller diz isso da seguinte forma: “Eu te amo por alguma
coisa que está em você e que te falta”. Desta forma, o ‘divino detalhe’ é o signo da
castração do Outro6 e não uma simples reversibilidade narcísica, como exprimiria a
fórmula “Eu te amo por me ver como eu me amo”.
A primavera do amor, nesta perspectiva, é então, como a fórmula de Lacan
indica, dar o que não se tem. Este paradoxo é ilustrado pela relação entre o amante que
não tem e não sabe o que lhe falta, e o amado que tem, mas não sabe o que tem. Entre os
dois termos há uma fenda, uma discórdia. Basta amar para se ver preso nesta fenda,
afirma Lacan em seu estudo do Banquete de Platão.
O amor é uma significação que a metáfora do amor produz: a função do amante
se substitui àquela do amado7 como é o caso de Aquiles e de Pátroclo. A escolha de
Aquiles de substituir Pátroclo em sua morte é considerada pelos deuses como a
manifestação do milagre do amor. “A escolha de Moïra, do destino, tem o mesmo valor
que a substituição do ser ao ser8”. Nós encontramos assim, no interior do envelope
fálico, o amor ligado ao ser. Alceste encarna igualmente o amor uma vez que ela toma o
lugar de Admète quando Tânatos vem busca-lo, introduzindo o espaço do
entre-duas-mortes. A metáfora do amor é o fruto desta substituição.
A instantaneidade do amor é ilustrada por Lacan a partir de uma imagem da qual
ele cria um mito: “Esta mão que se estende para o fruto, para a rosa, para a acha que
se inflama de repente, seu gesto de pegar, de atrair, de atiçar é estreitamente solidário à
maturação do fruto, à beleza da flor, ao flamejar da acha. Mas, quando, nesse
movimento de pegar, de atrair, de atiçar, a mão foi longe o bastante em direção ao
objeto, se do fruto, da flor, da acha, sai uma mão que se estende ao encontro da mão
que é a de vocês, e neste momento é a sua mão que se detém fixa na plenitude fechada

5
Miller, J-A. A fuga do sentido. Aula de 7 de fevereiro de 1996.
6
Miller, J-A. Os divinos detalhes. Aula de 10 de maio de 1989.
7
Lacan, J. “Le Séminaire, livre VIII, Le transfert”. Seuil, 2001, p. 63.
8
Ibid, p. 62.
do fruto, aberta da flor, na explosão de uma mão em chamas – então, o que aí se produz
é o amor. (...) A estrutura de que se trata não é de simetria e de retorno. Igualmente,
essa simetria não é uma simetria, pois na medida em que a mão se estende é em direção
a um objeto. A mão que surge do outro lado é o milagre”9. Não se trata mais apenas do
dom do amor, mas do desejo de um objeto.
Lacan se questiona qual é, em relação ao amor, “a função desse fato de que o
sujeito com o qual, dentre todos, temos o laço do amor, seja também o objeto do nosso
desejo10”. Nós amamos o objeto do desejo. E ele acrescenta: “Se este objeto os apaixona
é porque ali dentro, escondido nele, há o objeto do desejo, agalma”11.
O amor é apresentado em seguida, no Seminário 10, como a mediação entre o
gozo e o desejo: “Só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”12, aponta Lacan
com seu aforismo. No início da teorização de Lacan sobre a antinomia entre o gozo
autoerótico e o desejo que está em relação com o Outro, o amor funciona como
mediador porque torna o objeto do gozo agalmático. Ele cria o véu necessário para que
o gozo se apresente como desejo.
Porém, Lacan acrescenta que não podemos esquecer que a paixão de Dante o
deixa às portas do inferno13.

A tentação do desejo

Quando Páris teve que escolher a mais bela das três deusas, sua escolha recaiu
sobre Afrodite uma vez que ela prometeu a ele o amor da mulher mais bela. Os
semblantes com os quais a mascarada feminina se constrói, e o sonho de ser a mais bela,
têm um vínculo particular com o amor.
Para as mulheres em posição feminina, o amor e o desejo convergem sobre o
mesmo objeto. Por outro lado, para os homens, nada impede que o amor e o desejo
possam se separar. Acima de tudo, a questão para as mulheres é de saber por quem elas
se fazem amar – aquele que lhes dá esse estilo de amor erotomaníaco.
Lacan nota que a mulher espera ser amada e desejada por aquilo que ela não é.
Ela não tem e não é – o falo – logo, ela tenta se assemelhar a ele e obtê-lo pelas vias da
9
Lacan, J. O Seminário, livro 8 – A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1992, p. 59.
10
Ibid., p. 149.
11
Ibid., p. 150.
12
Lacan, J. O Seminário, livro 10 – A Angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005, p. 197.
13
Lacan indica no Seminário 8: “este termo, eterno amor, é colocado por Dante, expressamente, nas
portas do inferno” (Lacan, J. O Seminário, Livro 8 – A transferência, op. cit., p.)
metáfora do amor. A liberdade que ela tem sobre os semblantes lhe permite diversas
mascaradas para obter o amor cobiçado, e se tornar, deste modo, única para um homem,
seja ele o íncubo ideal, o pai morto ou o amante castrado a quem ela endereça sua
demanda de amor14.
O véu mostra e esconde. Sobre o véu se projeta e se imagina a ausência, é assim
que ele se torna o ídolo que fixa a condição de escolha do objeto masculino. Por meio
do véu encarnando a mascarada, as mulheres constroem uma aparência (un paraître) e,
ao mesmo tempo escondem. Elas mostram, desta maneira, uma verdade de estrutura:
não-todas frente ao parceiro.
Fazendo-se desejar, a mulher se situa como objeto e, pelas vias do amor, ela
recebe o falo e satisfaz seu desejo de tê-lo obtendo o que lhe falta.
Mas, nem tudo é falo para as mulheres, e ele existe, sob os véus e as mascaradas
que elas oferecem como iscas do desejo, um gozo que excede a cifra fálica. É deste
modo que o significante desliza (se dérobe) e não chega a cobrir completamente o corpo
de uma mulher, ele foge como no tonel das Danaides.
Lacan, no Seminário 10, retoma o mito da criação de Eva a respeito de como a
mulher nasce de uma costela de Adão: “Essa costela lhe foi retirada, não se sabe qual,
e, por outro lado, não lhe falta nenhuma. Mas está claro que, no mito da costela,
trata-se justamente desse objeto perdido. A mulher, para o homem, é um objeto feito
disso”15. Assim, o tratamento fálico da mulher se desloca para o exame de sua posição
de objeto para o outro. Ao tomar a mulher como objeto de seu desejo, o homem fica
ligado à pulsão e ele faz do Outro um objeto a. Isso revela uma verdade de estrutura: o
objeto a é a verdadeira natureza do parceiro.
Neste seminário, Lacan começa a desenvolver sua teoria sobre o gozo feminino.
Ele afirma que as mulheres são superiores no domínio do gozo porque sua ligação ao nó
do desejo é mais flexível do que no lado masculino. A relação entre a negativização do
falo e o complexo de castração é necessário no homem, mas não no caso das mulheres.
Elas guardam uma relação mais estreita com o desejo do Outro, ao mesmo tempo que
sua relação com o gozo não se enquadra necessariamente na vertente fálica.
Em contrapartida, a demanda de ser o falo do Outro torna as mulheres mais
dependentes dos sinais de amor do parceiro. Por que Eva ofereceu a maçã a Adão? “Ela

14
Lacan, J. Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed, 1998. p.
15
Lacan, J. O Seminário, livro 10, A Angústia, op. cit., p. 209.
tenta a si mesma tentando o Outro (...). É o desejo do Outro que lhe interessa”16. Isso
produz a abertura em direção ao Outro do amor. Embora elas sejam mais independentes
das exigências pulsionais porque seu gozo não é localizado, sua demanda de amor só se
torna mais premente. A presença do Outro permanece muito enredada, é por isso que
esta demanda de amor é também demanda de presença: elas obtêm sua satisfação dos
signos do amor que elas esperam receber por meio das palavras. O amor passa pelas
palavras, não apenas pela demanda. É por isto que as mulheres esperam com inquietude
uma palavra de amor e o silêncio do homem pode ser experimentado como falta de
amor. A perda do amor, e especialmente da palavra de amor, toma a forma de castração.
Assim, o amor e o gozo, nas mulheres, tornam-se indissociáveis, nos diz J-A Miller17.

Por que o amor faz sofrer?

Por que as mulheres sofrem de amor? O conceito de masoquismo feminino


apresentado por Freud em “O problema econômico do masoquismo” (1924)18, causou
grande repercussão no meio psicanalítico pós-freudiano e provocou controvérsias
acaloradas por Lacan sob a denominação de “a querela do falo”19. Para Freud, este
masoquismo designa uma situação característica da feminilidade: ser castrada, ser
sexualmente possuída ou dar à luz (être châtrée, être possédée sexuellement ou
accoucher). Lacan recusa esta perspectiva e afirma que se trata de uma fantasia
masculina que, de forma surpreendente, foi desenvolvida pelas mulheres analistas do
círculo freudiano.
Para Helene Deutsch, a feminilidade é uma mistura de passividade, de
narcisismo e de masoquismo20. Ela parte do sofrimento – que ela experimentou em suas
relações com o líder socialista Lieberman – e o transforma no paradigma do ser
feminino. O masoquismo é, do seu ponto de vista, a forma de amor mais poderosa, e ela
chega mesmo a falar de uma “sujeição erótica masoquista”. Contudo, esta porta-voz do
masoquismo não tem nada de masoquista, o que não a impede de construir um universal
feminino.

16
Ibid, p. 209.
17
Miller, J-A. O parceiro sintoma, aula de 14 de janeiro de 1998, & O osso de uma análise.
18
Freud, S. O problema econômico do masoquismo (1924).
19
Lacan, J. A significação do falo. p.
20
Deutsch, H. La psychologie des femmes. Paris, PUF, 1997 et Autobiographie, Paris, Mercure de France,
1986.
Karen Horney, ao contrário de H. Deutsch, critica esta tese concebida
exclusivamente a partir da diferença sexual anatômica, observando que Deutsch deixa
de fora os fatores culturais que levariam uma mulher a aceitar os abusos21.
O masoquismo como a verdadeira natureza da mulher, ou como puro efeito
cultural, não concerne à questão da perversão masoquista. H. Deutsch se desvia,
misturando os estragos do amor e as peripécias da relação do corpo da mulher com o
masoquismo; K. Horney se esquece de que o fator cultural não explica a posição do
sujeito frente ao gozo.
Annie Reich examinou casos de submissão extrema em mulheres que possuíam
as características seguintes: maus tratos e desvalorização, submissão ‘masoquista’ e
passividade, e, acima de tudo, ela se interroga a respeito do êxtase que estas mulheres
experimentam durante a relação sexual22. Susan, que está há anos com um homem com
quem ela tem uma vida sexual apenas esparsa, mas que o acompanha em todos os
lugares, abandona sua carreira, sua família, seus amigos e, apesar da sua decepção com
a vida cotidiana, ela nutre um sentimento de fusão completa na relação sexual que a
deixa feliz. Mary é casada com um homem narcisista e infiel. Ela se submete a este
homem que a maltrata, a insulta e a deixa em uma solidão completa, para ter o prazer de
ter uma relação sexual com ele. A união mística evocada nestes casos e o êxtase
observado fazem A. Reich falar de uma submissão masoquista que produz uma
satisfação. A superestimação destes homens vai na mesma direção da teorização de
Hans Sachs a respeito do supereu postiço que tornam certas mulheres particularmente
dependentes de seus parceiros23. Em A. Reich, o acento é colocado sobre o gozo sexual;
em H. Sachs, o que é apresentado é o lugar do Ideal.
Éric Laurent, examinando o masoquismo feminino, mostra que a busca de
algumas mulheres por encarnar a falta do parceiro, para se fazer amar pelo lado
erotomaníaco do amor, pode leva-las para um “potlatch amoroso”: o sujeito se perde
nos caminhos de dar o que não se tem, exaltando sua posição de amante na espera de
suscitar no parceiro uma reação similar e receber assim um signo de amor24. Ela procura
ser tudo para um homem, sem levar em conta a indignidade do homem em questão, fora
da medida fálica, cruzando assim uma zona que a conduz para além do princípio do

21
Horney, K. La psychologie de la femme, Paris, Payot, 1981.
22
Reich, A. A contribution to the psychoanalysis of extreme submissiveness in women. Psychoanalytic
Quarterly, , 1940, p. 470-480.
23
Sachs, H. Sur um motif de la formation du surmoi féminin (1929), Ornicar?, nr 29, juin 1984, p. 98-110.
24
Laurent, É. Posições femininas do ser.
prazer. É. Laurent opera, em seguida, um deslocamento do conceito de masoquismo
para o de privação: fazer um ser a partir da subtração do ter.
Lacan, no Seminário 17, fala do “gozo de ser privado”25 pelo sujeito na posição
feminina. Mais adiante, ele prefere utilizar o termo devastação no lugar do masoquismo,
para evocar o efeito que pode ter um homem sobre uma mulher. Ser única para um
homem, indica Laurent, pode tomar assim a modalidade de ser “a única a
verdadeiramente compreender, a única a saber o que ele quer verdadeiramente e a poder
satisfaze-lo26, mas isto continua sendo uma demanda de amor.
O masoquismo feminino não é biológico, constitucional ou cultural. Colocá-lo
como uma fantasia masculina permite entrar na particularidade de algumas mulheres
que consentem à fantasia de um homem e que dedicam seu ter a um “se fazer amar”. O
masoquismo pode ser tomado como feminino uma vez que ele rompe a medida fálica
(dans la mesure où il casse la mesure phallique). Não se trata de uma perversão, mas de
uma relação particular com o gozo, para além do falo. Isso abre os caminhos onde o
amor e o gozo se misturam na sexualidade feminina27.

Gozo do amor

O percurso de Lacan em torno do gozo e do amor em seu último ensino abre


novas perspectivas. A partir do Seminário XX, o gozo se torna antinômico com o Outro:
“O gozo – gozo do corpo do Outro – resta, ele, uma questão28”. Lacan indica que o
verdadeiro parceiro do sujeito é o objeto a. Atrás do Outro se encontra o a. No
autoerotismo da pulsão, não há Outro. Como, a partir do gozo autístico, entra-se em
contato com o parceiro? No gozo, homens e mulheres ficam sozinhos. Só o amor
restitui o laço com o Outro. Então uma função inédita do amor se realiza, diz J-A Miller,
na medida em que ele permite estabelecer uma conexão com o Outro: o amor é então
colocado no nível do real da pulsão29.
Qual relação a demanda de amor guarda, então, com o gozo feminino
suplementar? Para as mulheres, a demanda de amor é endereçada, antes de tudo, ao pai;
porém, no que se refere ao gozo, seu automatismo e sua insistência fazem com que ela
25
Lacan, J. O Seminário, Livro 17 – O Avesso da psicanálise. p.
26
Laurent, É. La clinique des Unes-toutes-seules. Mental, nr 31, avril 2014, p. 24.
27
Tendlarz, S. Las mujeres y sus goces (Les femmes et leurs jouissance), Buenos Aires, Colección Diva,
2013. (cf. chapitres 3 et 4).
28
Lacan, J. O Seminário, Livro 20 – Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008, p. 12.
29
Miller, J-A. O parceiro sintoma. Aula de 14 de janeiro de 1998.
se desinteresse da resposta do Outro. Isto é o que explica os erros da vida amorosa
feminina, porque nenhuma resposta estanca a demanda. O gozo em jogo aqui é
concernente ao funcionamento automático da demanda de amor e a via pela qual, por
meio dela, esta demanda permanece submersa por um gozo sem limite.
Na histeria, a demanda faz existir o pai, para quem a histérica dirige seu amor,
velando assim a falta no Outro, que permanece em relação ao ter. Por outro lado,
destaca Miller, a posição feminina implica a articulação de um gozo para além do ter. À
medida em que o amor permanece atado ao gozo, o sujeito, pelas vias da demanda de
amor, goza. Lacan sublinha, no Seminário 23, que uma mulher pode ser um sintoma
para um homem, mas para uma mulher, um homem pode ser qualquer coisa de pior,
uma aflição pior que um sinthoma, trata-se mesmo de uma devastação30. Quando a
demanda de amor endereçada ao Outro ultrapassa o limite fálico, ela retorna como um
excesso. “A devastação, indica J-A Miller, é exatamente a outra face do amor”31: a
anulação do ter articulada ao infinito.
Éric Laurent, em O avesso da biopolítica32, aponta que, na medida em que a
mulher encarna o valor fálico, o valor de gozo por um outro corpo, aquele de um
homem, ela se torna sintoma a decifrar, parceiro-sintoma.
No que diz respeito à relação entre amor e gozo, J-A destaca duas pontuações
fundamentais. A primeira, em 1996, em seu curso A fuga do sentido, quando ele relata
que Lacan, no Seminário 20, estava interessado na sexualidade feminina na medida em
que ela funciona como uma exceção frente ao gozo autista, uma vez que ela permite
estabelecer uma abertura ao Outro. O gozo é relativo ao S(A barrado)33: não é um gozo
relativo ao corpo, mas à não-relação sexual. É a exceção de um gozo misturado com o
amor, um misto de amor e de gozo que opera na sexualidade feminina.
A segunda pontuação se encontra no curso de 2011, intitulado “l’Un tout seul”:
J-A Miller dá um passo além em seu trabalho sobre o último ensino de Lacan,
afirmando que Lacan fez inicialmente uma distinção entre o gozo feminino e o gozo
masculino, mas que, em seguida, ele generaliza o gozo feminino até transforma-lo em
um “regime de gozo como tal”34, que não é edípico e não apaga a distinção entre os dois
gozos35.
30
Lacan, J. “O Seminário, livro 23 – O sinthoma”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p. 98.
31
Miller, J-A. “O parceiro sintoma”. Aula de 18 de março de 1998.
32
Laurent, É. “O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo”. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016, p.
33
Miller, J-A. “A fuga do sentido”. Aula de 21 de fevereiro de 1996.
34
Miller, J-A. “L’Un tout seul”. Aula de 2 de março de 2011, inédito.
35
Ibid.
Se, de acordo com Miller, amar implica, a partir da perspectiva do sinthome, a
escolha de um outro corpo, isto é uma maneira de dar sentido ao gozo.
O amor é a ilusão de fazer Um de dois, ele cria o Um imaginário que dá acesso
ao ser. “O amor visa o ser”36, diz Lacan no Seminário 20. A demanda de amor visa o ser
do Outro, sua presentificação essencial, e se torna uma suplência à ausência da relação
sexual.
O amor é apoiado pela relação “entre dois saberes inconscientes”37. “O ser é
afetado como sujeito do saber inconsciente”38, afirma Lacan. Nós amamos o saber
inconsciente do outro expresso por meio dos signos que mostram como se inscreve o
acontecimento de corpo no parceiro e como ele é afetado por esse saber. Ocorre, assim,
um encontro contingente com os traços do exílio da relação sexual. O afeto que surge
desta fenda dá a ilusão de que a relação sexual cessa de não se escrever. Com esse
deslocamento, o encontro contingente se exprime como necessário: coragem frente ao
destino fatal, diz Lacan, mas também o drama do amor.
Amar não é sinônimo de demandar ser amado, e menos ainda, de sofrer por
amor. A análise retira as mulheres da demanda insistente de amor que não faz mais do
que angustiar o parceiro (partenaire). A metamorfose se produz quando não se trata
mais da falta de amor, do amor que falta, ou do excesso próprio ao gozo da demanda de
amor e da busca enlouquecedora de um signo de amor. O gozo do amor não desaparece,
mas, frente à falta ou o excesso, emerge o que é possível, o encontro contingente com
aquele que pode retira-lo da solidão de seu gozo, localiza seu gozo extático,
circunscreve-o, e toca seu ser por meio do amor. Contrapondo o provérbio do Talmud,
quem sabe ele seja bem sucedido em se alojar perto de seu coração.

36
Lacan, J. “Le Seminaire, livre XX, Encore, p. 40.
37
Ibid, p. 131.
38
Ibid.

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