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IDS TO RNY ag hea ba 2G het ‘oe tes Maria Beatriz Nizza da Silva D. JOAO V Circulo-Leitores REIS DE PORTUGAL DIRECCAO: ROBERTO CARNEIRO COORDENACAO CIENTIFICA: ARTUR TEODORO DE MATOS JOAO PAULO OLIVEIRA E COSTA Em colaboragao com o Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressio Portuguesa da Universidade Catélica Portuguesa Na sobrecapa: Retrato de D, Joao V. Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Lisboa. Foto: José Anténio Silva/Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo. ISBN 972-42-3752-4 9 Ui Capa E DESIGN GRAFICO: Fernando Rochinha Diogo REVISAO TIPOGRAFICA: Fotocompogtéfica, Lda. ComposigAo: Fotocompogrdfica, Lda. FOTOMECANICA: Fotocompogréfica, Lda. © Circulo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expresséo Portuguesa Primeira edigo para a lingua portuguesa Impresso e encadernado em Abril-Maio de 2006 por Printer Portuguesa, Industria Grdfica, Lda. Casais de Mem Martins, Rio de Mouro Edig&o n.° 5975 Depésito legal n.° 241 717/06 Su PARTE | — O QUE OS HISTORIADORES ESCREVE PARTE Il — D. JOAO, PRINCIPE E REI 1. Infancia e aprendizagens 2. Morte de D. Pedro II e subida ao trono - 3. Casamento 4. A rainha e sua casa As amantes do rei Praticas devotas e divertimentos 5. Filhos Morte do principe D. Pedro Casamentos reais Os principes do Brasil 0 filho doente 0 outro D. Pedro Os filhos adulterinos 6. Relacées familiares Os meios-irmaos 0 irmdo violento A educacao dos irmaos mais novos 0 infante D. Antonio Aventuras e desventuras do infante D A infanta D, Francisca A princesa da Beira 7. Confessores e conselheiros 0 poder do confessionario Ouvir e decidir 8. 0 servigo do paco Os palacios Os oficios da Casa Real A mesa do rei As jornadas reais Incidentes no paco As despesas da Casa Real g. Actos de devocao 0 Corpus Christi Outras devocoes A patriarcal Cerimonias da Semana Santa, do Nat IEIRO INTIFICA: YE MATOS A E COSTA com ras de Express4o Portuguesa 2 Portuguesa o dos Arquivos Nacionais/Torre oa. vos Nacionais/Torre do Tombo. 2-4 ! AFICO: Diogo FICA: _ Lda. ‘Lda. A: _ Lda. e Estudos dos Povos Portuguesa ua portuguesa ril-Maio de 2006 tia Grafica, Lda. tio de Mouro 5 L 717/06 | | | Sumario PARTE I — O QUE OS HISTORIADORES ESCREVERAM PARTE II — D. JOAO, PRINCIPE E REI 1. Infancia e aprendizagens 2. Morte de D. Pedro II e subida ao trono de D. Joao V 3. Casamento 4. Arainha e sua casa As amantes do rei Praticas devotas e divertimentos 5. Filhos Morte do principe D. Pedro Casamentos reais Os principes do Brasil 0 filho doente 0 outro D. Pedro Os filhos adulterinos 6. Relagdes familiares Os meios-irmaos 0 irmao violento A educagao dos irmaos mais novos 0 infante D. Antonio Aventuras e desventuras do infante D, Manuel A infanta D. Francisca A princesa da Beira 7. Confessores e conselheiros O poder do confessionario Ouvir e decidir 8. O servigo do paco Os palacios Os oficios da Casa Real A mesa do rei As jornadas reais Incidentes no paco As despesas da Casa Real g. Actos de devogao O Corpus Christi Outras devocdes A patriarcal Cerimonias da Semana Santa, do Natal e do fim de ano D. JO. Canonizagdes e mortes em odor de santidade 0 palacio/convento A liberalidade régia 10. Entre um despacho e outro Serenatas e zarzuelas, Operas e comédias Torneios e combates de touros Outras formas de recreacdo Livros e leituras Passatempos cientificos O espectaculo da fogueira 1. A corte joanina Joias e festas A lei dos tratamentos A compra de capitanias dos Colonia do Sacramento A ocupacéo do Rio Grande Cartografia do territério br Negociacdes do tratado do As novas minas de ouro As frotas do Brasil Descaminhos do ouro Capitacdo e maneio A extraccao dos diamantes 0 trafico de escravos Nas malhas da Inquisi¢ao 0 Estado do Maranhaéo 12. Como a nobreza se divertia 122 Uma antevisao do futuro 13. Doenga e preces pela cura 129 O Estado da india Os médicos da cdmara real 129 A ideia de uma companhia 0 inicio da enfermidade BI Problemas de governo A declaracao dos filhos esptrios B4 A nomeacao do conde de i O governo do marqués de As idas as Caldas 135 A Capela de Sao Joao Baptista na Igreja de Sao Roque 138 Aheranga deixada _ Esmolas, devocdes e missas 140 A costa oriental da Africa 14. O cerimonial da morte 144 0 reino de Angola 15. O herdeiro do trono 148 2. Politica europeia O papel dos embaixadores PARTE II] — ADMINISTRACAO E FUNCIONAMENTO DAS INSTITUICOES 153 0 Tratado de Utreque Relacées com o papado 1. Mecanismos de decisdo 154 A diplomacia e a politica cultu 2. Conselho de Estado e juntas 158 3. A embaixada a China 3. O Conselho da Fazenda 161 4. As despesas da coroa 163 Anexos s. A Casa da Moeda 166 Cronologia 6. As secretarias de Estado 169 7. 0 Conselho Ultramarino 172 Fontes e bibliografia 8. O papel do secretario particular Alexandre de Gusmao 174 9. O rei e a Inquisicdo 178 indice remissivo 10. A corte e a cidade de Lisboa 184 | Lisboa Ocidental e Lisboa Oriental 184 Genealogias A construgao do aqueduto das Aguas Livres 185 Qutras obras na corte 187 Motins urbanos e controle da populacéo 190 A vida na cidade 192 Os suburbios 194 1 Pragmaticas e fabricas 195 12. A doenga do rei e a desorganizacao administrativa 204 PARTE IV — POLITICAS REGIAS 207 L Politica colonial 208 Brasil 208 6 LOSS. SUMARIO A compra de capitanias donatariais Colénia do Sacramento A ocupagdo do Rio Grande de $0 Pedro e 0 povoamento de Santa Catarina Cartografia do territério brasileiro Negociacdes do tratado dos limites As novas minas de ouro As frotas do Brasil Descaminhos do ouro Capitagéo e maneio A extraccaéo dos diamantes 0 trafico de escravos Nas malhas da Inquisic¢éo 0 Estado do Maranhao Uma antevisdo do futuro 0 Estado da india A ideia de uma companhia de comércio Problemas de governo A nomeagdo do conde de Ericeira 0 governo do marqués de Castelo Novo A heranca deixada A costa oriental da Africa O reino de Angola 2. Politica europeia O papel dos embaixadores O Tratado de Utreque Relacées com o papado A diplomacia e a politica cultural 3. A embaixada a China Anexos Cronologia Fontes e bibliografia indice remissivo Genealogias PARTE I O QUE OS HISTORIADORES ESCREVERAM A Academia Real de Historia foi uma criacéo de D. Jodo V e, além de outras tarefas ali em- preendidas em relacdo a historia sagrada e profana de Portugal, os académicos projectaram tam- bém escrever memOrias que possibilitassem mais tarde a elaboracéo de uma historia do reinado deste monarca. Elas constituiriam o material com que se ergueria futuramente a construgao histori- ca, de acordo com a concepgao historiografica setecentista, segundo a qual a histéria constituia o remate de todo um esforco memorialistico. Essas memérias, segundo 0 projecto do académico José da Cunha Brochado, seriam escritas «por matérias separadas, sem grande atencao a cronologia», dado que instaurar a ordem cronolégi- ca caberia ao futuro historiador. Uma delas abordaria «o caracter d'el-rei nosso senhor, suas virtu- des e qualidades verdadeiramente reais, seu ardente zelo para aumento do culto divino», apresen- tando como exemplos desse zelo a procisséo do Corpo de Deus e a construgao da igreja de Mafra’. A imagem transmitida por outro contemporaneo, 0 baiano Sebastido da Rocha Pita, autor da Historia da América Portuguesa (1730), era a de um rei no s6 devoto mas também generoso, quali- dades que mais do que quaisquer outras deveriam caracterizar um monarca. A religiéo constituia, para o cronista, «a mais firme coluna da monarquia», e a generosidade era considerada «0 segundo atributo dos principes». Em relacao a primeira virtude ressaltou: «nao ha templo nem santudrio em Lisboa que nao frequente com os seus votos e com as suas ofertas». Além disso o esplendor da ca- pela real ultrapassava em muito aquele que tivera no tempo de seus antecessores, bem como o das procissdes, em especial a de Corpus Christi, celebrada com tal magnificéncia e pompa que causava espanto em todas as nagées catdlicas. Quanto a sua liberalidade, lembrou os «repetidos socorros do ouro das suas minas» enviados contra o «formidavel poder maometano»’. Aquilo que aparecia como virtude aos homens setecentistas foi denunciado como grave defeito pelo historiador Oliveira Martins no século xix. Este criticava «a voragem do luxo e da devocao do espaventoso e beato monarca>. D. Joao V era, ao mesmo tempo, «balofo e carola». Amava as ceri- ménias e conhecia todos os pontos da etiqueta do paco e da Igreja. «Emproado, soberano, a peruca majestosa, 0 pulso em fofas rendas, com a mao sobre a bengala, risonho de si, passeava os olhos pelo cendrio da épera faustosa. Vestia-se de Paris.» Além disso, perdia a cabeca por todas as mu- Iheres, desde a Petronilha, da pera do Bairro Alto, até a madre Paula do convento de Odivelas?. Ribeiro Guimaraes, em Sumédrio de Varia Historia, colectanea de artigos publicados no Jornal do Comércio, contribuiu para a divulgacao da imagem do rei freirdtico, referindo as muitas tradi¢oes orais a respeito do convento de Odivelas, onde o monarca «se deleitava no trato com as freiras», em especial com a madre Paula, que ali vivia uma evida mais mundana do que claustral», habitando magnificos aposentos juntamente com sua irma Maria da Luz. Sem citar a fonte, como era habitual fazer-se no século xix, transcreveu um longo texto no qual eram minuciosamente descritos 0s va- rios aposentos habitados por estas irmas no espaco conventual e os méveis luxuosos que os guar- neciamé. - A critica ao esbanjamento de D. Joao V é feita por este autor sobretudo a respeito das benes- ses concedidas ao primeiro patriarca de Lisboa e aos membros da patriarcal, com os quais se des- 'BNL — Céd. 9889, 13, «Método para se escreverem as memédrias para a historia do reinado d’el-rei>. 2 Pra, Historia da América Portuguesa, Belo Horizonte, Itatiaia, 1976, Livro 9, §§ 6-10. 3 MARTINS, 1972, PP. 436-449. 4 GUIMARAES, 1872, vol. 1, t. 2, pp. 67-70. 10 O QUE OS HIE pendiam anualmente mais de 400 contos ¢ o desperdicaram, por isso veio a faltar de se nao cuidava de todos os ramos da gove Na mesma época Manuel Bernardes Ba de 1885, lembrou, contudo, que os defein escrever conscienciosamente acerca de D portugués daquela época, e deve tambér: reinado do monarca que tanto fez, ou pal que a fama com o seu clarim apregoasse nossa querida nacdo.» Mas nao deixou de lia real passassem 0 tempo em visitas as # Para Teéfilo Braga, embora o rei tive mental continuava entregue a «monopoliz gdes faradnicas de igrejas e conventos» a «esse extraordindrio capital corrompia, né teratura». E finalizava referindo a decadé epiléptico, faustoso como Luis XIV, devas Em tom chocarreiro e estilo coloquia da mais longe nas criticas a D. Joao V, 4 algumas qualidades, estas pouco valiam: magnificas, que a maior parte das vezes vres, Além disso nao defendeu o Rio de uma bela esquadra para ir em socorro C ergueu-se zelo para aumento do culto divino», apresen- po de Deus e a construcao da igreja de Mafra’, . 0 baiano Sebastido da Rocha Pita, autor da 81 Ndo SO devoto mas também generoso, quali- aracterizar um monarca. A religido constituia, € a generosidade era considerada «o segundo e ressaltou: «nao ha tempio nem santudrio em S suas ofertas». Além disso o esplendor da ca- tempo de seus antecessores, bem como o das a com tal magnificéncia e pompa que causava beralidade, lembrou os «repetidos socorros do oder maometano»?, lecentistas foi denunciado como grave defeito Titicava a bengala, risonho de si, passeava os olhos lém disso, perdia a cabe¢a por todas as mu- té 4 madre Paula do convento de Odivelas3. ‘olectanea de artigos Publicados no Jornal do fei freiratico, referindo as muitas tradicdes larca «se deleitava no trato com as freiras», a mais mundana do que claustral», habitando da Luz. Sem citar a fonte, como era habitual qual eram minuciosamente descritos os vA- nventual € Os méveis Iuxuosos que os guar- este autor sobretudo a respeito das benes- rembros da Patriarcal, com os quais se des- memorias para a historia do reinado d'el-reir. Itatiaia, 1976, Livro 9, §§ 6-10. O QUE OS HISTO! pendiam anualmente mais de 400 contos de réis, «E Para tudo chegava o dinheiro entdo, mas como © desperdicaram, por isso veio a faltar depois, e faltava jé nessa época para outras coisas, porque se nao cuidava de todos os ramos da governacao publica com tanto desvelo e afa como do culto.»' Na mesma época Manuel Bernardes Branco, no prélogo de seu Portugal na Epoca de D. Joao V, de 1885, lembrou, contudo, que os defeitos do rei eram os defeitos de seu tempo: «Quem desejar escrever conscienciosamente acerca de D. Jodo V deve estudar a fundo o viver fanatico do povo Portugués daquela época, e deve também fazer algum estudo no viver de outros Povos durante o reinado do monarca que tanto fez, ou para falar com mais rigor hist6rico, que mais trabalhou para que a fama com o seu clarim apregoasse nos mais distantes e ocultos lugares do globo o nome da nossa querida na¢ao.» Mas nao deixou de criticar, em um capitulo do seu livro, que o rei e a fami- lia real passassem o tempo em visitas as igrejas e aos conventos e em outras devocoes. Para Te6filo Braga, embora 0 rei tivesse resolvido proteger oficialmente a literatura, a cultura mental continuava entregue a «monopolizagao fradesca». D. Jodo V despendeu «a doida em constru- ¢0es faradnicas de igrejas e conventos» os recursos provenientes das minas de ouro do Brasil, mas «esse extraordinario capital corrompia, nao fecundava; isso se manifestou tanto na arte como na li- teratura». E finalizava referindo a decadéncia nacional agravada com «os desvairamentos de um rei epiléptico, faustoso como Luis XIV, devasso como Luis XV, fanatico como Filipe Il? Em tom chocarreiro e estilo coloquial, Pinheiro Chagas, em Historia Alegre de Portugal, foi ain- da mais longe nas criticas a D. Jodo V, «um dos piores que nés tivemos». Embora the reconhecesse algumas qualidades, estas pouco valiam: «ndo pensava sendo no beatério e em obras grandes e mMagnificas, que a maior parte das vezes para nada serviam», exceptuado o aqueduto das Aguas Li- vres. Além disso nao defendeu o Rio de Janeiro dos ataques dos Franceses, mas soube organizar uma bela esquadra para ir em socorro do papa combater os Turcos. Nao se abriam estradas, mas ergueu-se «aquela monstruosidade do convento de Mafra», que custou i20 milhoes. Mesmo as vité- rias diplomaticas no foram dele, e sim dos homens que soubera empregar: «Dizem que nunca dei- XOU aS nacdes estrangeiras pér pé em ramo verde connosco. Quem lhe valeu para isso foram os di- plomatas que teve, que nunca em Portugal os houve tao bons.» Ao coro oitocentista denegrindo D. Joao V se contrapde a voz de Eduardo Brazao Nos anos 30 do século xx. Na introdugao ao seu estudo sobre as relagoes diplomaticas de Portugal com a Santa Sé, que ele considerava desfiguradas «por esse maléfico espirito magé6nico-liberal», lemos: «Esse rei megalomano e freiratico, flacido de carnes e sem ideais patridticos, que passou a vida, bocejando como um animal saciado, dos bracos da madre Paula ou da Margarida do Monte para as festas ma- Jestosas da patriarcal, nao existiu, 6 uma versao apocrifa e bem maldosa dum monarca que prestou altos e relevantes servicos a Portugal.»* Com o estudo mais apurado da documentagao do reinado de D. Jodo V, procurou mostrar que a imagem estereotipada do rei magnanimo tinha como objecti- Vo a luta politica oitocentista, e nado um conhecimento daquilo que efectivamente o monarca reali- zara. Que a importante documentacao levantada e publicada por este historiador nao nos faga con- tudo esquecer que Eduardo Brazdo também visava objectivos politicos ao procurar refazer a imagem régia destorcida pelo espirito «mag¢onico-liberal». A historiografia mais recente propés-se igualmente reavaliar a devogdo do monarca, concen- trando-se na andlise do luxo dispendioso como forma de exaltagéo do poder régio, desculpando deste modo a concentragao de despesas em obras devotas ao contrério do que ocorria nos textos dos historiadores de Oitocentos. Significativas s4o as palavras de Ana Cristina Bartolomeu de Aratijo contra a historiografia oitocentista: «Nao podemos deixar de assinalar os tragos grotescos com que ' Ibid., vol. 2, t. 4, p. 198. * BRAGA, 1918, pp. 8-10. *CHacas, s.d., oitavo serao. * BRAZAO, 1937, introducao. re D. JOAO V a historiografia positivista dos séculos xix e xx, embora apta a demonstrar a autenticidade das fon- tes e dos factos, recobriu a figura de D. Jodo V, emparedando-a entre o convento e a alcova.»! D. Joao V é hoje representado por muitos historiadores nao mais como beato e perdulario, mas como um rei que sempre demonstrou um grande interesse pelos assuntos de politica interna e ex- terna, sabendo informar-se das questées que despachava com seus conselheiros, e sendo capaz de formular uma estratégia para colocar Portugal ao mesmo nivel das principais monarquias europeias, Para o que reservou elevadas quantias a serem gastas nas relagoes com o papado e as principais cortes da Europa. Podemos ler no volume Portugal da Paz da Restauragéo ao Ouro do Brasik «Ao contrario das afirmagées de uma tradicao historiogréfica liberal, que caracterizou a “perdularia” e faustosa politi- ca diplomatica de D. Jodo V com Roma como fruto de “caprichos beatos” ou de “uma religiosidade fanatica", prefigura-se nas intmeras diligéncias do monarca e dos seus conselheiros para alcancar concessoes honorificas, prerrogativas e direitos excepcionais para a Coroa portuguesa, uma clara estratégia de poder que, para além da conhecida devocdo religiosa do monarca, promove uma ima- gem renovada e prestigiante de Portugal nos centros decisérios da politica europeia.»? Enquanto a mais jovem geracao de historiadores portugueses, e também muito especialmente os historiadores da arte, se esforcam em seus estudos por reabilitar a imagem de um monarca tao criticado pela historiografia oitocentista, apresentando-o como uma figura luminosa, ainda que tea- tral, na série de reis portugueses, um dos historiadores que mais escreveu sobre este reinado, e que mais contribuigées sdlidas trouxe para sua andlise, Luis Ferrand de Almeida, dedicou-se a figu- ra de D. Jodo V com menos empatia e deslumbramento, mas com um rigor que o fez abordar novas facetas de um polémico reinado. Procurou em primeiro lugar definir 0 que fazia dele um monarca absoluto. Chegou a conclusdo de que o absolutismo joanino era de cardcter Pratico, «sem a preocupacdo de construir uma doutri- na que lhe servisse de fundamento e justificagao, ao contrario do que veio a suceder na época pombalina>3, Enquanto a convocacao de cortes ia caindo no esquecimento, principalmente a partir da década de 1720, as ac¢des paternalistas do monarca iam-se intensificando, quer por ocasido de situacdes catastroficas, como a febre amarela de 1723 Ou a seca terrivel de 1734-1735, como mais quotidianamente nas audiéncias puiblicas concedidas Por D. Joao V trés vezes por semana, nas quais atendia néo s6 a nobreza como pessoas de qualquer condicdo. Ferrand de Almeida acentuou por um lado a decadéncia de instituig6es como o Conselho de Es- tado e por outro a preferéncia do monarca Por trabalhar com um tnico interlocutor. $6 com a mor- te do secretario de Estado, Diogo de Mendonca Corte Real, em 1736, se resolveu D. Jodo V a criar as instituicdes necessdrias ao bom andamento dos Papéis: trés secretarias de Estado (Reino, Neg6- cios Estrangeiros e da Guerra e Marinha e Ultramar), sem contudo prescindir de conselheiros varios que de certo modo se sobrepuseram sempre a esfera institucional, e de seguir sobretudo a opinido de um deles, o cardeal da Mota. Menos interessados nestas questoes, os historiadores da arte se entusiasmam com D. Joao Ve com as obras por ele deixadas, valorizam seu coleccionismo e a proteccdo régia a arquitectos, pin- tores, escultores e gravadores estrangeiros, interpretam a construgaéo de Mafra como um desejo de afirmacao do poder monarquico e exaltam a entrada em forca da arte italiana em Portugal. Marie-Thérése Mandroux-Franca insurge-se contra a imagem pejorativa transmitida por Oliveira Martins e ressalta «uma verdadeira politica artistica coerente e programada» de um rei que, em vez de desbaratar futilmente as riquezas em ouro e diamantes chegadas com as frotas do Brasil, teria * ARAUJO, 1989, Pp. 173. ? LOURENGO, 2001, p. 26. 3 ALMEIDA, 1995, p. 184. O QUE OS HI deixado uma bela coleccao de pintura e 1 vesse destruido. E foi a reconstituicéo di anos. Para Nuno Saldanha, ao apresentar a de D. Joao V, «a corte de Lisboa, e os cer: verdadeiramente inovador e europeizante das suas congéneres europeias». Para ele controversos e um dos menos estudados mercado a alterar recentemente em histori te periodo». Por outro lado lembrava o er nado joanino», sempre apresentado com diversas condenacoes pelos gastos ai efec ra para além do republicanismo». Na apresentacdo de uma coleccao de valho ressalta o papel da Academia Real desenho, da gravura e da impresséo em I Pierre Antoine Quillard e 0 arquitecto ros mia de Arte em Roma para os artistas D. Jodo V o que interessava era a teatrali Nao ha duvida de que D. Joao V é un da pela historiografia oitocentista e da e ciados pela historiografia da compreensa cronismos ditados por uma mentalidade Para o bidgrafo, que ndo se prop6e por meio de suas accdes e seus pensame efectivamente deciséo e opcdo de D. Joa mento com os individuos que o cercavas eram colocadas e, se possivel, entrever se Nao ha duvida de que o rei soube ro nhavam, como Manuel de Azevedo Fortes secretario particular, ou ainda D. Luis da tou completamente os contactos com aqu mo Jacob de Castro Sarmento, a quem co E embora muitas das suas decisées politi breza cortesa, a verdade é que D. Joao ‘ varias acerca de uma multiplicidade de a dade substancial de pareceres e de meme publica dos filhos adulterinos do rei. A tarefa mais dificil, e talvez impossin que ser e parecer se confundiam, destrir de seu quotidiano, os gestos mais come Aqui de nada nos servem os inumeros p rei, pois s6 é posto em linguagem impres. paramos com descricées das regras de se pecifica dos pratos ou das bebidas servic naria, a ndo ser que o rei nao gostava c pois um quadro representa-o bebendo e: gais, mas quaisquer papéis a eles concer mstrar a autenticidade das fon- e O convento e a alcova.»! s como beato e perduldrio, mas untos de politica interna e ex- conselheiros, e sendo capaz de rincipais monarquias europeias, com 0 papado e as principais ro do Brasil «Ao contrario das 1 “perduldria” e faustosa politi- atos” ou de “uma religiosidade pus conselheiros para alcancar | Coroa portuguesa, uma clara 0 monarca, promove uma ima- Mitica europeia.»? também muito especialmente a imagem de um monarca téo igura luminosa, ainda que tea- screveu sobre este reinado, e de Almeida, dedicou-se a figu- rigor que 0 fez abordar novas absoluto. Chegou 4 conclusdo aca de construir uma doutri- que veiO a suceder na época nento, principalmente a partir sificando, quer por ocasiéo de Tivel de 1734-1735, como mais S vezes por Semana, nas quais i¢des como oO Conselho de Es- 0 interlocutor. S6 com a mor- se resolveu D. Jodo V a criar arias de Estado (Reino, Negd- scindir de conselheiros varios de seguir sobretudo a opinido ntusiasmam com D. Jodo V e c¢ao régia a arquitectos, pin- de Mafra como um desejo de italiana em Portugal. ativa transmitida por Oliveira mada» de um rei que, em vez rom as frotas do Brasil, teria O QUE OS HISTORIADORES ESCREVERAM deixado uma bela coleccdo de pintura e gravura adquirida no estrangeiro se o terremoto a no ti- vesse destruido. E foi a reconstitui¢do dessa coleccao perdida que se dedicou nos ultimos vinte anos. Para Nuno Saldanha, ao apresentar a exposicao organizada em 1994 sobre a pintura no reinado de D. Joao V, «a corte de Lisboa, e os centros dependentes dela, assumiram neste periodo um papel verdadeiramente inovador e europeizante, centrando na capital grande parte da actividade artistica das suas congéneres europeias». Para ele o reinado de D. Joao V «é paradoxalmente um dos mais controversos e um dos menos estudados da nossa historiografia>, embora a situacdo se tivesse co- mecado a alterar recentemente em historia de arte com «uma revalorizacdo da pintura romana des- te periodo». Por outro lado lembrava o empreendimento de Mafra, «emblema por exceléncia do rei- nado joanino», sempre apresentado como um exemplo de politica artistica perdularia, «alvo de diversas condenagdes pelos gastos ai efectuados, numa perspectiva laica e liberal, que se prolonga- ra para além do republicanismo». Na apresentacéo de uma coleccao de desenhos da Biblioteca Nacional de Lisboa, Ayres de Car- valho ressalta o papel da Academia Real da Hist6ria criada pelo monarca no desenvolvimento do desenho, da gravura e da impressao em Portugal, a chegada de artistas estrangeiros como 0 pintor Pierre Antoine Quillard e o arquitecto romano Canevari, e por outro lado a criagao de uma Acade- mia de Arte em Roma para os artistas portugueses, a0 mesmo tempo que reconhece que para D. Jodo V o que interessava era a teatralidade da Igreja e a sumptuosidade da religiao. Nao ha duivida de que D. Jodo V é uma figura polémica, objecto da extrema antipatia expressa- da pela historiografia oitocentista e da extrema empatia de uma geracao de historiadores influen- ciados pela historiografia da compreensdo, desejosos de uma reconstituicao do passado sem ana- cronismos ditados por uma mentalidade que néo 6 a que domina na época do objecto de estudo. Para 0 bidgrafo, que néo se propde estudar um reinado mas sim caracterizar um personagem por meio de suas accdes e seus pensamentos, a tarefa principal é tentar destringar aquilo que foi efectivamente decisdo e op¢ao de D. Joao V nas varias fases da sua vida, perceber seu relaciona- mento com os individuos que o cercavam, determinar seu modo de resolver as questées que the eram colocadas e, se possivel, entrever seus sentimentos e emocdes. Nao ha dtivida de que o rei soube rodear-se de individuos adequados as funcoes que desempe- nhavam, como Manuel de Azevedo Fortes, engenheiro-mor do Reino, ou Alexandre de Gusmao, seu secretario particular, ou ainda D. Luis da Cunha, diplomata de grande inteligéncia e saber. Nao cor- tou completamente os contactos com aqueles que viviam fora do pais por temor da Inquisi¢ao, co- mo Jacob de Castro Sarmento, a quem consultou sobre a reforma dos estudos médicos em Portugal. E embora muitas das suas decides politicas ficassem nas mos de cardeais ou de membros da no- breza cortesa, a verdade é que D. Jodo V era dotado de uma grande capacidade de ouvir opinides varias acerca de uma multiplicidade de assuntos. A documenta¢do dos arquivos inclui uma quanti- dade substancial de pareceres e de memérias sobre questdes que iam das pragmaticas a declaracéo publica dos filhos adulterinos do rei. A tarefa mais dificil, e talvez impossivel, é procurar numa época em que a imagem era tudo, em que ser e parecer se confundiam, destringar 0 que D. Joao V efectivamente sentia, 0s pormenores de seu quotidiano, os gestos mais comezinhos como comer e beber, suas alegrias e suas tristezas. Aqui de nada nos servem os inumeros panegiricos publicados, nem mesmo as cartas escritas pelo rei, pois so é posto em linguagem impressa ou epistolar aquilo que era adequado a figura régia. De- paramos com descrigées das regras de servir a mesa do rei, mas nunca encontramos a indicagao es- pecifica dos pratos ou das bebidas servidas, nem sequer das preferéncias reais em matéria de culi- néria, a ndo ser que 0 rei nao gostava de vinho e nao o consumia, ou que apreciava o chocolate, pois um quadro representa-o bebendo essa iguaria americana. Alude-se a seus amores extraconju- gais, mas quaisquer papéis a eles concernentes eram mantidos em segredo e finalmente destruidos, 13 D. JOAO V para que nada maculasse a imagem construida. Esses amores pertenciam ao nivel da oralidade, dos rumores cochichados pelas salas do paco e nas casas dos nobres. Sabemos que trajos usava nas ce- riménias ptiblicas, mas ignoramos o que vestia na privacidade de seus aposentos. Todos os docu- mentos referem sua magnifica livraria, mas nenhum indica o que efectivamente gostava de ler. Sempre nos relatos dos estrangeiros surgem alguns tragos do caracter do rei. Um deles escre- veu que D. Jodo V era considerado pessoa espirituosa e de engenho, mas completamente destituido de cultura; que era extraordinariamente mordaz e irritadi¢o, chegando a extremos com os que o ro- deavam, nao parecendo por vezes ser um principe e muito menos um rei; que apreciava excessiva- mente a magnificéncia e a ostentacéo. Um outro confirmou o caracter explosivo do rei ao narrar o Tumor que corria de que, num dia de mau humor, o monarca atirara um tinteiro a cara do secreta- Tio de Estado. Mas estes tragos correspondiam a rumores apenas, pois esses estrangeiros nao co- nheciam de perto D. Jodo V, nem com ele conviviam'. O aspecto fisico do rei 6 mais facil de ser conhecido, nao s6 pelos retratos existentes, mas tam- bém por algumas descri¢ées de franceses que passaram por Lisboa. Um deles escreveu em 1730 que o rei era de estatura acima do vulgar, tinha um rosto agradavel, «ainda que moreno», porte majes- toso, trajando a francesa pois recebia todo o seu espléndido guarda-roupa de Paris. César de Saus- sure, no mesmo ano, completou esta descri¢éo escrevendo que 0 monarca usava uma grande cabe- leira negra, empoada, e se vestia habitualmente com grande magnificéncia’. Por seu lado um panegirista nacional retratou D. Joao V «de estatura perfeita, nao muito alto, mas mui proporcionado, rosto quase redondo, olhos alegres e formosissimos, a testa espacosa, na- riz aquilino, boca engragada, alvo e mui rosado». Depois deste retrato fisico, em que, ao contrario daquele esbogado pelo francés, o autor escamoteia a cor morena da pele do monarca, algumas ca- racteristicas sao enumeradas, as quais se adequavam perfeitamente a realeza: «Foi o mais bem feito e airoso, o mais bizarro no vestir e trajar, e 0 mais desembaragado nas accdes, montando a cavalo com seguran¢a e garbo, jogando as armas com primor e cagando com destreza singular.»3 Talvez nunca um rei tenha sido objecto de tantos panegiricos como D. Jodo V, mas isto nao sig- nifica que a imagem ali projectada esteja de acordo com a realidade. Trata-se de uma imagem lite- rariamente construida de acordo com os canones da época, e o historiador pouco aproveita dessas paginas escritas em louvor do monarca. E com outro tipo de documenta¢do que o bidgrafo procura apresentar uma imagem mais realista, para além das regras de etiqueta e do cerimonial de corte. Nem sempre o consegue, contudo, mas como o que aqui se apresenta nao é uma biografia roman- ceada, 0 leitor tera de se contentar com o que foi descoberto, através sobretudo de inumeras gaze- tas manuscritas conservadas na Biblioteca Nacional e na Biblioteca Publica de Evora. Algumas tém sido ultimamente publicadas, gragas ao esfor¢o de um nucleo perseverante de pesquisadores; ou- tras o viréo a ser, completando assim a informagao da Gazeta de Lisboa, que surgiu precisamente neste reinado. ' O Portugal de D. Jodo V Visto por Trés Forasteiros, 2.2 ed., Lisboa, Biblioteca Nacional, 1989, pp. 267 e 146. ? Ibid. pp. 50 e 267. . 3 MACHADO, Relac¢déo da Enfermidade, Ultimas Acgoes, Morte e Sepultura... Lisboa, 1750, p. 45. 14 mores pertenciam ao nivel da oralidade, dos jos nobres. Sabemos que trajos usava nas ce- vacidade de seus aposentos. Todos os docu- fica o que efectivamente gostava de ler. S trapos do caracter do rei. Um deles escre- » de engenho, mas completamente destituido ico, chegando a extremos com os que 0 ro- uito menos um rei; que apreciava excessiva- mou 0 caracter explosivo do rei ao narrar 0 ynarca atirara um tinteiro a cara do secreta- WES apenas, pois esses estrangeiros ndo co- 9, NaO SO pelos retratos existentes, mas tam- | por Lisboa. Um deles escreveu em 1730 que gradavel, «ainda que moreno», porte majes- ndido guarda-roupa de Paris. César de Saus- ndo que o monarca usava uma grande cabe- ande magnificéncia’. pao V «de estatura perfeita, ndo muito alto, eres e formosissimos, a testa espacosa, na- s deste retrato fisico, em que, ao contrario o morena da pele do monarca, algumas ca- rfeitamente a realeza: «Foi o mais bem feito embaracado nas accées, montando a cavalo cacando com destreza singular.»3 inegiricos como D. Jodo V, mas isto nao sig- n a realidade. Trata-se de uma imagem lite- oca, e 0 historiador pouco aproveita dessas 0 de documentacao que o bidgrafo procura gras de etiqueta e do cerimonial de corte. i se apresenta néo é uma biografia roman- berto, através sobretudo de intimeras gaze- a Biblioteca Publica de Evora. Algumas tém niicleo perseverante de pesquisadores; ou- Gazeta de Lisboa, que surgiu precisamente d.. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1989, pp. 267 e rte € Sepultura..., Lisboa, 1750, p. 45. PARTE I D. JOAO, PRINCIPE E REI 1. Infancia e aprendizagens 22 de Outubro de 1689, pelas 9 e meia da manha, nasceu no pa¢o de Lisboa D. Joao, filho de D. Pedro II e de Maria Sofia de Neuburg. Nao circulando ainda a Gazeta de Lisboa, e desco- nhecendo-se gazetas manuscritas dessa época, torna-se dificil obter pormenores acerca do parto real, como por exemplo o nome das pessoas que a ele assistiram além dos médicos e cirurgides. Também se ignora quem foi a ama-de-leite do recém-nascido. Ha noticia apenas de que seu nasci- mento foi recebido com tanto maior satisfac¢éo quanto, em 1688, um outro principe D. Joao morrera com apenas 18 dias de vida’. O herdeiro da coroa foi baptizado na capela real a 1g de Novembro de 1689. A chamada fase de cria¢éo, que em geral se prolongava até aos 3 anos de idade, sé mereceu a atencao dos médicos bem mais tarde com a publicagéo do Tratado de Educagao Fisica dos Meninos, de Francisco de Melo Franco. Para os finais do século xvii sé dispomos da obra do jesuita Alexan- dre de Gusmao, publicada em 1685, Arte de Criar bem os Filhos na Idade da Puericia, mas este |i- vro, escrito por alguém que viveu a maior parte da sua vida no Brasil, visa a sociedade colonial, e nao a infancia de um principe, ao condenar por exemplo a entrega das criancas a amas-de-leite es- cravas, ou ao criticar 0 excessivo luxo no vestuario infantil, questées estas que ndo se colocavam na corte portuguesa para o herdeiro da coroa. Mas um ponto deve ser ressaltado na obra do padre Gusméao: a discussao do conceito de infan- cia, diferentemente balizada pelos autores que tinham tratado do assunto. Uns a prolongavam até OS 7 anos, outros a limitavam até o momento em que as Criancas comegavam a falar; para outros ainda a infancia durava tanto quanto o periodo da amamentagao e havia também quem apontasse a «luz da razéo» para o término da primeira fase da vida. Segundo o jesuita a infancia terminava quando a crianca passava a ter «acco racional» e deixava de necessitar, para viver, «de alheio so- corro»*. Hoje esquecemo-nos por vezes de que conceitos aparentemente intemporais como o de in- fancia, por exemplo, sao pelo contrario profundamente historicos. Cada sociedade e cada época conceitua a seu modo o que é ser crian¢a. A sociedade de corte reconhecia que a primeira fase da vida do futuro rei tinha de ser entre- gue a mulheres, e que sO mais tarde entrariam em cena os elementos masculinos. O papel da aia, que no caso de D. Joao e de seus irmaos foi a marquesa do Unhao, era mais decorativo do que fun- cional. A aia pertencia ao grupo dos servidores do paco, recrutados entre os membros masculinos e femininos da nobreza, e constituia mais um cargo honorifico, com escassa actuacdo na fase de ama- mentacdo, a nao ser na superintendéncia da ama-de-leite, e também mais tarde na educacéo do menino. Certamente era a aia que lhe ensinava os rituais de corte e por vezes as primeiras nogdes de escrita, como efectivamente ocorreu no caso do jovem principe. ‘Siva, Elogio Fiinebre..., p. 19. ? GusMAo, Arte de Criar bem os Filhos na Idade da Puericia, p. xx da introducao. 16 INFAN De sua mae poderia D. Jodo ter rece muito branca e com os cabelos louros, : humor dificil que afastava de si as pess como para lhe desejar boas festas, ou p tico, de tal modo que ela vive muito os filhos, de acordo com o cerimonial fluéncia duradoura sobre o herdeiro do No inicio do seu casamento D. Mar repreendeu-a tantas vezes e com tal se res. Com o tempo foi-se tornando deve conventos. Tinha muitos citimes do mal nao se conseguia conter e censurava-lh conduta em particular», o que, diga-se ¢ Ihos ilegitimos de D. Pedro Il. Nos seus que dela se aproximavam, e os proprio: tas entre o rei e a rainha «que era caso Segundo este observador estrangeir de bons sentimentos, mas ao que tudo de um preceptor, e a sua instrucdo era D. Joao, o que para o francés nao era i A rainha D. Maria Sofia morreu a . D. Jodo tinha 10 anos, e o principe e s levado do palacio da corte real para o fegressado a Portugal quando enviuvou do no seu palacio da Bemposta, onde f com ele na vida quotidiana. Na verdade o menino viu-se rodea meiro confessor, morto em 1706. Depo meida, prior da igreja da Madalena, e, gentilmente, como testemunham algum que de Cadaval»>. Aprendeu latim com liano), e com o padre Luis Gonzaga, da matéria muito do seu gosto, segundo : rei, e de se ver impedido com 0 peso servacdes, reconhecendo que com a M evidéncias de uma perfeita ciéncia». Ha também noticia de um manusa dou o padre Luis Gonzaga ensinar a te depois emendado para exame militar’ D. Jodo V a assistir, em 1715, as conclu fia, Nautica e Astronomia de Dionisio zeta de Lisboa, que também informou habitual nas saidas régias®. '«Memérias sobre Portugal no reinadc 2 Ibid. 3 Sousa, Hist6ria Genealogica da Casa 4Sitva, Elogio Funebre..., pp. 25-26. 5 CARITA, 1996, nota 4. 6 Gazeta de Lisboa, n.° 13, 1715. gens No paco de Lisboa D. Joao, filho de ainda a Gazeta de Lisboa, e desco- obter pormenores acerca do parto am além dos médicos e cirurgides. 4 noticia apenas de que seu nasci- um outro principe D. Jodo morrera a capela real a 19 de Novembro de a0S 3 anos de idade, s6 mereceu a do de Educagao Fisica dos Meninos, spomos da obra do jesuita Alexan- ; Na Idade da Puericia, mas este li- Brasil, visa a sociedade colonial, e ga das criancas a amas-de-leite es- estées estas que ndo se colocavam : a discussdo do conceito de infan- fo assunto. Uns a prolongavam até as comecavam a falar; para outros e havia também quem apontasse a 1do 0 jesuita a infancia terminava ecessitar, para viver, «de alheio so- lemente intemporais como o de in- ros. Cada sociedade e cada época a do futuro rei tinha de ser entre- nentos masculinos. O papel da aia, 0, era mais decorativo do que fun- los entre os membros masculinos e 1 escassa actuacdo na fase de ama- mbém mais tarde na educacéo do te € por vezes as primeiras nocdes e. x da introdugaéo. INFANCIA E_APRENDIZAGENS ecsmamone De sua mae poderia D. Jodo ter recebido alguma influéncia alema, mas a rainha, de belo porte, muito branca e com os cabelos louros, era, segundo um francés seu contemporaneo, dotada de um humor dificil que afastava de si as pessoas: «as damas evitam vé-la, excepto nos dias de ceriménia, como para lhe desejar boas festas, ou para a cumprimentar pelo seu nascimento ou o seu onomas- tico, de tal modo que ela vive muito tristemente»'. E certamente 0 pouco contacto que tinha com os filhos, de acordo com o cerimonial de corte, néo contribuiu para que exercesse qualquer in- fluéncia duradoura sobre o herdeiro do trono. No inicio do seu casamento D. Maria Sofia gostava de beber vinho e de jogar, mas D. Pedro II repreendeu-a tantas vezes e com tal severidade que ela se viu obrigada a abandonar esses praze- res. Com o tempo foi-se tornando devota e para se distrair passava a maior parte do tempo nos conventos. Tinha muitos citimes do marido e esta atitude provocava o mau humor do rei, mas ela nao se conseguia conter e censurava-lhe «tudo o que a sua curiosidade lhe tinha feito saber da sua conduta em particular», 0 que, diga-se de passagem, nao era pouco, como veremos ao tratar dos fi- thos ilegitimos de D. Pedro II. Nos seus ataques de citime e de mau génio ela maltratava todos os que dela se aproximavam, e os préprios filhos sofriam com eles. Houve por vezes cenas t4o violen- tas entre o rei e a rainha «que era caso para se recear os maiores extremos»?. Segundo este observador estrangeiro, 0 principe de 9 anos parecia ser dotado de inteligéncia e de bons sentimentos, mas ao que tudo indicava sua educac¢ao era pouco cuidada pois nao dispunha de um preceptor, e a sua instrucdo era ministrada por um jesuita. Este padre passava os dias com D. Jodo, o que para o francés nao era indicativo de que aprendesse muito. A rainha D. Maria Sofia morreu a 4 de Agosto de 1699 com apenas 33 anos de idade, quando D. Jodo tinha to anos, e o principe e seus irméos acompanharam o corpo da mae quando este foi levado do palacio da corte real para o palacio real. Tendo sua tia D. Catarina, rainha de Inglaterra, regressado a Portugal quando enviuvou, assumiu em principio a educacéo do sobrinho, mas moran- do no seu palacio da Bemposta, onde faleceu em 1705, nao deve ter tido muita ocasido de contacto com ele na vida quotidiana. Na verdade o menino viu-se rodeado de padres. Primeiro o jesuita Francisco da Cruz, seu pri- meiro confessor, morto em 1706. Depois recebeu «li¢des de escrever» com o padre Caetano de Al- meida, prior da igreja da Madalena, e, segundo D. Anténio Caetano de Sousa, «o principe escrevia gentilmente, como testemunham algumas matérias que se conservam na livraria manuscrita do du- que de Cadaval»3. Aprendeu latim com 0 jesuita Jodo Seco, estudou linguas (espanhol, francés e ita- liano), e com o padre Luis Gonzaga, da Companhia de Jesus, fez a sua aprendizagem de Matematica, matéria muito do seu gosto, segundo seus panegiristas. Um deles escreveu: «nem ainda depois de rei, e de se ver impedido com o peso dos grande negécios da monarquia, deixou de fazer suas ob- servacdes, reconhecendo que com a Matematica se alcancam demonstra¢ées, que sO sao certezas e evidéncias de uma perfeita ciéncia»‘. Ha também noticia de um manuscrito da Biblioteca da Ajuda segundo o qual D. Pedro II man- dou o padre Luis Gonzaga ensinar a todos os seus filhos um tratado de arquitectura militar, titulo depois emendado para exame militar’, Esse interesse pela matemAtica aplicada levou mais tarde D. Jodo V a assistir, em 1715, 4s conclusGes matematicas de Fortificagéo, Defesa de Pracas, Geogra- fia, Nautica e Astronomia de Dionisio de Castro, no pago, na casa da Galé, segundo noticiou a Ga- Zeta de Lisboa, que também informou que o rei a elas assistira « e na segunda-feira purgaram o rei «com © extracto de agérico», uma planta purgativa da natureza dos cogumelos que nascia nos tron- cos das drvores. «Obrou copiosamente», mas foi necessario Prosseguir com as sangrias. Na terca 0 sangraram duas vezes nos pés, «porque havia tido uma sezao mui grave», segundo Soares da Silva. De qualquer modo, fossem quais fossem a cronologia e os termos utilizados para descrever a evolucao da doenga de D. Pedro Il, a verdade 6 que os médicos o viram tao prostrado que aconse- tharam que comungasse «por viatico» e o padre Sebastido de Magalhaes, seu confessor, assim 0 co- municou ao rei, que comungou pela mao do capelao-mor, Nuno da Cunha de Ataide, na manha de ter¢a-feira. Nessa noite o monarca passou mal «por causa de uma pontada que lhe deu da banda esquer- da», a que os médicos chamaram «um prioris legitimo», ou, segundo Soares da Silva, «um pleuriz bastardo». Foi sangrado no braco na quarta de manha, mas passou «com tanta aflicao, ansias e do- res» que pelas 8 horas da noite o doutor Lopo Gil foi de opiniéo que D. Pedro II «estava no ultimo perigo da vida e devia receber o sacramento da extrema-uncao». Foram entao trazidos os santos Gleos e 0 capeléo-mor o ungiu. ' ANTT — AHMF, Casa Real, Caixa 3738, «Ultima doenca e morte de D. Pedro Il»; Siva, Gazeta em forma de Carta..., tt, pp. 83-84. 20 MORTE DE D. PEDRO I Depois de ter recebido a extrema-un +Ao principe disse que governasse estes 1 tivesse grande cuidado de seus irmaos, -lhes a mercé e honra que devia como : mostrassem o devido respeito ao princip 40 de Deus e a sua. Muito laconicament nhor infante D. Manuel se enterneceu el do pai pelo filho mais novo. Depois de os filhos ihe terem beijade Cadaval e ihe agradeceu por o ter tao be visse o principe com a larga experiéncia D. Jaime, seu genro por ter casado com 1 que consolasse a mulher, com a qual ja Viana e aos marqueses de Marialva e de 4 Mandou-se aviso ao cardeal-nincio, 1 para que viesse dar ao rei a absolvicdo di de quarta-feira. Na quinta-feira, 9 de Dez grande piedade e um total conhecimento para 0 outro». Foi o marqués de Mariat quem lhe cerrou os olhos. Entraram em havia expirado, na propria cama se cobriu Logo se dirigiu o duque de Cadaval de eo secretario de Estado entregou a este c rei, padre Sebastido de Magalhdes. Na pre feito termo da entrega, mas nao foi lido a Este testamento fora redigido na Gua pectos ja estava desactualizado, por exem Inglaterra, que olhasse pelos filhos menor festamento mantiveram-se, como as doagé §40 das legitimas aos filhos. Embora o dir pai fosse distribuido nas legitimas, D. Pe nao obriga ao rei». Mesmo assim escrevet filhos, os instituo igualmente em suas le missas pela alma (6000), e aquelas que pt giado». A quantia de 50 000 cruzados ser também a D. Jodo que pusesse sob sua a dos que o tinham servido, sobretudo o dus Enquanto se preparava a ceriménia de €ra pratica habitual na época com os reis gies que iriam fazer o embalsamamento morte do rei. Assistiu 4 operacdo 0 duque 0 relato descreve minuciosamente o € ’. Também como era norma, os intestinos do monarca retirados durante 0 processo de embalsa- mamento foram enterrados em local diferente do corpo embalsamado. No caso de D. Pedro II fo- ram levados para o mosteiro das Flamengas, em Alcantara. Quanto terminou esta operacao de ana- tomia, o marqués de Marialva mandou «compor o cadaver». E assim vestiram-no «com um vestido de cor pardo, com garavata e cabeleira, barrete vermelho, borzeguins e esporas». Sobre este trajo foram langados 0 habito de S4o Francisco e o manto da Ordem de Cristo, com a espada 4 cinta na forma dos Definitérios, ou seja, de acordo com os estatutos daquela ordem militar. Assim permane- ceu 0 corpo do monarca na cama em que falecera, sem ser mostrado a ninguém além dos gentis- -homens da camara, do duque de Cadaval, do confessor e dos criados domésticos?. 56 depois teve inicio a parte publica da morte do rei até o seu enterro no Convento de Sao Vi- cente de Fora, que nao vamos aqui descrever com o seu complexo cerimonial desenrolado a 11 de Dezembro de 1706. Basta dizer que foram organizadas grandes manifestacdes de pesar pela morte de D. Pedro II, com ornatos efémeros cobrindo os templos néo s6 em Lisboa, como em outras cida- des e vilas do reino, e também no ultramar, impondo-se assim uma maior monumentalidade nas exéquias régias do que era habitual anteriormente. Na Igreja de Santo Antonio dos Portugueses, em Roma, foi erigido um castrum doloris de gran- de imponéncia, desenhado pelo arquitecto Carlo Fontana, do Vaticano. Do outro lado do Atlantico, na catedral de Salvador, as homenagens ftinebres foram descritas por Sebastiao da Rocha Pita, em Breve Compéndio e Narragao do Ftinebre Espectaculo, Que na Cidade da Baia, Cabega da América Portuguesa, Se Viu na Morte d'El-Rei D. Pedro Hl, publicado em Lisboa sé em 1709 devido 4 demora na chegada da noticia da morte do rei ao Brasil. Entre panos debruados de ouro e prata, erguia-se na catedral baiana um mausoléu de 71 pal- mos de altura, com epigrafes varias, pinturas e figuras esculpidas, numa alusdo a vassalagem pres- tada a personagem real ali evocada. As paredes do templo foram cobertas de negro e de luto esta- va também a cadeira do governador e os assentos onde se encontravam os membros dos tribunais. No coro ou capela-mor encontrava-se grande numero de prelados e de religiosos de diferentes or- dens. Outros lugares foram destinados 4 nobreza e ao povo, «que nao cabendo mais nas tribunas, capelas e corpo do templo, ocupavam as ruas mais vizinhas as portas dele»'. A toda a cerimonia, que teve inicio em Salvador na tarde de 19 de Outubro de 1707 e prosse- guiu no dia seguinte, presidiu o primeiro arcebispo do Brasil, D. Sebastido Monteiro da Vide, e o narrador descreveu em estilo barroco os canticos que se ouviam: «Quatro acordes e ajustados coros de vozes e instrumentos, reduzindo 0 triste som dos solucos a sonoras clausulas do canto, forma- vam da corrente das nossas lagrimas a maior consonancia da sua harmonia.» A oracao funebre foi pronunciada pelo jesuita Domingos Ramos e incluida nesta relacdo com o seguinte comenta- rio: «tanto melhor representada do que escrita». 0 que mostra como, na primeira metade do sé- culo xvii, a ret6rica sacra constituia ela propria um espectaculo, a palavra falada superando sempre a palavra escrita pelos seus aspectos cénicos e veeméncia. ‘ANTT — AHMF, Casa Real, Caixa 3738. 2Suva, Gazeta em forma de Carta..., p. 86. 3 ANTT — AHMF, Caixa 3738. «Pita, Breve Compéndio e Narra¢ao..., pp. 14-15. 22 MORTE DE D. PEDRO Quando D. Joao subiu ao trono o rei sultado da liga que D. Pedro II havia feite pela sucessdo do trono espanhol. Segun de continuar a guerra com o mesmo vigo alterava o estado das coisas. E tratou log Morto D. Pedro Il a 9 de Dezembro vantamento e juramento feito pelos gran presenca em semelhantes ocasides. A arq do vdo reentrante de 16 janelas da fachae de 6 de largura. Esta varanda estava ma dos, e tapecarias caindo sobre a praca. ¢ masco carmesim e suas bases de veludo de com as armas reais bordadas a ouro € piiblico da praga, colocado debaixo de u tapecarias com as alegorias da Justica e cas, D. Jodo V encaminhou-se para tros se visto do povo», D. Anténio Caetano de Sousa, na sue 0s personagens da encenacao do que « Orei estava «com opa real de tela de p mesmas flores, vestido de veludo com ak de Cristo em uma venera também de di chapéu uma joia que prendia a aba dele parte da varanda e os quatro degraus é prelados das religides, fidalgos, pessoas des-mores, todos de pé. No Terreiro do breza em suas carruagens e 0 povo, que "BNL — Céd. 9889, 3. 2 Arte Efémera em Portugal, 2000, p. = 3Sousa, Historia Genealégica da Casa entriculo esquerdo algu- "0, Soares da Silva, que ‘era com 58 anos e que, torcida, «e se [he acha- > processo de embalsa- caso de D. Pedro !I fo- esta operacdo de ana- m-no -com um vestido joras-. Sobre este trajo ym a espada a cinta na nilitar. Assim permane- guéem além dos gentis- ticos}. v0 Convento de Sao Vi- ial desenrolado a 11 de S de pesar pela morte , como em outras cida- monumentalidade nas strum doloris de gran- utro lado do Atlantico, ido da Rocha Pita, em a, Cabega da América 1709 devido 4 demora m mausoléu de 71 pal- 40 4 vassalagem pres- * negro e de luto esta- nembros dos tribunais. josos de diferentes or- do mais nas tribunas, bro de 1707 € prosse- Monteiro da Vide, e o rdes e ajustados coros sulas do canto, forma- ia.» A oracdo funebre 1 © seguinte comenta- ‘imeira metade do sé- vra falada superando ee MORTE DE D. PEDRO II E SUBIDA AO TRONO DE D. JOAO V Quando D. Jodo subiu ao trono o reino estava em guerra contra a Espanha e a Franca, em re- sultado da liga que D. Pedro I! havia feito com o imperador da Alemanha, a Inglaterra e a Holanda pela sucesséo do trono espanhol. Segundo José da Cunha Brochado, o jovem rei tomou a decisaéo de continuar a guerra com o mesmo vigor, assegurando a seus aliados que a morte do pai em nada alterava o estado das coisas. E tratou logo de coroar-se com a solenidade costumada’. Morto D. Pedro ll a9 de Dezembro de 1706, a 1 de Janeiro de 1707 realizava-se o auto de le- vantamento e juramento feito pelos grandes senhores seculares e eclesiasticos, e mais pessoas com presenca em semelhantes ocasides. A arquitectura efémera para a cerimOnia ocupava toda a largura do vao reentrante de 16 janelas da fachada do paco, com mais de 81 metros de comprimento e mais de 6 de largura. Esta varanda estava magnificamente ornamentada com tecidos coloridos e borda- dos, e tapecarias caindo sobre a praca. Os fustes das colunas das galerias foram revestidos de da- masco carmesim e suas bases de veludo também carmesim. Entre as colunas, panos de veludo ver- de com as armas reais bordadas a ouro e prata. O trono tinha por tras 0 torredo e ficava visivel ao publico da praga, colocado debaixo de um dossel carmesim bordado a ouro com as armas reais, e tapecarias com as alegorias da Justiga e da Prudéncia lembravam as virtudes préprias dos monar- cas. D. Joao V encaminhou-se para o trono caminhando junto das grades da varanda «para que fos- se visto do povo»?. D. Anténio Caetano de Sousa, na sua descri¢éo do acto de aclamagdo, preocupou-se mais com OS personagens da encenacéo do que com a arquitectura efémera construida para a cerimonia. O rei estava «com opa real de tela de prata com flores de ouro, forrada de tela carmesim com as mesmas flores, vestido de veludo com abotoadura de diamantes, e no peito com o habito da Ordem de Cristo em uma venera também de diamantes de grande valor, espadim da mesma sorte, e no chapéu uma jdia que prendia a aba dele, tudo pecas de grandissima estimagao». Ocupavam grande parte da varanda e os quatro degraus do estrado os ministros de todos os tribunais, cabido da Sé, prelados das religides, fidaigos, pessoas do Conselho do rei, donatarios da terra da coroa e alcai- des-mores, todos de pé. No Terreiro do Paco, além de dois regimentos de infantaria, via-se a no- breza em suas carruagens e 0 povo, que se espalhava também pelas janelas e telhados?. "BNL — Céd. 9889, 13. ? Arte Efémera em Portugal, 2000, p. 284. Sousa, Hist6ria Genealdgica da Casa Real Portuguesa, t. 8, pp. 18-19. 23 3. Casamento ouco tempo depois de iniciar 0 seu reinado, D. Jodo V levou avante o projecto de seu pai e cuidou de ajustar seu casamento com a arquiduquesa de Austria D. Maria Ana, de grande conveniéncia uma vez que, na guerra de sucesséo de Espanha, Portugal apoiava o arquiduque Car- los. A 27 de Junho de 1707 foi assinado o tratado de casamento ajustado entre o conde de Vilar- -Maior, embaixador extraordinario do rei e seu gentil-homem da camara, e os procuradores do im- perador José, sendo as condigdes principais que este dotava a arquiduquesa com 100 000 escudos ou coroas de ouro e faria todas as despesas da nova rainha e sua comitiva até o ultimo porto mari- timo em que embarcasse para Portugal; por seu lado o rei de Portugal Ihe daria o dote e arras, com todas as condicées habituais em semelhantes tratados, e lhe entregaria as terras, rendas e pa- droados que haviam tido as anteriores rainhas portuguesas'. Ou seja, a rainha teria sua casa, com rendimentos e servidores proprios. A 21 de Agosto D. Jodo V recebeu aviso do que se acordara na Alemanha pelas cartas do embai- xador referindo o ajuste de casamento, e logo no dia seguinte comunicou a boa nova ao Conselho de Estado e aos grandes e oficiais da Casa Real e também as cémaras do reino. Foi aplaudida a no- ticia com salvas de artilharia e lumindrias por trés dias na forma costumada, escreveu D. Antonio Caetano de Sousa’. A armada que conduzia a nova rainha entrou na barra do Tejo a 26 de Outubro de 1708 e no dia seguinte foi a nau capitania fundear em frente do paco. Neste, na parte do forte, estava prepa- rada uma ponte por onde o rei, acompanhado pelos infantes D. Francisco, D. Antonio e D. Manuel, e pela corte, se dirigiu ao bergantim real, dourado e forrado de tecido vermelho com guarnicées e franjas, estando os remadores vestidos da mesma cor, agaloados de ouro. Quanto a D. Joao V, ia «vestido de uma seda parda seguindo a pragmatica, com botdes de diamantes, habito e presilha do chapéu de diamantes». Quando o bergantim aportou 4 nau, o rei subiu acompanhado por seu séqui- to e, depois das ceriménias do encontro na cdmara da rainha, os dois consortes desceram para a embarcacao régia e desembarcaram na ponte, onde os esperava a marquesa de Unhao, D. Maria de Lencastre, j4 nomeada camareira-mor da rainha}. A pragmatica acima referida foi publicada a 6 de Maio de 1708 como um resumo das anteriores, ja feitas em outros reinados, e que exigiam agora uma melhor coordenacao entre os varios textos legislativos. Comentario de Soares da Silva: «Bom sera que tenha melhor observancia que as ou- tras.» Congratulava-se, contudo, pelo facto de a lei ter saido antes do casamento do rei porque pouparia a despesa do ouro e da prata agora proibidos nos vestidos. Mas, se houve poupanca nas despesas dos vassalos com a festa do casamento real, os gastos da coroa com a cerimdonia foram elevados, erigindo-se nova ponte, paramentando-se de novo todo o palacio, fabricando-se novo ' Ibid., pp. 48-49. 2 Ibid., pp. 49-50. 3 Ibid, pp. 56-59. 24 bergantim, e tudo o mais necessario pare truido expressamente para conduzir o ret por oito bestas, era em forma oitavada, t almofadas de veludo carmesim «apassanae A 8 de Dezembro de 1708 José da Cu rindo «a maquina de fogo» e os arcos que dade, mas esta funcdo nao estava ainda m tivos nao tinham interesse em que se acal também se mostrou critico do desenho dc dos nossos pintores e arquitectos». Em me boa adiaram 0 espectaculo, segundo Bro acompanhado de «descante e baile». Fina gar: «Ardeu em fogo de artificio toda a p musica, instrumentos e bailes, e deram fi tornamos aos feijées e ao bacalhau.»? Por populacao de Lisboa voltava ao seu pobre Na verdade as festas para celebrar e aquelas que se tinham realizado por oca: de Neubourg. Apesar das dificuldades fi contou nas suas memorias que os reis e imaginar». Em vez de descrever as iguari sualizar 0 que era um banquete real, ps ceias quanto nos jantares durante esses majestade. O trinchante «trinchou o cor rainha a recebeu de uma dama alema de @ porta da sala onde estava posta a me: vez 0s entregavam as damas que os pun portada em pratos cobertos. Perante aq os reis apontavam e, pondo o comer em deles comiam»?. As festas do casamento real durarar privado. A 26 de Dezembro apresentaram presentacoes de fogos artificiais». Segunde tados, por ser «de grande aparato e tao b fiedade». Isto porque todos os elementos de trés horas, o que, diga-se de passagen assim reconheceu 0 gazeteiro que os «chu Na descrigao deste gazeteiro, o divert do e majestoso carro triunfante, cheio de tado. Cercavam 0 carro 24 figuras «custos: -no ainda 30 homens vestidos 4 mourisca construido abaixo da tribuna do rei dangz g0s-de-artificio. Quer 0 pértico «com bele sido oferecidos para as festas reais pelo ¢ ‘Siva, Gazeta em forma de Carta..., pp. 2 0 Investigador Portugués em Inglaterra, 3 Portugal, Lisboa e a Corte..., p. 210. | levou avante 0 projecto de seu pai e 1 de Austria D. Maria Ana, de grande a. Portugal apoiava o arquiduque Car- ento ajustado entre o conde de Vilar~ } da camara, e os procuradores do im- a arquiduquesa com 100 000 escudos Sua Comitiva até o Ultimo porto mari- de Portugal Ihe daria o dote e arras, fhe entregaria as terras, rendas e pa- Ou seja, a rainha teria sua casa, com a na Alemanha pelas cartas do embai- ie comunicou a boa nova ao Conselho camaras do reino. Foi aplaudida a no- orma costumada, escreveu D. Anténio jo Tejo a 26 de Outubro de 1708 e no teste. na parte do forte, estava prepa- D. Francisco, D. Antonio e D. Manuel, de tecido vermetho com guarnic¢ées e ados de ouro. Quanto a D. Jodo V, ia es de diamantes, habito e presilha do rei subiu acompanhado por seu séqui- a, os dois consortes desceram para a va a marquesa de Unhdo, D. Maria de 1708 como um resumo das anteriores, © coordenacdo entre os varios textos tenha melhor observancia que as ou- oO antes do casamento do rei porque vestidos. Mas, se houve poupanca nas stos da coroa com a cerimdnia foram » todo o palacio, fabricando-se novo CASAMENTO bergantim, e tudo o mais necessario para esta solenidade. Para nao falar do magnifico coche cons- truido expressamente para conduzir o rei e a rainha até a Sé e que custou 40 000 cruzados. Puxado por oito bestas, era em forma oitavada, todo em vidracas e com pinturas e esculturas, os forros e almofadas de veludo carmesim «apassanado de ouro»'. A 8 de Dezembro de 1708 José da Cunha Brochado escrevia de Lisboa ao conde de Viana refe- rindo «a maquina de fogo» e os arcos que iriam servir de triunfo a entrada puiblica da rainha na ci- dade, mas esta funcdo nao estava ainda marcada, porque os artesdos que trabalhavam nos prepara- tivos ndo tinham interesse em que se acabasse o grande salario que ganhavam por dia. O diplomata também se mostrou critico do desenho dos arcos, que nao recebia mais direccdo do que «a fantasia dos nossos pintores e arquitectos». Em meados de Dezembro, as grandes chuvas que cairam em Lis- boa adiaram o espectaculo, segundo Brochado, pois a agua impediu o fogo-de-artificio, que seria acompanhado de «descante e baile». Finalmente, em finais de Dezembro as festas puderam ter lu- gar: «Ardeu em fogo de artificio toda a praga do Terreiro do Pago com grandes representacées de musica, instrumentos e bailes, e deram fim com tudo as festas do casamento de Sua Majestade, e tornamos aos feijées e ao bacalhau.»* Por outras palavras, terminada a ostentacao do poder real, a populacao de Lisboa voltava ao seu pobre quotidiano. Na verdade as festas para celebrar este casamento real nao foram menos sumptuosas do que aquelas que se tinham realizado por ocasiao do casamento de D. Pedro II e D. Maria Sofia Isabel de Neubourg. Apesar das dificuldades financeiras provocadas pela guerra, o conde de Povolide contou nas suas memérias que os reis e os infantes cearam «com toda quanta grandeza se pode imaginar». Em vez de descrever as iguarias servidas, descri¢do essa que muito nos ajudaria a vi- sualizar 0 que era um banquete real, preferiu deter-se no ritual do servic¢o de mesa tanto nas ceias quanto nos jantares durante esses dias de festa, como se o ritual exprimisse a esséncia da majestade. O trinchante «trinchou 0 comer, 0 copeiro-mor «deu a copa a el-rei», sendo que a rainha a recebeu de uma dama alema de seu séquito. Os mo¢os da camara traziam os pratos até a porta da sala onde estava posta a mesa real e os passavam as donas da camara, que por sua vez os entregavam as damas que os punham na mesa eos descobriam, pois a comida era trans- portada em pratos cobertos. Perante aqueles acepipes, «trinchavam os trinchantes aqueles que os reis apontavam e, pondo o comer em outros pratos mais pequenos, os chegavam aos reis que deles comiam». As festas do casamento real duraram varios dias, cada um com seu divertimento, publico ou ~ privado. A 26 de Dezembro apresentaram-se no Terreiro do Paco «muitas maquinas e dancas e re- presentacdes de fogos artificiais». Segundo Soares da Silva, s6 no fogo se tinham gasto 70 000 cru- zados, por ser «de grande aparato e tao basto como pedia o custo, mas com pouca ou nenhuma va- riedade». Isto porque todos os elementos arderam «pelo mesmo estilo» e cada um demorou perto de trés horas, o que, diga-se de passagem, proporcionava um espectaculo assaz mondtono. Mesmo assim reconheceu 0 gazeteiro que os «chuveiros de fogo pareciam diltivios de estrelas». Na descrigdo deste gazeteiro, o divertimento no Terreiro do Paco foi completado com «um luzi- do e majestoso carro triunfante, cheio de musica», no qual vinham Vénus e Cupido, este todo dou- rado. Cercavam 0 carro 24 figuras «custosamente vestidas» e com tochas na mao, e acompanhavam- -no ainda 30 homens vestidos 4 mourisca, também com archotes acesos. Num tablado que se havia construido abaixo da tribuna do rei dancaram estes personagens «um sarau» antes e depois dos fo- gos-de-artificio. Quer o pértico «com bela arquitectura», quer o tablado pintado e dourado tinham sido oferecidos para as festas reais pelo conde de Vilaverde e corriam impressas descrigdes nao sO 'Sitva, Gazeta em forma de Carta..., pp. 150 e 182. 2 O Investigador Portugués em Inglaterra, t. 16, pp. 16 e 20-22. 3 Portugal, Lisboa e a Corte... p. 210, 25 D. JOAO V deste carro triunfante e representacdes de fabulas, mas também dos arcos erguidos em homenagem aos soberanos, como veremos mais adiante'. A 27 de Dezembro a rainha ofereceu um festim no paco, durante o qual dancaram e cantaram damas portuguesas e alemas, e a infanta D. Francisca, irma do rei, «entrou em uma loa com as da- mas». Além das celebragdes com uma assisténcia restrita no pa¢o, realizaram-se festas de touros no terreiro fronteiro ao palacio real, erguendo-se quatro andares de varandas «com magnifica arquitec- tura», como escrevia o conde de Povolide. Foram trés os dias de touros. No primeiro toureou o conde do Rio Grande; no segundo o conde de Séo Lourenco e no terceiro 0 visconde de Vila Nova, cada qual acompanhado com grande numero de criados. O cerimonial prevalecia neste divertimen- to, sobretudo sob a forma das cortesias que seguiam um ritual proprio. No fim o rei resolveu dar 30 000 cruzados de ajuda de custo aos trés toureiros, tendo todos toureado muito bem, na opiniao, sincera ou nao, de Povolide. No inicio de cada combate de touros desfilavam carros alegoricos, que primeiro aguavam a praca, e também se apresentavam muitas dancas, nas quais a riqueza dos vesti- dos causou grande admiracdo aos estrangeiros’. Soares da Silva apresentou uma versdo diferente na sua gazeta afirmando que o terceiro a cor- rer os touros fora o visconde de Ponte de Lima (e nao de Vila Nova) e que este fora o que mais despendera, embora tivesse a sua casa «empenhadissima», ou seja, endividada. Trouxera 12 trombe- teiros e frauteiros tocando suas trombetas e flautas, quatro criados luxuosamente vestidos que lhe serviam os rojoes e ainda 20 negros vestidos 4 mourisca, «todos com as suas cartas de alforria ata- das nos bracgos», apesar de os ter comprado «por muito bom dinheiro»}. Pura ostentac¢éo de uma nobreza que gastava mais do que podia. Ja os dois condes tinham gasto com a sua luzida entrada no Terreiro do Paco, com 24 criados cada um, dinheiro que era do rei. Fogos-de-artificio, combates de touros, carros alegoricos, dan¢as, tudo isto compunha uma festa real, com especial énfase contudo no brilho dos fogos, e por essa raz4o D. Joao V deu ordem ao conde de Vila Verde, vedor da Fazenda, para que sob sua direcgao se formasse «maquina corres- pondente a sua expectacdo e digna da sua real munificéncia». Basta ler a Relagao dos Artificios do Fogo Que Se Fazem no Terreiro do Paco, em Obséquio dos Felicissimos Desposorios dos Serenissi- mos Senhores D. Jodo V e de D. Mariana de Austria, Reis de Portugal (1708) para se ter uma ideia da magnificéncia do espectaculo. Pretendeu-se que «ao luminoso dos fogos correspondesse a novidade da inven¢ao» e que, «di- versificando do costumado modo de um simples, ainda que grande fogo, participasse também do dramatico com a multiplicidade e variedade das accdes». Assim a encenacao e a dramaticidade das imagens aumentariam o impacto visual do fogo-de-artificio. O tema central era a forja de Vulcano, na qual seria forjada uma seta «digna e capaz de ferir os dois reais e puros cora¢des». Para tal o deus ordenou aos ciclopes que transportassem a sua oficina do monte Etna para a «real praca de Lisboa». Do lado oposto erguia-se um arco de triunfo que re- presentava o palacio de Vénus, e dali saiu a deusa em um carro «guiado por Cupido e tirado por cisnes», acompanhada pelos génios Deleite, Riso, Agrado, Jubilo, Prazer e Contentamento, que can- tavam e tocavam melodiosamente. Mais génios ainda, Ardor, Incéndio, Calor, Fogo, Suspiro «e ou- tros de semelhante natureza», dangando com faixas nupciais nas maos, seguiam 0 carro e ao mes- mo tempo iluminavam a maquina. A Vénus em seu carro triunfal deu uma volta ao Terreiro do Paco, passou em frente da varanda onde se encontravam os noivos e saudou-os, «prognosticando as futuras e certas felicidades e gran- dezas do império portugués». Encaminhou-se em seguida para o monte Etna e teve inicio 0 especta- 'Sitva, Gazeta em forma de Carta..., p. 183. ? Portugal, Lisboa e a Corte..., pp. 212-214. 3Suva, Gazeta em forma de Carta..., Pp. 179. 26 Ga culo propriamente dito. Ouviu-se um estron bocas, mostrando a oficina de Vulcano, que seguiram até que Cupido se dirigiu 4 varand pequeno baile no fim do qual teve inicio o fc Deste modo a encenacao foi mais com além da pirotecnia, os espectadores ouviam cano, de Vénus, de Cupido, etc. Toda a arg atribuida ao arquitecto maltés Carlos Gimac, nacao inglesa. Como podemos ler na Descri¢éo do Are Ocasidéo em Que as Majestades dos Serenissir Foram a Catedral de Lisboa, publicada em r uma «maquina», ou aparato, com toda a mag }. Pura ostentacéo de uma sto com a sua luzida entrada udo isto compunha uma festa D. Jodo V deu ordem ao e formasse «maquina corres- 1 a Relagao dos Artificios do as Desposorios dos Serenissi- (708) para se ter uma ideia ade da invencdo» e que, «di- ogo, participasse também do macao e a dramaticidade das pta

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