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Um historiador por seus pares: ENO COeEMRCR OC M QAL1 LN Angelo Adriano Faria de Assis Pollyanna Gouveia Mendonca Muniz Yilan de Mattos (organizadores) $ ns Copyright © 2017 Angelo Adriano Faria de Assis/ Pollyanna Gouveia Mendonga Muniz Yilan de Mattos G a 0 Ac 990, que ent vigor no B Edigao: Haroldo Ceravolo Sereza Editora assi Danielly de Jesus T ais: Clarissa Bongiovan Projeto grafico, diagramagao e capa: Danielly de Jesus Teles ‘otografia: Lorena Salum Assistente a runa Ma \démica: B dra Colontini Revisi ALAMEDA CASA EDITORIAL Rua 13 de Maio, 353 - Bela CEP 01327-000 - Sao Paulo, SP Tel. (11) 3012-2403 Vista |.com.br www.alamedaeditori Sumario Preficio Francisco Bethencourt 9 Introdugao Ao Mestre, com carinho iL Elogio do amigo Mary del Prior 17 PARTE I: Inquisicéo ¢ Heresia As virtudes do Inquisidor-Geral: os sermoes de exéquias e a imagem dos dirigentes do Santo Oficio no século XVII Isabel M. R. Mendes Drumond Braga ¢ Paulo Drumond Bi 23 Contatos proibidos nos earceres do Santo Oficio Daniela Buono Calainho 43 Branca Dias dos Apipucos: Inquisicdo ¢ nativismo no Pernambuco oitocentista Fernando Gil Portela Vieira 59 Negécios, familias, judaismo e Inquisigio (Portugal e Brasil - séculos XVI e XVII) Lina Gorenstein 77 Sodomia nao é Heresia: dissidéncia moral e contra-cultura revolu jonaria Luiz Mott o1 Os manuais de confissio como discurso a volitpia da classifica Lana Lage da Gama Lim: 109 PARTE II: Relagées internacionais e Diplomacia Observadores diplomaticos: os antecedentes da fuga da corte portuguesa 1806 vistos a partir da Italia — 179 Le Mello ¢ Sor 131 “Esse tribunal [...] eh praca que nesse Reyno esta ainda por conquistar e a mais perigoza que nelle temos” o Santo Oficio e a Restauragao (1640-1656) Yilan de Mattos 151 O Padre Anténio Vieira e Ronaldo Vainfas Thiago Groh 173 Origem ¢ Estabelecimento da Inquisigao de Alexandre Herculano, seu conceito de Historia e posteriores debates sobre a Inquisi¢io portuguesa da Silva Tavares 185 GCristin Clérigos ¢ leigos no Tribunal Episcopal: disciplinamento social no bispado do Maranhio colénia Pollyanna Gouveia Me 201 Muniz PARTE II: Othaves nuiltiplos Textos, trajetérias e promessas entre o Brasil colonial ea India portuguesa Andréa Doré 217 Brizida: uma india feiticeira perante a Inquisi¢io (1639) Bruno Feitler 231 indo © antonianismo: Beatriz Kimpa Vita € 0 Congo cristo Marina de Mello ¢ Souza 241 “Enterrem meu coragio na curva do rio... Tejo” Maria Leénia Chaves de Resende 263 étnicas no tributo a um mestre Reginaldo Jonas Heller 273 Memo América colonial diante do olhar: propostas para um ensino de historia com imagens Jorge Victor de Araijo Souza 285 PARTE IV: Trajetérias Orientador, inspiragdo e muito a comemorar Christiane Vieira Laidler 301 Ronaldo Vainfas, um historiador nas terras brasi Jiinia Ferreira Furtado ait Entre o pitblico ¢ o privado: dialogos com Ronaldo Vainfas Maria Fernanda Bicalho 317 Ronaldo Vainfas ¢ a historia dos indios sobre encontros pessoais ¢ profissionais El 1 Frithauf Garcia 331 Ronaldo Vainfas e a Nova Historia nos Tropicos Georgina Silva dos S 345. © que deve a historiografia sobre a Inquisicao a Ronaldo Vainfas? Angelo Adriano Far 353 Um olhar sobre a historiografia de Ronaldo Vainfas Jacqueline Herma 1 Entrevista De como um professor de Historia se tornou historiador e vice-versa Angelo Adriano Faria de Assis, Pollyat de Mattos, A y Sobre os autores 407 Brizida: uma india feiticeira perante a Inquisigao (1639) Bruno Feitler Nas BRINCADEIRAS UM TANTO politicamente incorretas de alguns estudiosos brasileiros da Inquisicao, Ronaldo Vainfas é o nosso inquisidor geral.' Nao preciso. detalhar aqui a importancia ¢ a influéncia de seus estudos para uma melhor com- preensio da ago inquisitorial no Brasil. Interessante notar, no entanto, que um de seus livros mais famosos trata de certo modo da cultura de um grupo que, apesar da repressdo A “santidade de Jaguaripe’? passou praticamente ileso a perseguicao inquisitorial: os indios. Cita-se amitide (e incluo-me entro os culpados) uma provisio do cardeal-rei ingui- sidor geral d. Henrique, datada de 1579, que eximia os “novamente convertidas’, ou seja, 0s indios, do bispado do Brasil da jurisdi¢ao inquisitorial, deixando a responsabilidade no julgamento dos eventuais casos de heresia que surgissem entre eles, ao préprio pre lado, o bispo d. Antonio Barreiros, auxiliado do p. Luis da Gra ou por outro jesuita’.O 1 Partes deste texto foram tiradas de Bruno Feitler. “Ihe Portuguese Inquisition and Colonial Expansion: the ‘Honor’ of Being Tried by the Holy Office: In MORE, Anna, O'Toole, Rachel. ¢ del Valle, Ivonne. (org. Iberian Empires and the Roots of Globalization. Vanderbilt University Press (no prelo).. 2. VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos indios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. Sto Paulo: ‘Companhia das Letras, 1995, 3. PEREIRA, Isaias da Rosa, Documentos para a Historia da: Inquisigio em Portugal (séc. XV) Lisboa: Céritas Portuguesa, 1987, p. 56-57 (doc, 52). 232 Angelo Adriano Faria de Assis + Pollyanna Gouveia Mendonca Muniz + ‘Yilan de Mattos (orgs.) exemplo hispanico, no qual os indios foram efetivamente isentos da jurisdigo dos inqui- sidores, para além dessa provisio, foi sem divida 0 que levou os historiadores da Inqui- Som efeito, o motivo alegado na provisio de d. Henrique era o de que a acio inquisitorial sobre os indios cristianizados poderia fazer com que os ainda nio convertidos pensassem duas vezes antes de aceitar sigio no Brasil a.afirmar que o mesmo ocorrera por ¢ batismo. Esta resolucdo, tomada por aquele que foi o grande responsdvel pela institucio- nalizagao do tribunal portugues, seria a razéo da auséncia dos nativos naslistas de autos da fé da Inquisigéo de Lisboa nao s6 durante o governo do bispo d. Antonio Barreiros, mas também no de seus sucessores. Mas terd sido mesmo assim? Leénia Resende, que vem estudande o tema com muita atengao ¢ propriedade, encontrou dentincias contra nativos cristios recebidas e investigadas pelos inqui- sidores, e até processos abertos contra indios, sobretudo (mas no sd) durante a segunda metade do século XVIII. Nesses casos, a frequente nao abertura de proceso formal, e no caso de real julgamento, as penas mais brandas cominadas contra os réus justificavam-se “atendendo a ignorincia, grande rusticidade e falta de instru- a0” dos indios.’ A proviso de 1579 nunca é mencionada nessa documentagao, nio havendo assim nenhuma prova, na verdade nenhum indicio, de que ela tenha real- mente sido aplicada. Por mais estranho que parega, foi na verdade uma certa unani- midade sobre a (in)capacidade dos indios o que fez com que dentincias feitas contra eles, inclusive na época das reformas pombalinas e de sua politica de anulagao das diferengas étnicas, tenham no fim das contas seguido os tramites usuais tanto pelos representantes do Santo Oficio no Brasil, quanto pelos préprios inquisidores.* Ou seja, a abertura de processo contra indigenas cristdos seria um fato excepcional, mas nao impossivel. O que veremos aqui ¢ um desses casos excepcionais (por mais de uma razio) e, por meio dele, tentaremos ver 0 que pode levar a Inquisigio a deixar 4 Nos vice-reinados do México ¢ do Peru, Carlos V isentou os indios da jurisdigao dos tri- bunais l4 criados em 1568. Ver os werbetes correspondentes, de autoria de Rosalba Piazza € René Millar Carvacho, In: PROSPERI, Adriano, com LAVENIA, Vincenzo e TEDESCHI, John (dir). Dizionario storica dell Inquisizione. Pisa: Edizioni della Normale, 2010. 5 RESENDE, Maria Lednia Chaves de, ‘Cartografia gentilica: os indios e a Inquisicao na Amé- rica Portuguesa (século XVIII): In: FURTADO, J. F. ¢ RESENDE, M. I. Chaves de. Travessias inguisitoriais das Minas Gerais aos céirceres do Santo Oficia: didlogos e transitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI-XVIID), Belo Horizonte: Fino Trago, 2013, p. 349-374. 6 Sobre a politica do marqués de Pombal em relagio aos indios ver DOMINGUES, Angela ‘Quando os indios eram vassals. Colonizacio e relagies de poder mo norte do Brasil na segunda ametade do sécvlo XVII Lisboa: CNCDP, 2000. ‘Um historiador por seus pares trajetdrias de Ronaldo Vainfas de lado 0 preconceito unanime que se tinha da capacidade dos indios, para julgi-los como a qualquer outro mau crista Brizida era uma “india da terra” forra, nascida no Recife de pais, como ela, pro- vavelmente escravizados ¢ também batizados. Tratava-se de uma familia unida, ja que Brizida sabia do paradeiro de sua irma e de seu irmao jd casado, ambos também moradores em Salvador. Ela nao sabia a idade que tinha, mas “aparentava ter vinte anos ¢ ser bem entendida’, segundo o bispo que a interrogou em 1639. Por causa da invasao holandesa de Pernambuco, pelo menos desde maio de 1636, Brizida estava em Salvador da Bahia, para onde foi acompanhando 0 capitio Joao Lopes Barbalho, de quem fora amési na companhia de quem ainda morava em maio de 1639, no “bairro do quartel além de Sao Bento” Na piscoa desse mesmo ano, ela se confes- sara duas vezes com monges beneditinos, que segundo ela a absolveram de pacto com o deménio. A mengio dessa dupla absolvigao é importante por ser a prova de que era dominio comum que os indios, incluindo aqueles que viviam em meio ur- bano, nao deviam ser tratados com o mesmo rigor que alguém de origem europeia ‘ou africana = a quem os monges sem diivida no teriam absolvido. Mesmo assim, provavelmente por saber que uma de suas comparsas no delito (a escrava mulata Agueda) jd estava presa por ordem do bispo do Brasil, Brizida foi apresentar-se ao prelado para confessar suas culpas em 10 de maio de 1639. D. Pedro da Silva e Sampaio, bispo do Brasil desde 1633, antes de sua nomeagao havia sido inquisidor do tribunal de Lisboa, ¢ seu papel na colénia portuguesa par- cialmente ocupada pelos holandeses foi muito importante. Pelo que nos toca aqui, D. Pedro da Silva atuou como um indispensivel correspondente dos inquisidores, mantendo-os informados de casos de judaismo, protestantismo e outros, que fos- sem de jurisdigo do Santo Oficio, como bem mostrou Ronaldo Vainfas no caso de Manuel de Morais e de outros clérigos cujos casos foram devassados pelo bispo d. Pedro.’ Mais ainda, foi gragas a ele que, no contexte da guerra contra os protestan- 7 Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT), Inquisi¢do de Lisboa (IL), livro 226, fl. 313- 317, Este documento foi localizado por Lednia Chaves, mencionado em id. Joao Lopes Bar- balho era um dos weteranos da “guerra volante” contra os holandeses, MELLO, Evaldo Cabral de, Olinda Restauraca, Guerra ¢ acticar no Nordeste, 1630-1654. Sao Paulo: Editora Eorense/ EdUSP, 1975, p. 240. 8 _ANTT, IL livro 226, f. 313. Este documento foi localizado por Lednia Chaves, e mencionado em idem. 9 VAINFAS, Ronaldo. Traipio. Um jesuita a servico do Brasil holandés processado pela Inguisigao. Sto Paulo: Companhia das Letras, 2008. 233 234 Angelo Adriano Faria de Assis ¢ Pollyanna Gouveia Mendonga Muniz + Yllan de Mattos (ongs.) tes, viirias pessoas foram presas e remetidas para Lisboa." Nao é assim de estranhar que a confissdo, ou mais bem que se tratava de um procedimento pensado para a Inquisigao. Tendo isto em vista, podemos dizer que os feitos relatades pela india seriam gravissimos, qualificados até interrogatorio judicial de Brizida mostre claramente como um clissico sabé.!! Brizida disse ao ex-inquisidor que cerca de dois anos antes, estando em Sergipe do Rei, tratando ilicitamente com seu amo, que era um capitdo, cle a agoutou um dia pela achar falando com um homem ¢ Ihe ndo mostrou dai por diante tania vontade, e queixando-se cla disso a um sol- dado castelhano |...) ele the disse que tomasse trés patacas e fillasse com Agueda mulata velha cativa das Bitas (2] [...] ¢ que ela Ihe daria remédio para seu amo lhe querer bem. Agueda encaminhou-a uma outra mulata cativa chamada Simoa, a quem Brizida deu as patacas, piicaro. O bispo quis saber que ervas eram essas, mas Brizida disse ndo ter nem imoa foi entao buscar ervas junto a um rio ¢ cozeu-as num chegado a vé-las. Simoa untou-a em seguida com agua mas o unguento nao teve 9 efeito desejado e Agueda disse a Brizida que seria necessario “falar ao diabo entregar-se-Ihe’, ao que Brizida assentiu. Agueda e Simoa levaram-na a noite “ao campo entre o mato perto fora da cida- de, detras de um outeiro’: La, Simoa chamou pelo diabo dizendo ‘ou’ [sic], ¢ nisto vieram muitos diabos, uns em figura de sapos, outros em figura de homens negros, muito feios e pés muito cumpridos a modo de putas [sic]. Ea um deles que se deitou no tronco de uma drvore, foram a dita Simoa ¢ Agueda beijar no traseiro, que era adora- ca0-¢ reveréncia que Ihe faziam. Simoa disse entao a Brizida 10 Sobre Pedro da Silva e Sampaio enquanto correspondente da Inquisi¢ae na Bahia, ver: L1PI- NER, Elias. eaque de Castro, O'mancebo que veio preso do Brasil. Recife: Massangana, 1992, passim ¢ FEITLER, Bruno, Nas maihas da consciéncia. Jgreja e Inquisigio no Brasil. Nordeste 41640-1750. Sio Paulo: Phoebus/ Alameda, 2007, p. 201-206. 11 Este caso éassim anterior em mais de cem anos Aquele relatado por Luiz Mott, ‘Um congresso dediabos e feiticciras no Piaui colonial. Formas de crer. Ensaios de historia religiosa do mundo luso-brasileiro. séculos XIV-XXI Fds. BELLINT, L_,SOUZA,E. Sales e SAMPAIO, G. dos Reis. Salvador: Corrupio/ EdUFBa, 2006. p. 129-160, Um historiador por seus pares trajetorias de Ronaldo Vainfas quese entregasse ao diabo, e respondendo-lhe que sim, que era sua, um dos ditos diabos a tomou, ¢ pondo-a.as contas, levando-a por 0 are dando-lheo vento, como quando venta rijo, pelo rosto, a levou por entre o mato s6 com ele pera mais longe, ¢ 14, pondo-a no chao, Ihe disse na sua lingua da terra se dizia cla confitente que era sua de corasao. E dizendo-Ihe ela que sim, cle se mostrou muito contente ¢ a abracou, ¢ pondo-se em figura de gato, a veio guiando para onde estavam as outras, e cantando o gala, 08 diabos se espalharam ¢ se foram fazendo muita matinada pelo mato. Num segundo interrogatério, feito mais de um més mais tarde, Brizida disse que o diabo vinha acompanhado de outros quatro ou seis “em as mesmas figuras do outro”, Depois dos atos sexuais feitos “em pé", uma vez que o galo cantava, os diabos se transformavam “em baratas e em sapos, ¢ nessas figuras se iam por entre a erva’. Ao recuperarem suas camisas € capas e voltarem para a cidade, tanto Simoa quanto Agueda afirmaram a Brizida serem do diabo. Esta incorporou esse discurso, tanto que caindo doente preferiu invocar 0 diabo, dizendo nao querer nada de Deus nem tampouco rezar. As trés voltaram ao mato, onde Agueda e Simoa chamaram outra vez pelo dia- bo “dizendo ‘ou” As duas adoraram-no novamente com beijos no traseiro, enquanto Brizida, ensinada por Simoa, “também fez cortesia ao diabo, volvendo para ele as costas € fazendo uma mesura, ¢ depois o beijou no traseiro’. A reunido parece ter sido das mais agraddveis, pois “ali andaram folgando e rindo, e 0 diabo as abracava ¢ beijava, e feito um em besouro que andava avoando, tomavam e tornavam a largar”. No segundo interrogatorio, ao ser perguntada se o diabo lhes dava alguma coi , Brizida lembrou-se de dizer que “Ihes dava a comer cajas podres, que € uma fruita do mato tamanha como nozes que tem por cima uma casquinha azeda mé de comer ¢ tudo o mais ¢ carogo’. Teria Brizida a necessidade de explicar ao prelado o que era caja, ou teria sido ele a inserir a explicagao para os inquisidores que leriam 0 interrogatério? Em todo caso, o cajé enquanto elemento tropical ¢ colonial, assim como a “lingua da terra” com que 0 diabo falava com Brizida, nio me parecem ser mais do que uma adaptagao contingencial do que sintomas de sincretismo. Esses ele- mentos familiares. “filha de indios’, por outro lado, mostram que ela provavelmente nio via 0 pacto demoniaco como algo de exética a seu meio, tio demonizado pelos missionarios desde os primeiros tempos da colonizagao."* 12 SOUZA, Laura de Mello ¢. O diabo ¢ a terra de Santa Crus, Reiticaria e religiosidade popular no Brasil colonial. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1986. 235 236 Angelo Adriano Faria de Assis « Pollyanna Gouveia Mendonca Muniz + Yilan de Mattos (orgs.) Esses encontros se repetiram no mesmo lugar em outras duas noites (no segun- do interrogatério ela fala de seis encontros). Num deles, “um [diabo] que af andava bailando, dormiu com cada uma delas em pé. E sentiu ela confitente que Ihe metida pelo seu vaso cousa como de homem, mas mui frio, ¢ a pouco espaco o tornava a tirar’. O bispo d. Pedro perguntou-lhe se o fato se repetira, mas Brizida afirmou que com ela apenas uma vez, mas que o tal diabo “dormia” com as outras “muitas ve- zes”. Ainda sem diivida pela curiosidade do bispo, Brizida disse que as trés andavam nuas por ld, despindo-se no caminho, escondendo suas roupas no mato ¢ voltando a recuperd-las ao voltar para a cidade. No segundo interrogatorio Brizida disse ainda (questionada especificamente sobre isto) que o diabo a abracava e beijava em forma humana, apesar de se transformar “em muitas figuras: em sapo, em gato, em cachor- ro e em outros animais do mato”. A confianga de Brizida nos poderes de Simoa e dos diabos no parece, no en- tanto, ter sido total. Brizida disse ao bispo o terrivel e estranho fato de Simoa ter “uma crianca mirada’, que nos encontros noturnos com o diabo, a punha num alguidar de agua junto com um sapo morto com uma vela acessa na boca’. A mestra dizia a Bri ja que “fosse matar uma crianga que mascera ali de uma mulata, que a embruxasse fazendo-se em pata ou em barata’. Simoa prometeu ensina-la a fazer isso, mas acabou por nado o fazer. Simoa no entanto disse a Brizida que para “ter outra crianga mirrada e seca” ela deveria embruxar a crianga, mas ela no 0 fez ¢ afirmou nao ter-se tampouco transformado em pata ou em barata. Seis meses depois, Agueda e Brizida encontraram-se no Itapicuru, a meio cami- nho entre Sergipe e Bahia, Agueda disse a Brizida que nao confessasse ao confessor nada sobre aqueles encontros. Foi a deixa para Brizida queixar-se a Agueda, e também Para mostrar que nao deixara completamente a crer no poder de Deus e dos santos, dizendo achar-se “muito mal e o diabo Ihe aparecia, ¢ sem chegar a ela porque trazia umas reliquias ao pescogo. E Ihe dizia que se enforcasse, e Ihe mostrava e deitava no chao uma corda que ela tomou e se quis enforcar na torre” Ela com efeito esteve prestes a se matar, € isto teria acontecido se o seu amo, d. Francisco nao “a tira[sse] disso” nio antes de Brizida Ihe dizer que fora o diabo quem lhe dera a corda para se enforcar. O diabo nao largara Brizida, que ainda o via uma vez chegada & Bahia. Ainda antes da sua apresentagao ao bispo, no domingo da pascoela de 1639, Brizida foi se confessar na igreja de sio Pedro, Ao beneditino que a confessou, ela contou do que fizera, o que fez com que surgissem “trés diabos e Ihe disseram que se nao confessasse e que nao tinha remédio, que ja era sua’, Apesar disso Brizida dissera Um historiador por seus pares 237 trajetorias de Ronaldo Vainfas a0 confessor “que muito se rependia do pecado que tinha feito, e que ja era e sempre [foi] de Deus”, O diabo tornow a Ihe aparecer, ¢ ela foi se confessar com um outro frade de Sao Bento. Este a absolveu. Na sexta-feira anterior a apresenta¢ao perante o bispo do Brasil, aconteceu a tiltima apari¢io do diabo a Brizida, estando ela sozinha, A noite, numa camarinha. O diabo Ihe dissera “que nao tinha que se cansar que era sua, € que quando viesse o padre para a confessar, que fugisse dele’: D. Pedro da Silva e Sampaio, ex-inquisidor, levou adiante a confissdo com per- guntas essenciais para a qualificagao do delito: - Perguntada se quando disse ao diabo que era sua, e que nio queria nada de Deus, e beijando-o no traseiro, se ficou crendo nele, ¢ deixando a Deus? Brizida nao deixou ditvidas. Confirmou “ter ficado crendo no diabo e cuidando que ele era Deus’, enfim, “que se aparta[ra] de Nosso Senhor” Ela deixara entao de ir 8 missa, pois “o diabo the dizia que a missa no era missa, sendo aquilo que ele fazia’. O resto do relato desta primeira sessio parece ter sido um tanto reduzido, pois em vez seguir com perguntas, surge um discurso muito bem construido para os fins de qualificacdo dos atos, e também do arrependimento de Brizida: E deixou de crer no diabo ¢ se tornou a Deus nosso Senhor Deus dos Cris- tios, €a Virgem nossa Senhora, ¢ depois que se tornow a Deus nao tornou a crer no diabo, nem no diabo quer crer, nem o quer ver, nem falar-Ihe, nem dormir com ele. E quer sempre daqui em diante ser boa cristi, endo de pes- soa outra alguma que creia no diabo, nem que com ele fale, Obispo entio a admoestou “dizendo que tomara bom conselho em vir confes- sar, ¢ que fosse boa crista e que cresse firmemente em Deus nosso Senhor”, Brizida deveria retornar ver o bispo na segunda-feira seguinte aquela primeira confissao. Fato importante-a ser notado, o depoimento nao foi assinado pessoalmente por Bri- tida, mas sim pelo escrivao ¢ a seu rogo, por ela ndo saber ler nem escrever. Aqueles dias de intermezzo deveriam servir para ver se Brizida tinha ainda outros detalhes a confessar, mas também ao bispo, que pode ter aproveitado desse tempo para refrescar sua propria memoria sobre como qualificar ¢ tratar os casos de pacte com o deménio, consultando alguns volumes da biblioteca que deveria ter, ou tentando rememorar-se do caso que ele préprio instruira mais de dez anos antes em Lisboa, no qual Ana Antonia do Boco finalmente confessara uma série de 238 Angelo Adriano Faria de Assis + Pollyanna Gouveia Mendon¢a Muniz + ‘Yilan de Mattos (orgs.) atos relacionados ao pacto demoniaco, ¢ que se assemelham por alguns com aqueles relatados por Brizida.” O segundo interrogatério aconteceu em 20 de junho, e depois de lhe perguntar se lembrava de mais alguma coisa, d. Pedro continuou a querer melhor qualificar 0 delito, e quis saber de Brizida se “deu alguma coisa ao diabo, como sangue de seu ‘brago, ou alguma outra coisa”. Ela disse que nao. O bispo conseguiu em seguida con- firmar que se tratava bem de pacto com o-diabo ¢ de heresia formal e nao oculta per accidents, pois Brizida confirmou outra vez ter-se entregue ao diabo, mas também que assim o afirmara diante de Simoa e Agueda, “e elas o ouviramy’ Para confirmara coisa, Brizida conta com mais detalhe o ato do pacto: “debrugando-se o diabo sobre um pau de cajazeira que ai estava quebrado, ela confitente 0 beijou no traseiro como também as outras duas mulatas”. Era esse beijo o sinal de reconhecimente do diabo “por seu deus”. Neste interrogat6rio Brizida diz que teve essa crenga apenas por cerca de seis dias, e que depois de sua doenga se arrependera. Apesar disso, como vimos, 0 diabo continuou a atormentar Brizida, levando-a mesmo ao desespero do suicidio, do qual foi impedida por aquele mesmo que a levara a pactuar com o deménio, seu amo, 0 capito Jodo Lopes Barbalho. Como lembra Laura de Mello e Souza, o ato principal com 0 qual os inquisi- dores se preocupavam em casos como estes era 0 pacto com o deménio que con- figurava heresia." Apesar disso, d. Pedro, quem sabe agora no seu papel de bispo pastor, quis saber ainda alguns detalhes, e Brizida entao lhe informara que o diabo “dormira carnalmente” com ela, e isso “por seu vaso natural, o diabo lhe metia al- guma coisa mas frio, mas ndo sentiu que lhe deitasse nada’. Ou seja, nao se tratava de um ato sodomita, e que mais é, nao houve derramamento de sémen, dados que fogem um pouco dos relatos classicos de sabas, onde se veria uma inversdo total das normas cristés e mesmo naturais, como a sodomia implicaria. Desse ponto de vista, © fato do diabo (segundo Brizida, interrogada pelo bispo) nao falar nem de Deus, nem de Cristo, nem na Virgem “na cruz’, nem nos santos, indicando assim a falta das tra origin: jonais blasfémias contra estas entidades, também seria de certo modo uma lade deste caso. 13 ANTT,IL, processo 11242 contra Ana Antonia do Boco, de 1624. O caso € analisado por Lau- rade Mello e Souza em Inferno atlintico. Demonologia e colonicagdo. Séculas XVI-XVIIl. So Paulo: Companhia das Letras. 1993, p. 167-168. 14 SOUZA, Laura de Mello-e. Inferno atlintico, Op. cit, p. 166-176. Um historiador por seus pares 239 trajetdrias de Ronaldo Vainfas A frieza do membro diabélico, assim como outros pequenas e grandes deta- Ihes, no entante, ligam claramente o relato feito de modo mais ou menos voluntirio por Brizida a um puro saba europeu. Nudez, voo neturna, inversio de gestos e de rituais cristéos, a transformagdo em animais, as pequenas orgias, enfim, o proprio pacto demoniaco, fazem dessa confissio um rico relato que poderia ter sido feito por qualquer bruxa europeia que se prezasse, claro est, com a excego do uso da “lingua da terra” pelo demo, e sua oferta de cajas podres Antes de encerrar o segundo interrogatorio, d. Pedro ainda quis saber se o diabo tinha aparecido a Brizida antes do relatado, o que ela negou, ¢ se suas duas comparsas “se arrependeram de falarem assim com 0 diabo", o que ela disse ignorar. Fez-se em seguida uma curta sessio de genealogia, em que afirmou ter sido batizada no Recife pelo vigdrio Baltazar Ribeiro, tendo como padrinhos o capitio Simio de Figueiredo, “que hoje é clérigo de missa ¢ est aqui [em Salvador]” e a india Guio- mar. Brizida persignou-se ¢ benzeu-se e das oragdes sabia apenas o Padre Nossoe a ‘Ave Maria, Também afirmou confessar-se pela obrigagio da quaresma e comungar “inda antes que lhe acontecesse 0 que dito tem com o diabo’. Finalmente, sem du- vida a pedido do bispo, ela informou que “estava agora em casa de dona Catarina no rio Vermelho, e que quando se mudasse, o faria saber ao dito senhor bispo’. O escrivio da camara do bispado do Brasil Francisco da Silva, que tomou nota dos interrogatorios, foi também quem tirou cépia deles no dia 27 de julho de 1639 para enviar aos inquisidores em Lisboa, O caso ficou arquivade no caderno do promotor. Deixando de lado a questo do saba e interessando-nos agora ao estatuto indi- gena de Brizida, cabe perguntar: 0 que teria levado o bispo a enviar essa confissio formal a seus ex-colegas da Inquisiga? Sem duvida a gravidade do que havia sido confessado, implicando diretamente ao menos duas outras pessoas. Possivelmente também o fato de Brizida nao mais viver no ambiente exclusivo de um aldeamen- to administrado por religiosos, mas sim numa zona urbana, descaracterizando-se deste modo, ao menos em parte, sua identidade indigena. Também deve ter sido importante 0 que ela disse na mencionada sessio de gencalogia, ou seja, que ela ha- via sido batizada “sendo menina’ (e nao em idade adulta), e que se confessava ¢ que mais é, comungava, 0 que dependendo do momento, nao era permitido a todos os indios, mas apenas Aqueles que tivessem um minimo de compreensio dos dogmas da Igreja. Apesar de saber somente as duas principais oragdes catdlicas, elas, junto com os gestos propiciatérios da Igreja, poderiam ser vistos como act conhecimentos basicos, 240 Angelo Adriano Faria de Assis + Pollyanna Gouveia Mendonga Muniz « Yilan de Mattos (orgs.) Na carta que escreveu aos inquisidores de Lisboa (também menciona ter escrito diretamente ao inquisidor geral) no dia 2 de dezembro de 1639, na qual deu conta deste e de outro caso que [hes tocava (o de uma bigama muito pobre, originaria dos ‘Acores), d. Pedro da Silva e Sampaio caracterizou Brizida nao como india, mas como “filha de indios”, distanciando-a assim, mesmo que apenas um pouco, de suas ori- gens, e aproximando-a dos ideais civilizacionais europeus. Mas tendo em vista estas corigens “se ha de usar de misericordia’, sugeria o bispo. As dificuldades de navegagio devido & guerra, e a pobreza de ambas (Brizida “nio tem mais que uma camisa que traz vestida, e um manto de algodao com que se cinge”), justificariam segundo d. Pedro, a que se lhe desse autorizagao para reconcil sua experiéncia prévia, saberia “onde hi de chegar a pena que ha de ter”. Aos inquisi- jas. Igreja por ele mesmo. Com dores excepcionalmente pareceu que “se lhe pode por hora deferir’, sem duivida pela grande confianga que tinham no antigo companheiro, no que foram seguidos pelo Conselho Geral em reuniao de 9 de dezembro de 1639.'* © caso de Brizida é excepcional sobretudo por ter chegado a uma sentenga final elaborada em nome da Inquisigio, mesmo que ndo saibamos em que penas € peniténcias incorreu a india demandada. D. Pedro da Silva e Sampaio nio teria escrito aos inquisidores sea fosse julgar a partir de sua jurisdigao ordinaria, ou seja, enquanto bispo, nem tampouco a partir da jurisdi¢ao que o cardeal d. Henrique outorgara a seu antecessor. Ficamos, ¢ claro, com menos hipdteses para a entender como ¢ por que meios uma india, mesmo urbana, ¢ duas mulatas (pois ndo devemos esquecer que Brizida foi iniciada, segundo ela, por Agueda e Simoa) tivessem incorporado todos esses detalhes dos rituais sabaticos. Podemos apenas remeter ao que Laura de Mello € Souza sintetizou referindo-se a casos setecentistas acontecides em Portugal, mas tendo como réus negros € mestigos, Ou o sabi era ja um discurso banalizado, ridi- cularizado pelas elites europeias, sendo suas concepgées milenares passiveis de se deslocar para outros contextos, ou mais simplesmente © resultado da aquisigao de uma familiaridade com o diabo dos colonizadores, onipresente em seus discursos de dominagao."* 15. Caderno primeiro de ordens do Conselho Geral. ANTT, IL, livro 151, fol. 370. 16 SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlantico, Op. cit, p. 172.

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