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Frade

Frade Frade
Vem um Frade com ũa Moça pela mão, e um Frade (F.) – personagem-tipo que representa os
broquel1 e ũa espada na outra, e um casco2 elementos do clero que não viviam de acordo
debaixo do capelo3; e, ele mesmo fazendo a baixa4, com a doutrina e os preceitos da Igreja.
Mais tarde na obra (v. 824), percebemos que
começou de dançar, dizendo:
esta personagem se chama Frei Babriel (Gabriel).
Apesar de nomeado, o F. continua a ser uma
FRADE Tai-rai-rai-ra-rão, ta-ri-ri-rão, personagem-tipo.
Ta-rai-rai-rai-rão, tai-ri-ri-rão, O F., apesar de se apresentar com o hábito de
370 tão-tão; ta-ri-rim-rim-rão Huha! dominicano, traz consigo objetos inusitados e
DIABO Que é isso, padre? Que vai lá? que o fazem parecer um fidalgo de corte, como o
“broquel”, “espada” e “casco”. Estranhamente,
FRADE Deo gratias!5 Sou cortesão.
traz consigo uma “Moça” (símbolo de depravação)
DIABO Sabês também o tordião6? com quem vem, de forma inconveniente, a assobiar
FRADE Porque não? Como ora sei! e, depois, a dançar a “baixa” (dança do século XVI
375 DIABO Pois, entrai! Eu tangerei7 muito divulgada na corte). As personagens-tipo
da obra são apresentadas sob a forma de uma
e faremos um serão. caricatura. Neste caso, o F. representa o clero,
de forma exagerada, mas fazendo uma crítica
Essa dama, é ela vossa? séria aos costumes e à postura totalmente
desadequada de alguns dos seus elementos.
FRADE Por minha la tenho eu,
e sempre a tive de meu.
Percurso da personagem:

vv. 368-370 – cómico de situação: o F. assobia ou


trauteia a música da “baixa”
v. 371 – O F. dever-se-ia apresentar de forma
recatada, discreta e em oração. A situação é tão
estranha que até o D. fica surpreendido com a
postura da personagem
v. 372 – Considerando a língua oficial da Igreja
Católica, esta personagem utiliza o latim em
algumas expressões
vv. 372 e 374 – cómico de carácter: apresentação
contraditória, já que, apesar de iniciar com uma
saudação religiosa em latim, o F. apresenta-se
como um fidalgo da corte e não como religioso
consagrado
v. 373 – O D. escarnece e tenta acentuar o
comportamento incorreto do F. ao perguntar se
ele conhece uma das outras danças de corte:
o “tordião”, uma dança cantada que se seguia à
“baixa”
vv. 375-376 – cómico de situação: sarcasmo do D.
vv. 378-379 – cómico de carácter: o F. assume,
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1. broquel: pequeno escudo antigo. 2. casco: capacete. com orgulho, que a Moça é sua amante. O D. não
3. capelo: capuz. 4. fazendo a baixa: assobiando ou tem de fazer acusações. É o F. que, com o seu
trauteando a música de uma “dança baixa”. 5. Deo gratias!: comportamento inconsciente e pecaminoso,
Graças a Deus! 6. tordião: dança cantada. 7. tangerei:
se autocondena
tocarei.

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Auto da Barca do Inferno à lupa

DIABO Fezeste bem, que é fermosa!

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380 vv. 380-382 – O D. afirma, sarcasticamente, que o
E não vos punham lá grosa 8 F. procedeu corretamente (quebra do voto de
celibato por parte do F.)
no vosso convento santo? vv. 381-384 – cómico de carácter: assistimos,
FRADE E eles fazem outro tanto! nestes versos, à condenação de toda uma classe
DIABO Que cousa tão preciosa! social (“eles fazem outro tanto”)
v. 382 – ironia

385 Entrai, padre reverendo!


FRADE Pera onde levais gente?
DIABO Pera aquele fogo ardente v. 387 – pleonasmo
que nom temestes vivendo.
FRADE Juro a Deos que nom t’entendo!
390 E est’hábito no me val? v. 390 – argumento de defesa do F.: o F. crê que a
condição de religioso lhe trará a salvação
DIABO Gentil padre mundanal9,
v. 391 – cómico de linguagem: uso de palavras
a Berzabu10 vos encomendo! que se excluem (“Gentil” = conhecedor das boas
maneiras, elegante na sua apresentação e
FRADE Ah, Corpo de Deos consagrado! comportamento, e “mundanal” = dado aos
prazeres do mundo, ou seja, adjetivos de um
Pela fé de Jesu Cristo,
cortesão vs. “padre”)
395 que eu nom posso entender isto! v. 392 – “Berzabu” = D.; fórmula de juramento
Eu hei de ser condenado? vv. 393, 394 e 399 – fórmula de juramento
Um padre tão namorado vv. 393-395 e 399-400 – O F. mostra-se espantado
com a acusação feita pelo D.
e tanto dado a virtude? vv. 396-398 – cómico de carácter: o F. mostra-se
Assi Deos me dê saúde, muito surpreendido por o seu comportamento
400 que eu estou maravilhado11! tão enamorado não o levar ao Paraíso

Não curês de mais detença12.


DIABO
Embarcai e partiremos: v. 402 – imperativo
tomarês um par de remos.
13
FRADE Não ficou isso n’avença .
405 DIABO Pois dada está já a sentença!
14
FRADE Par Deos! Essa seri’ela! v. 406 – indignação do F.: assim como no v. 390, o
Não vai em tal caravela F. expressa a ideia de que o hábito seria garantia
de salvação
minha senhora Florença15. v. 408 – referência ao nome da Moça que
acompanha o F. e que, com ele, mantinha uma
Como? Por ser namorado relação amorosa
vv. 409-412 – cómico de carácter: o F. não se
410 e folgar com uma mulher
consciencializa da gravidade das suas ações; o D.
se há um frade de perder, não tem sequer de fazer acusações: é o F. que,
com tanto salmo rezado? com as suas palavras e postura, revela o seu
comportamento pecaminoso

8. v. 381: e não vos criticavam. 9. mundanal: dado aos


prazeres do mundo, mundano. 10. Berzabu: Diabo.
11. maravilhado: espantado. 12. detença: demora.
13. n’avença: acordo. 14. Essa seri’ela!: Era o que faltava!
15. senhora Florença: moça que acompanhava o Frade.

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Frade

DIABO Ora estás bem aviado! vv. 413-414 – cómico de linguagem


16
FRADE Mais estás bem corregido!
415 DIABO Devoto padre marido, v. 415 – cómico de linguagem: uso de palavras que
havês de ser cá pingado ... 17 se excluem
v. 416 – forma de tortura que implicava deitar
pingos de chumbo ou de azeite a ferver na pele
Descobrio o Frade a cabeça, tirando o
capelo, e apareceo o casco, e diz o Frade:

FRADE Mantenha Deos esta coroa18! v. 417 – cómico de situação e cómico de carácter:
DIABO Ó padre Frei Capacete! de repente, o F. tira o capuz, referindo a sua
“coroa” (penteado tradicional dos frades),
Cuidei que tínheis barrete!
revelando, todavia, um capacete. Para além
420 FRADE Sabê que fui da pessoa!19 do comportamento libertino, acentuado pelo
Esta espada é roloa20 comportamento do F. e pela presença da Moça,
e este broquel rolão. os restantes adereços cénicos, como o “casco”, o
“broquel” e a espada, destacam o comportamento
DIABO Dê Vossa Reverência lição destes elementos da Igreja que se mostram
d’esgrima, que é cousa boa! libertinos e mundanos
v. 418 – apóstrofe
vv. 420-422 – cómico de carácter: arrogância do F.
Começou o Frade a dar lição d’esgrima com a
vv. 421-422 – “roloa”/”rolão” – adjetivos inicialmente
espada e broquel, que eram d’esgrimir, e diz desta referentes ao herói Roland das histórias medievais
maneira: de cavalaria, Chanson de Roland, que tinha uma
espada inquebrável, mas que também podem
significar de reles qualidade
425 FRADE Deo gratias! Dêmos caçada!21
vv. 425-451 – cómico de situação: depois de
Pera sempre contra sus!22 instigado pelo D., o F. dá uma lição de esgrima;
Um fendente!23 Ora sus! gíria da esgrima
Esta é a primeira levada24.
Alto! Levantai a espada!
430 Talho25 largo, e um revés26!
E logo colher os pés27,
que todo o al28 no é nada.

16. v. 414: Mais bem aviado estás tu! 17. pingado: torturado
com pingos de azeite ou de gordura a ferver. 18. esta
coroa: corte de cabelo em forma de coroa. 19. v. 420: Fui
uma pessoa importante. 20. roloa: reles, ordinária (palavra
com sentido duvidoso). 21. Dêmos caçada!: Vamos à
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esgrima! 22. v. 426: movimento da espada para baixo,


aparando um golpe vindo de cima. 23. fendente: golpe
dado de cima para baixo. 24. levada: ataque. 25. Talho:
Golpe da direita para a esquerda. 26. revés: golpe da
esquerda para a direita. 27. colher os pés: recolher os pés
para atacar. 28. todo o al: resto.

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Auto da Barca do Inferno à lupa

Quando o recolher se tarda

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o ferir nom é prudente.
435 Ora, sus! Mui largamente,
cortai na segunda guarda29!
– Guarde-me Deos d’espingarda
mais de homem denodado30.
Aqui estou tão bem guardado
440 como a palha n’albarda.

Saio com meia espada…


Houlá! Guardai as queixadas!
DIABO Ó que valentes levadas!
FRADE Ainda isto nom é nada…
445 Dêmos outra vez caçada!
Contra sus e um fendente,
e cortando largamente,
eis aqui seista feitada31.

Daqui saio com uma guia32


450 e um revés da primeira:
esta é quinta33 verdadeira.
– Oh! Quantos d’aqui feria! vv. 452-454 – cómico de carácter: apesar de o F.
Padre que tal aprendia se tentar defender, na verdade só se incrimina
v. 455 – fórmula de juramento: referência a São
no Inferno há de haver pingos?34 Domingos, uma vez que o frade pertencia à ordem
455 Ah! nom praza a São Domingos35 dominicana
com tanta descortesia! v. 456 – cómico de carácter: o F. resume a situação,
que é séria, a uma simples questão de falta de
maneiras

29. guarda: posição em que se está em condições de atacar.


30. denodado: ousado, impetuoso. 31. seista feitada: sexta
guarda. 32. guia: movimento de ataque. 33. quinta: a quinta
guarda. 34. vv. 453-454: Um padre que esgrime bem/ há de
ser castigado no Inferno? 35. São Domingos: o patrono da
congregação a que pertencia o Frade.

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Frade

Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:

FRADE Vamos à barca da Glória!

Começou o Frade a fazer o tordião e foram


Percurso da personagem:
dançando até o batel do Anjo desta maneira:

FRADE Ta-ra-ra-rai-rão; ta-ri-ri-ri-ri-rão; vv. 458-464 – cómico de situação e de carácter: o


F., acompanhado por Florença, dirige-se, em festa,
Tai-rai-rão; ta-ri-ri-rão; ta-ri-ri-rão.
à barca do Paraíso
460 Huhá!

Deo gratias! Há lugar cá


pera minha reverença?
E a senhora Florença vv. 463-464 – o F. mostra-se autoritário
polo meu36 entrará lá!
465 JOANE Andar, muitieramá! v. 465 – o A. ignora o F., tal a indignidade e
Furtaste o trinchão37, frade? gravidade das suas ações. É o Parvo quem, com
a sua espontaneidade e linguagem brejeira,
FRADE Senhora, dá-me a vontade
vai interagir com o F., ridicularizando e
que este feito mal está.38 condenando o seu comportamento
v. 465 – “muitieramá” – arcaísmo
vv. 465-466 – cómico de linguagem
Vamos onde havemos d’ir,39
v. 466 – apóstrofe
470 não praza a Deos com a ribeira! vv. 467-468 – o F. conforma-se com o seu destino
Eu não vejo aqui maneira
senão enfim… concrudir40.
DIABO Haveis, padre, de viir.
FRADE Agasalhai-me lá Florença, Percurso da personagem:
475 e compra-se esta sentença
e ordenemos de partir.
v. 470 – fórmula de juramento
vv. 471-472 – resignação final do F.
v. 473 – apóstrofe
v. 474 – imperativo
vv. 474-476 – Florença também entra com o F. na
barca, já que também pecou: envolveu-se com ele
e foi cúmplice na quebra do voto de castidade. Por
isso, também é condenada às penas infernais
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36. polo meu: graças a mim. 37. trinchão: mulher apetitosa.


38. vv. 467-468: Senhora, eu penso/que este caso está mal
parado. 39. v. 469: Vamos para o Inferno. 40. concrudir:
concluir (entrar na barca do Inferno).

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