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CM Ce me) ensaios, artigos de revisio, artigos teéricos e Cee eR ene eee eres ee ee ite Ore ee ces eS fe Politicas Pablicas, resultantes de pesquisas cientificas & ee eee eed co Coe ener! seu conteudo, seguindo o principio de que Ce eee eee ed eee eee ce eg Pen eee Se een BOLETIM DE CONJUNTURA BOCA ‘Ano Ill] Volume § | N° 15 | Boa Vista 2021 hitp:/wan oles com briboca ISSN 2075-1488 nitp 04 org/10.52@1/2enod0 4553213 BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca JUSTICA DISTRIBUTIVA E 0 RECONHECIMENTO Sergio Baptista dos Santos’ ‘Resume As Intas por reconhecimento, diferentemente das Intas por “redistribuigao", nao tém como orientaco normativa, em primeira plano, a climinacdo das desigualdades econdmicas, mas 0 combate ao preconceito ¢ a discriminacao de determinados grupos € individuos, tendo em vista que a negagao do reconhecimento se constitu: numa forma eficaz de opressio. O objetivo desse artigo é saber se a justica distributiva e o reconhecimento constituem modelos normativos distintos e singulares ou se algum. deles pode ser inciuido ao outro. Analiso essa questo por meio dos modelos de reconhecimento dos principais nomes que abordam essa temtica: 0s filésofos Charles Taylor (1931), Axe! Honneth (1949) ¢ da ciemtista politica Nancy Fraser (1947). Primeiro comego apresentando © modelo de reconliecimento de cada um desses autores, Posteriormente, comparo com eles enfrentam essa questio que é 0 abjeta do ensaio. Palavras chave: Identidade, Justica, Reconhecimento, Redistribuigto. Abstract The struggles for recognition, unlike the struggles for “redistribution”, do not have as a normative orientation, in the foreground, the elimination of economic inequalities, but the fight against prejudice and discrimination of certain groups and individuals, considering that the denial of recognition is an effective form of oppression. The purpose ofthis article isto find out whether distributive justice and recognition are distinct and unique normative models or whether any of them can be eo included in the other. I analyze this issue through the models of recognition of the main names that address this theme; philosophers Charles Taylor (1931), Axel Honneth (1949) and political scientist Naney Fraser (1947). Fist, T begin by presenting the recognition model of each of these authors. Later. I compare with them they face this issue that is the object of the essay. Keywords: Identity. Justice, Recognition. Redistribution, O MODELO DE RECONHECIMENTO DE CHARLES TAYLOR, 0 filosofo canadense contempordneo Charles Taylor (1931) foi o precursor da recuperagio da nogao de reconhecimento dos eseritos do fildsofo alemao Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 -1831). Na inauguragio do Princeton University’s Center for Human Values, em 1990, ele proferiu uma palestra que tinha como tema o multiculturalismo, Em sua exposigio, procurou mostrar a importincia epistemol6gica do conceito de reconhecimento para a compreensio de uma série de conflitos ¢ demandas contemporineas que nio estio diretamente vinculados a disputa por bens materiais, como nos casos de movimentos nacionalistas, dos conflitos culturais e religiosos, das causas feministas e das minorias politicas s € constitutivo dessa politica o nexo entre reconhecimento e identidade. Para este autor: a “[..] identidade rundo Taylor (2000), um dos principais formuladores das reivindicagdes por reconhecimento, " outer, mest, bacharel ¢ licenciado em Cit do Estado da Rio de Tanto edo Instituto de Eatucas Socias. Anualmente professor de Sociologia da Fundagto de Apoio a Escola Téeaica Rangel Pestana. Emil para contato:sesbats@ gmail.com Ports eer BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca designa algo como a compreensao de quem somos, de nossas caracteristicas definidoras fundamentais, como seres humauos” (Taylor, 2000, p. 241) De acordo com Taylor (2000), tais caracteristicas definidoras resultam de uma construcio dialogica, que se molda pelo reconhecimento ou por sua falta. A identidade de um individuo ou grupo pode soffer graves danos se as pessoas, ou a sociedade, a refletem num quadro depreciavel. A falta de reconhecimento constitui uma forma de opressio que aprisiona individuos ou grupos em um modo de ser falso e deformado. Segundo esse autor, tal forma de opressio se mostra tio eficaz que mesmo quando se extinguem os obsticulos objetives libertagtio de um grupo, seus membros sto incapazes de aproveitar as novas chances devido a baixa auto-estima provocada pela incorporagio de imagens autodepreciativas que Ihes foram atribuidas Um sxemplo ilustrative nesse sentido, segundo Taylor (2000), sto as mulheres de sociedades patriarcais que foram induzidas a adotar uma imagem depreciativa de si mesmas. A internalizagao dessas imagens provocavam-lhes perda de estima por si mesmas e, por isso, parecem incapazes de aproveitar as oportunidades surgidas com a supressio dos obstéculos objetivos de sua opressio. Esse discurso do reconhecimento e da identidade nem sempre nos foi familiar. Duas mudangas foram fundamentais, segundo esse autor, para a preocupagao atual com o reconhecimento e a identidade. eo A primeira ocoreu com fim do Antigo Ré mie eo consequente desmoronamento das hierarquias sociais que se baseavam na nogio de honra. Essa noc3o no Ancien Regime, que marcava as distingdes entre estratos sociais, é substituida pela nogao de dignidade com um sentido universal ¢ igualitério. O conceito de dignidade com tais caracteristicas torna-se possivel gragas a sociedade demoeritiea que emerge das ruinas do Antigo Regime. A segunda mudanga que intensificou a importincia do reconhecimento foi a nova compreensio ida, identidade particular a mim e que descubro em mim mesmo (Taylor, 2000, p. 243).” E caracteristico de: de que a identidade individual passow a ter a partir do século XVIII, “uma identidade individual nova compreensao um ideal de autenticidade que pressupde que os individuos devem ser figis a si mesinos. Esse ideal de autenticidade emerge rompendo com a nogio que os seres humanos so dotados de tar em contato com a voz interior ‘um sentido moral acerca do que é certo ou errado. Nessa concepgao, significava um meio de agir de modo certo. A mudanca em relagdo a essa nogio, segundo Taylor (2000), emerge com a necessidade de os seres humanos estarem em contato com os praprios sentimentos que assumem um cariter moral crucial ¢ independente. Nao se compreende a necessidade de ouvir a voz interna como um meio para agir de modo correto, mas para constituigao de seres plenos. ‘Nao hi nessa nova concepeo nenhuma fonte moral a que os homens devem vincular-se, como Deus ou Ports eer BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca a Ideia do Bem, para a plenitude enquanto seres humanos. A fonte desse ideal de autenticidade esta dentro dos proprios seres humanos. Essa é a mudanga subjetiva fundamental do mundo modemo, “[...] uma nova forma de interioridade em que passamos a pensar-nos a nés mesmos como seres dotados de profundidades interiores (Taylor, 2000, p. 244)” Taylor (2000) aponta o fil6sofo suigo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) como o pensador que proporeionou uma grande contribuigdo a essa virada subjetiva. Nao foi um pioneiro, mas foi capaz de sistematizar um processo que jé estava em curso na cultura, Para Rousseau a nossa redengdo moral se resolve si indo a nossa voz interna que muita vezes é abafada pela vida em sociedade, O desenvolvimento desse ideal de autenticidade tem seu desenvolvimento mais consequente por meio do filésofo ¢ eseritor alemao Johann Gottfried von Herder (1744-1803), para quem cada um de nds tem sua maneira propria de ser humano eo sentido de cada existéncia consiste em ser fiel a si mesmo, O que implica em que no devemos moldar nossa vida segundo presses externas e também nio devemos encontrar 0 modelo fora de nés. Assim procedendo cada individuo realiza uma potencialidade pré-existente que o faz singular. De acordo com Taylor (2000), assim como a nogdo de dignidade, esse ideal de autenticidade foi resultado do declinio das sociedades aristocriticas. Nessa sociedade nossas caracteristicas definidoras oe eram derivadas da posigiio que cada individuo ocupava na hierarquia social. Nas sociedades democraticas, o ideal de autenticidade atribui a cada ser humano, nfo mais uma identidade derivada da estrutura social, mas a responsabilidade de descobri-la consigo mesmo. O que antes era atribuigdo externa passa a ser gerado internamente. Segundo Taylor (2000), “a procura de um eu gerado intemamente” é um ideal monolégico que nio contribui para compreensio entre reconhecimento e identidade. Tal vineulo s pode ser compreendido se levarmos em conta a natureza dialégica da construgio das identidades. Ele afirma que s6 nos tomamos agentes plenos, capazes de definir nossas identidades a partir das linguagens humanas. O termo linguagem é usado por esse autor num sentido mais amplo que a lingua, engloba as linguagens da arte, gesto, amor ete. As pessoas, contrariando o ideal monolégico, ndo adquirem as linguagens para sua autodefinigao a partir de um desenvolvimento interno independente das relagdes socais com as pessoas que sio significative para nés. Taylor (2000) define esas pessoas utilizando uma expressao cunhada por G. H Mead (1863-1931), “outros significativos” Portanto, ¢ acordo com esse filésofo, a construgio da identidade no é um processo finito, mas um proceso continuo. Definimo-las no didlogo com as coisas que nossos outros significantes desejem ‘ver em nés e, em certos casos, contra essas coisas. E mesmo que a contribuigao dos outros significantes Ports eer BOLETIM DE CONJUNTURA wwu.tevista.utr.br/ooca seja no comego de nossas vidas, como nossos pais, 0 didlogo com esses continua dentro de nés por toda nossa vida, Portanto, conclui Taylor (2000), a construcao da identidade individual nao pode ser realizada no isolamento, mas negociada por meio do didlogo com os outr = significantes. A compreensio dessa natureza dialégica de nossa identidade pessoal define a importincia crucial que o reconhecimento tem para esse processo. Enquanto nas sociedades hierarquizadas o reconhecimento estava embutido nas identidades derivados da estrutura social, na modernidade os individuos nfo gozam a priori desse reconhecimento. Eles tm que buscé-lo, O que se tomou uma questio crucial para a vida subjetiva a medida que © reconhecimento se & conseguido por meio do intereambio bem sucedido, quando mal sucedido ela pode malograt. Segundo Taylor (2000), hoje a necessidade de reconhecimento é universalmente compreendida como fundamental para construgao identidades. Na esfera intima, a construgao da auto-identidade pode ser bem ou mal sucedida de acordo com os nossos contatos com os outros significantes. Na esfera publica a compreensio que o devido reconhecimento é fundamental para a construcio da identidade de determinados grupos sociais fez com que a busca normativa por reconhecimento se oe toma elemento mobilizador de uma série de movimentos sociais para os quais justiga social nio se realiza apenas com a redistribuigdo de riquezas, mas por meio do devido e apropriado reconhecimento. O MODELO DE RECONHECIMENTO DE AXEL HONNETH. Assim como para Taylor (2000), Honneth (2003) concebe que nossa identidade ¢ uma construgio dialégiea, Segundo esse autor, um sujeito possui a conseiéneia do significado intersubjetivo de si quando tem condigio de promover em si mesmo a mesma manifestagdo que seu comportamento provocou no seu parceiro de interagdo, podendo, assim, a0 mesmo tempo, produzir em si o comportamento resposta de seu defrontante, Agindo contra si, da mesma forma que seu defrontante, o individuo se coloca numa perspectiva a partir da qual pode obter uma imagem de si e, desse modo. éncia de sua identidade, aleangar a conse Para ele, existe na modemidade diferentes padrdes de reconhecimento intersubjetivo. Cada um deles carrega expectativas de comportamento e ago reciprocas. Por meio de sua interpretagio de Hegel. para Honneth (2003) ha trés padrdes normativos de reconhecimento intersubjetivo: 0 amor, o direito e a solidariedade ee BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca O padrao de reconhecimento pelo amor se constitui por relagdes primérias baseadas em ligagSes afetivas entre um cireulo pequeno de pessoas; relagdes erdticas, de amizades ¢ de pais e filhos. Esse “circulo pequenos de pessoas”, imprescindiveis para o reconhecimento por meio da experiéncia do amor, é constituido, de acordo com Honneth (2003), pela presengalexisténcia coneretados outros. Por meio dessa forma de reconhecimento, os sujeitos, ao sentirem-se estimados entre si tomam-se autoconfiantes. O resultado do reconhecimento bem sucedido pelo o amor, Honneth (2007) denomina como autoconfianga. © padrio de reconhecimento pelo direito ¢ fundamental para a construgio bem sucedida da identidade dos sujeitos. Mas uma identidade de um tipo diferente do reconhecimento através do amor. Com a passagem da tradigao para as sociedades modemas, 0 sujeito, de acordo como Honneth (2003), passa a ser portador de direitos pela sua condigao de ser humano e nfo por qualquer atributo acerca das expectativas sociais referentes a ele. Na tradigio, o direito estava associado e determinado pelos papéis sociais que os sujeitos ocupavam na estrutura social, sendo, desta forma, constituida uma organizacao juridica que admitia uma gradagao de direitos. Tal atrelamento do direito a estima derivada do papel social se dissolve no processo histérico que deu fim as sociedades estamentais e fez surgir, teoricamente, uma estrutura juridica cega as diferengas individuais. oe Esse autor entende que uma ordem juridiea pode ser justificada quando os individuos estio dispostos a observé-la de forma livre, independentes de qualquer influgneia externa. Por isso, € légico supor nesses sujeitos de direito a competéncia de decidir, baseados na razao ¢ de forma autdnoma, sobre questdes morais. Sem essas condigdes, Honneth (2003) conelui que seria impossivel pensar num acordo intersubjetivo entre individuos acerea de uma ordem juridica, Nesse seutdo, toda comuaidade juuidien modemaa, waicamente porque sua legitimidade se tora dependent da ideia de um acordo racional entre indvidvos em pé de igvaldade, esta fundada na assun¢ao da imputabilidade moral de todos os seus membros (HONNETH, 2003, p. 188). A natureza da propriedade atribuida a uma pessoa, se ela pode participar da estrutura juridica em igualdade com os outros membros, depende da forma que o procedimento racional legitimador é representado, Por isso, ele observa que as propriedades responsiveis por caracterizar um ser humano numa formagao racional da vontade [...]” (HONNETH, 2003, p. 188). Quanto mais exigente ¢ 0 como pessoa sio determinadas por pressupostos subjetivos que condicionam a sua participagdo procedimento racional legitimador, maiores devem ser ropriedades que constituem a imputabilidade moral de um individuo, Portanto, a propriedade pela qual os integrantes de uma coletividade se reconhecem reciprocamente pode soffer alteragdes se nao houver respeito reciproco como pessoas de direito, Ports eer BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca Honneth (2003) recorre a andlise sobre o desenvolvimento histérico para demonstrar a diregio que tomou a adjudicagdo de direitos subjetivos na sociedade moderna e Ocidental. Esse processo histérico € marcado por um aumento progressivo de pretensdes juridicas individuais. Dessa forma, as propriedades universais de uma pessoa moralmente imputavel foram se ampliando gradualmente por meio de uma luta por reconhecimento, Do éxito dessa luta derivaram conquistas de novos pressupostos para a participagio na formagio racional da vontade. A literatura juridica, segundo 0 autor, distingue 0 direito em trés esferas; direitos subjetivos (direitos liberais), direitos politicos ¢ direitos sociais. Os direitos liberais sio direitos negativos, que protegem o individuo das intervengdes arbitrérias do Estado em sua vida e propriedade. Os direitos politicos, direitos positivos, garantem ao individuo a participagdo em processos de formagdo da vontade piblica. E, por iltimo, também chamados direitos positives, sio os direitos sociais que procuram garantir de modo A descrigao de Marshall (1967) sobre 0 proceso histérico de ampliagao de direitos tem seu inicio na ruptura do mundo ocidental com as estruturas juridieas tradicionais. Essa ruptura origina o principio de igualdade universal, que passa a influenciar toda a ordem juridica ao postulado de nfo admitir excegdes e privilégios. A ideia de igualdade que toma todo individuo em um cidadao, membro So "com val valor" de uma coletividade politica, independentemente das diferengas econdmicas, funciona como um motor de uma Iuta social pela ampliagao de direitos que levou de forma gradativa e encadeada os direitos liberais a gerarem as condigdes para a ampliagao de direitos politicos a conquista da incluso de todos os membros de uma coletividade nos processos de definigfo politica. Os direitos politicos, por sua vez, tiveram como consequéncia a garantia de direitos sociais. Honneth (2003) afirma que o elemento mais importante desse desenvolvimento histérico é a demonstragio de que a imposigao de cada nova classe de direitos foi sempre motivada historicamente com argumentos que tém como referéncia o sentido de igualdade que norteia as reinvindicagdes juridicas de grupos sociais 0 que toma o reconhecimento pelo direito, inseparivel de politicas distributivas, isto porque, ao aleangar e aprofundar os direitos sociais, os individuos vao tendo, cada vez mais, acesso a ens, servigos e oportunidades. Quando o reconliecimento pelo direito & bem sucedido, o sujeito conquista o que Honneth (2003) denomina como autorrespeito. O terceiro e iiltimo padrio de reconhecimento de Honneth (2003) é a solidariedade. Segundo esse autor, a autocompreensio de uma sociedade estabelece os valores ¢ os objetivos éticos que constituem um sistema para a avaliagao social de determinadas propriedades particulares dos individuos. Ports eer BOLETIM DE CONJUNTURA wwu.tevista.utr.br/ooca Essas, por sua vez, terfo seu "valor" social de acordo com o nivel de contribuigdo para a realizagao dos objetivos sociais que mostam ter condigdes de oferecer. Nesse sentido, essa forma de reconhecimento pressupde uma comunidade de valores mediante a orientagio por concepgdes de objetivos comuns. A estima social deriva dos objetivos éticos que a sociedade estabelece para si. Dai, Honneth (2003) pressupde que as formas que ele pode assumir sio indefinidas, pois, ao longo da histiria, a autocompreensio que uma sociedade tem de seus objetivos éticos sofre transformagdes por estar sempre em disputa. Seu aleance social ¢ a medida de sua simetria dependem entio do grau de plusalizagdo do horizonte de valores socialmente definido, tanto quanto do cardter dos ideais de personalidade ai destacados. © "prestigio" ou a "reputagdo", para esse autor, resultam do reconhecimento social que o individuo merece para sua forma de autorrealizagio, pois contribui com a consolidagao dos objetivos da sociedade. Na nova ordem juridica, 0 reconhecimento da diferenca depende de como se determina 0 horizonte universal de valores, que precisa estar aberto a formas distintas de autorrealizagao; entretanto, deve poder servir também como um sistema predominante de estima As finalidades sociais resultam de uma prixis exegética antes que possam se sedimentar na vida social como critérios da estima. Por isso, Honneth (2003) conclui afirmando que nao ha, @ priori, um sistema de avaliagdo universalmente vilido para medir priticas e propriedades de grupos ou individuos. Elas devem ser estabelecidas por meio de interpretagdes culturais que mostrem sua validade social. A validade de determinadas praticas ¢ propriedades dependerd, de acordo com Honneth (2003), da forea simbélica do grupo social que consegue impor sua interpretagio das proprias realizagdes ¢ formas de vida como particularmente valiosas. As prixis exegéticas mostram como a sociedade emergente torna-se uma arena de conflito cultural. Quando bem sucedido, o reconhecimento pela solidariedade confere aos grupos e/ou individuos a autoestima. A experigneia do desrespeito € designada por Honneth (2007) como a negaclo de reconhecimento. E, para ele, é no dominio dos fendmenos negativos que devem poder ser reencontradas as mesmas diferengas descobertas no dominio dos fendmenos positives. Nesse sentido, os trés padrdes de reconhecimento possibilitam a distingdo entre trés modos de desrespeito, As diferentes formas de desrespeito devem ser mensuradas pelo grau em que podem afetar a autorrelagdo pratica de uma pessoa, negando-lhe 0 reconhecimento de certas pretensdes da identidade. Em oposigio a estas trés padrdes de reconhecimento, existem trés maneiras de nio- reconhecimento, sio elas a violagio, a privagao de direitos e a degradagao. A negagio desses padroes levaria a uma indignagao moral erescente. Para Honneth, (2007) a falta ou a negagao de reconhecimento €0 que gera lutas por reconhecimento, Ports eer BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca O MODELO DE RECONHECIMENTO DE NANCY FRASER A fillsofa Nancy Fraser (2002) considera que o aparecimento da politica do reconhecimento de identidades, caso fosse ligada as politicas redistributivas, construiria um modelo de justiga que teria a capacidade enfrentar tanto a ma distribuigo econdmica quanto a opress4o causada por valores culturais que impedem aqueles que sio classificados de forma inferior de participarem como iguais nas relagdes sociais. Para ela, 0 que tem acontecide é que esses dois modelos, tanto vida quanto teoria social, encontram-se em lados opostos e excludentes. Portanto, o surgimento das politicas do reconhecimento, nio trouxe ganhos para a elaboragao de uma concepgao ampla de justiga tem aos poucos tomado o lugar que até entio era ocupado pelas politicas que procuravam as desigualdades sociais. Para Fraser (2002), enquanto a politicas de redistribuiedo procuram reduzir as diferengas econémicas, as reinvindicagd por reconhecimento, tomam um outro caminho, procuram realgar as diferengas para denunciar e lutar contra as formas de opressao que nio tém origem econémiica, mas nas hierarquias institucionalizadas de valor cultural. Essa autora, por outro lado, acredita ser possivel elaborar um modelo amplo de justiga social que 3 alie reconhecimento e redistribuigio, © modelo de reconhecimento, para Fraser (2007), nfo deve ser baseado na realizagio de identidades, mas na paridade de status. Esse paradigma de justica ndo visa 4 autorrealizagao das identidades, ele busca promover justiga social. No modelo de status 0 que demanda reconhecimento nfo ¢ a identidade de um grupo, mas 0 status individual dos seus membros. Ele tem por finalidade promové-los como parceiros plenos nas relagdes sociais. Dessa forma, segundo Fraser (2007), 0 reconhecimento denegado nfo desestrutura a identidade grupal, mas as relagdes assimétricas de poder, que tém como consequéneia a subordinagio social, entraves para a participagdo paritaria na vida social. Nesse caso, a reparago ocorre por meio de uma politica de reconhecimento “nao-identitaria” reconhecimento baseado paridade de status procura superar as relagdes de poder por meio da promogao de condigdes que levem os individuos subordinados a participarem da vida social com os demais membros de sua ciedade em condigdes de igualdade. Nas situagdes em que os individuos interagem como pares numa relagdo simétrica de poder, ha reconhecimento reciproco e de igualdade de status. De acordo com esse modelo de justiga elaborado por Fraser (2002), 0 reconhecimento quando negado nfo deixa de ser uma grave injustiga softida pelas pessoas que se encontram em um patamar estatutério digno de pouco ou nenhum valor social. Assim, sempre que ele ocorra é imperative que os individuos reivindiquem o reconhecimento, Entretanto, Fraser (2007) observa que essa luta por Ports eer BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca reconhecimento no é baseada na identidade, mas tem por objetivo estabelecer relagdes sociais simétricas na esfera piblica com a finalidade de acabar com a subordinacao de grupos ou individues. Nas palavras de Fraser: “[..] visa desinstitucionalizar padroes de valor cultural que impedem a paridade de participagao e substitui-los por padries que a fomentam” (FRASER, 2002, p. 16) O reconhecimento concebido a partir do status & a forma defendida por essa autora como um meio para evitar a reificagdo cultural. Ao deslocar a realizagio do reconhecimento da identidade de grupo, Fraser (2007) afirma que 0 que se deve combater sdo 05 efeitos das normas institucionalizada sobre as capacidades de interagio; dessa forma, evita-se a substituigio da transformagio social pelas politicas de identidade. © modelo de reconhecimento baseado no status recusa os moldes de assentimento social baseados no self, evitando-se, desta forma, a valorizagiio dos elementos constitutivos das identidades gtupais por meio da essencializagdo, a busca da “pureza” que, por sua vez, promove o separatismo em detrimento da mudanga historica De acordo com o paradigma de reconhecimento que a autora concebe, 0 assentimento social negado & resultado da interagio social de subordinago construida por meio de padries institucionalizados de valor cultural que acontece quando as instituigdes sociais, que regulam a interagio 3o de acordo com normas culturais, impedem a paridade de participagii. Essas priticas sio reguladas por um quadro culturalmente institucionalizado que define © valor dos atores de acordo com os padres de comportamento e préticas como normais © outros como inferiores. A finalidade da atribuigio de valores a priticas e propriedades, ao estilo de vida, é nio permitir a alguns membros da sociedade a condicao de participarem com os demais em condigdes de igualdade. Nesses casos, 0 modelo de justia de Fraser (2007) recomenda uma demanda por reconhecimento. No entanto, esse reconhecimento nao tem por objetivo a autorrealizagao de identidades de um grupo ou de individuos, mas retificar um quadro de relagdes sociais assimétricas e promover a superagdo da subordinago dos grupos desprezados. Tornando o sujeito, de subordinado, em um parceiro integral nas interagdes sociais. Portanto, Fraser (2007) defende que o seu reconhecimento baseado na paridade de starus & superior a0 modelo de assentimento social baseado autorrealizagao de identidades pois compreende 0 reconhecimento fora do campo da ética. Para essa autora, enquanto 0 paradigma de reconhecimento baseado na identidade inviabiliza sua combinagdo com o modelo de redistribuigdo, © modelo de assentimento social baseado no status torna possivel no mesmo padrio de justiga a redistribuigao eo reconhecimento desde que haja prioridade do “eorreto” sobre o “bem” Ports eer BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca Em seu artigo “Reconhecimento sem étiea” Fraser (2007) considera que qualquer programa te6rico normative que busque combinar redistribuigdo e reconhecimento para construir um modelo abrangente de justiga, deve responder algumas questoes: 1. Saber se 0 reconhecimento é uma forma de justica ou de sutorrealizacto: 2. Compreender se a justica distributiva e o reconhecimento constituem modelos nomativos distntos e su generis, e se algum deles pode ser subsumido a0 outs 3. Indagar se a justiga demanda 0 reconhecimento daquilo que distingue individuos ou grupos 11 reconhiecimento da nossa hnumanidade comm € suficiente; 4. Deseobrir como distinguir as reivindicagdes por reconhecimento que sto justificadas daquelas que nie 0 sto. © meu propésito nesse ensaio & procurar nas teorias sobre reconhecimento de Taylor, Honneth Fraser como elas podem enfientar & segunda questio, Escolhi abordar essa questio porque a primeira questio proposta jé foi abordada por mim em outro artigo (SANTOS, 2020). O outro motivo, é porque a segunda questo toca numa questo polémica e central para as lutas por reconhecimento: as lutas por reconhecimento sto capazes de incluir no mesmo modelo de justica o combate a opressio cultural das relagdes assimétricas de poder com a redugao ou eliminagao das disparidades econémicas? JUSTICA DISTRIBUTIVA E O RECONHECIMENTO Para Fraser (2007), as teorias da justiga distributiva existentes nio sio capazes de subsumir coerentemente reconhecimento e redistribuigio. A fildsefa afirma que varios tedricos distributivos entendem a importincia do status como elemento determinante para a redistribnigo e dele tratam em suas abordagens, contudo, de forma insatisfatéria, pois reduzem status as dimensdes econdmica e legal, acreditando que uma distribuigdo justa de recursos e direitos é suficiente para reparagdo de uma relagio de reconhecimento denegado. Para ser exata, muitos teéricos distributivos estdo couscientes da importincia do status acima ¢ além da alocagio de recursos © procuram acomodi-lo em suas abordagens. Mas os resultados no so totalmente satisfatérios. A maioria de tais te6ricos assume uma visio de starus reduzida fs dimensdes econdmica ¢ legal, supondo que uma justa distribuigdo de recursos e direitos & suficiente para dar conta do no recouhecimento. Todavia, de fato, nem toda austacia de reconhecimento ¢ um resultado secuudario da ma distribuigio ou da ma distribuicao agregada & discriminagio legal (FRASER, 2007, p. 16) Assim, Fraser (2007) entende que o falso reconhecimento nfo é, necessariamente, epifendmeno da injusta distribuigdo. Ela ilustra seu argumento citando como exemplo o banqueiro de Wall Street ee BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca affo-americano, que nfo consegue pegar um téx i. Com esse exemplo, procura demonstrar que uma teoria da justiga deve examinar os padrdes institucionalizados de valor cultural para verificar se eles impossibilitam a paridade de participagao na sociedade Por outro lado, numa critica direta a Honneth, afirma que as desigualdades materiais nao tém sua -m apenas na ordem cultural que valoriza algumas formas de trabalho e desvaloriza outras Axel Hlonneth, por exemplo, assume uma visio cultualista reducionista da dstribuigao. Supondo que todas as desigualdades econdmicas estio enraizadas na ordem cultural, que privilegia algumas formas de trabalho em detrimento de outs, ele acredita que a alteragao dessa ordem cultural ¢ suficiente para prevenir todo tipo de ma distribuig&io (FRASER, 2007, p. 117). Fraser (2007) nao discorda totalmente de que a ma distribuigdo tenha origem na hierarquia institucionalizada de valor cultural, mas adverte que a injusta distribuigo nfo é necessariamente epifenémeno do falso reconhecimento, A autora ratifica sua afirmagdo com o exemplo de um homem branco, trabalhador industrial especializado, que fica desempregado devido a uma fusio corporativa especulativa. Com esse exemplo, Fraser (2007) procura demonstrar que nem sempre hd relagao causal entre reconhecimento e redistribuicdo, O operirio branco perde o emprego devido a um problema que tem origem na ordem econdmica, ou seja, na estrutura do capitalismo. Para tais casos, Fraser (2007) propde uma teoria da justiga que ultrapasse os padrdes de valoragao cultural e considere a dindmica do capitalismo. Pois, segundo ela, os mecanismos econémicos ness cas sto imp ssoais e, por isso, dissociados de qualquer forma de discriminagao. Todavia, eles intervém de forma a negar a patticipagdo de excluidos na vida social em igualdade de condigdes com os demais membros de sua sociedade. Na interpretacao de Fraser (2007), nem os teéricos da distribuigao nem os do reconhecimento uiram éxito em juntar de forma coerente as solucdes para a ma distribuigo com as solugdes para © reconhecimento negado. Isso ocorre, para Fraser (2007), porque esses teGricos nfo concebem distribuigdo ¢ o reconhecimento como distintos pontos de vista sobre a justiga. Portanto, conelui-se que. a seu ver, 0 combate os males causados pela exploragio econdmica e opressio cultural deve considerar redistribuigo e reconhecimento como diferentes perspectivas de justiga. E, dessa forma, & possivel reunir reconhecimento ¢ redistribuiggo no mesmo paradigma de justiga, sem, com isso, reduzir um a outro: Em geral, entéo, nem os teéricos da distribuigao nem 0s teéricos do reconhecimento tiveram, até imir, adequadamente, as preocupacdes dos outros. Desse modo, ein vez de endossar uma de suas concepgdes em exclusio da outra, propouho deseavolver uma concepgao ampla da justica. A minha concepeao trata distribuigdo © reconhecimento como distintas perspectivas sobre, e dimensdes da justica. Sem reduzir uma perspectiva a outra, ela Ports BOLETIM DE CONJUNTURA wwu.tevista.utr.br/ooca encampa ambas as dimensies dentro de um modelo mais abrangente e inclusive (FRASER 2007, p. 118) © ponto central do modelo teérico normativo de sua concepgao de justiga é a nogo de paridade de participagio. Segundo essa norma, a justiga demanda arranjos sociais que promovam a todos os membros da sociedade a capacidade de interagir uns com os outros como parceiros. Para que isso seja possivel, Fraser (2007) afirma que duas condigdes devem ser satisfeitas. A primeira, que Fraser (2002) denomina “condigao objetiva”, requer uma distribuigao de recursos materiais de modo a garantir a independéncia e 0 empoderamento dos participantes. Satisfazer essa condigdo é eliminar os obstéculos provenientes das relagdes assimétricas de poder que se devem 4 desigualdade econémica, os quais impedem a paridade de participagao. Dessa forma, exclui-se a exploragio e as disparidades de riqueza, rendimento e tempo de lazer que impedem alguns individuos de interagir com outros como pares. Do ponto de vista distributivo, a injustica surge na forma de desigualdades semelhantes as da classe, baseadas na estrutura econdmica da sociedade. Aqui, a quintesséncia da injustica ¢ a mi distribuigdo, em sentido lato, englobando nao $6 a desigualdade de rendimentos, mas também exploragio, a privaglo e@ a marginalizacio ou exclusio dos mercados de trabalho. ente, o remédio esté na redistribuigdo, também catendida em seatido lato 2 io s6 a transferéneia de rendimentos, mas também a reorganizagdo da divisto do trabalho, a transformagao da estrutura da posse da propriedade e a democratizacao dos processos através dos quais se tomam decisdes relativas ao investimento (FRASER, 2002, p. 11). A segunda condigao, que Fraser (2002) denomina “condigdo intersubjetiva”, procura garantir a paridade pacticipativa; demanda que os padrdes institucionalizados de valor cultural expressem respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcangar o assentimento social. Ao cumprir essa condigao, eliminam-se os padres institucionalizados que desvalorizam sistematicamente individuos ou grupos devido as suas priticas e propriedades, negando-lhes o status de parceiros plenos nas interagdes sociais. Do ponto de vista do reconbecimento, por contraste, a injustica surge na forma de suberdinagdo de estatuto, assente nas ierarquias institucionalizadas de valor cultural. A injustica ppacadigmtica neste caso € 0 falso reconhecimento, que também deve ser tomado em sentido Jato, abarcando a dominaco cultursl, © nio-reconhecimento e o desrespeite. © remédio €. portanfo, 0 reconhecimento, igvalmente em sentido lato, de forma a abarcar n8o s6 as reformas que visam revalorizar as. identidades desrespeitadas e os produtos cultusais de grupos discriminados, mas também os esforgos de reconhecimento e valorizacio da diversidade, por um lado, e, por outro, os esforeos de transformagio da ordem simbélica ¢ de desconstrugto dos termos que estio subjacentes as diferenciagdes de estaruto existentes, de forma a mudar a identidade social de todos (FRASER. 2002, p. 12). Fraser (2002) observa que essas condigdes so independentes, uma ndo é consequéncia das outras, Assim, no ha como efetivar alguma de forma indireta como se a implementagao dessa trouxesse Ports BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca outra a reboque. “O resultado é uma concepgao bidimensional de justiga que abrange tanto a distribuicao como o reconhecimento, sem reduzir un aspecto ao outro.” (FRASER, 2002, p. 13). A condicio objetiva apresenta, tradicionalmente, preocupacées que se alinham com a teoria da justiga distributiva, especialmente as relacionadas a estrutura econdmica da sociedade e as diferenciagdes de classes economicamente definidas. Ji a condi¢Go intersubjetiva apresenta preocupagdes recentemente abordadas pela filosofia do reconhecimento, particularmente as referentes & ordem de sramus da sociedade e as hierarquias de stars culturalmente definidas. Dessa forma, uma concepeo ampla da justiga, orientada pela norma da paridade participativa, inclui tanto redistribuigio quanto reconhecimento, sem reduzir um ao outro. Essa_coneepgdo normativa, egundo Fraser (2002), pode coneeber redistribuigio reconhecimento como duas dimensdes de justica irredutiveis, 0 que aumenta 0 escopo da atual concepeao de justiga. Segundo ela, dessa forma, posiciona as lutas por redistribuigdo e reconhecimento no terreno comum da moralidade tirando-as do campo da ética No entanto, de acordo com Honneth (2007), reconhecimento e redistribuigao nao sio concepgies opostas e antagénicas e jamais poderiam estar separadas numa mesma concepgfo de justiga. O autor afirma que a critica de Fraser se deve 4 leitura que essa faz de Taylor (2000). De acordo com a interpretagiio de Honneth (2007), Taylor (2000) constréi uma exonologia equivocada, segundo a qual a sociedade liberal surge defendendo os principios de igualdade, que, atualmente, vam sendo substituidos pela defesa do reconhecimento da diferenga. Esse proceso que substitui preocupagdes com redistribuicao por demandas por reconhecimento tem sido conduzido por partidos politicos e movimentos sociais Para Honneth (2007), 0 equivoco de Taylor (2000) é nfo considerar os elementos legais que constituem as lutas por reconhecimento e, também, consequentemente, para ser coerente com a linha cronoldgica que pretende estabelecer, no considera os elementos culturais nas lutas por redistribuigao. Dessa forma, para Taylor (2000), segundo Honneth (2007), 0s movimentos politicos do pasado apenas defendiam a igualdade legal, Para este autor, a cronologia de Taylor (2000) baseia-se em construgdes de “tipos ideais” que nao se sustentam diante das mudangas da moral na histéria; os acontecimentos historicos mostram seu equivoco teorico, Para Honneth (2007), a concepgdo de que movimentos que buscam reconhecimento da identidade sto fendmenos contemporineos é uma ideia falsa. A fim de mostrar o erro e ratificar sua critica a Taylor (1994), Honneth (2007) cita uma série de exemplos histéricos que mostram como, nos movimentos do passado, as politicas de redistribuigao e as de reconhecimento se encontravam imbricados. Ports eer BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca © movimento das mulheres tem raizes de pelo menos 200 anos. A fundagio das comunas foi tio importante no inicio do século XIX como na década de 60. Os nacionalismos europeus aio foram exemplos de politicas de identidade do século XIX? E o que dizer das Intas dos afro- americanos? E sobre a resisténcia colonial? Nenluuma delas € politica de identidade limitada a0 relative afluente [...] como se houvesse uma hierarquia clara das necessidades, nas quais interesses materiais claramente definidos precedem a cultura e as lutas sobre a constituigao da natureza dos interesses ~ tanto material quanto espiritual (HONNETH, 2007, p. 91). Portanto, de acordo com Honneth (2007), assim como nao se pode diminuir os movimentos sociais contemporineos apenas ao reconhecimento da identidade, também niio se pode fazer 0 mesmo com movimentos do passado, como se eles apenas tivessem como objetivo a igualdade juridica ou a distribuigdo material, Com esse exemplo histérico, ele procura mostrar que nfo ha essas duas fases distintas na natureza dos movimentos sociais, mas “[...] diferengas nas nuangas e a ponderagio dos aspectos.” (HONNETH, 2007, p. 91) Essa periodizagdo, em que lutas por redistribuigao pertencem ao passado e, atualmente, tém sido suplantadas por lutas por reconhecimento, de acordo com Honneth (2007), é adotada por Fraser (2007). O autor considera um equivoco ela aceitar a periodizagio que concebe os movimentos contemporineos por reconhecimento somente tendo em vista seus elementos culturais, deixando de lado outras dimensbes da politica do reconhecimento, Em resumo, resultante da periodizacao enganosa dos objetivos dos movimentos sociais, a luta por reconhecimento passa a ser entendida como uma demanda que tem surgide como uma questo moral somente bem recentemente, podendo, assim, ser reduzida ao aspecto do reconhecimento cultural de forma que todas as outras dimensées da Iuta por reconhecimento pesmaneyam ignoradas (HONNETH, 2007, p. 91). No modelo de Honneth (2007), nao ha essa divisio cronolégica ¢ as lutas por reconhecimento so, simultaneamente, lutas por redistribuigdo. As demandas por redistribuigdo surgem de uma ética democritica a partir de duas fontes A primeira surge a partir das demandas normativas por igualdade perante a lei para todos os integrantes de uma sociedade democritica, Isso demostra que a conquista de direitos sociais promove fungdo normativa de conceder, com base na lei, a cada cidadio, a possibilidade de integrar a vontade publica de uma sociedade democritica. Esse modelo de uta social proposto por esse autor, 0 autorrespeito resulta do reconhecimento por meio do direito. Dentre as dimensdes do direito, ha aquelas mais intimamente ligadas a redistribuigdo de bens ¢ recursos: os direitos sociais. Por esse motivo, a conquista do autorrespeito contraria as criticas de Fraser (2007) que reduzem a concepcio de reconhecimento de Honneth (2007) a apenas um carster cultural Ao reduzir © modelo teérico normativo de Honneth (2003) a seus aspectos culturais, Fraser (2007) afirma que os movimentos ¢ partidos politicos passam a valorizar o reconhecimento em Ports BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca detrimento da redistribuigao. Todavia, a inovagao da perspectiva de lita por reconhecimento desse filésofo encontra-se na ideia de que a adjuragio de diseitos, principalmente direitos sociais, funciona como um elemento capaz de promover redistribuigao. Portanto, em sua perspectiva, lutas por reconhecimento também sto lutas por redistribuigao, ao contrétio do que postula Fraser (2007). O individuo e grupos que lutam pelo reconhecimento juridico, especificamente por direitos sociais, esto, em tiltima andlise, lutando por acesso a bens e servigos ou pela possibilidade de ter acesso a eles. A segunda fonte de demandas por redistribuigdo, para Honneth (2003) surge da concepgio de que cada membro de uma sociedade democritica deve ter a possibilidade de ser estimado por seus feitos individuais, Sem afirmar de forma contundente, escreve que esse modelo de estima social corresponde ao que Fraser (2007) chama de istribuigao justa”, ow seja, as regras que organiza a distribuigdo material sio proporeionais ao grau de estima social que é atribuida a grupos ¢ individuos, de acordo com uma ordem hierdrquica de valor ou uma ordem normativa como ela mesma escreve’ A abordagem do reconhccimento proposta aqui, ao contririo, no acarreta tal reductio ad dabsurdum. O que resulta dela € que todos tem igual direito a buscar estima social sob condigdes justas de igualdade de oportunidades E tis condigdes mio so asseguradas quando, por exemplo, ‘padres instimacionalizados de valoracao cultural depreciam, de modo difundido, o feminino, © ‘nao branca”, a homossexualidade e tudo o que é culturalmente a eles associadas. Quando esse & © caso, mulleres c/ou pessoas de cor c/ou gays ¢ Iésbicas enffentam obsticulos na conquista de estima que mio so encontrados pelos demais. E todos, incluindo os homens brancos hererossexnais, enfrentam maiores obstéculos se eles optam por perseguir projetos e cultivar caracteristicas que so culturalmente codificadas como femininas, homossexuais ou “nao braneas” (FRASER, 2007. p. 115), Dessa forma, a0 contririo da tee de Fraser (2002), para Honneth (2007), as lutas por redistribuigdo s4o realizadas dentro de uma luta por reconliecimento. O reconhecimento define, por meio de uma hierarquia institucionalizada de valores, quais grupos sociais com base em sua estima possuem direitos sobre certa quantidade de bens e servigos. Todavia, essa hierarquia institucionalizada de valores nao esta sedimentada de uma vez para sempre, € € por isso que a luta por reconhecimento se forma uma atividade necessitia e valiosa. E essas lutas nao estio desvinculadas de uma luta por redistribuigao [..] as regras que erganizam a distribuigdo de bens materiais derivam do grau de estima social de ue destitam 03 grupos sociais, de acordo com hierarquias institucionalizadas de valor, ou uma ordem normativa, [..] Conflitos por distrbuigao [..] sdo sempre lutas simbélicas acerca da legitimidade do dispositivo sociocultural que determina o valor das atividades, dos atributos e contribuigdes. [..] Resumindo, ¢ uma lute pela definigdo cultural daquilo que faz com que uma atividade seja socialmente nevesséria e valorosa (HONNETH, 2007, p. 92). Esse autor, ao atribuin a Taylor (2000) 0 equivoco de Fraser 2002) que entende que estamos vivendo em tempos de passagem das reivindicagdes por redistribuigio as reivindicagdes por Ports BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca reconhecimento comete um erro na leitura do filésofo canadense. E possivel ler Taylor (2000) e chegar a uma conclusio diferente de Honneth (2007). Para Taylor (2000), as reivindicagdes por reconhecimento da dignidade igual, sem estar associada a luta pelo reconhecimento da diferenga, esto fadadas ao fiacasso. Isso porque, como ja mencionei, para esse autor, politicas piblicas que concedem reconhecimento da igual dignidade podem ser insuficientes para promover a “paridade participativa” de grupos que foram vitimas, durante geragdes, de uma hierarquia cultural que refletia e reflete suas imagens num quadro depreciador. Assim, 4 conelustio, do programa filoséfico desse autor, & que 0 éxito de politicas redistributivas tem mais chances de ocorrer quando ela esta associada as reivindicagdes por reconhecimento Essa pereepgdo de que reconhecimento ¢ redistribuigio so indissocidveis nao é dito explicitamente por Taylor (2000). Ao analisar 0 discurso do movimento feminista que constataram que as mulheres de sociedades patriarcais foram induzidas a adotar uma imagem depreciativa de si mesmas. mostra como reconhecimento € redistribuigao estio imbricados. Nesse exemplo, esse filosofo deixa explicito que ambas as lutas, reconhecimento e redistrituigao, devem andar juntas, pois a internalizacio por certos grupos de imagens degradantes de suas identidades provoca neles danos subjetivos que fazem com que se sintam incapazes de aproveitar as oportunidades surgidas com a supressio dos obsticulos objetivos de sua exclusio social. A conclusio a que podemos chegar, diferente de Honneth (2007), ¢ que Taylor (2000) nao concebe essas duas dimensdes da justiga social separadamente. As chances de grupos estigmatizados, devido a suas caracteristicas especificas, de se aproveitarem das oportunidades objetivas s40 maiores quando conseguem se livrar dos impediments subjetivos. Essas dimensdes de lutas por justiga social nao esto, segundo o paradigma de Taylor (2000), divoreiadas no presente nem no pasado. Contrariando a critica de Honneth (2007), que afirma que Taylor (2000) nio percebia 0 elemento cultural nas Iutas do pasado, este fildsofo mostra como os europeus se utilizaram de priticas discursivas para depreciar a autoimagem dos nativos, tornando mais ficil exploragio das riquezas da América: Mais uma vez, fizeram-se afirmagdes sobre os povos indigenas ¢ colonizados em geral. Tem-se sustentado que, a partir de 1492, os europeus passaram a projetar desses povos a imagem de que sto um tanto inferiores, “incivilizados" e, pela forca da conquista, foram muitas vezes capazes de impor aos conguistados essa imagem. A figura de Caliba tem sido usada como epitome desse retrato esmagador de desdém pelos aborigenes do Novo Mundo (TAYLOR, 2000, p, 242) Como procurei mostrar, a concepedo de reconhecimento de Taylor (2000) nao estabelece uma divisio cronolégica entre as Iutas do passado e do presente como critica Honneth (2007). Portanto, para esses dois filésofos, reconhecimento e redistribuigao podem coexistir no mesmo modelo de justiga Ports BOLETIM DE CONJUNTURA wownw.revista.utrr.br/boca Por isso, diferente de como Fraser (2007) coneebe o reconhecimento assentado na identidade, nos modelos de assentimento social de desses dois autores, redistribuigdo e reconhecimento se reforgan construindo um modelo de justiga que combate simultaneamente a opressao cultural e a mé distribuicao de bens ¢ recursos. REFERENCIAS FRASER. N. “A justiga social na globalizacio: Redistribuigdo, reconhecimento e par Critica de Ciéncias Sociais, n. 63, outubro, 2002 cipagio”. Revista FRASER, N. “Reconhecimento sem ética?” Lua Nova: Revista de Cultura e Politica, n. 70, 2007, HONNETH, A. Luta por Reconhecimento. A Gramiética Moral dos Conflitos Sociais. Sao Paulo: Editora 34, 2003 HONNETH, A. “Reconhecimento ou redistribuigo? A mudanga de perspeetivas na ordem moral da sociedade”. Jv: SOUZA, I.; MATTOS, P. (orgs.). Teoria critica no século XXI. Sao Paulo: Annablume, 2007, MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1967 SANTOS S. B. “Reconhecimento: uma forma de justign ou de autorrealizagao?” Novos Rumos Sociolégicos, vol. 8, a. 14, 2020. TAYLOR, C. Argumentos filoséficos. Sao Paulo: Edigdes Loyola, 2000 eer ELT cee NUN 1o19)) OT tet Cee enon an ne od Cree Cee CConsetho Editorial oe tre er Ree ee eee PoE Cee ee ery See ee ey Pee ey Patria Nasser de Carvalho, Universidade Federal de rier omnes Cee ee hee oe roo ee eee ee ms Feevale Pee Cee ena De ened Pee eee ee Marcos Leandro Mondardo, Universidade Federal da eee ae Se ee CS ra

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