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VOCABuLÁRIO

DE APOIO
Milkau – Um dos erros dos intérpretes Milkau – O tempo da África chegará. As alquebrado:
abatido,
da História está no preconceito aristocráti- raças civilizam-se pela fusão; é no encontro prostrado
co com que concebem a ideia de raça. Nin- das raças adiantadas com as raças virgens,
Babilônia:
guém, porém, até hoje soube definir a raça selvagens, que está o repouso conservador, o cidade-estado
e ainda menos como se distinguem umas milagre do rejuvenescimento da civilização. da Antiguidade
das outras; fazem-se sobre isto jogos de pa- O papel dos povos superiores é o instintivo localizada
lavras, mas que são como esses desenhos de impulso do desdobramento da cultura, trans- na região da
Mesopotâmia
nuvens que ali vemos no alto, aparições fan- fundindo de corpo a corpo o produto dessa
cogitar: pensar
tásticas do nada… E, depois, qual é a raça fusão que, passada a treva da gestação, leva sobre algo,
privilegiada para que só ela seja o teatro e o mais longe o capital acumulado nas infini- considerar
agente da civilização? Houve um tempo na tas gerações. Foi assim que a Gália se tornou Ganges: rio ao
História em que o semita brilhava na Babi- França e a Germânia, Alemanha. norte da Índia e
lônia e no Egito, o hindu nas margens sa- de Bangladesh
Lentz – Não acredito que da fusão com
gradas do Ganges, e eles eram a civilização hindu: indiano
espécies radicalmente incapazes resulte uma
toda; o resto do mundo era a nebulosa de nebulosa: nuvem
raça sobre que se possa desenvolver a civili- de matéria
que se não cogitava. E, no entanto, é junto
zação. Será sempre uma cultura inferior, ci- interestelar;
ao Sena e ao Tâmisa que a cultura se esgota algo difícil de
vilização de mulatos, eternos escravos em
hoje numa volúpia farta e alquebrada. O que entender
revoltas e quedas. Enquanto não se eliminar
eu vejo neste vasto panorama da História, roto: estragado,
a raça que é o produto de tal fusão, a civiliza-
para que me volto ansioso e interrogante, é destruído
ção será sempre um misterioso artifício, to-
a civilização deslocando-se sem interrupção, semita: judeu
dos os minutos rotos pelo sensualismo, pela
indo de grupo a grupo, através de todas as Sena: rio do
bestialidade e pelo servilismo inato do negro.
raças, numa fatal apresentação gradual de norte da França
O problema social para o progresso de uma
grandes trechos da terra, à sua luz e calor… Tâmisa: rio do
região como o Brasil está na substituição de sul da Inglaterra
Uns vão se iluminando, enquanto outros
uma raça híbrida, como a dos mulatos, por
descem às trevas… transfundir:
europeus. A imigração não é simplesmente fazer passar de
Lentz – Até agora não vejo probabilidade para o futuro da região do País um caso de um para outro,
simples estética, é ant
es de tudo uma questão espalhar
da raça negra atingir a civilização dos bran-
volúpia: luxúria,
cos. Jamais a África… complexa, que interessa o futuro humano. prazer sexual
GRAçA ARANhA, J. P. da. Canaã. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s. d. p. 43-44.

Sobre o texto
1. Observe a argumentação que as personagens constroem no trecho lido.

Rio de Janeiro. Fotografia: ID/BR


Coleção Dona Thereza Christina Maria da Biblioteca nacional,
a) Com que argumento Milkau rebate a tese de que existe uma raça
superior?
b) Milkau emprega a expressão raças adiantadas em vez de raças
superiores, e raças virgens e selvagens no lugar de raças inferiores.
Justifique essas escolhas, tendo em vista o pensamento científico
do período.
2. A argumentação de Lentz considera o processo de mestiçagem na
formação do povo brasileiro.
a) Existe possibilidade de conciliação entre as ideias de Lentz e as de
Milkau? Por quê?
b) Como deve ser entendida a afirmação de Lentz de que a imigração
interessa ao “futuro humano”, e não apenas ao “futuro da região
do País”?
3. Responda às questões a seguir levando em conta o trecho lido do A política de incentivo à imigração
artigo do sociólogo Renato Ortiz. promovida pelo governo imperial atraiu
muitos alemães para o Espírito Santo no
a) Como o romance Canaã dialoga com as questões daquele tempo? século XIX. Graça Aranha trabalhou como
juiz de direito na cidade de Porto do
b) É correto afirmar que Lentz simboliza o pensamento dos Cachoeiro e lá recolheu material para
intelectuais descrito por Ortiz? Por quê? escrever Canaã. Foto de 1875.
Entre textos
Diferentemente do que aconteceu na Belle Époque, os autores pré-modernistas, em sua maioria,
propuseram uma literatura socialmente engajada, voltada para os problemas concretos do país. De-
sejavam estudar as reais condições de vida do povo brasileiro, denunciar suas carências e contri-
buir para que grupos mais vulneráveis fossem reconhecidos pela elite e atendidos por políticas
públicas. Lutavam, portanto, contra uma visão de Brasil progressista, que ocultava seus contrastes.
A preocupação em problematizar a realidade tem percorrido as literaturas brasileira e estrangei-
ra ao longo dos tempos. Veja alguns exemplos nos textos transcritos a seguir.

TEXTO 1

Guardador
A rua ruim de novo.
Abafava, de quente, depois de umas chuvadas de vento, desastrosas e
medonhas, em janeiro. Desregulava. Um calorão azucrinava o tumulto,
o movimento, o rumor das ruas. Mesmo de dia, as baratas saíam de
tocas e escondidos, agitadas. Suor molhava a testa e escorria na camisa
dos que tocavam pra baixo e pra cima.
O toró, cavalo do cão, se arrumava lá no céu. Ia castigar outra vez, a
gente sentia. Ia arriar feio.
Dera, nesse tempo, para morar ou se esconder no oco do tronco da Como nas demais narrativas
de João Antônio, o conto “Guar-
árvore, figueira velha, das poucas ancestrais, resistente às devastações
dador”, de 1992, revela preocu-
que a praça vem sofrendo. pação com as figuras anônimas
Tenta a vida naquelas calçadas. das cidades. Admirador confes-
Pisando quase de lado, vai tropicando, um pedaço de flanela balanga so de Lima Barreto, o autor en-
no punho, seu boné descorado lembra restos de Carnaval. E assim sai tendia que a literatura deveria
do oco e baixa na praça. desmascarar a estrutura social,
Só no domingo, pela missa da manhã, oito fregueses dão a partida sem revelando a exclusão dos pobres
lhe pagar. Final da missa, aflito ali, não sabe se corre para a direita ou para e o descaso dos governantes. Em
a esquerda, três motoristas lhe escapam a um só tempo. “Guardador”, João Antônio esco-
Flagrado na escapada, um despachou paternal, tirando o carro do lheu a figura de um guardador
ponto morto: de carros para representar aque-
— Chefe, hoje estou sem trocado. les que sobrevivem na informa-
Disse na próxima lhe dava a forra. lidade, aproveitando as oportu-
Chefe, meus distintos, é o marido daquela senhora. Sim. Daquela san- nidades criadas pela rotina da
cidade. O conto evidencia um
ta mulher que vocês deixaram em casa. Isso aí – o marido da ilustríssi-
paradoxo: o indivíduo excluído
ma. Passeiam e mariolam de lá pra cá num bem-bom de vida. Chefe, pela sociedade não se anula; de-
chefe… Que é que vocês estão pensando? Mais amor e menos confiança. marca um território e se faz vi-
Mas um guardador de carros encena bastante de mágico, paciente, sível diante daqueles que prefe-
lépido ou resignado. Pensa duas, três vezes. E fala manso. […] rem ignorá-lo.
[...] Os motoristas caloteiros e fujões, bem-vestidinhos, viveriam ato-
lados e amargando dívidas de consórcio, prestações, correções monetá-
rias e juros, arrocho, a prensa de taxas e impostos difíceis de entender.
Mas tinham de pagar e não lhes sobrava o algum com que soltar gorjeta
ao guardador. Isso. O automóvel sozinho comia-lhes a provisão. Jaca-
randá calculou. Motorista que faça umas quatro estacionadas por dia VOCABuLÁRIO DE APOIO
larga, picado e aí no barato, um tufo de dinheiro no fim do mês. balangar: balançar
Vamos e venhamos. Se não podiam, por que diabo tinham carro? descorado: desbotado
O portuga diz que quem não tem competência não se estabelece. lépido: jovial, ágil, radiante
Depois, a galinha come é com o bico no chão. mariolar: viver como malandro; vadiar
[...] Corria o risco de desistir de guardador. Ele sabia, na pele, que matutação: ato de matutar, refletir,
quem ama não fica rico. E, se vacilar, nem sobrevive. [...] meditar
ANTÔNIO, João. Guardador. In: MORICONI , Italo (Org.). Os cem melhores contos brasileiros do resignado: conformado, que não se
século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 385-387. revolta

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