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Copytight desta eligo © Boitempo Editor, 2014 Copyeight © La Fabrique éitions, 2005 “Tiel oxginl La bane dee donate CCooenapo editorial Yana Jnkings Epp Bibiana Lemeelabella Maresh Austin edie Tia Buran Tau MaxianaEchalar Prepare oto Alxande Peachaosk FRevisio. Fernanda GuerteroAneanes, Tato breoastor Aeut Renzo Capa Ronaldo Alves Diagramagio Carlos Renato «Vanes Lima Predapio Livia Campos CCIP-BRASIL. CATALOGACAO NA PUBLICA CATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Rencite, Jacques, 1940 ‘O io 3 democracn Jacques Rance; tadusao Marlana Echalar, 1, ed - Sto Pal : Bitempo, 2014 Tindugio de: Lahaine dela démocatie ISBN 978-85.7559-400-1 1. Sociale, 2. Democrai. IT. 1414369 cpp:3218 DU: 3217, E vedada a reproduo de qualquer parte deste lo sem a express autoizacio da editor ‘edi: setembro de 20144 1 seimpresfosnovembo de 2014 2 empress outubro de 2015; 3" empress abil de 2017 4 empress outubro de 2018; 5 empeesio: mio de 2019 BOLTEMPO JinkingsEaitores Asociados Led, Ros Pecies Leite, 373 (05442.000 So Paulo SP “Tel: (11) 3875.7250 3875-7285 diror@bitempocdivra.com.be| wwreboitemposditoral com. be winxblogdaboitempa com | wweficebook.comy/botempo vw ittercom/eitoraboitempe | war youtube-comitvboitempo DEMOCRACIA, REPUBLICA, REPRESENTAGKO Oescdndalo democratico consiste simplesmente em revelar o se- guint niio haverd jamais, com o nome de politica, um principio uno da comunidade que legitime a ago dos governantes a partir das leis inerentes ao agrupamento das comunidades humanas. Rousseau tem razio ao denunciar 0 circulo vicioso de Hobbes que pretende provar a insociabilidade mtu! dos homens alegan- do intrigas de corte e maledicéncia de sal6es. Contudo, descre- vendo a natureza a partir da sociedade, Hobbes também mostra que € imitil procurar a origem da comunidade politica em uma virtude inata de sociabilidade. Se a busca da origem mistura sem nenhuma dificuldade o antes ¢ o depois, é porque ela vem sempre a 0 6nr10 A DEMOCRACIA depois. A filosofia que procura 0 principio do bom governo ou as razdes pelas quais os homens fundam governos vem depois da democracia, que por sua vez vem depois, interrompendo a logica tradicional segundo a qual as comunidades so governadas por aqueles que tém titulo para exercer sua autoridade sobre aqueles que sao predispostos a submeter-se a ela Sendo assim, a palavra democracia nao designa propriamen- te nem uma forma de sociedade nem uma forma de governo. ‘A “sociedade democritica” € apenas uma pintura fantasiosa, destinada a sustentar tal ou tal principio do bom governo. As sociedades, tanto no presente quanto no passado, sZ0 organiza~ das pelo jogo das oligarquias. E nao existe governo democratico propriamente dito. Os governos se exercem sempre da minoria sobre a maioria, Portanto, o “poder do povo” € necessariamente heterot6pico a sociedade no igualitéria, assim como ao governo oligérquico. Ele é 0 que desvia o governo dele mesmo, desviando a sociedade dela mesma, Portanto, é igualmente o que separa o exer- cicio do governo da representagio da sociedade. De modo geral, simplifica-se a questo, reduzindo-a a oposi- do entre democracia direta e democracia representativa. Entio, yode-se recorrer simplesmente 4 diferenga dos tempos e & opo: Pr PI PS Ps ‘cdo entre realidadee utopia. A democracia direta, diz-se, era ade- quada para as cidades gregas antigas ou os cantdes sufgos da Idade Média, onde toda a populagio de homens livres cabia em uma nica praca. A nossas vastas nasGes e sociedades modernas so- mente a democracia representativa convém. 0 argumento nao é DEMOGRACIA, REFOBLICA, REPRESENTACKO + 69 to convincente quanto gostaria, No inicio do século XIX, 0s re- presentantes franceses nao viam dificuldade em reunir na sede do cantao a totalidade dos eleitores. Bastava que 0 ntimero de eleitores fosse pequeno, coisa que se obtinha com facilidade, re- servando o direito de eleger os representantes aos melhores da nagio, isto é, aos que podiam pagar um censo de trezentos fran- cos. “A eleigio directa”, dizia Benjamin Constant, “constitui 0 “inico verdadeito governo representativo". E, em 1963, Hannah Arendt ainda via na forma revolucionétia dos conselhos 0 verda- deiro poder do povo, na qual se constituia a Gnica elite politica | efetiva, aelite autosselecionada no territ6rio daqueles que se sen- tem felizes em se preocupar com a coisa pablica’ Em outras palavras, a representago nunca foi um sistema inventado para amenizar 0 impacto do crescimento das popula- ses, Nao é uma forma de adaptagio da democr tempos ) modernos € a0s vastos espagos. E, de pleno direito, uma forma oligérquica, uma representacao das minorias que tém titulo para o is comuns. representacao, so sempre os estados, as ordens e as possesses que so repre- sentados em primeiro lugar, seja por i ara exercer o poder, seja porque um poder soberano Ihes dé voz consultiva) E a eleigao nao € em si uma forma democritica pela CGitado em Pierre Rosanvallon, Leave da cityen: hited fag vere er France (Pais Gallisard, 1992), p. 281 * Hannah Arendt, Esai sur la réoltion (Pati, Gallimard, 1985, Colegzo Tel), Paulo, Companhia ds tetra, 2011] «Naot [Ed brass Sb 0 in ai Ragu: Ric beawress nag ter diypaipine (3. pre Ae! gy Bex nnn ~ tam por Ni od Aupouis ¢ * on 0 6p10 } DENOCRACIA qual 0 povo faz ouvir sua voz{ Ela ¢ originalmente a expressio. de um consentimento que um poder superior pede © que s6 éde_ fato consentimento na medida em que ¢ undnime’, A evidéncia {que assimila a democracia & forma do governo representativo, resultante da eleigao, € recente na hist6ria.|A representacdo é “em sua origem, o exato oposto da democracia(Ninguém igno- rava isso nos tempos das revolusées norte-americana e francesa, Os Pais Fundadores e muitos de seus seguidores franceses viam nela justamente o meio de a elite exercer no! povo, o poder que ela €obrigada a reconhecer a ele, mas ele no saberia exercer sem arruinar o proprio principio do_governo’) Os discipulos de Rousseau, de sua parte, somente a admitem re- pudiando o que a palavra significa, ou seja, a representagio dos interesses particulares. A vontade geral nao se divide e os depu- tados representam apenas a nasio em geral, Hoje, “democracia representativa” pode parecer um pleonasmo, mas foi primeiro tum oximoro. Isso no quer dizer que seja necessario opor as virtudes da democracia direta as mediagGes e aos desvios da representagao, cou apelar das aparéncias mentirosas da democracia formal diante 9A esse respeito, ver Pierre Rosanvallon, Le sacred cayen, cit, € Bernard, ‘Manin, Principes de gowemementreprseatatf cit + Ademocraca, diz John Adams, no significa nada mals do que “a nogio de um povo que no tem governo nenhum. Gitado por Bertlinde Lanil, Ie mat “denarcy eso hse avs Etat Unis de 17804 1856 (Saint-Etienne, Presses de Université de Saint-Etienne, 1995), p65 ELah Se Sivarvors ¢ ayveedinge ® -Cleionede M aapale 9 A¢ goatee mp Tae 7 ing: fie Kepesinenils PAL, tobe no rad sd, aay” gut at pani i a Bera 4 ange Sau, sf Hp penty der, © Uys edonad om cere yen ba na Tecate gris ye moat TNO eg ne Vosges 9 So AS OL plot lhe ie el da efetividade de uma democracia real.\E.tio falso identificar 6s democeaia « repreventagdo quanto fazer de uma a refutagio™ 9 da outrd, Democracia quer dizer prechamente 0 seguinte: as" Tormas juridico-politicas das constituiges ¢ das leis de Estado no repousam jamais sobre uma tinica e mesma l6gica{O que chamamos de “democracia representativa” (e seria mais exato chamar de sistema parlamentar ou, como faz Raymond Aron, “regime constitucional pluralista”) é uma forma mista:(uma forma de funcionamento do Estado, fundamentada inicialmen te no privilégio das lites “naturais” desvia sos de sua fungao pelas hutas democriticas) A historia sangrenta das lutas pela reforma eleitoral na Gri-Bretanha é, sem diivida, o melhor xemplo, complacentemente eclipsado pelo idilio de uma tra- digo inglesa dade Fal" sufrigio universal nao femal éncia natural da democracia, A de- ia ndo tem consequéncia natural precisamente porque é a divisto da “natureza’, 0 elo rompido entre propriedades natu- Tals formas de governo, O sulragio universal @uma forma mis “ta, nascida da oligarquia, desviada pelo combate democritico € erpetuamente reconquistada pela oligarquia, que submete seus candidatos ¢ as vezes suas decisoes § escolha do corpo eleitoral, ae oral ‘em nunca poder excluir o risco de que o corpo eleitoral sec democracia nunca se identifica com uma forma juridico- -political Isso nfo quer dizer que Ihe seja indiferente.\Isso quer dizer que o vo-esti sempre aquém e além dessas Biren oe’ tre ott iy, to fe 7 Hie tod Tenede 8 10d Be isfy, Pen fomiont ) che good doris sArradkpades eld epee Sakcyus eB oe \formas.(Aquém, porque elas nao podem funcionar sem se referir, . em diltimai poder dos incompeter funda. menta e nega o poder dos competentes, a essa igualdade que ¢ a Abr, pore pete ore ee iscrevem ese ae ‘sdo constantemente readequadas, pelo proprio j iqui- na governamental, a légica “natural” dos titulos para governar, jue € uma logica da indistingao do piblico e do privado) (Ima vez que 0 vinculo com a natureza esta cortado, € os governos sio obrigados a se mostrar como instancias cdo comum da co- munidade, separadas da légica tnica das relagdes de autorida- de imanentes & reprodusio do corpo social, existe uma esfera piiblica que € uma esfera de encontro € conflito entre as duas légicas opostas da policia e da politica, do governo natural das competéncias sociais e do governo de qualquer um. |\ pritica es— pontinea de todo governo tende a estrcitar essa esfera publica, a transformé-laem assunta privado seu e, para isso, a repelir para 4 vida privada as intervengGes € os lugares de intervengio dos, atores_ndo estatais, mock forma de vida dos individuos empenhados em sua felicidade privada, 60 processo de luta contra essa privatizayao, 0 processo de am- pliagdo dessa esferas Ampliar « afirma o chamado discurso liberal, exigir a intervencao crescente do Bstado na sociedade; Significa lutar contra a divisio do pabli- coe do privado que garante a dupla dominagao da oligarquia no_ Estado e na sociedade. ica nao significa, como 0 eprtneuny. mp tilachon 0 fey Sa pene mods Hera pee Ade) sph De ak be Ye peer (aun fy Laer Bow late) Fore atuadhoiha «grail de uit caplada , fos bore reardae 6 tan, soit, guy DEMOERACIM: MATWALICN, REPEESENTAGEO loiloiie, gor tadtuaes Late paigd Napty Ciigal ae BA vnshing rye Ae, a re Den Hebe, (Hey fs Essa ampliagao significou historicamente duas coisas: conse- _guir que fosse reconhecida a qualidade de iguais €de sujeitos po } Iiticos lei do Estado repelia para a vida privada dos seres inferiores; conseguir que fosse reconhecido o carater pibli- code tipos de espaco e de relagies que cram deixados § mercé do poder da rigueza 30 significou, em primeiro lugar, lutas para Incluir entre os eleitores eos elegiveis todos aqueles que a ligica policial exclufa naturalmente: todos aqueles que no possem titulo para participar da vida publica, porque nfo pertencem a “sociedade”, mas apenas i vida doméstica e reprodutora, porque seu trabalho pertence a um senhor ou a um esposo (trabalha- dores assalariados assimilados de longa data aos domésticos, que dependem de seus senhores e sio incapazes de vontade propria, mulheres submetidas a vontade de seus esposos ¢ incumbidas da familia ¢ da vida doméstica). Significou também lutas contra a logica natural do sistema eleitoral, que transforma a representa- ‘s30 em representago dos interesses dominantes ¢ a eleigiio em dispositivo destinado ao consentimento: candidaturas oficias, fraudes eleitorais, monopolios de fato das candidaturas. Mas essa ampliago compreende também todas as lutas para afirmar 0 ca- rater puiblico de relagées, instituigdes e espacos considerados pri- vvados. Essa iltima luta foi descrita em geral como movimento social, em razao de seus lugares e de seus objetos: discusses s0- bre saldrios e condigdes de trabalho, batalhas sobre os sistemas de satide € aposentadoria, No entanto, essa designagao é ambigua. De fato, pressupde como dada uma distribuigéo do politico e do brlabe Min, a, IQ peng ore de pede) Sie, Tool Mawel eu Bee “Sa Soe Pol social, do piblico e do privado, que é, na realidade, uma aposta politica de igualdade ou desigualdade. A discussio sobre os salé- rios foi primeiro uma discussao para desprivatizar a relagio sa~ arial, afirmar que esta no era nem uma relagao de um senhor com um servo nem um simples contrato firmado caso a caso centre dois individuos privados, mas uma questo publica, que diz respeito a uma coletividade e, por conseguinte, depende das formas da agao coletiva, da discussio publica e da norma legis- latia. [9 “direto ao traballio”, reivindicado pelos movimentos te: nao a demanda de assisténcia de um “Estado-providéncia”, & do direito dos interesses privados impondo limites ao processo naturalmente ilimitado do crescimento da Fiqueza, se exerce mediante "gi de dsuibugio ds os que é | chepeipade dopa compen, De un Ja, rete separa todos e do privado em que reina a liberdade de cada um. Mas essa liberdade de cada um € a liberdade — isto é, a dominagio — ble ce eangne toe Nighi) dot opom cian wrefow Lan 92 trope t a hee eee DA tah, 5b, ean bor shia o lina, bof afeide opie do ote (TE vie rtm, MY NU to DEMOGRACIA, REPUBLICA, RePmESENTAcKO «xi B Lunas lw rtopiommn 6 etingde WE how pig, plete 8 da gulyen se dos que detém os poderes imanentes.i-sociedatle. Eo império da lei de crescimento da riqueza. Quanto a esfera piiblica assim pre- tensamente puril interesses privados, ela é também uma esfera puiblica limitada, privatizada, reservada ao jogo das institui- _sGes e a0 monopélio dos que as fazem funcionar\ Fssas duas esfe- ras s20 separadas em principio apenas para ser mais bem unidas sob a lei oligarquica. [Os Pais Fundadores norte-americanos ou os artidarios franceses do regime censitério ndo viram nenhuma alicia em identificar com a fi ‘etdrio ado homem plblico capaz de se erguer acima dos interesses mesquinhos da Vida econdmica e social(O movimento democritico é assim um duplo movimento de tansgressao dos limites, w imento para estender a igualdade do homem piiblico a outros dominios fa vida comum e, em particular, a todos que sio governados pela ilimitago capitalista da riqueza, um movimento também para rtencimento dessa esfera publ rivatizada a todos e qualquer um. Foi assim que a dualidade tao comentada do homem e do ci- dadao pide entrar no jogo. Essa dualidade foi denunciada pe- los eriticos, de Burke a Agamben, passando por Marx e Hannah Arendt, em nome de uma légica simples: se a politica precisa de dois principios, ¢ nao um s6, é por causa de um vicio ou em- buste. Um dos dois deve ser ilusério, se nfo os dois. Os direitos dos homens sao vazios ou tautolégicos, dizem Burke ¢ Hannah Arendt. Ou entao sao os direitos do homem nu. Mas o homem ‘nu, o homem sem pertencimento a uma comunidade nacional 6 0 A DEwocRactA constitufda, ndo tem nenhum direito. Os direitos humanos sio entio os direitos vazios dos que nao tém nenhum direito. Ou entio sao os direitos dos homens que pertencem a uma comuni- dade nacional. Eles so entao simplesmente os direitos dos cida- dios dessa nacdo, os direitos dos que tém direitos, portanto pura tautologia, Marx, a0 contrario, vé nos direitos do cidadio a cons- tituigao de uma esfera ideal cuja realidade consiste nos direitos do homem, que nao é 0 homem nu, mas o homem proprietério que impdec a lei de seus interesses, a lei da riqueza, sob a mascara do direito igual de todos Essas duas posigdes coincidem em um ponto essencial: a von tade, herdeita de Plato, de reduzir a diade homem ¢ cidadio a par ilusao e realidade, a preacupagao de que 0 politico tenha tum Ginico e 86 principio. O que ambas recusam & que o um da politica exista apenas pelo suplemento anarquico expresso pela palavra democracia. Concorda-se de bom grado com Hannah Arendt que o homem nu nao tem direito que Ihe pertenca, que no € um sujeito politico. Mas o cidadao dos textos constitucio- nals ndo é mais sujeito politico do que ele. Os sujeitos politicos indo se identificam nem com “homens” ou agrupamentos de po- pulagdes nem com identidades definidas por textos constitucio- nnais, Eles se definem sempre por um intervalo entre identidades, sejam essas identidades determinadas pelas relagdes sociais ou ppelas categorias juridicas. O “cidadao” dos clubes revolucioné- rios é aquele que nao reconhece a oposicio constitucional dos cidadaos ativos (isto &, capazes de pagar 0 censo) e dos cidadiios DEMOCRACIA, REPUBLICA, RETRESENTAGKO passivos. O operirio ou o trabalhador como sujeito politico é 0 que se separa da atribuigao ao mundo privado, nao politico, que esses termos implicam. Existem sujeitos politicos no intervalo entre diferentes nomes de sujeitos. Homem e cidadao sio alguns desses nomes, nomes do comum, cujas extensio e compreensio sio igualmente litigiosas e, por esse motivo, prestam-se a uma suplementagao politica, a um exercicio que verifica a quais sujei- tos esses nomes se aplicam e a forga que contém. Foi assim que dualidade do homem e do cidadao péde servir & construgao de sujeitos politicos que poem em cena c em cau- saa dupla légica da dominagao, a que separa o homem pablico do individuo privado para melhor assegurar, nas duas esferas, a mesma dominagao, Para que deixe de se identificar com a oposi- cao da realidade e da ilusao, essa dualidade deve ser dividida no- vamente. A l6gicapolicial de separagio das esferas, a agao politica opéc entio outro uso do mesmo texto juridico, outra encenagao da dualidade entre o homem piiblico eo privado, Ela subverte a distribuigzo dos termos e dos lugares, jogando o homem contra 0 cidadao € 0 cidadao contra o homem. Como nome politico, 0 cidadao opde a regra da igualdade fixada pela lei e por seu prin- cipio as desigualdades que caracterizam os “homens”, isto é, 08 individuos privados, submetidos aos poderes do nascimento e da riqueza. E, ao contrario, a referéncia ao “homem” opée a igual capacidade de todos a todas as privatizagoes da cidadania: as que excluem da cidadania tal ou tal parte da populagaio ou as que ex- cluem tal ou tal dominio da vida coletiva do reino da igualdade | 8 0 6pto k DEMOCRACIA cidada. Cada um desses termos cumpre entio, polemicamente, © papel do universal que se opde ao particular. E a oposigio da “vida nua” a existéncia politica é ela propria politizavel £ 0 que mostra o famoso silogismo introduzido por Olympe de Gouges no Artigo 10 de sua “Declaracao dos direitos da mu- Ther e da cidada”; “a mulher tem 0 direito de subir ao cadafalso; mas ela deve igualmente ter o dircito de subir 4 tribuna”. Esse raciocinio é bizarramente inserido no meio do enunciado do di reito de opinido das mulheres, calcado no dos homens (“Nin- _guém deve ser molestado por suas opinives, mesmo que sejam de principio; [..] contanto que suas manifestagdes nao pertur- bem a ordem piblica estabelecida pela lei*)*. Mas essa mesma bizarrice marca a toro da relagdo entre vida e cidadania que fundamenta a reivindicagao de um pertencimento das mulheres ‘esfera da opinio politica. Elas foram excluidas do beneficio dos direitos do cidadao em nome da divisio entre a esfera pablicaca esfera privada, Pertencendo i vida doméstica, portanto ao mun- do da particularidade, elas so estranhas a0 universal da esfera cidada. Olympe de Gouges inverte o argumento, apoiando-se na tese que transforma a punigio no “direito” do culpado: se as mulheres tém “o direito de subir ao cadafalso”, se um poder revolucionirio pode condené-las a ele, € porque a prépria vida + Olympe de Gouges, ‘Declaragto dos direitos da mulher eda cidada, Imes, trad, Selvino Jose Assmann, Flotianépolis v.41, jn.jun. 2007, PAE) | DENOCRACIA, REPUBLICA, REPRESENTACRO . p nua delas € politica. A igualdade da sentenga de morte anula a evidéncia da distingao entre vida doméstica e vida politica. Por- tanto, as mulheres podem reivindicar seus direitos de mulheres ¢ cidadas, um direito idéntico que, no entanto, somente se afir- manna forma de suplemento. Fazendo isso, elas refutam a demonstragao de Burke ou Hannah Arendt. Segundo eles, ou os direitos humanos sao os direitos do cidadao, isto 6, os direitos daqueles que tém direitos, o que € ‘uma tautologia; ou os direitos do cidado sao os direitos huma- nos. Mas, uma vez que o homem nu nao tém direitos, sdo entao 6s direitos dos que nao tém nenhum direito, o que € um absur- do, Ora, entre as supostas pingas dessa tenaz ldgica, Olympe de Gouges e seus companheios inserem uma terceira possibilida- de: os “direitos da mulher e da cidada” sio os direitos daquelas que nao tém os direitos que elas tém € que tém os direitos que elas nao tém. Elas sao arbitrariamente privadas dos direitos que a declaragao atribui sem distingo aos membros da nagio francesa e da espécie humana. Mas elas exercem também, por sua ago, 0 dircito do(a)s cidadao(@)s que a lei thes recusa, Flas demonstram desse modo que tém, sim, esses direitos que Ihes sto negados. “Ter” e “nao ter” sio termos que se desdobram. F a politica € a operagia desse desdobramento. A moga negra que, num dia de dezembro de 1955 em Montgomery, no Alabama, decidiu per manecer no lugar em que estava no Snibus —lugar que nao era 0 dela— decidiu com esse mesmo gesto que tinha como cidada dos Estados Unidos o direito que ela niio tinha como moradora Wea @ dete pl B Jisantde ileal gent 09.9 Ada) 3. © 6p10 A DEMoeRACIA de um Estado que proibia aquele lugar a qualquer individuo que tivesse mais do que 1/16 de sangue “no caucasiano”. E 0s ne- gros de Montgomery que, diante desse conflito entre uma pes- soa privada e uma empresa de transportes, decidiram boicotar a empresa agiram politicamente, pondo em cena a dupla rela- 60 de exclusio e inclusio inserita na dualidade do ser humano edo cidadao. (Ei ago de sujeitos que, trabalhando no intervalo das Wlentidades,reconfigaram as ee _Aistribuigies do-privada.e do pablico, do unive lar. {A democracia nao pode jamais se identificar com a simples 1.0 processo democrat 0 que imp! Lledo particu- dominagao do universal sobre o particular. Pois, segundo a 16- gica da policia, o universal é continuamente privatizado, conti- nuamente reduzido a uma divisio do poder entre nascimento, riqueza e “competéncia” que atua tanto no Estado quanto na sociedade. Essa privatizacZo se efetua comumente em nome da pureza da vida piblica, que é oposta as particulatidades da vida privada ou do mundo social. Mas essa pretensa pureza do poli- tico 6 apenas a de uma distribuigao dos termos, de um dado es- tado das relagdes entre as formas sociais do poder da riqueza e as formas de privatizagZo estatal do poder de todos. O argumento Sobre as legislagdes raciais dos Estados sulinos, remeto a Pauli Murray (org), States Lams on Race and Colo (Athens, University of Georgia Press, 1997). Ans que erguem a qualquer propésito o espantalho da “comunitarismo", essa Ieitura poderd dar uma nogao um pouco mais precisa do que pode significar a protegio de uma identidade comunitivia, estritamente entendica pete 18 Ueki wining bun Heh worn wl®, derbi gen Or Le, A pig bo parrnlir MICA, KEPRESENTAGRO - a . confirma apenas 0 que pressupde: a separagio entre os que sito ou nao sio “destinados” a se ocupar com a vida piiblica e com a distribuigdo do pablico e do privado, Portanto, o processo demo- cratico deve constantemente trazer de volta ao jogo 0 universal em uma forma polémica. 0 processo democritico é 0 processo desse perpétuo por em jogo, dessa invengio de formas de subje- tivaglo e de casos de verificagio que contrariam a perpétua pri- vatizagao da vida publica.(A democracia significa, nesse sentido, ai itica, a rejeicao da pretensio dos governos de encarnar um principio uno da vida publica e, com isso, circuns- crever a compreensio € a extensio dessa vida publica, Se existe . suma-‘ilimitacio" propria a democracia, €nisso que ela reside: zna multiplicagao exponencial d \ecessidades ou dos dese~ Continuamente os limites do publico edo Speivaday do polit do socal] Pee E esse deslocamento inerente a propria politica que a chama- da ideologia republicana recusa, Esta exige a estrita delimitagio das esferas do politico e do social e identifica a repiblica com o ela argumentou sua discussao sobre a reforma escolar nos anos 1980, Propagou a simples doutrina de uma escola republicana e laica, que distribui a todos 0 mesmo saber sem considerar dife- rengas sociais, Estabeleceu como dogma republicano a separagao entre a instrugao, isto €,a transmissio dos saberes, que é assunto reino da lei, indiferente a todas as particularidades. Foi assim que publico, ¢ a educago, que é privado, Entio atribuiu como causa © 6p1o A DEMOCRACIA da “crise da escola” a invasio da instituigao escolar pela sociedade fe acusou os socidlogos de terem se transformado nos instru- mentos dessa invasio, propondo reformas que consagravam & confusio entre a educagio ¢ a instrugio. A reptiblica assim en- tendida pareceu se colocar, portanto, como o seino da igualdade encarnado na neutralidade da instituigao estatal, indiferente is diferencas sociais. Pode causar espanto que o principal teérico dessa escola laica e republicana apresente hoje, como tinico obs téculo ao suicidio da humanidade democritica, a lei da filiagtio ‘encarnada no pai que incita 0s ilhos a estudar os textos sagrados de uma religiao. Mas 0 aparente paradoxo mostra justamente 0 equivoco que estava escondido na referencia simples a uma tea- digao republicana da separago entre Estado e sociedade. [A palavra repiiblica nao pode significar simplesmente o reino da leiigual para todos. Repsiblica é um termo ambiguo, perseguido pela tensio implicada pela vontade de incluir nas formas institui- das do politic 0 excesso da politica. Incluir esse excesso quer dizer duas coisas contraditérias: reconhecé-lo, estabelecendo-o nos textos ¢ nas formas da instituigao comunitéria, mas também suprimi-lo, identificando as leis co Estado com os costumes de uma sociedade. De um lado, a reptiblica moderna identifica-se com o reino de uma Jei que emana de uma vontade popular que inclui o excesso do dims, Mas, de outro, a inclusao desse excesso exige um principio regulador: a repablica precisa nfo somente das leis, mas também dos costumes republicanos. A repiiblica é um regime de homoge- neidade entre as instituigdes do Estado ¢ os costumes da sociedade. DENOCRACIA, REFOBLICA, REPRESEN TAGRO Atradigdo republicana, nesse sentido, nao remonta nem a Rousseau nem a Maquiavel. Remonta propriamente a politeia platénica. Ora, esta ndo 0 reino da igualdade pela lei, da igualdade “aritmética” entre unidades equivalentes. E 0 reino da igualdade geométrica, que coloca as que valem mais acima dos que valem menos. Seu principio nao é a lei escrita e semelhante para todos, mas a educa- Ho que dota cada pessoa e cada classe da virtude propria aseu lugar ea sua fungao. A reptiblica assim entendida no opde sua unidade a diversidade sociol6gica. ois a sociologia nfo é a crdnica da diver- sidade social. Ao contrario, € a vistio do corpo social homogéneo, que opde seu principio vital interno a abstrago da lei, Republica e sociologia so, nesse sentido, os dois nomes de um mesmo projeto: restaurar para além do esgargamento democrdtico uma ordem politica que seja homogénea com o modo de vida de uma socieda- de, E exatamente o que Platao propée, isto é uma comunidade sinaram a exting2o do politico diante das exigncias da ilimitagJ0 mundial do capital, e para estigmatizar como atraso “populista” qualquer combate politico contra esa extinsao, Restava colocar& ilimitagio da riqueza, com ingenuidade ou cinismo, na conta do apetite devorador dos individuos democriticos € transformar essa democracia devoradora na grande catastrofe pela qual @ humanidade destréia si mesma.

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