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Métodos da Ciéncia Economica Gentil Corazza ere iicuis O método como tema: controvérsias filosdficas, discussGes econémicas Pedro Cezar Dutra Fonseca 1. Introducdéo A proposigaio de que um método se faz necessério para que o conhecimento seja alcancado remonta & filosofia grega. Mas foi Kant que desenvolveu com rigor a necessidade de uma teoria do conheci- mento, ao propor e desenvolver a tese de que ele prdprio se tornasse objeto de uma teoria. Nao sendo inato nem capaz de brotar esponta- neamente, o conhecimento requer esforgo para ser alcangado. Surge, entao, a necessidade de um meétodo, entendido como o caminho que se deve percorrer na busca do conhecimento, embora ele, por si s6, nao garanta que se alcance a verdade. Occonhecimento pode ser definido como uma relagiio entre sujei- to ¢ objeto. Este entendimento esté mais ou menos assentado em todas as visdes filos6ficas e psicoldgicas, e o que as distingue é como se faz presente esta relacdio entre sujeito e objeto em cada concepgao. Ou seja: conquanto, de uma forma mais abstrata, se possa entender 0 conheci- mento como essa relactio, hd varias formas de expressar e entender como a mesma se materializa, bem como se expressa em cada ciéncia parti- cular e quais suas possibilidades e limitagdes. Esses talvez sejam os Pedro Cezar Dutra Fonseca ¢ Professor Titular do Departamento de Ciéneias Econ6- micas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul -UFRGS c Pesquisader do CNP. 17 pontos mais complexos e polémicos da teoria do conhecimento, que mais tem divido os fildsofos que se debrugaram sobre o tema. Na tentativa de sumarizar alguns pontos relevantes dessa con- trovérsia, com 0 propésito maior de sistematizagao didatica, serao abordados trés aspectos que afloram na reconstituig&o deste debate no campo das discussoes filoséficas, embora se tenha por objetivo en- saiar algumas hipéteses de como elas aparecem na Economia. Estas controvérsias classicas dizem respeito aos debates entre (a) dogma- tismo e ceticismo; (b) objetivismo e o subjetivismo; e (c) racionalis- mo e empirismo. 2. Dogmatismo versus ceticismo A primeira questao que acompanha o debate epistemoldgico, com reflexos na histéria do pensamento econémico, refere-se 4 con- trovérsia entre dogmatismo e ceticismo, a qual também apresenta ten- tativas de conciliag&io ou superagio relevantes, como o relativismo. Aqui, para fins didaticos e de exposigao, manter-se-4 a andlise cen- trada na polaridade. A pergunta central diz respeito A possibilidade do conhecimento: pode-se conhecer a realidade? O conhecimento pode ser alcangado? A posi¢io do dogmatismo (dogma = doutrina fixada), expressa em poucas palavrns, diz nao haver por que se preocupar com essa ques- t&o, pois dbvia é a resposta positiva a ela. Com esta postura, a rigor, desqualifica-se a propria existéncia do problema. Seus defensores re- montam a Grécia Antiga, j4 nos fildsofos eledticos e jénios quando, nos primérdios da filosofia, a atividade de filosofar nao era em si ques- tionada quanto as suas possibilidades, tendo-se como suposto a ple- na capacidade do homem para tal. Os dogmaticos nao tém o benefi- cio da diivida. © dogmatismo para se sustentar precisaria pressupor e admitir como verdade juizos fortes tanto com respeito ao sujeito como quanto: a0 objeto. Com relagao ao primeiro, precisaria crer na ampla possibili- dade de o sujeito apreender 0 objeto, de nao haver erros de observaciio, de enfoque, de circunstancia ou de ilusio dos érgaos do sentido. O su- jeito, a rigor, precisaria ser infalivel — atributo possivel s6 para os deu- 18 ses. E mesmo que 0 sujeito alcancasse este grau de perfei¢ao, ainda pre- cisaria o objeto apresentar constancia e regularidade, de modo que a atitude de buscar conhecé-lo nfio pudesse ser prejudicada. Mas, como se sabe, um dos grandes problemas da aventura de querer conhecer 0 mundo diz respeito ao objeto em si, que apresenta aleatoriedade, mu- dangas, descontinuidades e, via de regra, apresenta-se de forma parcial, fragmentada e até obscura, como enfatizou Hegel. Platao foi dos primeiros criticos do dogmatismo ao argumentar que o conhecimento nfio é inato, mas precisa ser adquirido, aleanga- do, Ilustra seu ponto de vista em uma pardibola em que os deuses de- ram ao homem a habilidade e a razao, mas nem por isso o conheci- mento ¢ a virtude prosperaram, pois estes exigem esforgo, dedicagio, determinagiio e vontade. Ja Kant entendia como dogmiaticos os fil6- sofos que se dedicavam A metafisica sem questionar as possibilida- des e os limites da razdio humana para empreender esta tarefa. Desta forma, para eles 0 conhecimento nfo seria posto como objeto da pré- pria investigacao, jd se aceitando, de antemao, sua possibilidade. Ge- ralmente as idéias do dogmatismo fixam-se mais no objeto, pois se aceita a priori a possibilidade de o sujeito apreendé-lo. JA 0 ceticismo parte do extremo oposto, assinalando as dificul- dades para se chegar ao conhecimento ou a verdade (ceticismo “mo- derado”) ou mesmo sua impossibilidade (ceticismo “radical” ou “ab- soluto”). Pirron de Elis, talvez seu mais brilhante precursor, argumen- tava que, diante de dois juizos contraditérios, um poderia ser tao ver- dadeiro quanto o outro, para concluir ser mais aconselhada a absten- ¢&0 de todo jufzo. O problema decorria em boa parte do proprio obje- to, j4 que entendia que os fendmenos eram em si indiferencidveis. Gorgias de Leéncio também se arrola entre os precutsores mais radi- cais, mas lembra 0 lado do sujeito na impossibilidade: “Nao existe nada. Mesmo se existisse, 0 ser seria incompreensivel para nés e nfio poderfamos conhecé-lo. E mesmo se pudéssemos conhever, nao po- deriamos comunicar aos outros nossos conhecimentos”. Certamente este ceticismo radical pode chegar ao extremo de negar a possibilidade do conhecimento e, portanto, da ciéncia. Mas, paradoxalmente, o ceticismo foi muito importanie na histria da ci- @ncia, jd que trouxe a duivida & ordem do dia e contribuiu para separar © discurso religioso do cientifico, as crengas ¢ a fé de outro tipo de 19 conhecimento do mundo, apoiado na razio e na observagao. Além disso, ajudou a combater as explicagées preconceituosas ¢ as respos- tas rapidas, ao apregoar a necessidade do método para alcangar 0 co- nhecimento. Assim, ao lado de um ceticismo sistemdtico ou sistémi- co, assumido como uma questao de principio ou fruto de um posicio- namento filoséfico, com Descartes chega-se ao ceticismo metdédi é possivel conhecer o mundo, ea diivida aparece nao mais como prin- cfpio ou conviceso filoséfica para negar a possibilidade do conheci- mento, mas como procedimento a ser seguido pelo sujeito por uma questio de método; duvidar faz parte do trabalho do cientista, de ma- neira que este sempre deve desconfiar de seus dados, de seus testes, de suas respostas. Nem sempre 0 ceticismo abarca todos os campos do conheci- mento. Ha ceticismos especializados ou resiritos a determinadas dre- as; por exemplo, hd céticos apenas no campo religioso, como os ag- nésticos. Ja o positivismo é um exemplo de ceticismo metafisico, ao duvidar da possibilidade de se chegar & esséncia das coisas, ao negar a filosofia e ao defender como cientifico apenas 0 conhecimento as: sentado na observagiio empfrica e no mundo sensfvel. Aquilo que naio se pode provar através da experiéncia deve ser rechagado como obje- to da ciéncia. Assim, sentencas como “‘os anjos tém asa”, “Deus ¢ jus- to” ¢ “o amor é eterno” podem até ser verdadeiras, mas nao podem ser submetidas & prova empifrica e, portanto, nao sao integrantes do campo da ciéncia! Modemamente 0 ceticismo aparece de varias formas tanto nas discuss6es filosGficas como nas ciéncias especializadas. A versio mais conhecida € a do relativismo, para quem a verdade é relativa a deter- minado meio, cultura ou até mesmo classe ou ideologia. Manifesta- se no campo ético, por exemplo, ao se dizer que nao se pode julgar um {ndio com base em cédigos do homem civilizado, pois as regras de conduta dependem de cada cultura. Também em estudos antropo- l6gicos, quando se afirma que nao se pode hierarquizar as manifesta- ges artisticas mais sofisticadas (como Bach ou Michelangelo, por exemplo) e a popular ou do folclore. Ou, ainda, em certo marxismo » primitivo que afirma(va) que a verdade da classe dominante nao po- deria ser a mesma das classes exploradas, de modo que haveria uma ciéncia burguesa e outra proletéria. 20 Orelativismo cultural ou ideol6gico corre 0 risco de, ao estrei- tar tanto sua amplitude, ver-se chegar ao mais puro psicologismo ou a um subjetivismo absoluto, implicando que a verdade dependa de cada sujeito: “cada cabega uma sentenga” diz o dito popular, ou “0 homem € 0 principio de todas as coisas”, como propunha o principio do homo mensura de Protagoras de Abdera. Enesidemo, j4 no século Ia. C. afirmava: “Nem 0 sentido nem a razao. Ambos sao contradité- rios. O conhecimento varia com os sujeitos ¢ com os enfoques. S6 conhecemos as coisas como aparecem”, Como se vé, scu ceticismo io 0 eximia de formular jufzos com muita convicg%io em assuntos 140 polémicos como este... Se todas as verdades sao relativas, como ter tanta certeza da veracidade desta proposigao? Os fildsofos da era classica da filosofia grega, como Sécrates, Platéo € Arist6teles, combateram o ceticismo ao afirmar que 0 conhe- cimento era possivel ¢ a verdade era uma s6, rejeitando o relativis- mo; existirem varias verdades implica que nunca se poderia afirmar © falso nem o verdadeiro e, portanto, dever-se-ia abster de todo jutzo. Sea verdade ou os valores dependem do meio, de cada cultura ou do contexto hist6rico, poder-se-ia argumentar que a violagdo de direitos humanos durante o nazismo poderia ser aceitavel, assim como as atro- cidades da inquisicdo espanhola. Jd.0 ceticismo metaffsico de Comte, por sua influéncia no sécu- lo 19, margou a obra de muitos economistas, mas também expressou profundo descontentamento com 6 método de trabalho da Economia Politica nascente. Critico do liberalismo dos fisiocratas, de Smith e Ricardo, Comte via estes autores como adeptos da deducdo, ndo se preocupando com a necesséria recorréncia ao “altar dos dados” para submeter a prova suas teorias. Além disso, entendia como anticienti- ficas construgdes teéricas como valor, prego natural, mao invisfvel, ordem natural, classe estéril — pois nao empiricas, nfio mensurdveis, quase que apenas fruto da imaginacao, enfim, metafisicas: por que os economistas nao se detinham a investigar os pregos de fato encontra- dos no mercado, sem recorrer ao “subterfiigio” do valor ¢ do preco “natural”? Com que fundamento Quesnay afirmara que a ordem so- cial era manifestagao diyina, num tom malebrachista que surpreen- deu seus coevos enciclopedistas? De onde Smith tirara que os homens tinham propensao “natural” a troca e que em toda sociedade primiti- 21 va os homens trocavam com base nas horas de trabalho necessdrias & producfio? Havia pesquisas neste sentido? Como Ricardo conclutra que existia uma tendéncia 4 queda da taxa de lucro sem nenhuma in- vestigaciio empirica, sem nenhum dado do mundo real, apenas como decorréncia de uns poucos axiomas ¢ pressupostos? Para Comte, nao restava divida: na escala da evolugao, a eco- nomia nao chegara a fase positiva ¢ por isso os economistas nao se contentavam em construir teorias de fato testaveis e independentes da ideologia; a caréncia de cientificidade evidenciava-se ao apegarem- se a critérios valorativos ora liberais, ora socialistas, ora cristaos; re- correndo A questiio formulada mais tarde por Durkheim (1974), para melhor expressar seu pensamento; por que nao se contentavam em ser apenas economistas? O questionamento de Comte nao se restringia a Economia, mas abarcava todas as ciéncias humanas de sua época, e resultou na pro- posta de uma nova 4rea para pesquisa, a Sociologia, a qual deveria sera “fisica social”, isenta de critérios de valor e empiricamente fun- damentada. Mas, no campo da propria Economia, a critica 3 despreo- cupacao de Ricardo de tratar de questées metodolégicas — 0 que se poderia denominar seu dogmatismo — expressou-se inicialmente atra- vés de Malthus. Embora a hist6ria do pensamento econémico demons- te a inconteste hegemonia ricardiana, haja vista que enquanto sua teoria tornou-se mainstream 20 longo do século 19 e resgatada como antecessora pelos maiores nomes que aparecer’io - Mill, Marx, Mar- shall, para citar alguns com contribuigdes decisivas para os moder- nos apprachs~, Malhus foi considerado herético pelo menos até Key- nes reabilita-lo como precursor da teoria da demanda efetiva. Mal- thus (1983) nao deixa diivida na Introducdo de seus Princtpios de Economia Politica, cuja primeira edigéo data de 1820: os erros de Ricardo provinham de simplificar e generalizar apressadamente, crer sem duvidar da possibilidade ¢ das dificuldades de alcangar-se 0 co- nhecimento em matéria complexa como economia, sem tomar precau- ¢&o com regras metodoldgicas elementares: os economistas deveri- _ am incorporar em suas anilises discussdes sobre a possibilidade do conhecimento e o melhor caminho para alcancé-lo. As observagées de Malthus nao foram em vio. Se a teoria eco- n6mica ricardiana tornou-se hegem6nica, as criticas de Malthus, re- 2 forgadas pelos positivistas ¢ historicistas, nao foram ignoradas pelos economistas posteriores, 0 que implicou, em menor ou maior grau, 0 abandono do dogmatismo por parte dos principais tedricos da Eco- nomia. Restringindo-se ao século 19: na Inglaterra, Senior, Mille, mais tarde, John Neville Keynes incorporaram definitivamente preocupa- gées metodolégicas, chegando a contribuirem mais neste campo que em matérias propriamente de teoria econémica. Jé a Escola de Lou- sanne, ao lancar mio da linguagem matematica, passou a receber crf ticas e partiu para sua defesa; ao assim proceder, incorporou discus- s6es sobre o alcance ¢ os limites deste instrumental no meio dos eco- nomistas; esta preocupacio, que se nota em Walras e Cournot, tam- bém estd presente no italiano Pareto, Nos Estados Unidos, Veblen partiu para o institucionalismo justamente ao p6r em questéo a uni- versalidade da teoria neoclassica e seu carater abstrato ao desconsi- derar o meio, a cultura e as instituigSes. Mas foi na Alemanha onde a deniincia ao “dogmatismo ricardiano” radicalizou-se e 0 ceticismo mais prosperou, chegando inclusive a vertentes bastante radicais. As criticas comegaram com List, na década de 1840, para quem a ma- neira dos ingleses (Ieia-se Ricardo) fazer ciéncia equivocava-se por desconsiderar as condigdes sécio-culturais de cada nagdo, ao assen- tar-se em um homo economicus abstrato, universal e reduzido a um célculo racional, que ignorava a complexidade das decisdes humanas, sempre de fato tomadas considerando as ages dos demais, ou seja, em um contexto determinado. ‘A critica de List ganhou expressio maior coma Escola Hist6ri ca Alema, a qual buscava alicergar, em argumentos hist6ricos, as di- ferencas entre os economistas de lingua germanicae a Inglaterra, para mostrar, a partir deles, que as leis da economia nao poderiam ignorar © contexto em que se inseriam. Roscher aconselhava evitar falar-se de leis em economia, pois apenas regularidades de longo prazo, leis de desenvolvimento, poderiam detectadas. Hildebrand perguntava-se como falar em leis, se as varidveis e suas relagSes se alteram de caso para caso? Knies, mais radical, duvidava de que se pudesse a rigor falar em economia, caindo em um ceticismo que s6 admitia “vagas regularidades”. Tudo isso sem contar Marx que, recorrendo d dialéti- cahegeliana c ao materialismo de Feuerbach, proporcionou verdadeira revolugdio no campo da epistemologia ¢ da filosofia do conhecimen- 23 to ao contribuir com reflexdes nestas areas desde seus primeiros tra- balhos, na década de 1840, No século 20, a incorporagio da questiio da possibilidade do conhecimento ganhou maior félego entre os economistas, seja do mainstream (Circulo de Viena, Friedman), de vertente keynesiana (Joan Robinson, pds-keynesianos, sem contar as contribuigdes do pré- prio Keynes sobre probabilidade) e marxista. Tudo sugere, entiio, que os principais teéricos da Economia afastam-se cada vez mais do dogmatismo, embora a postura do paradigma dominante para igno- rar questSes metodolégicas nao possa ser negligenciada. Afinal, um conhecimento que “se basta” tem a pretensio de assentar-se em um método que é tinico, universalmente reconhecido, e, por decorréncia, fruto de um consenso cujas razGes para se questionar sao insignifi- cantes. O dogmatismo, assim, sempre é uma tentaciio. 3. Objetivismo versus subjetivismo A outra questo a ser analisada remete a consideragao de que se 0 conhecimento € uma relacao entre sujeito e objeto, qual deles ocu- pao papel central em sua consecugao, em qual se localiza, principal- mente, 0 problema da investigacao. O subjetivismo frisa a importan- cia do sujeito no proceso de busca do conhecimento, ao passo que 0 objetivismo centra-se no objeto, atribuindo-Ihe peso mais relevante nas discussGes epistemolégicas. Evidentemente existem varias ten- . tativas, no campo da epistemologia, de tentar conciliar ou mediar este conflito basico, cujas raizes remontam a Grécia. Platao, por exemplo, defendeu que o problema maior do conhe- cimento residia no objeto. Isto fica claro j4 no Mito da Caverna, com a divisio entre o mundo sensivel, transitério e imperfcito, e o mundo das idéias, no qual fica estabelecido que a realidade € altamente com- plexa e ha dificuldade para apreendé-la em sua totalidade. Esta idéia de Platiio inspira a concepgaio modema de criago de modelos, que 6 muito usada em economia e em todas as. ciéncias, defendendo-se que no se pode captar a realidade em todas as suas determinagées, que 6 preciso recorrer a simplificagdes — os modelos — como passo inicial para se aprender 0 objeto, Plato, apesar de alertar para essa dificul- a dade, nao era cético e defendia que era possivel conhecer 0 mundo e que a verdade nao poderia depender de cada sujeito individual. Com isto, se opunha aos sofistas, precursores do relativismo moderno, que detendiam uma tese hoje muito comum entre os economistas e os cien- tistas sociais em geral, a qual propugna que o conhecimento depende do enfoque ou ponto de vista, da situag&o cultural de cada u ju até que existe uma verdade relativa a cada classe ou grupo social. Tam- bém se pode perceber uma versio do subjetivismo ao se assumir uma concepgao mais historicista do conhecimento, na defesa da verdade como relativa a determinadas circunsténcias histéricas. E isso que Plato, em boa parte, pretendia combater; centrando suas considera- ges na discussao sobre os valores morais, mostrando que a virtude no poderia ser relativa ~nao pode existir o bem para alguém que nao 9 seja para outro. Deveria haver pelo menos certos principios gerais, basicos, que nao fossem relativos aos valores individuais Os sofistas, escola pré-socratica, ao centrarem-se no sujeito, so precursores do individualismo que vai aparecer modernamente na escola neoclassica. E 0 caso de Protdgoras de Abdera, ja mencio- nado, ressaindo 0 homem como centro de sua filosofia. Assim, as Icis € as instituigdes n&o cram absolutas nem divinas, mas criadas por decisdes do préprio homem. No entanto, coube a Bpicuro de- fender a importancia das sensagdes percebidas pelo sujeito como fonte primordial do conhecimento. Na Economia Politica nascente, varios autores, como Smith, Cantillon e Benthan, assumiram esta tese que 0 conhecimento provinha das sensacdes, fortemente inspi- rados pelo empirismo inglés. Estabelecia-se, entiio, uma ponte en- tre sensualismo ¢ subjetivismo, jd que as sensagdes sao percebidas diferentemente por cada sujeito, marcadas pela experiéncia indivi- dual, ou seja, so subjetivas. Na histéria do pensamento econémico esta controvérsia € sintetizada na corriqueira afirmagio de que a te- oria do valor trabalho é “objetiva”, jé que para ela o valor indepen- de do sujeito, transcende as individualidades ¢ se imp6e como co- ercao social, enquanto a teoria do valor utilidade é “subjetiva”, por- quanto depende fundamentalmente da psicologia do consumidor. Mas Smith, mesmo tendo defendido a teoria do valor trabalho, nao deixou de ser fortemente marcado pelo subjetivismo, principalmente na Teoria dos sentimentos morais. Em boa parte, o objetivismo de Smith deve-se a influéncia de Newton; no caso, hd uma visdo de que a Economia, caso quisesse re- almente se constituir em uma ciéncia aut6noma, teria que ser andlo- ga a forma com que se explicava cientificamente 0 universo: como uma maquina organizada, com movimento repetitivo, independente da vontade do sujeito, com leis proprias que pudessem ser descritas matematicamente, j4 que o objetivo era expressar seu funcionamen- to. Mas Adam Smith nem sempre foi consistente com este objetivis- mo: recorreu, em varios momentos, ao homo economicus e ao auto- interesse para justificar proposigGes econémicas e tendéncias inatas, como a propensio natural a troca e & satisfac pessoal. Ao tratar da simpatia como qualidade, tentou compatibilizar a idéia do individuo em si como sujeito das decis6es econémicas e a existéncia de leis ge- rais. Assim, na obra de Smith hd certa justaposigao entre o individuo como agente de decisGes e leis necessdrias do sistema econémico; este possivel conflito nao é ignorado por ele, j4 que enfrenta a ques- ffio e tenta, a seu modo, buscar solugdes. Todavia, se tem em mente que a leitura preponderante entre os economistas é de Smith como précer da teoria do valor trabalho, 0 objetivismo salta aos olhos: 0 valor nao depende dos agentes individuais, os homens sio submetidos ao valor e ao mercado; cada individualidade nao tem o menor significa- do, seja teérico, seja no mundo real. Que relevancia teria o individuo em um modelo em que cada um é visto analogamente a um atomo? E com Ric&rdo que 0 objetivismo ganha a vers%io mais acabada da economia classica. Este entende o sistema econdmico como uma méquina organizada, que funciona segundo leis universais, “naturais”: em sua construgao analitica quase nao aparece o ser humano, o ato volitivo; sua bem-acabada arquitetura te6rica no esconde a dificil conciliago com o liberalismo filoséfico, que procura se assentar no individuo e no objetivismo da teoria do valor trabalho. Na verdade, tudo sugere que 0 individuo apenas é suporte para as leis férreas da economia, é dai sua construgao teérica poder expressar-se em um sis- tema de equacées ¢ através de um modelo deterministico. Parte-se de determinados pressupostos, formulam-se hipdteses e, através de um racioefnio Iégico, chega-se a determinadas conclusées. Ricardo pa- rece ser 0 economista classico que leva as tiltimas conseqiiéncias esse tipo de visio, j4 que este procedimento nao é generalizado, pois nio 26 se encontra, por exemplo, em Smith. Mas cabe assinalar que a unida- de analitica em Ricardo nao é 0 individuo, mas as classes sociais. Tra- ta-se de liberalismo bastante diverso do verificdvel, por exemplo, na Escola Austriaca, pois nesta 0 auto-interesse é pega essencial da cons- trugao analiti £no marginalismo ¢ na Escola Neoclassica que 0 subjetivisnio em Economia vai expressar-se de forma mais acabada. Interessante € notar que a relag&o entre o subjetivismo marginalista e a escola neo- classica € objeto de pouca controvérsia, embora seja duvidoso que se possa realmente associar 0 neoclassicismo a um subjetivismo tipico. De um lado, € claro que a escola marginalista recorre, em sua teoria do valor, ao sensualismo € ao hedonismo; 0 valor as coisas (os bens, goods) € atribuido pelo sujeito, principalmente na versio de Menger. Estas s6 se tornam bens quando algum sujeito as escolhe para satis- fazer suas necessidades. O bem nao € bem em si, mas bem para al- guém que o considera como tal. Por outro lado, ao levar-se em conta a obra de Walras, pode-se indagar até que ponto'o individuo realmen- te ocupa 0 centro da anilise, j4 que a concepgao de equilforio geral do sistema é uma arquitetura tedrica semelhante a ricardiana, coma economia composta de determinadas leis que submetem os homens. O objetivo do cientista consiste em conhecer essas leis, “descobri-las”. Como pode uma teoria ser atomista, ter o individuo como centro de andlise ¢, ao mesmo tempo, assentar-se no equilibrio geral? Quem explora muito este tiltimo aspecto é a Escola Austriaca, principalmente Hayek, que chega a duvidar de que a escola neocla: sica seja, de fato, liberal. Nela nao ha explicitamente o lucro, que vira custo ou resfduo, bem como nao hd a figura do empresdrio como agen- te ou inovador: com a abstragao do tempo no modelo, o equilibrio re- sulta de um sistema andlogo a um mecanismo, como em um sistema de equagoes. JA Marshal apresenta outra versio neoclassica, diferente da de Walras, ao langar mao do valor utilidade, mas evitando tanto 0 equi- librio geral como 0 subjetivismo extremado. Em suas reflexées hé in- fluéncia reconhecida de Ricardo, nao s6 tedrica (a idéia da importan- cia dos custos para determinar precos no longo prazo) como em ques- t6es metodoldgicas. Sua teoria da producao, por exemplo, é marcada por proposigdes que independem do sujeito, como a curva de custo a7 médio de longo prazo em forma de U, por exemplo, sem contar a ané- lise sobre as sociedades anénimas e a presenga de classes sociais ou agentes econémicos “coletivos” que coabitam com a psicologia de individuos tomados abstratamente, o homo economicus. Mais recentemente essa controvérsia entre objetivismo e subje- tivismo tomou um contorno particular, o qual consiste em indagar quais os fundamentos microecon6micos da macroeconomia. Esta dis- custo pode ser analisada por varios angulos. No que aqui € enfoca- do, chama-se atengao justamente a possibilidade de conciliar uma te- oria fundada no indivfduo, em suas preferéncias e em suas decisoes como agente econémico racional — a microeconomia -, com a exis- téncia de leis gerais ou convengdes ¢ comportamentos dos grandes agregados da macroeconomia. A compatibilizagéio entre ambas remete a duas questées classi- cas da epistemologia. A primeira diz respeito a propria nogio de tota- lidade, ao desaguar na antiga polémica se o todo é ou no a soma das partes, j4 que a aditividade de funcoes individuais para se chegar a fungGes agregadas continua sendo, a rigor, o recurso empregado pe- las teorias neoclassicas. Mas precisar-se-ia ter claro e demonstrado que os individuos isoladamente tamam decis6es nao significativamen- te diferentes do que quando agem cm grupo, associados ou simples- mente convivendo em sociedade — hipétese de dificil comprovacao no campo empiticp, embora possivel em uma andlise dedutiva ampa- rada em varios pressupostos e axiomas. A segunda questio diz res- peito A prépria possibilidade de se chegar a leis gerais e sistémicas a Partir de fatos e observagées parciais, ou seja, o famoso “salto da in- dugdo”, que tanto tem atormentado os indutivistas desde Hume e Locke. Em poucas palavras, este afirma que nao se pode, a nfo ser que se suponha uma forte estabilidade no mundo, a partir de “n” ob- servagées chegar-se a leis gerais e universais, ja que sempre hd a pos- sibilidade de uma nova observagiio diferente; a inducaio nao garante certeza de se chegar a verdades universais. Estes dois problemas classicos da filosofia sempre complicam a busca dos fundamentos microeconémicos da macroeconomia e " exemplificam como é dificil, no campo especffico da teoria econd- mica, alcangar uma conciliagao satisfatéria entre objetivismo e subjetivismo. 28 4. Racionalismo versus Empirismo A tiltima questo diz respeito & origem do conhecimento, ao inda- 22 se repousa fundamentalmente na razio (racionalisma) ou na expe- niéncia (empirismo). A polémica, como as anteriores, apareceu também na Grécia antiga. O idealismo plat6nico consistiu em defesa radical do primeiro ao postular que o mundo sensfvel ou da experiéncia é transité- Fio, enganador, cdpia imperfeita do “mundo das idéias”; no se poderia confiar nos sentidos como fonte do conhecimento, mas na raziio. Somente esta poderia levar a juizos necessérios e universais e, por isto, o raciona- lismo est bastante associado ao método dedutivo e A légica formal. Modemamente foi revigorado com Descartes e Leibinitz, filésofos com contribuigdes também na érea da matemitica —, jd que esta, como lin, \gua- gem simbélica, expressa com maior preciso 0 conhecimento universal, necessario, dedutivo, usando o caminho que vai dos axiomas aos presst- _ Postos, e destes a hipdteses até a demonstragiio e a conclusio, Analisem-se, por exemplo, duas sentengas: “o PIB do Brasil em 2002 era maior que o da Argentina” e “as curvas de indiferenga nunca se cruzam’, Ambas stio verdadeiras, mas hd uma diferenga basica entre a primeira, denominada sintética, ¢ a segunda, chamada de analitica, As sentencas sintéticas s6 podem ser comprovadas recorrendo-se a experi- Encia; precisam ser testadas, comprovadas com dados empfricos, hist6- Ticos e/ou estatisticos. Nada diz a priori que o PIB brasileiro tenha de ser maior que o argentino em determinado ano; s6 dados podem comprovar ou naio; nao € verdade necessdria nem universal, tanto que em outro ano, no passado ou no futuro, pode perfeitamente ocorrer o contrario. J40 fato de as curvas de indiferenga nunca se cruzarem independe da experiéncia ¢ da comprovagiio empfrica, é uma necessidade légica, decorrente de axiomas € pressupostos, embutida em sua propria definic&o. De fato, se as Curvas se cruzarem, entio nao sfo “de indiferenga”, ferindo claramente os pilares em que a dedugdo esta assentada (dentre os quais, a racionali- dade do consumidor). A rigor, s6 sentengas como estas sao reconhecidas pelo racionalismo como verdadeiras, A pretensio de formular sentengas universalmente validas acom- panha a Economia desde seus primeiros tedricos. Esta fascinagao pelo racionalismo certamente vincula-se apologia da raz%io como fonte do conhecimento apregoada pelo movimento Iluminista, contexto em que 29 emergem a fisiocracia francesa ¢ a economia classica inglesa. Mas ¢ in- teressante notar que a recorréncia a dados empiricos, hist6ricos ou esta- tisticos, geralmente também foi uma constante entre os economistas (com a possivel excecio de Ricardo), numa coexisténcia entre pretensGes ra- cionalistas e fundamentacao empirica. Os fisiocratas, por exemplo, de- fendiam a existéncia de uma ordem natural necesséria e universal, ja que divina, mas também foram os precursores da contabilidade social: a medigao do produto liquido era uma decorréncia empirica da construgio tedrica. Smith buscou na natureza humana a fundamentagao das leis eco- némicas, em conceitos como auto-interesse ¢ simpatia; a pretensao de encontrar causas universais que fundamentassem a riqueza das nagdes coexiste com uma engenhosa argumentagao fortemente influenciada pelo empirismo inglés (Hobbes, Locke, Bacon, Hume). Ja Ricardo, como se mencionou, foi dentre os economistas classicos o mais proximo do raci- onalismo tipico; seus “Princfpios” diferem radicalmente das principais obras econdmicas anteriores, j4 que praticamente ignora dados estatisti- cos, quase no cita fatos histGricos ou contemporaneos nem procura fun- damentaciio empirica; trata-se do “mundo do modelo”, do “suponhamos que”, firmemente assentado na idéia de que ciéncia é abstragio. Oempirismo, em suas rafzes gregas, apareceu associado, em me- nor ou maior grau, ao probabilismo ¢ ao sensualismo. Sexto Empiri- co(Ila.C.), autor de Contra matematicos e Contra dogmadticos, étido como um de seus mais expressivos precursores. Também dentre es- tes se deve menclonar Epicuro, para quem o conhecimento nao repou- sava na razdio, mas nas sensagGes. Nao sendo decorrente de necessi- - dade légica ou universal, o conhecimento depende da observacio & da experiéncia; nada chega & razdo sem que passe pelos sentidos. Mais que certeza da verdade, tem-se que o conhecimento € provavel, im- pondo uma constante busca, sempre passfvel de aperfeigoamento. Assim, 0 probabilismo substitui a verdade universal e, em vers6es mais radicais, pode chegar ao ceticismo, j4 que 0 conhecimento dependera de infinidade de casos possiveis, de infinitas observagées, de fontes inesgotaveis de pesquisa, nas quais sempre haverd o novo e a possi- pilidade do inusitado, bem como a multiplicidade de enfoques, de preconceitos e “erros” ¢ de “distorgées” do proprio sujeito, Desta for ma, ceticismo e empirismo aproximam-se, embora isto no signifi- que que dogmatismo e racionalismo tenham lagos estreitos. 30 Em matéria de Economia, o empirismo foi reivindicado por Mal- shus em suas criticas a Ricardo ¢, como jé foi mencionado, teve sua expressfo mais acabada em alguns membros da Escola Histérica Ale- ma. Entretanto, a pretensao de procurar fundamentos empiricos as te- ‘orias econémicas, jé presente na fisiocracia, perpassa as diversas es- colas econémicas desde 0 século 19. Como a Economia é a ciéncia social cujas varidveis mais se prestam & quantificacao, a mensuragio nao € apenas um problema te6rico, restrito ao meio académico, mas empirico, presente no cotidiano dos profissionais que atuam em em- presas, sindicatos e instituigGes ptblicas. Mas é preciso que se distinga claramente o empirismo cléssico (e radical), que propoe que o conhecimento provém fundamentalmente da observaciio e da experiéncia, com a simples recorréncia a dados empiricos para ilustrar teorias, exemplificar ou mesmo tentar “eviden- ciar” proposigdes tidas como hipéteses ou leis. Na verdade, poucos economistas podem ser arrolados dentro do primeiro caso, enquanto que a grande maioria ajuda a ilustrar o dltimo. Deixando de lado a tra- digao marxista que propde uma interacdo entre a razio e a experién- cia como fonte do conhecimento, com base na dialética hegeliana, e que constitui um caso & parte, com uma epistemologia prépria, pode- se dizer na atualidade convivem num mesmo autor teorias propostas como universais e com alto grau de abstragdo com o empirismo—nao havendo neste aspecto diferengas significativas entre os grandes ap- proachs contemporaneos que dividem os economistas neoclassicos, keynesianos, neo-riocardianos e schumpeterianos. 5. Concluséo Conquanto, por razdes didaticas, tenham-se apresentado as con- trovérsias utilizando-se, como recurso de exposi¢‘io, polaridades, faz se necessdério mencionar que varios sao os autores que procuraram mediar 0 debate, procurando alternativas “intermedidrias”, seja no campo filosfico ou em Economia.' 2 Os artigos que seguem nesta obra aprofundam o debate em diversas comtentes © autores, de maneira que aqui s6 hd uma breve referéncia a alguns desdobramentos da conuovérsia. 31 Walras, por exemplo, apercebendo-se do problema, procurou construir uma supera¢ao do debate entre empirismo e racionalismo ao retomar a distingao de Stuart Mill entre ciéncia econémica e arte econémica, aperfeigoando-a (1983), Soba influéncia do positivismo, Walras entendia no haver por que distinguir apenas a teoria de sua aplicagio, como procedera Mill. mas também claramente definir os campos da ciéncia positiva e do conhecimento normativo. Assim, a teoria econémica, ou economia positiva, deveria preocupar-se com “o que €”, estabelecendo proposigdes no modo indicativo, sem juizos de valor. A doutrina econémica, ou economia normativa, ao contrario, falaria no modo imperativo, compreenderia jufzos de valor e prefe- réncias; nesta area a metaffsica era admitida, bem como proposigdes nao testdveis, onde a cultura, a fé e a ideologia expressavam-se. JA em sua ago pritica — a “arte”, a politica econdmica -, 0 economista langaria mio tanto da economia positiva como da normativa; desta forma, sua agao no estaria isenta de juizos de valor, mas a teoria eco- némica, como ciéncia, sim. A teoria pura, fruto do racionalismo, apon- tava para leis universais e necessdrias; mas, em sua aplicagdo, conta- va a experiéncia, o conhecimento empirico e o interesse. Walras sin- tetizou seu ponto de vista ao afirmar que os critérios da ciéncia, da arte e da moral eram respectivamente “o verdadeiro, 0 util ou 0 inte- resse ¢ 0 bem ou a justia” (1983, p. 17). Jéo marxismo pode também ser visto como uma proposta de superagao da controvérsia entre racionalismo e empirismo, pois nele ambos fazem parte do processo do conhecimento. Assim, como fica ” visivel na leitura de O capital, capitulos te6ricos, com alto grau de abstragio, sfio alternados com capitulos histéricos, numa seqiiéncia metodolégica intencionalmente estruturada. Para Marx, sempre 0 con- creto € 0 ponto de partida do processo de conhecimento, e € a praxis que 0 incita. Mas, ao contrério do positivismo (pelo menos em suas versdes ultra-empiristas), este concreto é cadtico, enganador, reino da alienacao e do fetichismo. Para ultrapassé-lo, precisa-se dar um salto — a abstragiio—, como que para dar ordem a este caos. Aqui entraria a azo, 0 conhecimento teérico (e até, se assim se preferir dizer, os modelos e tipos ideais). Mas, ao contrario dos dedutivistas, como Ri- cardo, ou de autores como Max Weber, em que o conhecimento cien- tifico se concluiria no momento da abstragfio, com a construgtio de 32 pos ideais, em Marx dever-se-ia voltar ao concreto para, historica- mente, mostrar-se como estes sfio materializados. O fundamento para este procedimento tem suas origens na ontologia de Arist6teles, com 2 distingo entre esséncia e aparéncia. A aparéncia nao revela de ime- Giato a esséncia, de modo que se faz necessério ir além dela com um movimento do pensamento; a aparéncia é um ponto de partida neces-* sario, mas insuficiente, porque s6 se revela parcialmente, de forma fragmentada ou até invertida. Portanto, ndo ha conhecimento sem abstracao, sem a tentativa de separar o essencial do acess6rio, 0 que $0 pode ser feito por meio de um ato da razio. Finalmente, outra tentativa de Superagdo, com rafzes no século 19, embora mais desenvolvida no século 20, reside na metodologia que busca um entrosamento entre a teoria e os dados através da testa- gem, com técnicas estatisticas e econométricas. Nesta Proposta, ao contrério da dialética marxista, a teoria continua como um momento separado de sua testagem; um é 0 momento da construgao teérica, do modelo, da abstra¢ao; outro € sua aplicac&o, a verificagio se o mode- lo apropria-se para ajudar para conhecer determinado objeto, se suas relagGes funcionais e/ou previsdes podem ser aceitas, total ou parci- almente, ou pelo menos nao rejeitadas. Os dois momentos podem es- tar—e geralmente esto — em pesquisas diferentes e ocupam pesqui- sadores que nao so os mesmos. A diferenga entre ciéncia “pura” e “aplicada” tem todo sentido dentro desta concepgao que, embora re- conhega a importéncia tanto da razdo como da experiéncia como fontes do conhecimento, nao esgota as controvérsias epistemolégicas rela- tivas a como ambas interagem ou podem entrosar-se na busca do co- nhecimento, bem como ao papel ¢ a importancia do sujeito e do obje- to em sua consecugao. Referéncias bibliograficas BIANCHI, Ana M. A Pré-histéria da Economia. Sao Paulo, Hucitec, 1988. BLAUG, H. The Methodology of Economics, or How Economists Explain. Cam- bridge, Cambridge University Press, 1980. CALDWELL, Bruce J. Beyond Positivism, Economic Methodology in the Twen- uleth Century. London, George Allen & Unwin Publishers Lid., 1984, 33 CHATELET, Frang: to, Zahar, 1981. ___.. Histéria da Filosofia; 0 Numinismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Socioldgico. 6.ed. io Paulo, Cia Bditora Nacional, 1974, FEO, Ricardo L. 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No Brasil ganhou rapidamente notorieda- de um texto de Pérsio Arida, A histéria do pensamento econdmico como teoriae retorica, difundido a partir de 1983 por meio de repro- dugées espontineas de um texto para discusstio da PUC/RJ (Arida, 1991). Recebeu crescente divulgagaio nesse pais, ademais, as idéias de McCloskey, originadas inicialmente no artigo The rhetoric of eco- nomics, 0 qual foi publicado na revista Journal of Economic Litera- ture, também em 1983 (McCloskey, 1983). Para efeito do artigo que aqui vai, podemos caracterizar 0 pés- maodernismo por dois pressupostos centrais que seriam vélidos em qual- quer campo do saber, inclusive em Economia Politica. Primeiro, pela suposi¢fio segundo a qual ndo hé uma verdade unfvoca que se pode ir descobrindo por meio da critica dos erros ¢ das contradigdes, para che- gar desse modo a um pensamento objetivo (ainda que falfvel). Em se- gundo lugar, pelo pressuposto de que as linguagens em geral so meios auto-reflexivos, potentes apenas para gerar entendimento entre os ini- Eleutério F. 8. Prado € Professor da USP e bolsista do CNPq. E-mail: eleuter@usp.br. 189 ciados, ¢ nao meios referenciais € relacionais que se abrem para a exte- rioridade, seja para o mundo teal com as suas biparticdes ¢ multiparti- des seja para outras linguagens com as quais compete. Em conseqiién- cia, 0 p6s-modernismo é cético quanto & possibilidade de resolver pen- d€ncias tedricas, de separar a boa da mé teoria, chegando a um conhe- cimento que pode ser considerado verdadeiro. Tendo por referéncia os autores acima citados, vejamos como. essa conclusao se segue dos pressupostos mencionados. Arida, por exemplo, argumentou que controvérsias em Economia nao chegam a qualquer solugao inequivoca ou se resolvem retoricamente; nesse segundo caso, “‘ganha quem tem maior poder de convencer, quem torna as suas idéias mais plausiveis, quem € capaz de formar con- senso em torno de si” (Arida, 1991, p. 30). Fernandez, autor nacio- nal que segue McCloskey, tendo por referéncia as controvérsias en- tre os economistas, sustentou que “‘aquilo que nos persuade é 0 que persuade as pessoas cuja opiniao levamos em conta [...] um econo- mista marxista no se abalard normalmente pelas criticas de seus colegas neoclassicos (e vice-versa), pois estes nfo constituem um tribunal cujas decisdes ele aceite” (Fernandez, 2000, p. 622). Se para © primeiro autor, 0 critério de supremacia vem do “poder de con- vencimento”, para o tiltimo nfo existe qualquer “critério de desem- pate entre conversas”, apenas o desenrolar pluralista de retéricas de convencimento entre pessoas éticas. Ora, tanta sabedoria tem um segredo e este foi desvendado por Jameson: 0 p6s-modernismo em geral, e sua concepedio de ciéncia social em particular. vem a ser a ldgica cultural do capitalismo avan- ado (Jameson, 1984). O retoricismo antes referido reflete, pois, a colonizagdo da ciéncia pela producto de mercadoria na era neolibe- ral (que inclui pelo menos as duas tltimas décadas do século XX).! Justamente quando a relago de capital reassume forga maxima no comando dos destinos da humanidade, quando o poder politico tor- na-se imperial, quando a democracia restringida é contida pelos im- perativos da valotizagdo dos capitais, justamente quando a “ciéncia ? Criticamos exiensamente, em outro texto, a concepgio de cientificidade retérica de Arida (Prado, 1997). Para uma critica mais centrada no retoricismo de McCloskey ver, Paulani (Paulani, 1996) 190 economica” torna-se autista e cada vez mais estéril e dogmatica, ga- nha corpo um discurso segundo o qual “boa ciéncia é boa conversa- Go”, “a retorica pressupoe uma conversa honesta”, etc. Ainda que esse discurso possa ser critico (McCloskey, por exemplo, é uma satirista notivel), ao admitir como existente o que ainda nao pode existir, pra- ticas comunicativas orientadas por interesse em verdade, corregao normativa, etc., plenamente democraticas, ele acaba endossando adulando as formas vigentes de dominagiio. De qualquer modo, circulam no ar reflexos da famosa tese de Kuhn segundo a qual as teorias cient{ficas (paradigmas) so incomen- surdveis entre si. Para esse autor, como se sabe, no existe um proce- dimento sistematico de decisiio — um algoritmo neutro, como ele di- ria — que possa resolver disputas sobre a validade de teorias. Indo do positivismo ao culturalismo, tais disputas se tornam para ele quest6es de razo pratica que se resolvem, em ultima anélise, no plano da lin- -guagem. O processo de deliberagao sobre teorias paradigmiticas ri- vais, que se funda em argumentagio racional, vem a ser constituido nas praticas sociais da comunidade cientifica relevante. Assim, 0 pro- blema do conhecimento é deslocado da relagiio entre 0s sujeitos cog- noscitivos e as coisas concretas para a relagao dos sujeitos entre si, completamente imersos no mundo da linguagem. Ora, se € verdade que nao existe conhecimento sem o meio da linguagem, também é verdade que 0 mundo concreto, seja das coisas naturais, seja das coisas sociais (j4 em si mesmas simbdlicas, portan- to), € 0 ponto de partida e o ponto de chegada do conhecimento. E, pois, na relacdo constantemente renovada entre os homens ¢ as coi- sas, num espaco aberto de possibilidades (necessidades e contingén- cias), acompanhando a flecha do tempo histérico, que se coloca 0 pro- blema do conhecimento. Af, nessa relagéo que muitos denominam praxis, os homens se exteriorizam e o mundo real é interiorizado. Se o pensamento do homem é capaz de chegar a verdades objetivas, como disse Marx na segunda tese contra Feuerbach, nao é questao teérica mas de pratica conereta (Marx, 1978, p. 51). O homem, pois, nfio esté aprisionado na trama da linguagem e das tradigGes culturais; ele tem constantemente de enfrentar o mundo conereto, experimentando a critica irrevogavel da pratica. Os cientis- tas, por outro lado, nfo convivem de fato numa comunidade de pes- 191 soas puras, simplesmente honestas, que empregam a linguagem de um modo comunicativo visando fazer a verdade resplandecer, para o bem de todos. Algo como isso vem a ser apenas um pressuposto necessé- tio e no elimindvel, que Habermas chama de “comunidade ideal”, ¢ que é negado pelo modo institucionalizado de produzir conhecimen- to nas diversas esferas da ciéncia. Sob tal pressuposto e, por isso mes- mo, contraditoriamente, os cientistas participam e servem de fatoem instituigdes de uma sociedade de classes, baseada na exploracdo do homem pelo homem e que se sustenta, no plano do pensamento, por meio de ideologias que escondem e legitimam a dominagao. Os economistas, em particular, nao escapam dessa contradi¢ao seja apelando para a existéncia de um “algoritmo neutro” que venha garantir cientificidade para aquilo que julgam que sabem, seja ape- lando para o operar astucioso de uma “raz prética” que trabalha fro- nética e retoricamente na comunidade dos estudiosos, algo confusos sobre aquilo que € verdade em seu campo de conhecimento, mas que encarmam bem-aventurados em Ultima andlise. A verdade sé pode aparecer num campo do saber como a Economia Politica, vulgarmente. chamada de Economia, por meio de uma investigacaio que va além das aparéncias € nao recuse a critica de ideologias.? Esse tipo de pes- quisa enfrenta as contradigées reais, descobre e expde as contradigdes discursivas ¢ ressalta ironicamente as criticas da prépria prati Entretanto, mesmo assim, niio se pode garantir que a verdade ve- nha a dominar nessa esfera; nao se pode garantir que um persistente obscurantismo nao venha a prevalecer nesse campo do conhecimento. Esta-se bem difundida af uma aspiragao secreta por falta de transparén- cia, por outro Jado, vale ressaltar que a critica de ideologia nfo tem dono. 2. Base de comparacgao O objetivo desta nota é dar substancia 4 compreensio metodo- l6gica acima exposta, apresentando um exercicio critico de compa- 2 No fluxo da contracorrente, vem a ser ingénuo - ou petigao de principio - querer justifi- ‘car o pensamento critico afirmando o seu carter ontolégico ou o carater dialético do real (Duayer € outros, 2001). 192 rag&o de teorias econdmicas, o qual é construfdo sobre uma matriz de contabilidade social.’ A partir desse retrato sintético e simpli! cado do sistema econémico, pretendemos contrapor concepgdes polares de teoria econémica para mostrar em que diferem e como 0 apresentam. Supomos que as teorias econémicas aceitam esse retrato como uma representagao correta dos resultados de um sistema eco- ndémico, num momento do tempo. O ponto central vem a ser enten- der como as teorias enfrentam os desbalanceamentos inerentes ao funcionamento complexo e descentralizado da economia mercantil capitalista. Num dos pélos, estard a teoria neoclassica e, no outro, estarao as teorias econdmicas heterodoxas que enfrentam, de algum. modo, o desafio de incorporar a flecha do tempo (Marx, Keynes, Schumpeter, etc.). Nas colunas verticais dessa matriz aparecem explicitamente as familias e as firmas, com a omissao do setor bancério, do governo e do setor externo. Nas linhas horizontais dessa matriz aparecem as categorias basicas que originam receitas e despesas dessas duas clas- ses de instituigSes inerentes 4 economia capitalista. A matriz esté cons- trufda numa perspectiva ex-ante de tal modo que € preciso considerar que os fluxos de fundos podem representar valores planejados (indi- cados pelo superescrito “p”) ou valores esperados (indicados pelo superescrito “e”). Nessa matriz os ingressos e os dispéndios estao expressos mediante os sinais positivos € negativos, respectivamente. Dado que os valores planejados podem nao coincidir com os valores esperados, as somas horizontais apresentam hiatos que representam desbalanceamentos. Na construgao do quadro, C é consumo, 7 € investimento, X € produto bruto, NV é 0 emprego de forca de trabalho, L é 0 montanie de empréstimo, w € 0 salario por unidade de forca de trabalho; d vem a ser a remuneracao unitéria dos tftulos e Ey, finalmente, representa 0 valor total desses titulos. 3 A matriz apresentada foi retirada de textos de Moudud (1998, 1999). 193 Tamnflas |_Finmae Tinios evant Consumo -~C 1c CHC Investment =P Ter Sabot a Calne) Salis wt |-war w (NF =?) Dividendos sobre titlos de propiedade | OES | 5 Ef 5 (Es - Ef) | (X* =X?) + (NT NP) Subvota Hee een +5 - EH) Juros de empréstimos “iL aL Veriagao no valor dos titulos de propriedad=|~A Ef | A Ee, AES-A ER ‘Var. no valor dos empstimos contatados Arr AL Antes de prosseguir, algumas observagdes sao necessarias para 0 bom entendimento dessa matriz: a) hd um setor bancério implicito onde as empresas € apenas as empresas podem tomar empréstimos (os em- préstimos das empresas, umas para as outras, foram desprezados); b) Os hiatos da tiltima coluna podem ser interpretados como excessos de quantidade ofertada: aquilo que as firmas planejam vender, por exem- plo, pode ser mais do que os consumidores esperam comprar; ¢) os h- cros se apresentam ai como dividendos sobre titulos representativos do capital das firmas, como pagamento de juros e como lucros nao distri- buidos (o que acaba se expressando como redugtio no valor dos emprés- timos ou como variacio no valor dos titulos de propriedade); d) a pou- panga € constituida por lucros nao distribuidos das empresas, vendas de titulos de propriedade e por empréstimos bancérios: ¢) as relagdes das famflias com o sctor bancdrio foram desprezadas. Essa matriz de contabilidade social € representativa de uma eco- nomia constituida somente por proprietérios privados, a qual vincula, por isso, as restrigdes orgamentdrias das familias e das firmas. No que se refere ao consumo, investimento, salarios, dividendos e valor dos ti- tulos, os destinos dos fundos esto coerentemente relacionados como as suas fontes. Entretanto, as fontes dos fluxos de crédito nao apare- cem af, j4 que 0 setor bancétio nao foi introduzido explicitamente. As- sim, apenas se pode supor que a taxa de juros sobre os empréstimos bancdrios vem a ser determinada de modo completamente ex6geno. 194 A matriz de contabilidade social ex-ante representa um siste- ma econémico num determinado momento do tempo. Apresenga de hiatos € generalizada j4 que se supde que esse sistema econdmico nao funciona sem desequilibrios inerentes. De fato, ela apresenta 0 resultado agregado de um sistema econdmico que pode ser caracte- tizado, de inicio, como um sistema complexo. Esse sistema é for- mado por unidades heterogéneas que se conectam umas as outras de modo também heterogéneo, que operam de modo descentraliza- do e que pulsam na temporalidade histérica. Esses hiatos nao ape- nas, pois, vém a ser uma conseqiiéncia nao elimindvel do funciona- mento do sistema econémico, mas eles fornecem também os sinais a partir dos quais o sistema cconémico funciona. Assim, por exem- plo, cada empresa capitalista est sempre procurando corrigir os proprios excessos de oferta, de capacidade, de endividamento, etc. Oefeito conjunto dessas corregdes em nivel das unidades econdmi- cas engendra a necessidade de novas corregOes, interminavelmen- te; produz, dizendo de outro modo, um funcionamento agregado que apresenta tendéncias, ciclos, rupturas, etc. e que se situa na frontei- ta entre a ordem € 0 caos. 3. O hiato do produto A matriz construfda é especialmente util para analisar os desba- lanceamentos que se originam quando as expectativas das familias e das empresas sao frustradas. Para fazé-lo, é preciso lembrar que qual- quer discrepancia entre a demanda e a oferta agregada se refletiré em mudangas nao desejadas nos estoques da economia+ Seja, entdo, D,a demanda agregada e Q, a oferta agregada no momento t. Indicando 0 investimento nao desejado em estoque por /y, pode-se escrever 0 ex- cesso de demanda £, , no momento t, como +A derivacio que se segue também é baseada em Moudud (1998, 1999), 195) Ou seja, se 0 excesso de demanda for positive num certo mo- mento t, Os estoques cairao abaixo do nivel desejado pelas empresas, de tal modo que haverd uma variaciio inesperada de estoques e esta liltima serd negativa (/,<0). E nesse que ponto que as concepgGes teéricas polares se bifur- cam. A teoria neoclassica enrijecida na segunda metade do século XX simplesmente impée que £, = 0, pois pensa que os pregos, assim como as taxas de juros, so supersensiveis ¢ flexiveis de tal modo que os mercados se ajustam de um modo infinitamente répido. Jé as tearias alternativas sup6em que E, tem uma trajetéria no tempo, podendo convergir ou nao para algum valor. Para ver como se configura esse segundo tipo de teoria econémica, é preciso obter 0 esboco de um modelo alternativo. Eliminando momentaneamente os t's para simplificar, a restri- ¢4o orgamentaria total contida na matriz de contabilidade social fica: -E +w(N°-N?) +8 (£5 -E?)-iL? +(A E}-A ES) +A LF =0 onde £ = -(X" — X?). Suponha-se, agora, que os erros de ex- pectativa sao nulos, exceto no caso do investimento. Como £ = 1 - S$, obtém-se (introduzindo novamente os t’s): E,=1,-S,e Al, -iL,, Como A L, = L, ~ L,.., obtém-se finalmente: E,=1,-S,=1,-(+i 1, Em palavras, supondo que o excesso de demanda agregado emt seja positivo, ele apenas pode se realizar porque ha um aumento at- t6nomo do endividamento conjunto das empresas. Note-se que 0 en- dividamento em t-1 cra igual a L, ;;em t, endogenamente, ele se tran: formaria em (1+ i) L,, (ou seja, seria igual ao principal em t-1 mais 0s juros do periodo). Entretanto, em virtude do excesso de investimen- to sobre a poupanga, o endividamento tornou-se L,; a diferenga ob- 196 servada vem a ser, pois, no caso em tela, um aumento aut6nomo do endividamento das empresas. Desse modo, obteve-se um resultado que mostra como o crédi- to alavanca a producaio: “o excesso de investimento planejado sobre a poupanga dispontvel é alimentado pela injegao Ifquida do crédito bancétio, de tal modo que a oferta monetéria se ajusta endogenamen- te para acomodar as necessidades da acumulagao” (Moudud, 1999). Fica patente, também, como essa alavancagem depende da taxa de juros sobre os empréstimos, que, como se sabe, tem uma relagao in- versa com 0 investimento, podendo ser manipulada pelo governo? Examinemos, agora, tudo isto de um ponto de vista metodolégico. Notemos, de inicio, que nao hé razio alguma para esperar que E, seja sempre igual a zero, conforme t muda. Ao contrario, é de se julgar que esse hiato geralmente venha a ser quase sempre n‘io nulo. ‘Com essa afirmagao, que tem por referéncia o sistema econdmico real, fodos concordam. Entretanto, hé basicamente duas maneiras de tra- tar um desequilibrio em teoria econémica: como algo virtual ou como situacio real. E € isto que faz toda a diferenga. 4. GComparacao de teorias Nessa matriz de contabilidade social, a suposigio de que as fon- tes e 0s usos ex-ante dos fundos nos conjuntos das familias e das em- presas vém a ser internamente consistentes pode ser imposta por meio da suposig&o que a soma das colunas € zero. De outro lado, as linhas somam zero quando se admite que os valores esperados que envol- vem relagées entre os setores so compativeis. Por exemplo, € possi- vel supor, como foi feito anteriormente, que 0 pagamento planejado de salarios pelas empresas venha a ser exatamente igual aos salatios esperados pelos trabalhadores que encabegam as familias. E eviden- te, também, que se pode admitir no plano da andlise que certos hiatos 7 Em particular, a tiltima equagao apresentada é consistente com uma visto do funciona- mento do sistema econémico como um proceso ciclico movido endogenamente: 0 ex- ‘cesso de demanda, na fase ascendente, efetiva-se por meio da expansao do crédito, tran . na fase descendente do ciclo, em excesso de oferta que se torna possivel contrac do crédito. 197 sao nulos. Ainda no plano meramente analitico, é possivel conceber © sistema econémico em estado estacionério, pois se quer expor as condigées de sua reproduciio e se pretende examinar as fontes de pos- sfveis desbalanceamentos (Harris, 1978, 41-44). De uma perspectiva geral, pois, é de se esperar que os desajustes € 0s hiatos mencionados venham a ocorrer constantemente na realida- de. Poderia parecer, entfio, que se deveria considerar os movimentos de desajustamento/ajustamento nao apenas como reais, mas também como inerentes ao modo pelo qual essa economia existe e funciona. Nessa perspectiva seria importante — ¢ mesmo necessirio se é que 0 objetivo consiste na busca de rigor cientifico — manter aberta a possibilidade de considerd-los efetiva e explicitamente no plano da teoria. Ora, é justamente essa possibilidade que é obliterada em geral pelo modo de pensar centrado no estrito balanceamento dos mercados (ma- rket-clearing). Em Economia Politica, vulgarmente chamada de eco- nomiia, esse estilo de pensamento é representado pelo nome genético, de teoria neoclassica.$ Essa perspectiva tedrica adota a suposi¢io de pre- visio perfeita, assumindo desde o principio que os mercados estao em equilfbrio. Ao se concentrar em mercados balanceados, faz com que desaparegam os hiatos reais que o sistema econémico vai criando e su- perando no processo de acumulagao, Em conseqtiéncia, os desbalan- ceamentos possfveis passam a ser tratados como se fossem puramente virtuais. Justifjcando essa decisao metodolégica, encontra-se uma vi- sao sobre o modo de funcionamento do sistema econdmico: as unida- des desse sistema, familias e empresas, sfio plenamente racionais, uti- Jizam corretamente a informagao disponivel e otimizam objetivos bem definidos; o proprio sistema fomece todas as informagies necessarias para aquelas decisées, ¢ os pregos sao flexiveis de tal modo que as situa- Ges de equilibrio so atingidas muito rapidamente.” © Que na verdade é um conjunto algo difuso de teorias aparentadas ¢ que se unificam, hoje, por privilegiar o emprego de métodos matematicos de otimizagio, pela adogao da suposigtio de que os agentes sdo plenamente racionais e bem informades ¢ por centrar @ analise ccondmica no equilibrio (ena estitica comparativa). Faz parte da teoria neoclas- sica os desenvolvimentos que violam uma ou mais de suas hipdteses basicas, com o fim de verificar as conseqiiéncias légicas dessa violagao. 7 Note-se que essa compreensao nao requer logicemente a decisiio de pensar a economia em equilibrio. 198 Hayek, jd em 1936, considerou esse modo de pensar como tau- toldgico, associando-o a decisao prévia, que despontara na teoria eco- némica de Walras principalmente, de transformar a Economia Politi- canum ramo de aplicacao da andlise matemética pura e da légica de- dutiva. “A previsio perfeita” — disse — “nfo € ent&o, como tem sido entendido, uma precondigao que deve existir para que 0 equilfbrio seja atingido. Ao invés, 6 aquilo que define caracteristicamente 0 estado de equilibrio” (Hayek, 1948, p. 42). Ou seja, em outras palavras, ao invés de mostrar que o sistema econ6mico tende para 0 equilibrio, essa abordagem, devido a uma opeiio de procedimento, escolhe analisé-lo em equilfbrio, assumindo aquilo que deveria mostrar e cometendo uma peticao de prinefpio.* Essa escolha metodolégica, como ressaltou Joan Robinson, im- plica tratar o tempo como mais uma dimensto espacial, como se este tivesse a propriedade da reversibilidade. Ao adoté-la, retira-se comple- tamente 0 estudo dos fendmenos econGmicos da historicidade para co- locd-lo num espago de possibilidades meramente ldgico formal (Robin- son, 1978). Ainda que a teoria econdmica em geral tenha que colocar sempre a hist6ria entre parénteses, essa op¢do tem uma conseqiiéncia particularmente deletéria. Ao abolir a flecha do tempo, ela elimina a possibilidade de pensar o movimento de constituigao por meio do qual os fendmenos econdmicos, os pregos, por exemplo, emergem. E por isso que uma teoria oposta a teoria neoclassica tem de se concentrar nas situacSes ern que ha desbalanceamento de mercados. Mais do que isso, ela tem de visar aos processos que ocorrem fora de algum equilibrio ou mesmo fora de qualquer equilibrio, pois € desse modo que se pode colocar a andlise econdmica em congruéncia com a historia e se pode fazer reaparecer aquilo que move 0s processos. Nesse tipo alternativo de teoria é preciso prestar atengfio aos meca- nismos de realimentagao e as instabilidades locais por eles geradas ® A seguinte citagdo de Hayek é bem enfética: “Nas apresentacdes usuais da andlise de equilibrio, tudo geralmente se passa como se essas questées sobre como 0 equilibrio é atingido estivessem ja resolvidas. Mas, olhando mais de perto, torna-se logo evidente que essas demonstracdes aparentes sao nao mais do que provas aparentes do que fora jé assumido, O recurso geralmente adotado para chegar a esse fim é a suposigio de um mercado perfeito em que cada evento se torna instantancamente conhecido por todos os pante” Hayek, 1948, p. 45). 199 No plano da anéllise poderd haver convergéncia ao equilfbrio, mas isto serd sempre entendido como irrelevante frente a temporalidade real. © caminho que a economia percorre, ademais, pode estar sujeito a ocorréncias fortuitas que tornem os estados futuros dependentes da propria trajetéria. As construgGes teéricas podem contemplar a exis- téncia de miltiplos equilibrios, alguns do quais espelham situagoes de falta de coordenacao e ineficiéncia. Por outro lado, os processos analisados podem ser guiados por um princfpio de desenvolvimento infinito, nao apresentando qualquer ponto estacionario. Tal modo alternativo de fazer teoria baseia-se imediatamente no comportamento de agentes econémicos que agem de modo adaptati- yo e que sao parcialmente cegos em relagiio ao futuro e em relagio ao funcionamento do sistema econdmico como um todo. O ambiente em que se movem € entendido como complexo, de tal modo que o pro- prio funcionamento do sistema seja uma fonte de incertezas, as quais, em conseqiéncia, nfo podem ser reduzidas a probabilidades. O co- nhecimento dos agentes, assim como as informagdes dispontveis, so sempre parciais, o que faz com eles sejam incapazes de calcular to- das as conseqiiéncias de suas agdes, ou seja, de qualquer cdlculo de otimizacao. A racionalidade instrumental, pois, € limitada e se faz presente apenas em proceso, corrigindo-se permanentemente diante de suas préprias falhas ou de eventos externos inesperados. As técni- cas matemiaticas de otimizagao, pois, nao podem ser utilizadas nesse modo alternativo de fazer teoria econémica. Diferentemente, ele ape- nas pode se valer de técnicas capazes de apresentar processos seqiien- ciais ou processos evolucionari Esse modo de teorizar em Economia Politica tem varias fontes, das quais duas s4o aqui mencionadas. Uma delas pode ser chamada genericamente de keynesiana e se caracteriza por pensar o sistema econémico ex-ante em desequilibrio, mas ex-post em equilfbrio. Na economia keynesiana raciocina-se em geral num horizonte curto de tempo, supondo que os desequilibrios sao relativamente duriveis podem resistir 4s formas espontaneas de ajustamentos inerentes ao sistema econ6mico. De modo crucial, julga-se af que os pregos nao s&io capazes de equilibrar os mercados instantaneamente. Apesar dis- so, mesmo quando o ajustamento necessério é lento, acredita-se que isto possa ocorrer espontaneamente se passar um tempo suficiente- 200 mente (ou intoleravelmente) grande; de qualquer modo, ele também pode acontecer por meio de intervengao do governo que abrevia as agruras do presente. Os agentes sdo entendidos como seres que bus- cam objetivos préprios, os quais em geral podem nfo ser consisten- tes entre si. O seu comportamento vem a estar orientado por proces- sos cognitivos limitados que enfrentam auséncias e falhas de infor- ; eles agem, pois, em fungao de expectativas que se encontram marcadas pela incerieza, com base em regras praticas ou convengies. De qualquer modo, a andlise econémica continua centrada, tal como na teoria neoclassica, no individuo. A segunda fonte alternativa & teoria neoclassica é mais radical, pois pensa o sistema econdmico em estado de desbalanceamento ex-ante € ex-post. E este é, evidentemente, o caso de Marx.” Este autor, como se sabe, contempla o modo de produgao capitalista em um horizonte lon- go de tempo, explicando o seu movimento histérico como automovi- miento guiado pela atuagao do capital (que sempre existe como milti- plos capitais), o qual conceitua como uma substincia sujeito, socialmen- te constituida, objetiva e fantasmagérica. O capital €, pois, valor que se valoriza, sujeito automatico. Os agentes aparecem na obra desse autor como suportes da relago de capital, ou seja, de um lado, como capita- lista ou proprietério privado dos meios de produgio e, do outro, como trabalhador ou proprietrio da forga de trabalho. Para Marx, as contradigdes” so as fontes do evolver histérico do modo de produgao. Ora, os resultados econdmicos aparentes dessas contradigdes se expressam na linguagem da matriz de contabilidade social como hiatos, Um resultado central associado 4 matriz apresenta- da anteriormente vem a ser o “desequilibrio dual” que relaciona 0 ex- cesso de demanda na producao de mercadorisis com um desequilfbrio monetério, o qual, af, se configura apenas como variago no estoque do endividamento bancério. Em sua forma especifica acima exposta, © teoria econémica de Marx é uma teoria critica: nfo se resume, pois, a explanaco dos modos de funcionamento da economia mercantil capitalista. "© Para Marx, contradigdes so unidades de contrérios realmente existentes. Por exem- plo, a mercadoria é unidade do valor (cuja substincia € o trabalho abstrato) ¢ do valor de uso; a sociedade civil burguesa é a unidade da classe trabalhadora e da burguesia, etc. E por meio das contradigées que ele pode pensar o sistema econémico como algo que tei automovimento. 201 do angulo de Marx, esse desequilibrio dual é uma expressao particular da contradi¢&o inerente ao capitalismo entre a acumulagao (o capital como um fimem si mesmo) ¢ a produgao/repartigéio (0 funcionamento da economia tem de atender a reproducdo da prépria sociedade)."! 4. Fechamento Em virtude de seu carater tautolégico, a teoria neoclassica néo tem contetido empirico e nfo pode, como ressaltou Hayek, ser verifi- cada, comprovada ou falseada.!? Segundo os critérios de cientificida- de que muitos economistas neoclissicos dizem que adotam, pois, nfo se pode dizer sequer que ela seja cientffica, Para empreg4-la em tra- balhos empiricos, muitos de tais economistas saltam de um mundo. para outro, sem perceber o abismo intransponfvel que os separa: trans- formam as proposigdes analiticas que derivam em proposig&es sinté- ticas por meio da introdugao ad hoc da passagem do tempo. A teoria keynesiana, por outro lado, distingue-se por considerar um ambiente econdémico em que a formagio de expectativas sobre o futuro € dificultada pela ignorncia e pela incerteza nfo prababilistica. Impede- se, assim, de pensar que os processos econémicos passam por “ajusta- "' Essa contradigio,,como s¢ sabe, é uma expressio da contradicao basica entre valor e valor de uso, instalada jana mercadoria, Nas palavras de Mars, “Imaginemos toda a so- ciedade composta apenas por capitalistas industriais e trabalhadores assalariados, Abs” traiamos, além disso, as flutuagdes de pregos, que impedem grandes porgdes do capital global de se repor em suas proporgdies médias, ¢ que, em virtude da interdependéncia geral de toda 0 processa de reprodugtio, como nomeadiamente o crédito 0 desenvolve, tém sempre de provocar paralisagdes temporarias gerais. Abstraiamos igualmente os negécios improdutivos e as transa¢des especulativas, que o sistem de crédito estimula, Entio, uma crise somente seria explic4vel por desproporeao da producdo nos diversos ramos € por uma desproporedo do consumo dos préprios capitalistas para cam sua acu- mulagio. Mas, como as coisas sAo, a reposicao dos capitais investidos na producao de- pende, em grande parte, da capacidade de consumo das classes nao produtivas; enquan- fo a capacidade de consumo dos trabalhadores est limitada em parte pelas leis de salé- rio, em parte pela circunstincia de sé serem empregados enquanto puderem ser empre- gados com lucro para a classe capitalista. A razio dhtima de todas as crises reais 6 sem- prea pobreza e a resttigao ao consumo das massas em face do impulso da producto ca- Pitalista a desenvolver as forcas produtivas como se apenas a capacidade absoluta de consumo da sociedade constituisse scu limite” (Marx, 1983, p. 24). ® Ver sobre isso, também, Caldwell (2000). 202 mentos infinitamente répidos"" ¢ isto pOe a andlise econémica em con- sondncia coma passagem do tempo, com a tempotalidade em flecha. Eis, porém, que tal ambiente € caracteristico do capitalismo, mas nao da his- téria em geral. Em conseqiiéncia, o éculo-de-ver-de-perto keynesiano tequer, como complemento, para fazer sentido, a visfio do capitalismo como um processo histérico inerentemente desequilibrado. E apenas en- xergando essa economia mercantil como um processo anairquico de acu- mulagao de capital, incongruente quase sempre com a reparticao entre as classes sociais, que a incerteza deixa de ser algo ad hoc. Procuramos mostrar, de maneira abreviada, que a comparagio critica de teorias ndo apenas pode ser feita— 0 que vem a ser de certo modo ébvio - mas que essa comparagao pode ser feita com argumen- tos orientados para uma decisdo un{voca, na forma de urna aposta ou verdade que eventualmente pode nao ser verdade. Isto nfo implica acre- ditar que € possivel chegar a qualquer consenso em Economia Politica. “Mesmo havendo, por exemplo, evidéncias tedricas inequfvocas de que a teoria do equilibrio geral (suporte abstrato de todas as construgGes neocléssicas) fracassou inteiramente (Ingrao e Israel, 1990 e Sorome- nho, 2000), esta teoria se recusa a morrer (Ackerman, 2002). Aevidén- cia tem mostrado que ela continua a receber suporte porque parece aten- derauma necessidade de fundamentago — fornecendo, assim, uma tl- tima linha de defesa contra teoria do valor trabalho" — qual seja, a ne- cessidade de dar uma resposta ao problema da formagao dos pregos que se mantenha estritamente ao nivel das transagdes mercantis. °S A expresso é evidentemente contraditéria, mas © pensamento “rigoroso” neoclassico detesta as contradigses reais, mas ama as contradigdes vulgares. O exemplo mais gritan- le vem asero termo “capital fisico” "4 teoria do equilfbrio geral também forneccu um quadro analitico para uma critica. Iebre a teoria do valor de Mars, Por meio da reconstrugao do problema da transforma- gio dos valores em pregos em termos de um sistema de equacdes simulténeas, ela deu Suporte & idéia de que havia uma contradigo insoldvel entre a chamada lei do valor a formago dos pregas de produgio. Freeman e Carchedi, entre outros, mostram que essa critica era iluséria. Esses autores mostraram que a teoria do valor de Marx é seqiicncial e indo dualista: seqlencial, “porque zejeita a abordagem por meio de equagées simultane- as” ¢ nao dualista, “porque considera que pregos e valores determinam reciprocamente tuns aos outros numa sucessio de perfodos de produgo e circulagao” (Freeman e Car- chedi, 1996, p. x). Por ter caida nessa armaditha ¢ 1 permanecido por muitos anos, 0 autor dessa nota cometeu no pasado erros de apreciagdio sobre a teoria do valor trabalho de Marx (especialmente em Prado (1996) 203 Referéncias Bibliograficas ACKERMAN, F, Still dead after all these years: interpreting the failure of ge- neral equilibrium theory. In: Journal of Economic Methodalogy, vol. 9 (2), 2002, p. 119-139. ARIDA, P., A histéria do pensamento econémico como teoria e ret6rica. In: Revisdio da crise: metodologia e retorica na histéria do pensamento econémi- co, J. M. Rego (org.). Sao Paulo: Bienal, 1991, p. 1-41. CALDWELL, B., Hayek: Right for the Wrong Reasons? Presidential Address: History of Economic Society. julho de 2000. DUAYER, M. et alii, A Miséria do Instrumentalismo na Tradigao Neoclassica. In; Estudos Econémices, vol. 31 (4), 2001, p. 723-783. FERNANDEZ, R. G, MCCLOSKEY, Maki a Verdade, In: Estudos Econémi- cos, vol. 30 (4), 2000, p. 597-628 FREEMAN, A. e G. 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