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Pat Mattos As abordagens da “sociologia disposicional” e da “interseccionalidade”: articulando uma proposta para os estudos de género Anecessidade de articulagao de distintas categorias de diferenciagdo na anali- se das desigualdades sociais nfo é, de forma alguma, uma novidade, J4 nos ‘anos 70 ¢ 80 ecoavam vozes das mulheres americanas negras denunciando a homogeneizagao da categoria “género” feita pelo movimento feminista. A pro- pésito dos riscos de homogeneizagdo de categorias, Gabriele Winker e Nina Degele (2009: 9) usam como exemplo o caso de um jornal alemao que, a0 tomar as categorias género e raga a priori, divulgou o significado da disputa presidencial americana entre Barack Obama e Hillary Clinton como um emba- te entre representantes de minorias ~“negro contra mulher”. As autoras ressal- tam, com esse exemplo, os autoenganos e reducionismos que esse tipo de pola- rizagio ¢ estagnagio de categorias pode gerar, Nem Obama nem Hillary representam genuinamente os excluidos. Ambos pertencem 4 classe média e, portanto, possuem um volume significative dos capitais econdmico, cultural, social e simb6lico. A novidade proposta por Degele e Winker (2007, 2008 e 2009) é a forrmu- lagio de um coneeito Intersektionalitat(interseccionalidade) que permita arti- ccular a relagao entre agéncia ¢ estrutura, contemplando, de maneira adequada, também o nivel das representagies simbélicas para compreender a dinamica da dominagao social injusta, Ainda que Pierre Bourdieu! (1972: 155; 1980: 88-89; 2009: 87-93), com seu conceito de habitus, tenba conscguido, com éxito, relacionar agéncia e estrutura, ndo teria conseguido levar a cabo uma anélise propriamente interseccional dos trés niveis — das estruturas sociais, das representagdes simbélicas ¢ da identidade ~ ¢ das categorias de diferenciagao ‘que naturalizam, produzem e reproduzem as desigualdades sociais, Winker e Degele afirmam que dais autores - Pierre Bourdiew ¢ Anthony Giddens = ‘obtiveram éxito, cada um a seu moda, em desenvolverteoias ~ Habitustheoriee Theorie dor Serusurierung ~ gue interconectassem os nives da estrtur Socal e daidentidade, da fstruturae da agéncia, No entanto, eles no teriam desenvolvido anslises propriamente imterseccionais (Winker Degele 2008: 70-73), 252 Patricia Mattos Um dos aspects centrais da “abordagem interseccional” diz respeito & necessidade de perceber que as categorias de diferenciagio produzem efeitos distintos, dependendo do contexto analisado. Portanto, a escolha das catego~ rias de diferenciago nos diferentes niveis de anise deve levar em considera- Gio esse aspecto levantado em relagdo aos efeitos revonhecendo sempre que a especificidade histérica e contextual distingue mecanismos que produzem, estabilizam, perpetuam ¢ naturalizam desigualdades soviais por diferentes, Aivisdes categoriais. As formas de investiga as desigualdades sociais eas dis- cximinages nos niveis da estrutura socal, das representagSes simbélicas e da idemtidade sio diferenciadas ¢, até mesmo, diametralmente opostas. A suges- tio de Winker © Degele (2009: 37-53) é que para a investigagio do nivel da estrutura social seja realizada uma redugdo de eategorias a quatro — classe, raga, género e corpo. O intuilo dessa redugao no nivel da estrutura & notar como essas categorias predeterminam, de maneira significativa, 0 acesso 20 mercado de trabalho e 48 posigdes no mercado de trabalho, produzindo e reproduzindo, de distntas manciras, crtéris arbitrariamente construidos de classificagdo ¢ desclassificagio social entre os individuos. Nos niveis da iden- tidade e das representagies simbélicas, por sua vez, & possivel a ampliagio das categorias de diferenciagdo. A ideia bisica do conceito de interscecionalidade que com cle seja possivel explicar como normas, valores, ideologias e dis- cursos, assim como estruturas soviaise identidades,influenciam-se reeiproca mente Dessa maneira, é possivel, segundo afirmam as autoras inspiradas em Pierre Bourdieu, mas refletindo para além de Bourdieu, desenvolver pesqui- sas empiricas que permitam perceber as mudancas resis ocorridas nas socie~ ddades contempordneas partir da andlise das praticas sovias, desvelando, assim, as fontes de legitimagio c justificagao da dominagdo social injusta Com 0 conceito de “violéncia simbélica”,? de Bourdieu, acredito que pode- ‘mos enriquecer essa andlise, Isto é, analisar ndo s6 as formas de violéncia manifestas, reconhecidas pelos agentes sociais em suas relagdes, praticas sociais ¢ institucionais em geral, mas, especificamente, os processos de reprodugio da “violéneia simbélica", que legitimam o livre eurso da domina- «Go social injusta (0 objetivo deste artigo & mostrar os possiveis ganhos teéricos © metodol6- szieos que essa perspectiva interseccional pode proporcionar para os estudos sobre as relagdes de gnero,Intressa-me refletr sobre a possibilidade de arti- ‘© conceito de “violéncia simbélica” & um dos conceitos centrais da tori da pritica de Pierre Bourdieu. Por “violéncia simbélica" compreende-se todo tipo de violencia “suave”, insensvel invsive a suas propras vitimas. (Bourdieu 1999: 7) [As abordagens da “sociologia disposicional” 253 culagdo da “Sociologia disposicional”® de Pierre Bourdieu (2008), que ve! sendo pensada em outros fermos por Berard Lhire (2002, 2004a e 2006) ¢ tem servido de inspiragdo para as pesquisas realizadas por mim durante os altimos anos como pesquisadora do Centro de Pesquisa sobre Desigualdade Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (CEPEDES/UFIF);e a “abor- A sociologa disposcional busca explicar os peasameatos, comportamentos, percep 4g8es esentimentos dos atores socias, de parts a pats, pelo encadeamenta das clos socials passados epresentes que oconstturam “Sob ditegdo de Jessé Soura 5 Disposigbes so entendida como habits, tendencas,inclinagSes, persistentes manci- ras de see * Lahire (2002) afirma que se tomarmos a definiglo de habitus de Boutdiew como um sistema homogéneo de disposes geras, permanentes, sistema transferivel de uma situa- ‘Go i outra, de um dominio de prticas a our, enti cada vez menos agentes serio defini- dos por esse eonceito 254 Patricia Mattos produsdo do habitus, sobre a constituigio de disposigées constitutivas do habi- ‘us. E é exatamente para essa questio que Lahire dirigiu todo o seu olhar. (0 desvelamento das disposigdes/habitos para pensar, agir, julgar e sentir incorporadas 20 corpo norteia todo o escopo da “Sociologia das variagdes indi- vviduais” de Lahire. © habito é entendido como um esquema de agio resultado da repetigdo voluntaria e involuntiria de comportamentos, de priticas relativa- ‘mente anilogas que constituem um sumério de experincias. Ao contririo de Bourdicu, Lahire procura distinguir os habitos pré-reflexivos dos reflexivos, deliberatives, calculados. Ao fazer uma andlise das préticas cotidianas da escrita de lista de compras’, de coisas a fazer, da agenda, dos planos de via- ‘gem, Lahire introduziu a reflexividade no conceito de habitus. Essas priticas de eserita so percebidas por Lahite instrumentos para dar forma ao tempo, constituindo, portanto, excegdes cotidianas repetidas com relagio a um ajuste pré-reflexivo de um habitus a uma situasio, Com isso, Lahire vai defender que é um erro afirmar, como fez Bourdieu, que toda agdo & produto de um senso pritico, pré-reflexivo, nio intencional. “Pensar que as ages humanas se encadeiam umas as outras numa espécie de improvisagao permanente & universalizar um caso possivel e permanecer cego a uma grande parte das priticas” (Lahire 2002: 140). Como Bourdicu construiu a sua teoria da pritica em oposigdo as teorias da agdo “intelectualistas”, que enfatizam a reflexividade e a intencionalidade dos atores sociais, ele nio teria pereebido ue existem diferentes tipos de reflexio, © no somente a crudita, que agem nos diferentes tipos de ago. A proposta de Lahire é construir uma teoria da ago que permita no 6 diferenciar, através da analise empirica, o$ atos cons- cientes, intencionais, dos no conscientes, pré-reflexivos, como também inte- ‘are em seu programa cientifico o estudo das diferentes formas de reflexdo que condicionam distintos tipos de agao. ‘Todo o esforgo de Lahire tem sido refletir sobre os contextos de incorpora- ‘20 e de atualizagao das disposigSes, aperfeigoando, assim, o conceito de dis posigdo, Entretanto, a0 contrario de Bourdieu, Lahire nfo acredita ser possivel perceber nas préticas dos atores sociais comportamentos redutiveis a uma “for ‘mula geradora” ou a um prineipio gerador das priticas sociais, que definem 0 proprio conccito de habitus para Bourdicu, Lahire (2004b: 318) questiona a importincia dada por Bourdieu ao que se pode chamar de “habitus familiar”, 0 {qual seria a base para um sistema de disposigdes bastante coerente ja constitu {do que daria sentido as experiéncias ulteriores dos individuos. Nas sociedades complexas & cada vez mais dificil, na visio de Lahire, reconhecer individuos que possam ser definidos por tal conceito, “A definiga0 Labi (2002: 152. [As abordagens da “sociologia disposicional” 255 de habitus convém melhor para sociedades bastante homogéneas, com exten- so demogrifica relativamente pequena, que oferecem esquemas socializantes bastante estaveis e homogéneos para seus membros” (Lahire, 2004b: 318). [Nas sociedades complexas, nas quais as eriangas conhecem desde muito cedo uma diversidade de contextos socializantes, os patriménios individuais de dis- posigdes raramente so homogéneos e coerentes. E & aqui que Lahire propde a nogio de “ator plural” (Lahire 2002), na qual o ator social & perecbido como produto de processos miltiplos e heterogéneos de socializages, de sumarios de experiéncias miltiplas nem sempre compativeis entre si, Em suas rela « priticas,o ator tera que lidar com isso. Essa situagdo pode cansar-Ihe probl. ‘mas quando as disposigdes se contradizem na pritica, Ou ainda, 0 ator social pode nao perecber essas contradigdes em relagdo as suas disposigaes, ja que, na maioria das vezes, elas s6 se ativam em contextos de praticas limitados ¢ separados entre si (Lahire 2004). ‘A “sociologia das variagées individuais” esta baseada na busca de compre ‘ensio das disposigdes dos agentes sociais que evite o erro de se deduzir pr ‘maturamente uma “visio de mundo” ou um habitus de comportamentos obser- vados em uma cena singular. Para isso, ele sugere que sejam analisados os diversos contextos ou microcontextos de socializagio aos quais os atores socias estdo submetidos. € aqui que parece haver o que poderiamos denominar de uma relagao de “complementaridade” teérica e metodologica entre as abordagens da “sociolo- tia disposicional”, que vem sendo aperfeigoada com a “sociologia das varia- ‘ges individuais”, e a interseccional. Winker e Degele (2009: 73) ndo hesitam ‘em afirmar que 6 conceito de habitus de Bourdieu representa um verdadeiro ‘ganho para a articulagao entre os niveis da estrutura social e da identidade, da relagdo entre agéncia e estrutura. Com esse conceito, ercem as autoras que Bourdieu lana um olhar certeiro para o entrecruzamento dos niveis da estru- tura social e da identidade. Contudo, na visio delas, Bourdieu no teria temati- zado adequadamente o nivel das representagdes simbdlicas, pois feltaria a sua teoria uma explicagao apropriada de como normas, valores, ideologias e dis- ‘cursos infTuenciam tanto as estruturas sociais quanto a constituigao de identi- dades e sio por elas insluenciados Para Bourdieu, qualquer forma de deciso consciente dos atores sociais, ‘vem sempre precedida de uma ndo transparente, inconsciente apreciagio que se realiza através da pritica, a partir da decodificagao, pré-teflexiva dos habi- tus realizada pelos agentes. Com o conceito de habitus como um conjunto de “disposigdes durdveis e transponiveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estraturas estruturantes” (Bourdieu 1972: 155; 2009: 87) que so apreendidas ¢ incorporadas a0 corpo, de forma pré-reflexiva, inconsciente €, por isso mesmo, “automatic,” através de socializagies, Bourdieu traga a 256 Patricia Mattos interrelagdo entre os niveis das estruturas objetivas e cognitivas e a constitui- io de identidades, isto 6, entre estrutura e agéncia. O habitus estabelece a ‘mediagdo entre o sistema invisivel de relagGes estruturadas, que influenciam e ‘modelam as ages dos agentes em suas priticas, ¢ as agdes visiveis dos atores sociais que estruturam as relasdes. As disposigSes sio, para ele, ao mesmo tempo adaptadas as estruturas de poder e também produtoras dessas estrutu- ras, As estruturas cognitivas inscridas no mundo social so incorporadas pelos atores sociais através de suas priticas, Com isso, os atores dispSem de um conhecimento pritico e de esquemas de classificagao social que esto & dispo- sigdo deles sob a forma de representagées simbolicas. Todavia, o nivel das representagdes simbélicas nfo recebeu a devida atengdo de Bourdieu, no pos- suindo, em sua teoria, um lugar proprio. A ordem social estabelece-se no corpo dos individuos, de forma pré-reflexiva, ¢ com isso torna a classificagdo social, ‘em grande medida, também imperceptivel & consciéneia dos individuos. O que Bourdieu nao considera apropriadamente é que as construgdes de identidade dos alores ¢ as representagdes simbélicas estdo entrelagadas entre si, reprodu- Zindo e produzindo estruturas sociais (Winker/Degele 2009: 73). Diferentemente de Lahire que se prope a criticar a teoria do habitus por dentro, isto, a superar as limitagSes da teoria da prética de Bourdieu, Winker € Degele nao questionam 0 potencial explicative do conceito de habitus. Con- tudo, em oposigao a Bourdieu, clas ndo colocam a categoria classe como a categoria principal para predeterminar 0 acesso a bens e recursos materiais e simbélicos escassos nas sociedades modemas, As autoras veem a necessidade de perceber que as categoria de diferenciago produzem efeitos distintos, dependendo do contexto analisado, bem como do nivel de analise, Portanto, a cescolha das categorias de diferenciagio nos diferentes niveis de anilise deve evar em consideragiio esse aspecto levantado em relagiio ds causas e aos efei- tos, reconhecendo sempre que a especificidade historica e contextual distingue ‘mecanismos que produzem, estabilizam, perpetuam e naturalizam desigualda- des sociais por diferentes divisdes eategoriais, Para realizar os cruzamentos interseccionais, Winker e Degele (2009: 63- 97) sugerem como primeiros passos da metodologia que os pesquisadores se concentrem na anilise de cada entrevista, na percepgio a respeito de quais, ccategorias de diferenciagdo podem provocar diferentes formas de clivagens e desigualdades entre os individuos, dependendo do contexto analisado e dos niveis de andlise. O primeiro passo da analise interseccional diz respeito 4 identificagdo das categorias de diferenciagdo que sio apresentadas pelos entre- vistados. Muitas vezes, € possivel notar que algumas declarages dos/(as) entrevistados/(as) dirigem-se no apenas 2 uma categoria de diferenciagao, ‘mas, ao contririo, a varias categorias. S6 depois de se perceber como os ind- vviduos constroem suas narrativas designando e nomeando, muitas vezes de [As abordagens da “sociologia disposicional” 257 maneira fragmentada e imprecisa essas categorias, & que se iniciam as outras anilisesinteseecionais. Por exemplo, a partir da reclamagio de uma imigran- te curda, Frau B, sobre a forma descortése desumana como é tratada pelas ins- tituigdes alemas, inicia-se a anélise dos outros dois niveis ~ o da estrutura social e o das representagées simbélicas (Winker/Degele 2007; 11-15). S6 ‘mais tarde 6 que as autoras fazem as anélises das entrevistas como um todo, agrupando 0s individuos em tipos sociaise realizando novamente os eruza- ‘mentas interscecionais. ‘A “sociologia das variagSes individuais" de Lahire pode enriquecer e refi nar sobremaneira as anilises interseceionais na medida em que pode contri- buir, tanto te6rica quanto metodologicamente, para percepgd0 mais apurada, por parte dos pesquisadores, a respeito dos contextos de incorporagao e atuali- acho das disposigaes individuais, Em outras palavras, pode mostrar 0 aleance explicativo e elucidativo do conceito de habitus (visto como um sistema homogéneo de disposigSes gerais, sistema transferivel de um contexto a outro) ‘como sendo um conceito central para refletr sobre as formas de produgdo ¢ reprodugio de desigualdades sociais. Para aprimorar o conceito de disposigdes ‘de Bourdieu, Lahire, alfm de voltae-se para os diversos eontextos e microcon- textos de sociaizacio dos agentes socias, também desenvolveu uma metodo- logia — sada com sucesso em minhas pesquisas empiricas e pelos demais pes- {quisadores do CEPEDES ~ que permite perceber a dinimiea das estruturas de ‘comportamento para slém da conseiéncia dos entrevistados. ‘Uma das estratégias utilizadas pelos agentes sociais para explicar a moti- vagdo de seus comportamentos € a de construir racionalizagdes para seu com- portamento que, na verdade, nio foram os reais mates de suas ages. Se essa 6 ‘uma estratégia presente nas ages humanas em geral, ela ¢ utilizada com rela- tiva frequéncia especialmente por aqueles que, em fungao das condigdes obj tivas de precariedade material, cultural, moral e existencial, nio podem vis- lumbrar outras formas de vida possiveis, de ser e atuar no mundo, A estratégia 4e fantasiar sobre a sua prépria vida e sobre o seu futuro faz parte do mecanis- ‘mo de defesa desses atores sociais que possuem pouca ou quase nenhuma autonomia de eseolha (Bourdieu, 1979: 69). Ainda que 0s individuos em geral, independentemente de seu posicionamento social, sofram pela ilusio de liber- dade", conforme afirmou Bourdicu, hi individuos que, em virtude de suas pre- ritcado por vérios autores pela énfase de sua teora nas descrigdes det ‘ministas da reprodusio estive. Ands que eam seu eonceto de habitus ele afeme que seis possivel a mudanga de dsposigdes no decorte da trs)etiia individual dos agentes soca, jungdo entre os conceitos de habitus e violncia simbslica no reserva aos agentes sociais ‘um efetivo espaco para a apo criaiva deles para além da reprodugdo. Para uma discussio ppormenorizada Sobre as torias atuais na Franga que tentam superar as deserigSes estavels, 258 Patricia Mattos arias condigdes socioecondmicas,vivenciam em suas priticas sociais com muito mais frequéncia, ¢ sem jamais poder admitr para si mesmos ¢ para os outros a interdigéo, em grande medida, da possibilidade de fazer escolhas, de Ser um suit livee e auténomo, Nam mundo no qual 2 idcologia dominante salientaa possibilidade de escolha, a liberdade para escoler defiir o prépri destino, oreconhecimen- to individual de ser um desss individuos que se limitam a “fazer as escolhas pré-escolhidas” pelas suas condigBes de precarcdade e vulnerabilidade mate- Tiale existencial €, na maioria das vezes, intolerivel E assim que Bourdieu (1979, 2008) explica 0 uso da estratépia de “transformagio de necessidade em virtude® como um recurso recorrente para aquclas pessoas que, tcitac impli- citamente, sabem e sentem, através de suas priticas, que ndo podem sonhar com outros mundos possiveis, como outras formas de aluagio e intervengio rho mundo. Mesmo que a utilizagdo dessa estratégia de “transformasao de necessidade em virude”seja feitapelas pessoas em geral,independentemente de sua classe social, ela & uilzada com grande frequéncia especialmente por aqueclesindividuos que possuem poucas chances de intervengdo no mundo Essa estratgia de “transformagio de necessidade em virtude” foi identificada com frequéncia na pesquisa realizada por mim sobre as postituts e pelos pes- uisadores do CEPEDES sobre a “ale” brasileira (Souza 2009) Para vencet os obsticulos da autoleitimago individual eo reeorente risco de reproduzr, em nome da cigncia¢ com sua chancela, os autoenganos dos pré pros agentes sociis sobre si mesmos, que dio vazdo&reprodugdo da dominagao Socal njusta, € que o métado desenvolvide por Lahire(2004a) parsce ser basta te interessante e vantajoso. Sto realizadas, com uma mesmova pesquisadola, ‘ras entrevistas sucessivas eem profunidade, nas quai &possvel nota, apar- tir das lacunas e contradigdes do discurso, as autolegitimagies ou fintasias sobre 4 sua propria vid, que os agentes constroem para si mesmose para os outros para explicar seu comportamento, seus pensaments esentimentos. Com iso, pode-se tentar superar a ameaga dos pesquisadores de reproduzirem os esquemas de per- cepgio eavaliagio que mantém e peretiam a dominasio social Baseadas em Bourdieu, Winker © Degele (2009: 63) aereditam que uma sociologa eitca das desigualdades socaistenha que, brigatoriamente, reali- zat a artculagao ente teoria © empiria, Com sua “cori da pritica", Bourdieu (1972; 2008) se posiciona decisivamente contrisio a teorias que se desenvol- vvam em fungi de si mesmas, sem nenhuma relagio com as priticas sociais {a reprodusio dialogando “com Bourdieu ¢ contr Bourdieu”, vero texto “A era dos epigo- nos: 2 teoria social pés-bourdieusiana na Franca” in Vandenberghe (2010). Esse texto foi publicado também em inglts no ivr organizado por G. Delany (2006) [As abordagens da “sociologia disposicional” 259 Essa influéncia bourdieusiana é também marcante para Lahire em seu objetivo {de aperfeivoar 0 conceito de disposigdo, Enquanto no nivel da estrutura Win- ker ¢ Degele consideram quatro categorias de diferenciagao — classe, género, raga e corpo” ~nos niveis da identidade e das representagdes simbilicas nio sii estabelecidas previamente as categorias diferenciais a serem objeto da pesquisa. Estas serio contempladas na medida em que os entrevistados as identificarem e as nomearem como tai, O uso e a aticulagio das categorias 4e diferenciagio ~ classe, género, raga ¢ corpo — tém como fim possibilitar 0 ‘entendimento acerca da relevncia dessas categorias com relagdo a0 acesso a0 ‘mercado de trabalho remunerado, & distribuigio desigual de salarios, bem ‘como A reproduo da forea de trabalho a custos os mais favoréveis possiveis. ‘0 sentido das categorias de diferenciagio para as préticas sociais ser elucida- do pela associagao de métodos indutivos e dedutivos de anise Quando as autoras destacam que sero abordadas, nos résniveis, diversas categorias de diferenga, isso nao significa dizer, entretanto, que todas as cate- {Eorias identificadas sejam igualmente relevantes. A importincia das categorias ddepende, de um lado, do objeto de investigacdo e, de outro, do respectivo nivel de investigasio, Essa éa raz para que sejam observadas, na forma de inter- ages €agdes sovais, as eatogorias de diferenciagdo Ii encontraveis, sobretu- dio, em ages rociprocas. Dessa maneira, pode-selocalizar em quais estuturas sociais e contextos simbslicos as praticas sociais esti inseridas, como elas produzem, estabilizam e modifica @ construgio de identidades, de subjetivi- ddades. Naturalmente, a conexdo das categorias se daré de forma diferenciada, 4dependendo de qual nivel de investigagao se encontra em primeiro plano. O vverdadeiro desafio consiste em visualizar as ages reciprocas de diferentes «categorias nos trés niveise colocé-las no centro da anélise. O didlogo ent abordagens de Winker, Degele ¢ Lahire pode ser bastante proficuo para evitar as descriges excessivamente doterministas da reprodugio estavel, ds quais, Bourdieu ¢ criticado por virios autores. Desde 2005, venho desenvolvendo pesquisas empiricas cujo principal interesse tom sido refletir sobre a interrelagdo entre as formas de dominacdo de género e * Os autores e autoras, que normalmente desenvolvem anise interseecionais no nivel, (03/11/2009) — (2008): “Praxcologsch differenzeren. Kin Beitrag zur intrsctionalen Gesellschaft sanalyse", et: Klinger, Cornelia/Knapp, Gudrua Axeli (eds): Uherkreuzungen Fromdiett, Ungeichiet, Diferens. Munster: Verlag Westflsches Darpfboot. — (2009): Inersekionaiat: Zur Analyse soialer Ungleichheiten, Bielefeld: Tran script Verlag BicxsLasen, RolFRADeaActie, ClauiasLowaro, Philp (eds) 2008): Metamorpho- sen des Kapitalismus und seiner Kriik. Wiesbaden: VS Vela. ‘Grooms, Anthony (1994): As consequéncias da modermidade.Sio Paulo: Ed. Unesp. GouDeNsexo, Miran 2004): De pero ninguém é normal: estudos sobre corpo, sexua lidade, género e desvio na cultura brasileira. 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