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LUIZ GUILHERME MARINONI or ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES ¢ Recurso Especial © Reclamagao e Embargos de Divergénc¢ia © Agdo Resciséria © Recurso Repetitivo ¢ Modulacao dos Efeitos Temporais “(.) As Cortes de controle sucum- bem quando se admite que a inter- fs (etd capacidade de ido exato da lei’, mas sibuirlhe significado le- ‘por uma justificativa apro- fficam a essencia de Go es idoneas,!desenvplven tagao, evidenci que as Cortes Supremas tém um tarefa que a jurisdicdo assumiu no Estad6 Constit q fante a interpretacao - ma Norma jurfdica de um texto legal e a juris- faa frutificagao de um Direito adequado a vida social, 0 ST], ao definir 6 sentido do direito federal infraconstitucional, objetiva dace de todos perante o/Direito ¢ nao simplesmente estabelecer um parametro le da legalidade das decis6es. (...) sedimentadas as nogGes quiej¢onferem ao ST) natureza de Corte de Precedentes, sao fisados os temas e institutos que Ife 'sio cottiqueitos, porém a partir de um novo angulo “Visti, marcado pela transformacio da funcio da Corte, Si0 abordados os requisitos consti- ‘Wucionais do recurso especial, o impaeto da nova funcdo da Corte sobre o recurso especial, {0s critérios para a identificagao de um precedente, os embargos de divergéncia como meio de ~ desenvolvimento do diteito no ambitdlinterno do Tribunal, o recurso repetitivo, a reclamacio, 4 agao rescis6ria com base em violacd da interpretacio definida pela Corte e a questo dos efeitos temporais da revogagao de precedente. (...) Olivro nao trata de regras pr eessis muito menos daquelas que estao no Codigo de Proces- 50 Civil de 1973 -, mas digeute 95 fund§mentos te6ricos para a aplicagao dos instrumentos pro- cesstiais do SI}, apostando no seu presepte e futuro enquianto Corte Suprema de Precedentes' (Da Introducao, do Auror,) ISBN il -85-203-4939-7 | INF i$ THOMSON REUTERS” | HS '788520"349397" se rf wt < a < = & a a 5 Wn E oe ° 5 g z s oO z a & ° 76 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES Na primeiraparte do livro deixou-se claro quea Corte de Cassacao,em- brionariamente idealizada paraa tutelado legislador contraa possibilidade de arbitrio do judiciario, evoluiu ~particularmente mediante a teorizacao de Calamandrei — para Corte voltada a revelacdo do exato sentido da lei, em que a uniformidade da interpretacao € meio para o controle da legalidade das decises dos tribunais. Porém, a evolucdo da técnica legislativa, o impacto do constituciona- lismo, a teorizacao da distincdo entre texto enormaeo desenvolvimento da teoria da interpretacao, nao $6 incidiram sobre 0 conceito de direito, como também atribuiram outranaturezaa fungao jurisdicional, que deixou deser, ha muito tempo, ade meramente declarara vontade concreta da lei-como queriam Chiovenda e Calamandrei.! 1. Quando os processualistas classicos sustentam que a sentenca fixa a lei do ¢aso concreto, obviamente nao querem dizer que a sentenga nao ¢ fiel a lei Aue preexiste ao processo, mas apenas que a sentenga, apds 0 proceso ter encerrado ~e produzido o que se chama de coisa julgada material -, vale como lei para as partes. Dizia, por exemplo, Calamandrei, que “a lei abstrata se indi- vidualiza por obra do juiz”. Isso ocorreria apés 0 término do processo, quando a sentenca ndo pudesse mais ser discutida, ocasiao em que nao se admititia mais nem falta de certeza nem conflito sobre a relacao juridica julgada, Bis a ldo do ilustre jurista italiano: “Assim como a lei vale, enquanto estd em vigor, ndo porque corresponda a justica social, senao unicamente pela autoridade de que estd revestida (dura lex sed lex), assim tambem a sentenca, uma vez transitada em julgado, vale néo porque ‘seja justa, senao porque tem, para o caso concreto, a mesma [orca da lei (lex especialis). Em um certo ponto, ja nao é legalmente Possivel examinar se a sentenca corresponde ou nao a lei: a sentenca é a lei, ea let éa que o juiz proclama como tal. Mas com isto ndo se quer dizer quea Passagem a coisa julgada crie o diretto: a sentenca (ou a coisa julgada material ou declaracao de certeza), no sistema da legalidade, tem sempre cardter declarativo, nao criativo do direito”. Frise-se que Calamandrei é adepto da teoria unitaria do ordenamento juridico, sustentando que a lei se individualiza através da Sentenca. Mas, ainda assim, nao nega que a tarefa jurisdicional tenha fungao declaratoria, Aliés, afirma expressamente que “a lei vale, enquanto estd em vigor, nao porque corresponda a. Justica social, sendo unicamente pela autoridade de que esta revestida”, Essa afirmagao de Calamandrei é imprescindtvel para se compreender ¢ demonstrar que a adesdo a teoria unitdria nao representa, por Std, qualquer rompimento como Positivismo cldssico. Deixe-se claro, portanto, due as concepgdes de Carnelutti ¢ Calamandrei, apesar de filiadas a teorie unitaria do ordenamento juridico, nao se desligaram da ideia de que a funcao do juiz esta estritamente subordinada a do legislador, devendo declarar a lei. OSTJ ENQUANTO CORTE sUPREMA | 77 Isso quer dizer que, para se pensar na funcdo do Superior Tribunal de Justica, énecessario ter em conta o significado da transformacao danatureza da jurisdicao a partir do fio condutor que passa pela distincao entre texto enorma e culmina na conjugacao dessa dissociacao com a argumentacao. A concepcao contemporanea de jurisdicéo conduz logicamente a funcio que hoje cabe as Cortes Supremas. Pela mesma razdo que 0 juiz nao se limita a declarar a vontade da lei, a Suprema Corte nao pode ter a funcdo de revelar o exato sentido da let € de controlar a legalidade das decisoes dos tribunais. A funcao do Superior Tribunal de Justica, como sera demonstrado, é a de identificar, entre as varias normas juridicas extratveis do texto legal, aquela que esta de acordo com os valores da sociedade e do Estado, sempre mediante as “melhores razoes”. Em outras palavras, a funcao do Superior Tribunal de Justicga é definir o sentido do direito federal infraconstitucional mediante “razées apropriadas”. Resulta claramente que 0 Judicidrio deixa de estar submetido ao le- gislador, passando a dele ser colaborador para a instituic¢ao de um direito adequado a justa organizacdo social. Nessa dimensao, adecisio do Superior Tribunal de Justica, ao definir o sentido do direito, integra a ordem jutidica vinculante, constituindo “precedente obrigatério”. A Corte passaaser uma Corte de Precedentes, deixando de ser uma corte de correcdo. O seu obje- tivo € definir a interpretagdo, mediante a instituicdo de precedente, para a tutela da igualdade de todos perante o direito; nao mais a de revelar 0 exato sentido da lei, sedimentando jurisprudéncia uniforme, para o controle da legalidade das decisoes. Dai porque, na segunda parte desse livro,além de se analisar: aevolucdo da teoria da interpretacao, os dbices que impedem o Superior Tribunal de Na verdade, a distingao entre a formulacao de Chiovenda e as de Carnelutti ¢ Calamandrei esté em que, para a primeira, a jurisdicao declara a lei, mas ndo produz uma nova regra, que integra 0 ordenamento juridico, enquanto, para as demais, a jurisdicao, apesar de nao deixar de declarar a lei, cria uma regra individual que passa a integrar o ordenamento juridico. Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 7. ed. Sao Paulo: Ed. RT, 2013. vol. 1, p. 40 e ss. (Curso de proceso civil). V. CHIOVENDA, Giuseppe. Lazione nel sistema dei diritti. Saggi di diritto processuale civile. Roma: Foro Itliano, 1930. p. 3 e ss., CARNELUTTI, Francesco, Diritto processo. Napoli: Mora- no, 1958. p. 18 e ss, CALAMANDREI, Piero. Istituzioni di diritto processuale civile, Napoli: Morano, 1970, p. 156. 78 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES Justia de exercer as suas reais funcées ¢ 0 escopo de atribuicao de sentido ede desenvolvimento do direito que hoje lhe é inerente, reserva-se espaco para demonstrar a autoridade dos precedentes int lerpretativos e os funda- mentos que est4o a base da sua forca obrigatoria. . 1 © PROBLEMA DA INTERPRETAGAO DA LEI SuMAtio: 1.1 Primeiras consideragées ~ 1.2 Teorias formalistas — 1.3 Teorias céticas — 1.4 Teorias intermedidrias - 1.5 A teoria da resposta correta ~ 1.6 Texto e significado - 1.7 As regras de contetido aberto - 1.8 A interpretagao de acordo com a Constituigao ~ 1.9 A racionalidade da deciséo interpreta- tiva. O papel da argumentagao ~ 1.10 A universabilidade da decisdo como garantia da sua racionalidade ~ 1.11 O ST) diante da questo da interpre tagdo da lei - 1.12 Da Corte que define a exata interpretacao da lei para a Corte que atribui sentido ao direito. Da interpretagao uniforme como meio de controle & autoridade do direito como tutela da igualdade. Da Corte que controla & Corte que interpreta. 1.1 Primeiras consideragées Os pressupostos da ideia de que cabe a corte de vértice pronunciar 0 exato sentido da lei nao maisse sustentam. Ao legislativo nao mais cabe uma posicdo de supremacia, Admite-se queo trabalho do legislador, em si, nao é suficiente enquanto direito. E indispensavel que oJudiciario atribua sentido aos textos legais e, em outros, garanta a sua concretizacao nos termos dos valores que presidem a vida social, sem nunca se esquecer de desenvolver © direito segundo as expectativas da evolucdo da sociedade. Aevolucao da teoria do direito e da teoria da interpretacao, bem como 0 impacto do constitucionalismo sobre o conceito de direito, deixam claro que o intérprete elaboraa norma juridica a partir do texto dalei. A ideiade interpretac4o que revela o sentido exato da lei ésubstituida pela de atribui- cdo de sentido ao direito, passandoa ser essaa fungao das Cortes Supremas. Embora todos os juizes interpretem a lei, éa Corte Suprema quem define a sua interpretaco e, nesses termos, atribui-lhe sentido. Porém, a circunstancia de o sentido do direito ser pronunciado por uma Corte Suprema, embora relevante para dota-lo de autoridade, nao € suficiente para legitima-lo. Se o STJ tema funcao de outorgar sentido a lei federal, e nao apenas investigar e descrever o significado implicito no texto legal-como quer 0 formalismo interpretativo € os conceitosa eleatrelados, 78 | OST] ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES Justica de exercer as suas reais funcdes eo escopo de atribuicao de sentido ede desenvolvimento do direito que hoje lhe é inerente, reserva-se espaco para demonstrar a autoridade dos precedentes interpretativos e os funda- mentos que esto a base da sua forca obrigatoria. T 1 O PROBLEMA DA INTERPRETACAO DA LEI SuMAnio: 1.1 Primeiras consideragées - 1.2 Teorias formalistas — 1.3 Teorias céticas ~ 1.4 Teorias intermedirias - 1.5 A teoria da resposta correta ~ 1.6 Texto e significado - 1.7 As regras de contetido aberto- 1.8 A interpretacdo de acordo com a Constituigao ~ 1.9 A racionalidade da deciséo interpreta- tiva. O papel da argumentagao ~ 1.10 A universabilidade da decisio como gerantia da sua racionalidade ~ 1.11 © ST} diante da questéo da interpre~ tagdo da lei ~ 1.12 Da Corte que define a exata interpretagdo da lei para a Corte que atribui sentido ao direito, Da interpretago uniforme como meio de controle & autoridade do direito como tutela da igualdade, Da Corte que controla 4 Corte que interpreta, 1.1 Primeiras consideragées Os pressupostos da ideia de que cabe a corte de vértice pronunciar 0 exato sentido da lei nao mais se sustentam. Ao legislativo nao mais cabe uma posicao de supremacia. Admite-se que o trabalho do legislador, emsi, nao é suficiente enquanto direito. E indispensavel que o Judiciario atribuasentido aos textos legais e, em outros, garanta a sua concretizacdo nos termos dos valores que presidem a vida social, sem nunca se esquecer de desenvolver 0 direito segundo as expectativas da evolucdo da sociedade. Aevolucao da teoria do direito e da teoria da interpretacao, bem como o impacto do constitucionalismo sobre 0 conceito de direito, deixam claro que o intérprete elabora a norma juridica a partir do texto da lei. A ideia de interpretagao que revela o sentido exato da lei é substituida pela de atribui- cdo de sentido ao direito, passandoa ser essa a fung&o das Cortes Supremas. Embora todos os juizes interpretem a lei, €a Corte Suprema quem define a sua interpretacdo e, nesses termos, atribui-lhe sentido. Porém, a circunstancia de o sentido do direito ser pronunciado por uma Corte Suprema, embora relevante para dotd-lo de autoridade, nao € suficiente para legitimd-lo. Se o ST] tem a funcao de outorgar sentido a lei federal, ¢ nao apenas investigar e descrever o significado implicito no texto legal—como quero formalismo interpretativo ¢ os conceitosaele atrelados, 80 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES como o de “exata observancia da lei” ~, as suas decisdes, apesar de dotadas de autoridade, devem observar um método racional, ou melhor, critérios ou diretivas e valoracées justificados. Exige-se que a opcao interpretativa seja justificada mediante argumentos racionalmente aceitaveis. A interpretacdo e a argumentacao, assim, ganham amplo espaco no cendrio da jurisdicao, De forma sucinta, o problema da decisdo do tribu- nal de vértice deixa de se situar no local da procura do sentido exato da leie passa a ocupar o lugar da justificativa das op¢des interpretativas, ou seja, da racionalidade da interpretacao. O direito passa aserinterpretacdo € pratica argumentativa e, assim, ganha significado que se distancia da letra da lei. Esse distanciamento, ao abrir espaco na ordem juridica as decisdes interpretativas (da Suprema Corte), exige que essas ganhem estabilidade e autoridade, na medida em que passam a orientar as relacées sociais e a subordinar as decisées dos juizes ¢ tribunais de apelacdo, Se as Cortes Supremas tém a fungao de desenvolver o direito ao lado do legislativo, as suas decisdes devem ganhar a autoridade que Ihes permita corresponder ao significado que possuem na ordem juridica. E precisamente ai que as decisdes das Cortes Supremas assumem a qualidade de precedentes. Em suma: a antiga Corte de controle da legalidade ou de correcdo das decisées agora é uma Corte de Interpretacdo e essa naturalmente € uma Corte de Precedentes. 1.2 Teorias formalistas Quando se abandona a equivaléncia entre interpretacao verdadeira e interpretacao da Corte Suprema, hd necessidade de procurar a verdade ov a exatidao da interpretacdo em outro lugar. Ateoria da interpretacao que se aproxima da época da Revolucdo Fran- cesa e, assim, da ideia de que o juiz deve procurar afirmar as palavras da lei, € chamada de formalista ou cognitiva. Para essa teoria, a interpretacdo, enquanto atividade, tem natureza cognitiva. Investiga-se para descrever.O Juiz, ao interpretar, investiga o significado do texto legal e entaoo descreve.? 2. “Secondo la teoria che converremo di chiamare ‘cognitivistica’ ~ ma talora della ‘formatistica’ — la quale risale alle dottrine giuridiche dell’lluminismo, Vinterpretazione (ivi inclusa quella giudiziale) @ atto di scoperta o conoscenza del significato” (GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Giu- fre, 2011. p. 409). O PROBLEMA DA INTERPRETACAO DA LEI | 81 Entende-se que a “norma juridica” ou o sentido ou 0 contetido da lei esta implicito no texto legal. O juiz interpreta para afirmar o que esta gra- vado implicitamente no texto. Esse tipo de interpretacao tem ao seu ladoas ideias de completude e coeréncia do direito. Portanto, o juiz nao atua com qualquer discricionariedade. Ao decidir, sempre esta preso a uma norma preexistente. De modo que a interpretagao, enquanto produto, é um mero enunciado descritivo, sujeito ao teste da verdade e falsidade; ha apenas uma interpretacdo correta.> Tudo isso era muito bem-vindo pelos valores do Estado liberal classico, De qualquer forma, a teoria ¢ a elaboracdo daquilo que o juiz faz em face do texto legal e a explicagdo do contetido da sua atividade. Admite-se que a decisao do juiz ndo prescinde da interpretacao da lei, embora se prenda ou vincule o juiz ao texto legal. Como explica Jerzy Wroblewski, os valores juridicos que orientam a decisdo judicial s4o certeza, seguranca juridica, estabilidade das decisdes etc., uma vez que se a decisdo est inteira e estri- tamente determinada pela lei, as decisdes sao tao estaveis e seguras quanto ela, podendo-se dizer, até mesmo, que. lei é quem decide o caso concreto.* Essa teoria, embora desacreditada e destituida de qualquer forca tedrica, ainda esta presente no pensamento juridico comum e no estilo da fundamentacao das Cortes. E realmente curioso o fascinio que a teoria formalista ainda exerce sobre os tribunais e alguns institutos. Adverte Riccardo Guastini que a teoria pode ser relacionada a propria Cassacao.> Sem dtivida, caso a funcao das Cortes Supremas seja resumida a tutela do legislador ou da lei, a sua tarefa interpretativa encontrard lugar confortavel dentro do modelo formalista. Einduvidoso, contudo, que o formalismo tedrico € absolutamente re- jeitado pela cultura jurfdica contemporanea, o que significa dizer que, ainda que deva ser lembrado em suas implicagdes, nao precisa ser levado a sério quando se pretende individualizar a funcao de uma Corte de Precedentes que tem a misao de definir o sentido da lei. Alids, Michele Taruffo, apos demonstrar a completa impropriedade do formalismo,® afirma nao existir 3. GUASTINI, Riccardo. A interpretagao: objetos, conceitos, teorias. Das fontes as normas. Sao Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 139 ¢ ss. 4. WROBLEWSKI, Jerzy. Functions of law and legal certainty, Anuario de Filosofia del Derecho, XVII, 1973-1974, p. 322 € ss. 5. GUASTINI, Riccardo. Interpretare ¢ argomentare, cit., p. 410. 6. “Na realidade, parece que quem ainda cultiva ideias desse genero se encontra na situacdo daquele que busca medi a velocidade com a qual o sol gira ao re- 82. | OSI} ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES sentido em definiras funcdes da Corte de Cassagao sob a premissade que ha um significado “exato” da lei e de que asua descoberta, de modo definitivo, sejao objeto fundamental a que tais fungées se direcionam.’ 1.3 Teorias céticas As teorias ditas céticas surgem para se opor ao formalismo.* Elas repre- sentam, especialmente em seus modelos mais radicais, o antiformalismo e o antipositivismo proprios aos movimentos do direito livre. A ideologia da decisao livre rechaca a concepeao positivista do direito ¢ da lei. A lei nao basta, ao menos em regra, para determinar a decisdo judicial. O raciocinio quase-dedutivo do juiz é umaaparéncia; em seu fundo estao valores e opcdes que nada tem a ver com uma atividade intra legem? Basicamente, a teoria cética supde que a atividade de interpretagao € de valoracao e de decisao. Difere, portanto, da teoria formalista, que tema interpretacdo como cogni¢do ou investigacao e descri¢éo. Quer isso dizer quea teoria cética nao acredita que o significado do direito esteja implicito no texto legal, devendo apenas ser desvendado e descrito pelo juiz. O tex- to legal, ou as palavras da lei, nao tem um significado proprio, em si, que possa ser visto como antecedente a atividade interpretativa. As palavras da lei sempre esto na dependéncia do intérprete, que ao texto atribui um determinado significado, o qual, bem vistas as coisas, € o sentido da lei ow a verdadeira norma juridica. Dai ser natural a possibilidade de interpre- tacdes diferentes acerca de um mesmo texto legal, conforme os valores ¢ compreensao de cada juiz.'° dor da terra” (TARUFFO, Michele. La Corte di Cassazione ¢ la legge. Il vertice ambiguo, Saggi sulla Cassazione civile. Bologna: tl Mulino, 1991. p. 88). 7. TARUFFO, Michele. La Corte di Cassazione e la legge. Il vertice ambiguo. Saggi sulla Cassazione civile, cit., p. 89. 8. “Secondo la teorie che chiameremo ‘scettica’, ¢ che spesso é deta (per metonimia) ‘realistica’ perché riconducibile ad alcune forme di realismo giuridico (specie americano), | ‘interpretazione ~ in particolare: quella giudiziale - & atto non di conoscenza, ma di scelta, € pertanto di volonta. | testi normativi non hanno un tinico, univoco, significato oggettivo precostituito: Pattribuizione di significato ai testi normativie frutto di decisione discrezionale degli interpreti (in ultima analisi, dei giudici)” (GUASTINI, Riccardo, Interpretare ¢ argomentare, cit., p. 412) 9. WROBLEWSKI, Jerzy. Ideologia de la aplicacion judicial del derecho. Sentido ‘y hecho en el derecho, México: Fontamara, 2008. p. 78 ess. 10. GUASTINI, Riccardo. A interpretagao: objetos, conceitos, teorias, Das fontes as normas, cit., p. 140 ess. OPROBLEMA DA INTERPRETACAO DA LEL | 83 A diferenca entre os céticos e formalistas nao se limita a atividade de interpretacao (investigacao-valoracdo e descricado-decisao), mas também. esidna interpretacao enquanto produto. Para os formalistas, ainterpretacao €um enunciado descritivo, enquanto que, para os céticos, a interpretacao um enunciado criativo, Vale dizer: enquanto que para os formalistas a nor- ma juridica estd implicita no texto, devendo ser descoberta e descrita, para os céticos a norma juridica € o produto da atividade interpretativa e, nesse sentido, é criada. Mais propriamente: é reconstruida a partir de elementos textuais ¢ extratextuais da ordem juridica." O problema € que alguns céticos negligenciam a importancia da lei, deixando de considerar que, se o texto legal nao é suficiente para deter- minar a decisdo e nem contém a norma juridica por ela produzida, ele estabelece limites objetivos ao intérprete. Como bem explica Guastini, “em todo ambiente cultural dado, os usos linguisticos correntes admitem uma gama, ainda que vasta, de qualquer maneira limitada, de significados possiveis para toda expressao dada, As atribuicdes de significado que nao caem dentro dessa gama sao dificilmente sustentaveis, sujeitas a critica e provavelmente destinadas ao insucesso. E é ébvio que entre os habitos linguisticos difundidos estao incluidas, se existirem, as interpretages ja creditadas e consolidadas de um certo texto normativo. E também obvio que sdo escassamente praticaveis todas as interpretacdes que o intérprete ndo esteja em condi¢do de argumentar (ou motivar) de maneira convincente segundo os padrées de racionalidade acothidos no seu ambiente cultural” 1.4 Teori termediarias Como dito, a interpretacao, no viés formalista, constitui. averiguacdoe descricdo, e, para os céticos, valoracao e decisdo. Pois bem, ha uma familia teorica em que se busca uma espécie de conciliacao entre as proposicdes formalistas e céticas,!? Para os céticos, a norma nunca é pré-definida, nao esta implicita no texto legislativo, ao contrario do que sucede aos olhos dos formalistas. A tentativa de conciliacao, a dar conotacao de “intermediarias” a determinadas 11. AVILA, Humberto, Teoria dos princtpios. 12. ed, Sao Paulo: Malheiros, 2011. p. 31-35; GUASTINI, Riccardo, Interpretare e argomentare. Milano: Giullré, 2011. p. 413. 12. GUASTINI, Riccardo. A interpretacao: objetos, conceitos, teorias. Das fontes as normas, cit., p. 133-134. 13. GUASTINI, Riccardo. Interpretare ¢ argomentare, cit., p. 415 ess. 84 | OST] ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES teorias, parte da premissa de que os textos legislativos, que frequentemente sevalem da linguagem natural, quase sempre séo dotados de indeterminacao e vagueza."* Nesse sentido, fala-se em “trama aberta” ou em “open texture” dos textos legislativos.'* A ideia de “open texture” é ligada & teoria de Hart.'® Basicamente, entende-se que, em virtude da textura aberta dos textos legais, neles ha sempre um nucleo iluminado ou uma zona de luz circundado por uma zona de penumbra. Ou melhor, em todo texto legal ha enunciados que estio na zona de luz e enunciados que estao na zona de penumbra. Somente os enunciados que estao na zona de penumbra reclamam valora¢do e decisao, ou melhor, uma atividade discriciondria do intérprete. Aqueles que estao na zona de luz, ao contrdrio, sao normas pré-definidas, que podem ser simplesmente descritas. Desse modo de ver as coisas deriva a divisio dos casos em faceis e dificeis. Os casos faceis s4o aqueles que se acomodam a zona de luz, que sao resolvidos a partir de enunciados claros e que, por isso, ndo exigem de- ciséo — nao ensejam mais de uma interpretacdo~—, mas somente descric¢ao. Os dificeis sao aqueles em que a aplicacdo do texto legal é controvertida, que estdo situados na zona de penumbra. Sao os que abrem oportunidade a varias interpretagdes, requerendo valoracao e decisao. De tal modo se faz a conciliagdo entre a ideia de que a decisdo judicial € sempre guiada por normas pré-definidas e a de que o juiz sempre ¢ em qualquer caso atua de forma discricionaria, fixando a “norma juridica” 20 interpretar e decidir. Além disso, demonstra-se que, nos casos faceis — em que o produto da interpretacdo é um enunciado descritivo ~, a interpre- tacdo se submete ao texto do verdadeiro ou falso, ao passo que, nos casos dificeis — em que a interpretacao consiste em um enunciando derivado de uma decisdo —, descabe cogitar de verdade ou falsidade.!” 14. GUASTINI, Riccardo. “Trama aberta” — Ciencia Juridica, Interpretagao, Das fontes as normas. Sto Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 145 e ss. 15. HART, Herbert L. The concept of Law. Oxford: Clarendon Press, 1993; WRO- BLEWSKI, Jerzy. Transparency and doubt. Understanding and interpretation in pragmatics and in Law. Law and Philosophy, 1988, p. 322 ¢ ss.; CARRIO, Genaro. Notas sobre derecho y lenguaje. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1979; GUASTINI, Riccardo. “Trama aberta” — Ciencia Juridica, Interpretagao. Das fontes as normas, cit., p. 145 ess. 16. Hart, Herbert L. The concept of Law, cit. 17, GUASTINI, Riccardo. A interpretagdo: objetos, conceitos, teorias. Das fontes as normas. cit., p. 142 € ss. © PROBLEMA DA INTERPRETACAO DALEL | 85 O interessante é que a ideia de penumbra, na tese de Hart, tem como objetivo demonstrar a validade da teoria normativista. A objecdo dos céticos, de que as normas legais nada mais sao do que formulas de sen- tido vago ¢ indeterminado e, assim, vazias e destituidas de significado enquanto possivel objeto do conhecimento cientifico, é confrontada por Hart exatamente mediante o argumento de que as normas sao dotadas de textura aberta e, assim, contam com uma zona de penumbra e uma zona de luz—em que a interpretacao é uma descricao, a dar vigor a uma ciéncia de normas.'* O problema dessa tentativa de conciliagao paira na definicao dos casos faceis e dificeis ou das zonas de luz e penumbra." Se o enunciado legal nao requer valoracao e decisdo quando est na zona de luz, 0 problema passa a ser o de saber quando o enunciado efetivamente esta na zona de luz e nao na zona de penumbra. A ideia de zona de luz é uma elaboragao tedrica que permite demonstrara tese de que anorma, em algumas hipoteses, antecede a decisao judicial, mas faz surgir a questdo de comoa zona de luz é definida pelo intérprete. Na verdade, as teorias que sustentam a ideia de zona de penumbra afir- mam que a definicao de tal questao é objetiva, nao ensejando interpretacao. Nao obstante, como escreve Riccardo Guastini, os intérpretes, e em especial os juizes, valem-se de discricionariedade ao decidir se uma controvérsia cai, oundo, no nticleo luminoso; decidemas fronteiras incertas entreas zonas de luz e de penumbra, decidem discricionariamente onde esta penumbra.”” Na mesma linha, Wroblewski afirma que os “problemas penumbrais” sao uma instancia de dividas interpretativas que também podem ser valorati- vamente definidas. Esses problemas nao podem ser resolvidos por meios puramente semanticos em virtude da falta de precisao do termo em questéo, a solucao ha de vir de outras fontes, em que exercem papel valoracées de diversas classes. Assim, é possivel dizer quea solucao da questao sobre sea norma € “clara” ou “duvidosa” depende ao menos de duas situagGes tipicas de valoracées. O 6rgao que aplica o direito sempre dispée de duas possibi- 18. GUASTINI, Riccardo, “Trama aberta” - Ciencia Juridica, Interpretagao, Das {fontes as normas, cit., p. 146-147. 19. Nao se faz aqui disting4o entre casos faceis e dificeis e textos claros e univocos. Ainda que as classes possam ser diferenciadas, ambas apresentam caracteristicas comuns, suficientes para evidenciar o que se deseja demonstrar em face das teorias formalistas ¢ céticas. 20. GUASTINI, Riccardo. A interpretacao: objetos, conceitos, teorias. Das fontes as normas, cit., p. 143. 86 | OST] ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES la com o sentido lidades: declarar que a norma em questdo é clara e apli ia de “duvidosa” e que possui em sua imediata compreensio, ov qualifica- proceder & sua interpretaciio.”" A questao de se determinado enunciado, de que depende a decisao judicial, é claro ou duvidoso, é uma fase do raciocinio interpretativo, que, uma vez superada, da ao intérprete a possibilidade de chegar num resulta- do que advém imediatamente do texto ou confere-Ihe a oportunidade de, mediante nova valoracao, decidir sobre o seu sentido. Essa primeira fase faz parte do raciocinio interpretativo, de valoracao e decisdo, simplesmente porque o juiz, para definir sobre a clareza ou nao, também faz valoragéo e decide.” A clareza obviamente nao é algo que deflui objetivamente do texto, Nao é um predicado do texto, mas o fruto do entendimento daquele que 0 1é. Clareza ou obscuridade sao sentidos atribuidos a um texto legal pelo intérprete. De modo que atribuir clareza implica retomar um modo de decidir ou interpretar que nada tem a ver com a ideia de norma pré- -existente, em que ha apenas conhecimento e descrigao.” Na verdade, como restara melhor esclarecido a frente, ter em conta um texto legal implica necessariamente atribuir-lhe significado, pouco importando a sua suposta clareza ou dubiedade. 1.5 A teoria da resposta correta Ao contrario da teoria que distingue os casos em faceis e dificeis, reco- nhecendo que os ultimos exigem valoracdes que podem ensejar decisoes mais ou menos “justas”, a teoria da resposta correta supde que mesmo os casos dificeis tem apenas uma resposta certa, capaz de ser descoberta pelo 21, WROBLEWSKI, Jerzy. El razonamiento en la interpretaci6n juridica. Sentido y hecho en el derecho. México: Fontamara, 2008. p. 186, WROBLEWSKI, Jerzy. ‘Transparency and doubt. Understanding and interpretation in pragmatics and in Law. Law and Philosophy, 1988, p. 322 ¢ ss. 22, “Una disposizione é chiara, in relazione a un qualche problema da risolvere eaun qualche caso concreto da disciplinare, soltanto dopo averla interpretata (0 com- presa, o come dir si voglia” (CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell’mterpretazione giuridica. Bologna: Il Mulino, 2007. p. 62). 23. No mesmo sentido, afirma Taruffo que, em face da necessidade de definicao a respeito de se 0 caso € facil ou dificil, “o problema das opgdes interpretativas ¢ Teproposto integralmente, ¢ ndo esta resolvido nem esclarecido pela distincao (casos faceis e dificeis; nicleo de luz e zona de penumbra] em exame” (TARU- FFO, Michele. La Corte di Cassazione e la legge. Hl vertice ambiguo. Saggi sulla Cassazione civile, cit., p. 93) O PROBLEMA DA INTERPRETACAO DALEI | 87. juiz a partir do direito em sua completude. Trata-se da versio sustentada por Dworkin. Admitindo que os casos dificeis nao podem ser resolvidos mediante a pura e simples aplicacao de uma regra ou de um precedente, entende- ~se que o juiz pode, a partir dos fundamentos e principios que deles estao por detras, descobrir o direito que esta implicito no sistema e representa a solucdo correta. A resposta do caso existe a priori, devendo ser descoberta e declarada pelo juiz. Ateoria tem parentesco com 0 formalismo tedrico, como expressamen- tereconhece Guastini.” Recorde-se que na teoria formalista o juiz se limita a investigar e descrever a norma implicita no texto. Aqui o juiz também investiga para descobrir o direito e declara-lo, embora esse esteja por detras das regras, dos principios e dos fundamentos que as sustentam. Dworkin, ao descrever o que chama de direito como integridade, faz ver: que o cosmos normativo da concep¢4o constitucionalista do direito é mais abrangente do que aquele concebido pelo positivismo tradicional. Segundo ele, 0 di- Teito—os direitos e deveres que decorrem de decisdes coletivas tomadas no passado e que, por esse motivo, permitem ou exigem a coercao — contém ndoapenaso limitado contetdo explicito dessas decisées, mas também, num sentido mais vasto, o sistema de principios necessdrios a sua justificativa.® Para Hart o juiz cria 0 direito na auséncia de regra que permitaa reso- lugo caso.” Dworkin, no entanto, afirma que, mesmo quando nenhuma 24. DWORKIN, Ronald, Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978; DWORKIN, Ronald. Law’ empire. Cambridge: Harvard University Press, 1978; DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985. Para uma extensa critica, AARNIO, Aulis. The rational 4s reasonable — A Treatise on Legal Justification. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1987. p. 158-165, No mesmo sentido, pela improcedéncia da one- -right-answer thesis, PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989. p. 305-307. 25. GUASTINI, Riccardo. Formalismos. Das fontes as normas, cit., p. 161; GUAS- TINI, Riccardo. Soluzioni dubbie. Lacune ¢ interpretazione secondo Dworkin. Materiali per una storia della cultura giuridica. Bologna: Il Mulino, 1983. p. 449 ess. 26. DWORKIN, Ronald. O império do direito, Sao Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 273-274. 27. “Haverd sempre certos casos juridicamente nao regulados em que, relativamen- te a determinado ponto, nenhuma decisao em qualquer dos sentidos é ditada pelo direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se como parcialmente 88 | 0ST] ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES regra regula o caso, o juiz continua tendo o dever de descobrir o direito da parte.’® Nao € por outro motivo que se diz que Dworkin revive, em face da doutrina de Hart, a velha teoria declaratoria do direito, sustentada nos primérdios do common law por Blackstone.” Deacordo coma teoria de Dworkin, o juiz, para encontrar e declarara resposta justa, ndo exerce atividade discricionaria; ele a encontra de forma objetiva diante dos fundamentos e princfpios do sistema. Isso evidencia a feicdo formalista e 0 carater conservador da teoria, ainda que se apresente como “liberal”? Contudo, as criticas enderegadas a teoria so procedentes.”! Alega-se, especialmente, quendo se deixa claro como se chegaarespostacorreta ouao encontro do direito que define a questo e, ainda, que nao sao apresentados critérios que permitam determinar se a resposta encontrada é exatamente a correta.” Se a resposta correta € 0 objeto e o objetivo da teoria, é muito pouco dizer que a resposta correta é encontravel no sistema ou afirmar, em abstrato, que um juiz Hércules pode chegarna solugao correta, O verdadeiro problema é saber quais so as técnicas de interpretacao que permitem que se chegue na resposta certa € quais sdo os critérios que devem ser utilizados para se saber se uma decisao € correta. Taruffo afirma que a argumentacao de Dworkin é circular, pois da por descontado o que deveria demonstrar, precisamente quando diz que o juiz nao realiza opcoes discriciondrias, mas se limita a descobrir a solucao correta do caso.? indeterminado ou incompleto. Se, em tais casos, o juiz tiver de proferir uma decisio, em vez de, como Bentham chegou a advogar em tempos, se declarar privado de jurisdigéo, ou remeter os pontos nao regulados pelo direito existente para a decisao do érgao legislativo, entéo deve exercer 0 seu poder discriciond- tho € criay direito para 0 caso, em vez de aplicar meramente o direito estabelecido anteriormente” (HART, Herbert. The concept of Law, cit., p. 135). 28, DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously, cit., p. 12 e ss. 29. BLACKSTONE, William. Commentaries on the law of England (fac-stmile da 1." edicao, de 1765). Chicago: The University of Chicago Press, 1979. v. 1, p. 69. 30, TARUFFO, Michele. La Corte di Cassazione e la legge. Il vertice ambiguo. Saggt sulla Cassazione civile, cit., p. 100. 31, V. REYNOLDS, N. B. Dworkin as Quixote. University of Pennsylvania Law Re- view, v. 123, 1975. 32. TARUFFO, Michele. La Corte di Cassazione e la legge. Il vertice ambiguo. Saggi sulla Cassazione civile, cit., p. 95 33. Estabelecendo trocadilho com o titulo da obra de Dworkin, diz Taruffo que a sua argumentacdo é de uma simplicidade desoladora, surpreendendo que TT O PROBLEMA DA INTERPRETACAO DA LEI | 89 Importa esclarecer que um juiz, ainda que conhecedor da teoria de Dworkin, ndo tem condicdes de demonstrar que asua decisao é correta para o tribunal ad quem. De modo que a teoria, ainda que possa nao ter se preo- cupado com esses “efeitos praticos”, nao tem qualquer serventia: quandose pensa nas decis6es do Superior Tribunal de Justica. Imaginando-se que essas decisées, por afirmarem o sentido da lei que deve imperar sobre os tribunais ordinarios, devem ser “corretas”, de nada vale dizer que 0 caso julgado pela Suprema Corte tem uma solucao corretae nao poder assim demonstré-la.>* Portanto, a teoria da resposta correta nao constitui “resposta” a quem esta preocupado em justificar a autoridade das decis6es das Supremas Cortes sobre os tribunais inferiores. Alids, o problema da teoria da resposta correta nao esta apenas nasua falta de preocupagao em demonstrar em “razao de que” e “como” uma de- cisdo pode ser dita correta ou verdadeira. Nao ha como admitir que exista, JA infilurada no direito em sua integridade e, assim, nos principios, uma norma preexistente a interpretagao judicial, que, portanto, deveria serape- nas revelada pelo juiz. A interpretacdo-atividade, nesse caso, obviamente nao pode prescindir da eleicdo valorativa de diretivas interpretativas e da propria valoracao quando da aplicacao das proprias diretivas, Naverdade, aelaboracao de uma norma (interpretacdo-resultado) me- diante a consideracao do significado de disposic6es constitucionais, exige, mais do que em outro lugar, que o intérprete opte entre uma ideologia da interpretacdo juridica que pode ser definida como estatica e outra ligada a adaptacao do direito as necessidades presentes e futuras da sociedade. A adocao de uma ou outra postura tem relacdo de causae efeito coma eleicdo das diretivas de primeiro grau — linguisticas, sistémicas e funcionais — coma utilizacdo das diretivas de segundo grau, procedimentais e de prefe- rencia, voltadas a definir o modo de aplicacao e a prevaléncia das diretivas de primeiro grau. E claro que o intérprete que adere a ideologia estatica da interpretacao da énfase as diretivas linguisticas e sistemicas em detrimento das funcionais e, quando aplica uma diretiva funcional, apega-se a vontade do “legislador historico”. Por outro lado, se o intérprete é adepto da ideolo- tenha sido tomada tao “a sério” (TARUFFO, Michele. La Corte di Cassazione € la legge. Il vertice ambiguo. Saggi sulla Cassazione civile, cit., p. 95). 34. Como diz Taruffo, quem sustenta que a decisio justa existe (em alguns casos ou sempre), Iamentavelmente nao se preocupa em estabelecer quais so os modos praticdveis no mundo real para encontré-la com certeza ¢ evitar erros (TARUFFO, Michele. La Corte di Cassazione e la legge. Il vertice ambiguo. Saggi sulla Cassazione civile, cit., p. 97). 90 | OSTj ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES gia da interpretacao que procura adaptar o texto a realidade social que lhe € contemporanea, prefere as diretivas funcionais em relagao as linguisticas e sistémicas e, quando aplicaas funcionais, elegea diretiva que frisaa vontade ouas valoragées do intérprete. Hd ai nitida e clara valoragao paraaeleigdo das diretivas de interpretacao, tanto de primeiro grau quanto de segundo grau. Ademais, quando o intérprete elege diretiva funcional que reclama asua “vontade”, a ele é aberta a possibilidade de valorar os elementos da vida em sociedade em varias perspectivas~ moral, politica, econdmica etc. —tendoassuas escolhas, mais uma vez, natureza que confere a interpretacao- -resultado um carater “criativo”, ou seja,um contetido que nao € descoberto ou meramente extraido do direito ou dos principios.>> Wroblewski demonstra que, por haver valoracao na eleicdoeaplicagao das diretivas interpretativas, nao ha como admitir a tese da interpretacao correta. Diz que qualificar de verdadeira uma decisao interpretativa conduz aconsequéncias desconcertantes ou expressa propriamente uma “ideologia da interpretacao” , sendo por isso prefertvel falar de decisoes interpretativas justificadas por argumentos concretos e perguntar sobre as razes para aceitd-los e apresentar a cadeia de raciocinios justificativos até onde seja pragmaticamente necessario e possivel dentro de um marco do discurso juridico concreto.* 1.6 Texto e significado Como visto, ao contrario do que sustenta o formalismo tedrico, as palavras nao tem um tinico sentido; inexiste significado untvoco intrinseco ao texto legal. Bem por isso descabe pensar em simplesmente averiguar para descrever a norma. A norma no esté no texto legal; nao ha uma relacdo de sinonimia entre o texto legal eo resultado obtido com aatividade interpreta- tiva.°” Demodo que € equivocado pensar quea interpretacao reproduzalei. 35. WROBLEWSKI, Jerzy. Constitucion y teorta general de la interpretacién juridica. Madrid: Civitas, 2001. p. 72-78. 36. Idem, p. 89. 37. O ponto remonta a Tarello: “Sovente si dice e si scrive, impropriamente, che Vinterprete ‘scopre' il significato delle ‘norme’. In realta né Linterprete‘scopre’, né Ja sua attivita ha per oggetto delle ‘norme’. Vediamo di chiarire, incominciando con cid che si cela sotto il verbo ‘scoprire’ e passando poi ao sostantivo ‘norma’, ©...) E chiaro percid che il vocabolo ‘scoprire’, cosi come @ usato nellespressione ‘Tinterprete scopre il significado di una norma’, é del tutto iraproprio, ed anzi@ dannoso alla chiarezza, perché occulta riassumendole in una sola parola — tre | © PROBLEMA Da nvrEReRETAGAO DALE | 91 Nao obstante, costuma-se chamar 0 texto legal de norma e afirmar que o juiz, ao decidir, declara a lei ou a norma.”* Sucede que, sea lei ou o texto legal nao tem significado em si, o juiz sempre atribui a um ou outro determinado sentido. O sentido, portanto, nao pode ser confundido com 0 texto.” O sentido, e ndo o texto, constitui a norma, compreendida essa como o significado que ¢ tomado em conta pelo juiz ao decidir.” Nao € correto entender que essa dissociacao exista apenas na zona de penumbra ou diante de um caso dificil. Na zona de luz ou em face de um caso facil a atribuicao de sentido € mais facil ou requer menos meditacéo eesforco. Porém, é dbvio que 0 juiz, ao se deparar com um enunciado das attivita diverse che possono essere presenti tutte, 0 possono non essere tutte presenti, nellattivita dell'interpretazionne. Dobbiamo percid correggere Fespres- sione corrente riformulandola cosi: ‘Tinterprete rileva, o decide, propone il significato di una norma, ovvero compie piti d'una di queste attiviti’. Ma questa correzione non basta. Infatti anche il vocabolo ‘norma’ & ingannevole. l’inter- Prete rileva, o decide, o propone il significato da attribuire a un documento, costituito da uno 0 pitt enunciati, di cui il significato non é affato precostituite allattivita delfinterprete, ma ne @ anzi il risultato; prima delVattivita dell'in- texprete, del documento oggetto dell'interpretazione si sa solo che esprime una o pitt norme, non quale questa norma sia o quali queste norme siano: ‘norma’ significa semplicemente il significado che & stato dato, o viene deciso di dare, o viene proposto che si dia, a un documento che si ritiene stilla base di indizi formali esprima una qualche direttiva d’azione. Lespressione corrente deve percid essere correta, perché non sia ambigua, cosi: ‘Pinterprete rileva, 0 decide, o propone il significato di uno o pitt enunciati precettivi, rilevando, decidendo, o proponendo che il diritto ha incluso, o include, o includera una norma” (TARELLO, Giovanni. L ‘interpretazione della legge. Milano: Giuffré, 1980. p. 61, 63-64). 38. GUASTINI, Riccardo. Se i giudici creino diritto. Istituzioni e dinamiche del diritto. Milano: Giuffre, 2009. p. 395. 39, V.JORI, Mario e PINTORE, Anna. Manuale di teoria generale del diritto. Torino: Giappichelli, 1995. p. 205 ¢ ss; DICIOTI, Enrico. Interpretazione della legge ¢ discorso razionale, Torino: Giappichelli, 1999. p. 200 e ss.; SACCO, Rodolfo. Interpretazione del diritto. Dato oggettivo ¢ spirito dellinterprete. Diritto, Slustizia ¢ interpretazione, Roma/Bari: Laterza, 1998. p. 111 ess. 40. Deacordo com Guastini, “loperazione intellettuale che conduce dall’enunciato al significato ~ o, se si preferisce, Voperazione di identificazione del signifi- cato ~ altro non é che l'interpretazione. La disposizione ¢ dunque | ‘oggetto delPinterpretazione, la norma é il suo risultato. O, detto altrimenti, ‘la disposi- zione é fonte della norma attraverso ‘interpretazione”. (GUASTINI, Riccardo. Interpretare ¢ argomentare, cit., p. 63-64). a ; 92 | OST] ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES fontes, inevitavelmente lhe atribui significado ou sentido, independente- mente da sua clareza. Na verdade, a atribuicdo de sentido € consequéncia imediata, natural e inevitavel do contato dealguém com qualquer enunciado. A clareza 80 facilita a transposigao da linguagem das fontes para a lingua- gem do emissor. Assim, a distincao que deve ser feita nao esta na clareza ou dubiedade do texto, a revelar mera descricao e atribuicdo de sentido, mas na propria linguagem, ou melhor, na distingao entre linguagem das fontes e linguagem do emissor ou do intérprete. A linguagem da fonte, ainda que seja clara, nunca serd a linguagem do intérprete. Como bem explica Guastini, a disposicdo ea norma nada mais sao do que enunciados; a disposicao é um enunciado do discurso das fontes e a norma é um enunciado do discurso do intérprete, de modo que a distingao entre disposigdo e norma nao é uma distin¢ao ontolégica entre enunciado eoutra coisa, mas uma mera distincdo entre duas espécies de enunciados.* O interessante é que Guastini, cuja obra € caracterizada por distinguir disposicao e norma, demonstra claramente que a cren¢a difusa, no sentido da correspondéncia biunivoca entre disposigao (ou norma) e formulagao de norma, éumacrenca falaz. Adverte que “toda disposicao é (mais ou menos) vaga e ambigua, de modo que tolera diversas e contflitantes atribuicdes de significado. Neste sentido, a uma unica disposicdo — a cada disposigao — corresponde nao apenas uma sé norma, mas uma multiplicidade de normas dissociadas. Uma tinica disposicdo exprime mais normas dissociadamente: uma ou outra norma, de acordo comas diversas interpretacdes posstveis”.” Numa visdo interpretativista que tem contato com a realidade, e nao apenas com as formas, ha clara separa¢ao entre texto legal ou lei e sentido ou norma juridica de carater judicial. Isso tem relevancia, pois o Superior Tribunal de Justica, nessa dimensao, tem a funcdo de editar a “norma juridica judicial” que deve prevalecer em todo o territ6rio nacional, 41. “... la norma non é cosa ontologicamente diversa dalla disposizione: ¢ sempli- cimente la disposizione interpretata e pertanto riformulata, 0, da un altro punto di vista, un enunciato (interpretante) di cui I'interprete assume la sinonimia con. Yenunciato interpretato (Ja disposizione)” (GUASTINI, Riccardo. Interpretare € argomentare, cit., p. 65). 42. GUASTINI, Riccardo. Disposicdo vs. Norma. Das fontes as normas. Sao Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 34, “,,.molte disposizioni — quase tutte le disposizioni, in verita—hanno un contenuto di significato complesso: esprimono non gia una sola norma, bensi una molteplicita di norme congiunte. Ad un‘tmica disposi- zione possono dunque corrispondere pitt norme congiuntamente” (GUASTINI, Riccardo, Interpretare e argomentare, cit., p. 65-66). O PROBLEMA DA INTERPRETAGAO DA LEI | 93 pouco importando a clareza ou a dubiedade do texto legal. A sua funcao contemporanea esta longe de poder ser definida como de tutela da lei-na perspectiva do formalismo tedrico. Ademais, a interpretacao da Corte Su- ptema jamais terd condicées de fazer surgir o sentido “exato da lei”, como sugere ser possivel, em sua interpretacdo tradicional, o artigo 65 da lei do ordenamento judicial italiano, Na verdade, quem ainda supée que o Superior Tribunal de Justica pode pronunciar o sentido “exato” da lei ou a interpretacdo verdadeira da lei permanece preso a ideia de quea interpretacao averigua a norma impli cita no texto legal ea descreve,”* ou aceita a tese de que a resposta correta, ainda que nao esteja no texto da lei ou em um precedente, esta no sistema, devendo apenas ser “descoberta” e declarada. Alei nao detém a norma; essa é reconstruida pelo juiz a partir do tex- to, de elementos extratextuais da ordem juridica e por meio de diretivas interpretativas e valoragoes. Fora isso, quando se diz que 0 juiz, além do texto legal, toma em conta os principios e fundamentos que estdo por detras dele, a decisdo nao deixa de ser construcdo e passa a ser declaracao, pois a solucao do caso nao deriva objetivamente daqueles, mas é construida, de forma mais ou menos discricionaria, com o auxilio deles.” 43. “Sorprendente ingenuita. Disgraziatamente non esiste affatto una cosa come il significato oggettivo dei testi normativi. Ogni testo normative ¢ almeno po- tenzialmente e aleno diacronicamente equivoco; sicche risulta semplicemente impossibile distinguere tra interpretazioni ‘vere’ e interpretazioni false” (GUAS- TINI, Riccardo. Se i giudici creino diritto. Istituzioni e dinamiche del diritto, cit., p. 391). 44, WROBLEWSKI, Jerzy. Lenguaje juridico e interpretacion juridica. Sentido y hecho en el derecho. México: Fontamara, 2008. p. 136 e ss. 45. “A teoria da norma juridica repousa na ideia fundamental de que a norma, objeto da interpretagao, ndo se identifica com o texto, antes se apresenta como 0 resul- tado de um trabalho de construcéo, correntemente designado de concretizacao. Mesmo o jutiz, logo um tribunal, longe de se limitar a aplicar automaticamente anorma a um caso particular, exerce uma ‘iberdade de opgao’ (discretion) que opera, em termos praticos e operativos, como uma verdadeira decisao. E como © texto € suscetivel de comportar varios significados (‘plurissignificatividade’), é tarefa do juiz escolher de entre estes a norma a aplicar ou ‘tegra de decisao’, essa ‘escolha’ ou ‘opedo’ que correntemente se designa de interpretagao. Esta consiste na determinacao do significado objetivo de um texto, Isto leva neces- sariamente a uma ‘interpretacdo integrativa’ do texto no quadro de uma ‘teoria da norma para o caso particular’ (case law, Fallnorm)” (QUEIROZ, Cristina Direitos fundamentais (teoria geral). Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 178). 94 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES 1.7 As regras de contetido aberto Em vista da percepcao do inevitavel envelhecimento e esgotamento das disposigées legislativas, tornou-se clara a necessidade de a lei conter espacos capazes de dar ao juiz o poder de adaptagao do texto legal as novas realidades e valores. Surge, a partir dai, a nocao de cldusulas gerais,* vista como técnica legislativa que se contrapoe a técnica casuistica. Ha profun- da modificacdo na maneira de o legislador produzir o direito. Ainda que o legislativo continue a se valer de Cédigos, deixa-se de utilizar apenas a técnica casuistica, admitindo-se, ao seu lado, as chamadas clausulas gerais, destinadas a permitir ao juiz considerar circunstancias nao normatizadas para dar solucao adequada aos casos concretos. A técnica casuistica é utilizada quando, para a estruturacao da lei, estabelecem-se, na medida do possivel, critérios paraa qualificacao dos fatos normados, ao passo que as clausulas gerais so caracterizadas por vagueza ou imprecisao de conceitos, tendo o objetivo de permitir o tratamento de particularidades concretas ¢ de novas situacoes, inexistentes eimprevistveis @ época da elaboracao da regra.7 Ojuiz, diante da clausula geral, tem grande poderparaelaboraranorma adequada a regulacao do caso; a clausula é texto legislative que consciente- mente lhe daamplo espaco para participar da construcao da norma juridica. A técnica das clausulas gerais tem como premissa a ideia de que alei é, por sis6, insuficiente, e, nesse sentido, constitui elemento que colabora paraa construcio judicial do direito. A técnica ndo 56 faz ruir a ideia de completude dos compéndios le- gislativos, como demonstra que é preciso deixar espaco para o juiz poder construir de modo adequado as solucées dos variados casos litigiosos con- cretos. Confere maior espaco para a subjetividade ao juiz, dando-lhe poder para elaborar a decisao ou a norma juridica em face de particularidades do 46. MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construgao” Revista da Faculdade de Direito da UFRGS. Porto Alegre, ¥, 15, 1998, p.129 ess.; GONDINHO, André Osorio. Codificacao e clausulas gerais. Revista trimestral de direito civil, Rio de Janeito, n. 2, abr,/jun. 2000, p. 3 ¢ss.; TEPEDINO, Maria Celina B. M. A caminho de um diteito civil constitucional. Revista de direito civil, Rio de Janeiro, v. 65, 1993, p. 21 ess. 47. MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construcao”, cit,, p. 134; V. PICARDI, Nicola. La vocazione del nostro per la giurisdizione. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 2004, p. 46 O PROBLEMA DA INTERPRETAGAO DA LEI | 95 caso concreto ou de novas realidades, ou seja, a partir de elementos que nao est4o presentes no tecido normativo. Note-se que a clausula geral nao da poder aos juizes apenas para editar uma norma de acordo com as circunstancias do caso concreto, mas espe- cialmente para adequar o texto as novas situagdes. Ademais, ainda que os casos possam sempre variar de conformacdo, alguns dos seus elementos, que importam para a definicado do sentido em que a clausula aberta deve ser aplicada, sao perenes e sempre sdo repetidos. Casos similares, a exigir uma mesma norma jurfdica, podem variar em relacao a aspectos menores que devem ser concretizados a partir de uma cldusula geral, e assim abrir oportunidade para variacdes na aplicacdo de norma judicialmente ja fixa- daa partir de clausula geral. A norma juridica que pertine aos elementos perenes, porém, nao tem razao alguma para variar. Essa obviamente deve contar com a estabilidade. Isso quer dizer, portanto, que ndo se pretende simplesmente dar aos juizes poder para realizar a “justica do caso concreto”, mas também poder para o Judiciario definir o sentido em que a lei deve ser aplicada enquanto perdurar determinada situacao. A funcao das clausulas gerais nao é permitir uma inflacdo denormas juridicas para um mesmo caso, mas oestabelecimen- to denorma juridica que, diante de circunstancias similares, tenhaaplicacao geral. Como reconhece Judith Martins-Costa, “o alcance para além do caso concreto ocorre porque, pela reiterag&o dos casos e pela reafirmagao, no tempo, da ratio decidendi dos julgados, se especificard nao sé 0 sentido da clausula geral mas a exata dimensdo da sua normatividade. Nesta perspec- tiva 0 juiz é, efetivamente, a boca da lei~nao porque reproduza, como um ventriloquo, a fala do legislador, como gostaria a Escola da Exegese - mas porque atribuiu a sua voz a dicgao legislativa, tornando-a, enfim e entao, audivel em todo o seu multiplo e variavel alcance”.** Os conceitos indeterminados, pela sua prépria natureza, facilmente se amoldam A alterac4o da realidade social. A permeabilidade desses con- ceitos confere ao Judicidrio maior facilidade para adequar 0 direito aos novos tempos. Isso nao quer dizer, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiga nao tenha que definir o sentido de um conceito indeterminado em. face de uma especifica situagao no tempo. Trata-se de funcao essencial da Corte, uma vez que ha necessidade de definir 0 sentido em que um con- 48. MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um “sistema em construgao”, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 15, p. 139. 96 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES ceito indeterminado deve ser compreendido em determinado momento historico, evitando-se a sua multipla e incoerente aplicacao em face de casos similares. Esclareca-se que isso nao se choca com a natureza dos conceitos indeterminados, pois cabe a uma Corte Suprema nao s6 outorgar sentido aos textos legais, mas também conferir-Ihe novo sentido quando necessario — diante da alteracao da realidade social e da concepcao geral acerca do direito. Importa perceber, ainda, que determinadas. clausulasabertas, ao darem ao juiz o poder de escolher entre varias alternativas conforme as circuns- tancias do caso, obviamente n&o isentamo Superior Tribunal de Justica de definir que alternativa, entre varias, deve ser empregada em face de umaes- pecifica particularidade concreta. Exemplifique-se coma norma processual que confere ao juiz 0 poder de adotar 0 “meio executivo necessario” para dar efetividade as tutelas de direito que dependem de um fazer ou de um nao fazer por parte do demandado, Quando uma tutela de direito depende de-um fazer fungivel, ¢ possivel questionar se o juiz pode impor multa para constranger o réu a fazer.” Alguém poderia dizer que nao, uma vez que os meios de execugdo direta, como abuscae apreensao, permitema realizacao de uma tutela que independe da participagao da vontade do demandado. Essa é uma questao de direito cuja solucdo~ seja qual for—deve ser coerente esempre a mesina diante de casos similares. ‘Uma vez que a técnica das clausulas gerais difundiu-se a partir dos anos 40 do século XX, € no minimo curioso constatar que os paises do civil law ainda nao tenham efetivamente se apercebido do problema da necessidade de se dar estabilidade as normas “judiciais” fixadas para dar concretude a uma clausula aberta. Na verdade, o sistema que prevé clausulas gerais e deixa de se preocupar com a estabilidade das normas judiciais fixadas a partir delas énegligente em relacao aos préprios valores que est4o a sua base. Ata funcao do Superior Tribunal de Justica é muito importante. A missdo de atribuir sentido a lei e garantir a uniformidade da sua aplicacao € mais sensfvel em face das clausulas abertas. Uma clausula aberta pode dar origem a varias questoes de direito. importa definir a solugao destas questées, configurando-se anorma juridica que, segundo a Suprema Corte, deve resolvé-las em todo o territorio nacional. *®. XAMARINONI, Luiz Guilherme, Tatela inibitoria. 5. ed, So Paulo: Ed. RT 1. , 50. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatérios, 2. ed., cit., p. 154-155. © PROBLEMA DA INTERPRETAGAO DA LEI | 97, 1.8 A interpretacdo de acordo com a Constituigao No Estado constitucional, as normas constitucionais e os direitos fundamentais dao unidade ¢ harmonia ao sistema e, por isso, obrigam o intérpretea colocar o texto da lei na sua perspectiva. Em outras palavras, as nortnas constitucionais s4o vinculantes da interpretacao das leis.2! Emboraa interpretacao da lei sempre deva considerar 0 texto constitu- cional, nem sempre, como € 6bvio, o intérprete est diante de um caso que Ihe exige a escolha da interpretacao que esta de acordo coma Constituicao, Porém, quando isso ocorre, a margem de discricionariedade para o juiz definir a interpretacao da norma é mais ampla. Anorma constitucional vincula a interpretacao da lei, mas. a primeira tem uma natureza muito mais aberta do que a segunda. A confrontagéo com a norma constitucional, em outras palavras, coloca o intérprete da lei numa posigao em que o seu espaco é maior. Numa sociedade complexa, marcada pelo “desacordo interpretativo razoavel”, em que muitos concor- dam abstratamente em torno de direitos fundamentais, mas discordam do sentido que esses direitos devem assumir em face de situacdes concretas,* 0 ponto exige atencao. De qualquer forma, além de ser necessario ter em conta que a lei é mais objetivavel do que a norma constitucional, ¢ preciso ver que a interpretacao de acordo com a Constituicao € admissivel apenas quando, diante de multiplas interpretacdes possiveis, torna-se 0 intérprete obrigado a escolher a que melhor representa o contetido da Constituigao. Nesses casos, a legitimidade da prestacdo jurisdicional é vinculada a uma precisa justificagdo, Nao obstante, ¢ imprescindivel que a interpretacdo definida pelo ST) “como de acordo com a Constituigao” se projete sobre os tribunais e juizos 51. “Segundo certas doutrinas, as Constituigées no sto mais que um ‘manifesto’ politico cuja concretizacdo constitui tarefa exclusiva do legislador: os tribunais, nao devem aplicar as normas constitucionais — carentes de qualquer efeito imediato -, mas apenas as normas que sao afirmadas pelas leis. Pois bern, um dos elementos do processo de constitucionalizagdo € precisamente a difusdo, no seio da cultura juridica, da ideia opasta, ou seja, da ideia de que toda norma cons- titucional — independentemente de sua estrutura ou de seu contetido normative —é uma norma juridica genuina, vinculante e suscetivel de produzir efeitos juridicos” (GUASTINI, Riccardo. La “constitucionalizacién” del ordenamiento juridico: el caso italiano. In: FERRAJOLI, Luigi et al. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2001. p. 53). 52. V. MICHELMAN, Frank. Constitutional authorship. Constitutionalism: philo- sophical foundations. New York: Cambridge University Press, 1998. p. 88-89. 98 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES, inferiores.” E que a interpretacdo de acordo com a Constituicao, como 0 proprio nomeindica, exclui outras interpretacdes—que nao esto deacordo. Permitir que os tribunais ordinarios utilizem as interpretacdes excluidas pelo ST] éafrontara coeréncia do direito, a seguranca juridica ea igualdade perante as decisdes judiciais. Ainterpretacdo que o ST] entende de acordo deve ser obrigatoriamente empregada pelos tribunaisinferiores em casos similares. Note-se, porém, que 0 ST] nega as demais interpretacdes para o caso sob julgamento, Assim, as interpretagées nao adotadas pelo ST] podem ser utilizadas pelos tribunais inferiores em casos distintos. Lembre-se ainda que o ST} tem exercido o controle de constitucionali- dade. Embora a Constituicao Federal nada diga sobre isso, argumenta-se que, como o sistema brasileiro admite o controle incidental de constitucio- nalidade, conferindo a qualquer juiz e tribunal ordindrio 0 poder de fazé-lo, nao teria sentido pensar que o Superior Tribunal de Justica esta impedido a tanto. Nesse ponto, o proprio Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiga é claro. 53, V.CAPONI, Remo. “Cid che non fa la legge, lo fa il giudice, se capace”: Timpatio costituzionale della giurisprudenza della Corte di cassazione italiana. Annuario di Diritto Comparato e di Studi Legislativi. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 2011. p. 223-248. 54, ZAVASCKI, Teori. Jurisdi¢&o Constitucional do Superior Tribunal de Justiga. Revista de Processo, v. 212. 55. RISTJ: “Titulo VI - Da declaracao de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do Poder Ptiblico. Art, 199. Se, por ocasiéo do julgamento perante a Corte Especial, for arguida a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder publico, suspender-se-4 o julgamento, a fim de ser tomado o parecer do Ministério Publico, no prazo de quinze dias. § 1.° Devolvidos os autos ¢ lancado o relatério, serao eles encaminhados ao Presidente da Corte Especial para designar a sessdo de julgamento. A Secretaria distribuird cépias autenti- cadas do relatério aos Ministros. § 2.° Proclamar-se- a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade do preceito ou ato impugnado, se num ou noutro sentido se tiver manifestado a maioria absoluta dos membros da Corte Espe- cial. § 3.° Se nao for alcangada a maioria absoluta necessaria a declaracao de inconstitucionalidade, estando ausentes Ministros em mimero que possa influir no julgamento, este sera suspenso, a fim de aguardar-se 0 comparecimento dos Ministros ausentes, até que se atinja o quorum; nao atingido, desta forma, 0 quorum, seré convocado Ministro nao integrante da Corte, observada a ordem de antiguidade (art. 162, 8 3.°). § 4.° Copia do acordao sera, no prazo para sua publicagao, remetida a Comissdo de Jurisprudéncia que, apés registré-lo, © PROBLEMA DA INTERPRETAGAO DALEL | 99 Quando o tribunal de apelacdo decide a questao constitucional ea questao federal infraconstitucional, devem ser interpostos, concomitan- temente, recurso extraordinario e recurso especial, sob pena de preclusao da possibilidade de discussao da primeira. Assim, admite-se 0 controle de constitucionalidade no STJ apenas quando a questo constitucional brota a partir da andlise do recurso especial. Porém, se a funcao da Corte é atribuir sentido ao direito federal infra- constitucional, é oportuno questionar se ela deve tratar da quest4o cons- titucional, mesmo que incidentalmente. Ou melhor, é possivel pensar, em tese, se o STJ realmente deve exercer a funcd4o de controle incidental da constitucionalidade ou se seria mais adequado existir um sistema de envio da questdo constitucional ao STF ficando a decisdo do ST] subordinada ao pronunciamento do STE Recorde-se que a fungao do STJ é atribuir sentido ao direito federal infraconstitucional. Na verdade, o argumento de que todos os jutzos e tri- bunais exercem o controle de constitucionalidade nao é valido em face das Cortes Supremas. Essas tém funcées distintas, que ndo devem se misturar. Significa dizer que deveria existir um sistema que permitisse o adequado relacionamento entre as Cortes Supremas, apto a permitir a solucdo da questao constitucional que floresce no curso do raciocinio decisério do Superior Tribunal de Justica. 1.9 Aracionalidade da decisao interpretativa. O papel da argumentacao A circunstancia de a atividade interpretativa poder chegar em varios resultados ou normas juridicas, sem que se possa assegurar qual éacorreta, obviamente nao quer dizer que esses possam deixar de ser justificados e racionalizados.® A interpretacdo nao se contenta coma mera atribuicado de ordenara a sua publicacdo na Revista do Tribunal. Art. 200. 4 Secao ou a Turma remeterd o feito ao julgamento da Corte Especial quando a maioria acolher arguigéo de inconstitucionalidade por ela ainda nao decidida. § 1.° Acolhida a arguicao, sera publicado o acordao, ouvido, em seguida, o representante do Ministério Publico, em quinze dias. § 2.° Devolvidos os autos, observar-se-& 0 disposto nos $8 1. 3.° do antigo anterior. § 3.° O relator, ainda que nao integre a Corte Especial, dela participara no julgamento do incidente, excluindo-se 0 Ministro mais moderno.” 56. ZACCARIA, Giuseppe. Complessita della ragione giuridica, Questioni di inter- pretazione. Padova: Cedam, 1996. p. 3-20. 100 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES significado ao texto legal, sem se importar com qual seja ele, mas requerum significado justificado ou ao menos justificavel, exigindo, por consequén- cia, a apresentacao de razdes que confiram ao significado uma “relativa” correcdo.77 Como diz Wroblewski, justificar uma decisio judicial consiste em dar-lhe as razées apropriadas.”* Portanto, se a interpretacao nao pode simplesmente descobrir e descrever a norma implicita no texto legal ou o direito inscrito no sistema, o problema somente pode ser o de ter uma de- cisao dotada de aceitabilidade racional.*° Como é obvio, uma decisao nao é racional em si, pois a racionalidade da decisao nao ¢ atributo dela mesma; uma decisao “se mostra” racional ou nao, Necessita de “algo”, isto é, da ra~ cionalidade da argumentacdo quea fundamenta. A argumentac4o éque pode demonstrar a racionalidade da decisio e, assim, a “decisao adequada”. Na verdade, a interpretacao ¢ sempre acompanhada da apresentacao de razoes que devem ser oferecidas como as melhores, como “raz6es apropriadas” ou como “boas raz6es”, ja que destinadas a justificar a correcdo do significado atribuido ao texto.” Embora a interpretacdo possa outorgar a lei um sentido que depende da vontade do juiz, nao ha ditvida que o primeiro parametro da deciséo esta na lei, Isso, entretanto, nao € suficiente como argumento em favor da decisto. Decisdo racional nao € o mesmo que decisdo baseada apenas em dados dotados de autoridade; geralmente, senao sempre, a decisao judicial exige que a argumentacdo recaia em pontos que nao podem ser dedutiva- mente expostos.*' Ou melhor, a racionalidade do discurso judicial, sempre que ultrapassa a simples deducdo logica a partir da norma geral para o caso 57. Cf. CHIASSON, Pierluigi. Tecnica dell’interpretazione giuridica, cit., p. 61. 58. WROBLEWSKI, Jerzy. Legal syllogism and rationality of judicial decision. Rechtstheorie, Berlin: Duncker & Humblot, 1974. v. 5, parte 1, p. 39. 59, MICHELMAN, Frank, Justification (and justifiability) of law in a contradictory world, Nomos XXVIII: Justification. p, 71-99. 60. V. CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell’interpretazione giuridica, cit., p. 21 ess. 61. Sobre a argumentagao juridica, Chaim Perelman (Perelman e Lucie Olbrecht- -Tyteca, Trattato dell’argomentazione), Theodor Viehweg (Topica e jurispruden- cia), Edward H. Levi (An introduction to legal reasoning), Stephen Toulmim (The uses of argument), Neil MacCormick (Legal reasoning and legal theory), Robert Alexy (Teoria da argumentacao juridica), Aulis Aarnio (The Rational as Reasonable), Aleksander Peczenik (On law and reason), Klaus Giinther (Teoria da argumentacao no direito e na moral: justificagao e aplicacao); Jargen Habermas Wireito ¢ democracia) e Cass Sunstein (Legal reasoning and political conflict). O PROBLEMA DA INTERPRETACAO DALEL | 101 particular, ¢ dizer, sempre que pde em questao a premissa da subsuncao, envolve um discurso que vai além daquilo que tradicionalmente se concebe como juridico ~ que extravasa o dominio restrito das “fontes do direito”. Como escreve Carlos Santiago Nino, para justificar suas decisdes os juizes devem recorrer, e de fato recorrem explicita ou implicitamente, a raz6es justificatorias, e, num ambito onde esto em conflito interesses de diferentes individuos, somente constituem raz6es justificatérias principios morais considerados validos.® Isto é uma consequéncia do fato de que con- clusdes normativas s6 podem justificar-se com base em normas. Solugées normativas, como as que os juizes adotam e os juristas propugnam, nao podem ser justificadas com base em proposi¢des descritivas acerca de normas juridicas, elaboradas desde um conceito puramente descritivo de direito como 0 proposto pelos positivistas, j4 que tais proposicdes descreveriam, em ultima instancia, uma sequéncia complexa de fatos que, como tais, sao compativeis com qualquer decisao. Ainda quando exista uma norma juridica precisa para justificar a decisdo que se deve adotar, ela nao pode incorporar-se, como tal, a0 racio- cinio justificatorio com independeéncia de juizos valorativos. Isso ¢ assim porque é essencial ao carater normativo de uma norma juridica, ou a sua distintividade como norma juridica, a existéncia de certas caracteristicas que marcam a sua formulagao, e que inevitavelmente se perdem quando se trata de um raciocinio justificat6rio que conduza uma decisao. Dentro de um raciocinio normativo justificatério, uma conclusdo $6 pode derivar de uma premissa normativa, e essa premissa, exatamente por ser normativa, também precisa estar normativamente fundada. Logo, nesse tipo de justifi- cacao € preciso fundara validade da premissa, e como uma norma nao pode ser validada por um fato, seja ele um fato hipotético produtor de normas (norma fundamental de Kelsen) ou um fato social (regra de reconhecimento de Hart), é necessario fundar as premissas da solucéo normativa na Mo- ral. Por isso, quando os juizes apoiam suas decisoes em normas juridicas, 62. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios - Politicos y Constitucionales, 2002. p. 530. 63, SANTIAGO NINO, Carlos. Etica y derechos humanos. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1989. p. 21. 64. Idem, p. 22. 65. Idem, p. 23. Para o aprofundamento do argumento de Santiago Nino, ver a critica de Dworkin ao positivismo de Hart, especialmente a nogio de regra de reconhecimento como fundamento da ordem juridica, em The model of rules (Taking rights seriously, cit.). 102 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES fazem-no através de juizos “de adesao normativa” , que consistem em juizos valorativos que se inferem de principios morais que prescrevem obedecer a ordem juridica e as proposicdes descritivas dessa ordem juridica.* Segundo Alexy, ndo sao posstveis teorias morais materiais que deem uma tnica resposta, intersubjetivamente concludente, a cada questéo mo- ral, porém sdo posstveis teorias morais procedimentais que formulem regras ou condicées da argumentacdo ou da decisdo pratica racional, sendo que a teoria do discurso pratico racional ¢ uma versdo muito promissora de uma teoria moral procedimental. Essa teoria tem uma grande vantagem sobre as teorias morais materiais, pois ¢ muito mais facil fundamentar as regras da argumentacdo pratica racional do que as regras morais materiais.”” Para o aperfeicoamento da racionalidade da argumentacao judicial, Alexy prop6e a passagem por quatro procedimentos ou a criacao de um procedimento com quatro etapas ou graus: o primeiro € 0 discurso pratico, envolvendo um sistema de regras que formula uma espécie de cédigo geral da razao pratica; o segundo € 0 procedimento legislative, constituido por um sistema de regras que garante uma consideravel medida de racionalidade pratica e, nesse sentido, justifica-se dentro das linhas do discurso pratico. Depois seguem o discurso juridico e o procedimento judicial. O discurso jurtdico € um caso especial do discurso prético geral. Essa tese esta baseada em trés razées. A primeira é que, ao final, a discussao jurt- dica, como aargumentacao pratica geral, esta voltada a solugao de questdes praticas, a respeito do que é obrigatorio, proibido ou permitido. A segunda raz4o é que uma pretensao de correco ¢ levantada no discurso juridico tanto quanto no discurso pratico geral. A terceira diz quea argumentacao juridica € um caso especial, porque a pretensao de correcao no discurso juridico é distinta daquela presente no discurso pratico. Diversamente do discurso pratico geral, a argumentacado juridica nao se refere ao que é absolutamente correto, mas ao que € correto no marco e sobre a base de um sistema juri- dico validamente predominante. O que é correto em um sistema juridico depende essencialmente do que esta ou institucionalmente estabelecido e © que se ajusta a isso. A argumentacao juridica esta vinculada as leis e aos precedentes e deve observar o sistema de direito elaborado pela dogmatica Juridica.” O discurso juridico restringe amargem deinseguranca do discurse 66. Cf. SANTIAGO NINO, Carlos. Etica y derechos humanos, cit., p. 23. 67. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, cit., p. 530. 68. Idem, p. 531. 69. ALEXY, Robert. The special case thesis. Ratio Juris, v. 12, n. 4, p. 375. O PROBLEMA DA INTERPRETACAO DALEL | 103 pratico, mas obviamente nao permite chegara um grau de certeza suficiente, nao eliminandoa inseguranga do resultado.” Ele pode gerar aaceitabilidade racional, mas nao a previsibilidade absoluta das suas decisées.” A justificativa das premissas da decisdo judicial € racional se elas sto individualizadas de acordo com as regras do discurso pratico e as suas especificagdes no ambito juridico. Importa frisar que tais regras, na teoria de Alexy, submetem-se as exigéncias ético-normativas dos dois principios fundamentais do Estado Constitucional: o principio da liberdade indivi- dual — visto como reflexo juridico do principio moral da autonomia —¢ 0 principio da igualdade — reflexo juridico do principio moral da paridade da dignidade social dos homens. De acordo com Alexy, o Estado Constitu- cional, enquanto sede da argumentacao pratica racional, constitui a tnica base institucional idénea a otimizar a satisfacdo da correcao das decisées judiciais em um mundo em que qualquer pretensio de correcéo absoluta deve ser abandonada como iluséria.”” Enquanto a tese de Alexy possui acento ético-normativo, outra impor- tante teoria, também inserida no modelo analitico da justificacao racional das decisées judiciais, sustenta que a nogao de decisdo racional, assim como as de justificagao interna (l6gico-dedutiva) ¢ externa (normativa € probatéria), tém valor explicativo. Trata-se da teoria de Jerzy Wroblewski, para quem essas nocdes sao mecanismos de andlise das sentencas e de re- construcdo dos seus contetidos e servem para deixar claras as premissas, 0s critérios argumentativos que os acompanham, assim como 0 nexo entre as premissas e as conclusées.” Essa teoria possui marca teorico-explicativa, nada devendo a valores ético-normativos. Asteses de Alexy e Wroblewski sao importantes representantes da teoria analitica do raciocinio juridico. Entre elas nao ha incompatibilidade; alguém situado num Estado Constitucional pode utilizar ambas, adotando a tese de Alexy como uma possivel especificacao da tese de Wroblewski." Como explica Chiassoni, Alexy apresenta um modelo de motivacao racional que constitui a um s6 tempo o modelo de decisao judicial justificado mais ade- quado, em uma perspectiva ético-normativa, anatureza ea fun¢ao do Estado 70. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentates, cit., p. 532. 71, MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil - Teoria Geral do Processo (1). 7. ed. Sa0 Paulo: Ed. RT, 2013, Parte I, item 7.22. 72. Cf. CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell’interpretazione giuridica, cit., p. 16. 73. Idem, p. 15. 74, CE. CHIASSONI, Pierluigi. Tecnica dell'interpretazione giuridica, cit., p. 16 104 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES de Direito Constitucional-Democratico, que éa nica forma de organizacéo juspolitica moralmente aceitavel. Enquanto isso, Wroblewski oferece um modelo de motivacao racional das decisoes judiciais que constitui simples- mente uma mais clara ¢ precisa reconstrucao esquematica daquilo que, de fato, entende-se por decisao justificada na cultura ocidental contemporanea, sem se preocupar se esse modelo é ou nao axiologicamente correto.”* Toda lei ou texto legal exige decisdo interpretativa, ou seja, definicao desentido. Recorde-se que 0 sentido da lei nao esta no texto e nao antecede a tarefa judicial; o sentido da lei é 0 resultado ou o produto da atividade interpretativa.”* Wroblewski elaboroua “teoria da interpretacao operativa”, ancorada em um modelo de “diretivas interpretativas”. Nessa linha, para se chegar ao sentido da lei é necessaria uma atividade regida por diretivas interpretativas, que, em regra, dependem de valoracdes.”’ As diretivas ou critérios de interpretacdo nao dizem respeito apenas a linguagem em que a norma € formulada ou ao sistema juridico a que pertence, mas também ao contexto funcional em que opera, que incluiu diversos elementos econd- micos, culturais, politicos e outros fatores sociais.® Vale dizer: as diretivas 75. Idem, ibidem, 76. V.JORI, Mario; PINTORE, Anna. Manuale di teoria generale del diritto, cit., p. 205 e ss.; SACCO, Rodolfo. Interpretazione del diritto. Dato oggettivo e spirit dellinterprete. Diritto, giustizia e interpretazione, cit., p. Ll ess. 77. WROBLEWSKI, Jerzy. Legal syllogism and rationality of judicial decision. Rechtstheorie, v. 5, parte 1, cit., p. 40 e ss. 78. Wroblewski fala em diretivas interpretativas de primeiro e segundo graus. As de primeiro grau sdo regras que indicam como se determina o sentido da norma juridica pelo uso de seus elementos de contextos fundamentais. As trés classes de contextos relevantes para o significado de uma norma Juridica séo (i) a linguagem em que esta formulada, (ii) 0 sistema juridico a que pertence, ¢ (iii) 0 contexto funcional em que opera, € que inclui varios elementos econdmicos, politicos, culturais e outros fatores sociais da génese e operacdo da norma em questao. As diretivas que se situam nesses trés grupos, correspondentes aos contextos fundamentais, Wroblewski chama de diretivas de interpretacao juridica lingufsticas, sistémicas ¢ funcionais. As diretivas interpretativas de segundo grau, por sua vez, determinam a utilizagao das de primeiro grau, dividindo-se em dois grupos. Diretivas que regulam 0 uso das diretivas interpretativas de primeiro grau, estabelecendo a sequéncia as condigées da sua aplicacao (diretivas de procedimento), ¢ diretivas que determinam uma selegéo preferencial entre sentidos distintos atribuidos & norma com consequéncia do uso da varias séries de diretivas interpretativas de primeiro grau (diretivas de preferéncia) (WROBLEWSKI, Jerzy. Legal (© PROBLEMA DA INTERPRETAGAO DALEL | 105, ndo s4o apenas linguisticas ou sistémicas, mas também funcionais. Ainter- pretacdo, portanto, nao é realizada mediante um trago linear, guiado por critérios formais e premissas certas, aptos a conferir a um resultado exato. Ouso das diretivas e o emprego das valoragoes devem ser justificados; as op¢ées interpretativas devem ser justificadas. Wroblewski trabalha com os conceitos de justificacdo interna e de justificacao externa. A justificagao interna da decisao judicial ocorre quando a decisao ¢ inferida de suas pre- missas em conformidade com uma regra de inferéncia aceita. E 0 que se da na particularizacao da norma geral mediante a subsuncao. Na justificacao externa, porém, o que esta em jogo nao é a validade da inferéncia, mas a validade das premissas. A justificacdo externa de uma decisdo exige a de- monstracao de que as suas premissas sao consistentes.”? Como se vé, em Wroblewski nao ha interpretacao “objetivamente” corteta, 4 quea interpretacao sempre depende de juizos de valorsubjetivos. A ideia de interpretagao correta é sempre relativa a determinadas diretivas interpretativas e aos juizos de valor que lhes sao correspondentes, ouseja, as valoracées que entram necessariamente em cena quando da individua- lizacdo e da aplicagao das diretivas. A partir da mesma perspectiva, Tarufflo adverte que dizer que a inter- pretagdo determina o significado “exato” de uma norma é uma afirmacdo privada de sentido, uma vez que a interpretaco pode determinar apenas significado fundado no emprego correto de critérios de eleicdo aceitaveis, ou seja, 0 significado fundado nas “melhores razées”."° Ainterpretacdo fundada nas melhores razées tema ver coma’ correcao, doprocedimentodeeleigao e comaaceitabilidade dos critérios em que elase funda, ndo se ligando a correcdo do resultado interpretativo. Fala-se, ent4o, em “exatidao do método” de interpretacao da lei; o método € correto quan- do a decisdo ¢ racionalmente justificada sob o perfil interno — de coeréncia entre as premissas e conclusées —e sob o perfil externo ~de fundabilidade eaceitabilidade das premissas.* syllogism and rationality of judicial decision. Rechtstheorie, v. 5, parte 1, cit., p. 40 e ss.; WROBLEWSKI, Jerzy. El razonamiento en la interpretacion juridica, Sentido y hecho en el derecho, p. 179). a 79. WROBLEWSKI, Jerzy. Legal syllogism and rationality of judicial decision. Rechtstheorie, v. 5, parte 1, p. 33-46. ; 80. TARUEFO, Michele. La Corte di Cassazione ¢ la legge. Il vertice ambiguo. Saggi sulla Cassazione civile, cit., p. 103. 81. Idem, p. 105. 106 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES A devida justificativa das op¢ées interpretativas faz ver a raciona- lidade da interpretacdo € da decisao. “Decisdo adequada” é a dotada de racionalidade,™ para o que é imprescindtvel “razées apropriadas” ou as “melhores raz6es”. A justificativa ou a qualidade das razoes depende das caracteristicas basicas da cultura juridica ou, mais propriamente,da propria cultura geral que apela a racionalidade ® , Nao ha interpretacao exata da lei ou interpretacdo correta se, com isso, pretende-se algo que independe de juizos de valor subjetivos, Hé, isso sim. interpretacdo que, a partir de ditetivas e de juizos de valor, € devidamente justificada; h4, porassim dizer, “decistoadequada” ou “decisao racionalmente aceitavel”. Substitui-se, dessa maneira, a ideia de interpretacdo correta pela de “interpretacdo dotada de razoes apropriadas”, Tutela-se a legalidade me- diante a pratica argumentativa ea busca da racionalidade.* E com essa que © Superior Tribunal de Justica deve se preocupar ao dar sentido a lei federal. 1.10 A universabilidade da decisio como garantia da sua racionalidade Nao ha cabimento em interpretar um mesmo texto legal, deleextraindo a norma juridica X e a norma juridica Y, sem que circunstancias faticas re- levantes possam justific4-las como racionais. Decisoes: desiguais para casos substancialmente iguais constitui atentado a igualdade, a previsibilidade e a coeréncia da ordem juridica. . Para que se possa extrair de um mesmo texto legal uma nova norma Juridica € preciso ter presente outras circunsténcias, capazes de justificar 82. Com diz Wroblewski, a decisao judicial deve ser uma decisio racional. Nesse contexto, por racionalidade se entende a justificacdio da decisao através da norma peli, dos Fates provados, dos raciocinios e das valoracées (WROBLEWSKI. letzy. Ideologia de la aplicacién judicial del derecho. : Jens Teoogi i 10. Sentido y hecho en el de. 83. WROBLEWSKI, Jerzy. Constitucion y teorta general de la interpretacton Juridica, +s P. 59. , 84, Taruffo tem essa mesma conclusio. Diz que a fungio da Cassagao nao mais Pode ser vista como a de assegurar a exatidao formal da interpretagdo, uma vez que isso equivaleria a fazer prevalecer a interpretacdo formalista, fundada apenas sobre critérios formais. Cabe a Cassacdo, isso sim, estabelecer qual é a interpretacao justa — ou mais justa ~ da norma com base nas diretivas e eleicdes interpretativas mais corretas, ou seja, aceitaveis a partir das “melhores razoes” CTARUFFO, Michele. La Corte di Cassazione ela legge. Il vertice ambiguo. 5 sulla Cassazione civile, cit., p. 104). oes © PROBLEMA DA INTERPRETACAQ DALEI | 107, aconvivencia da nova decisao ao lado da decisao anterior, sem que anova signifique contradicao da primeira. Nesse caso a nova decisdo constitui outro precedente, que se coloca ao lado do ja existente, revelando a devida e esperada contribuicdo do Judiciario para o desenvolvimento do direito. Hi, nessa situacao, o que se chama de distinguishing. Decisao diversa sobre caso substancialmente igual apenas pode ser tomada pela prépria Corte Suprema que ja decidiu acerca do caso. Isso se da mediante 0 que se chama de overruling ou revogacao da decisao, quan- do as razoes da decisao revogadora devem ser capazes de superar, a partir determinados critérios, aquelas que estao 4 base da primeira decisao. Entretanto, quando se pensa em decisao universalizavel nao se esta propriamente considerando o caso sob julgamento em face do precedente ja firmado, mas apontando-se para a necessidade de a justificativa da decisao conterrazées que demonstrema possibilidade da sua aplicacdo em todos os casos dotados das mesmas particularidades faticas individualizadas como relevantes. Como escreve MacCormick, um ato s6 pode serjustificado como correto mediante universalizacdo, uma vez que mostrar a sua correcdo € evidenciar que, sob qualquer visdo objetiva do tema, 0 ato deveria ser pra- ticado — ou mesmo deve ser praticado — em face das caracteristicas do ato e das circunstancias do caso.” A universabilidade, ou seja, a necessidade de que um argumento de validez de uma conclusao seja capaz de sustentar igual resultado diante de narrativas andlogas, constitui regra de racionalidade do discurso pratico, de que 0 discurso juridico é, como ja dito, um caso especial.* A universa- pilidade, portanto, é antes de tudo uma regra de racionalidade do discurso (pratico). Ninguém deve invocar um motivo para justificar uma acao sabendo que ndo podera utiliza-lo para justificar agdes similares,*” assim 85. Maccormick, Neil. Rhetoric and the Rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 1995. p. 131 ess. 86. Lembre-se que essa tese se baseia em trés argumentos: (i) a discussao jurtdica, como a argumentacao pratica geral, esta voltada a solucao de questdes praticas, a respeito do que é obrigado, proibido ou permitido; (ii) levanta-se pretensao de correcao tanto no discurso juridico quanto no discurso pratico geral; (iii) a argumentagio juridica constitui um “caso especial”, uma vez que a pretens4o de correcdo no discurso juridico € distinta daquela presente no discurso pratico (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, cit., p. 532). 87. Sustenta Paula Pessoa, com base em MacCormick, que “s podemos afirmar que a pratica de uma acao tomada em virtude de certas caracteristicas € correta se essa aco for considerada correta em todas as outras situagdes nas quais as 108 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES. como ninguém pode invocar razao diversa para deixar de praticar acdo com o mesmo contetido. Trata-se, como se vé, de condicao para evitar a arbitrariedade. Auniversabilidade tem importancia para propiciara aceitabilidadedas raz6es justificadoras da “deciséo judicial” e para permitira checagem de se as decisées que Ihe sao posteriores ferem a igualdade. Desse modo a regra da universabilidade incide em duas perspectivas: para justificara racionali- dade da decisao e para identificar se uma decisio, posteriora firmada como precedente, negaasrazées desse ultimo. Essa: segunda perspectiva, contudo, € uma consequéncia da adocao de um critério de racionalidade da decisto. A universabilidade nao constitui garantia da “justica da decisdo” ou da corre¢do da interpretacdo. A impossibilidade de se decidir casos simila- tes do mesmo modo revela parcialidade ou arbitrariedade. Nesse sentido. uma decisao judicial é formalmente correta apenas quando pode resolver casos similares. A partir da premissa de que uma decisio deve ser capaz de regular todos os casos similares e, assim, da ideia de imparcialidade que justifica essa premissa, a universabilidade constitui fator que militaem favor da racionalidade da decisao ou da correcao da decisio em sentido formal. Perceba-se que uma decisdo aplicavel a todos os casos dotados das mesmas Caracteristicas € como uma norma legal que, sem distincdo, regula todas as situacdes que guardam as mesmas particularidades, €, portanto, quando aplicada em face de alguém, possui uma ampla condicao de acei. tabilidade racional. Diante da impossibilidade de se ter uma interpretacao ou uma deci- sao substancialmente correta e da consciéncia de que a tarefa do Superior Tribunal de Justiga € outorgar sentido ao texto legal mediante as “razdes apropriadas” ou as “melhores razées”, a universabilidade constitui crité- tio de correcdo da racionalidade da decisio, pois permite ver que as razées que justificaram a decisdo nao sao “apropriadas” nem as “melhores”, na medida em que inaplicaveis a casos similares, isto é, a casos que deveriam ser solucionados mediante as mesmas razées. mesmas caracteristicas se verificarem. Aplicando este raciocinio no contexto da tomada da decisdo judicial temos que uma decisio apenas pode ser considerada correta se ela puder ser tomada em outra disputa juridica que apresente o mesmo Predicado fatico e conjunto de caracteristicas verificadas no contexto da decisao ansetior (PESSOA, Paula © STJ como Corte de Definigao de Direitos. Uma ificativa a partir do Universalismo, ai Justifcatva a Pe indo Univer 10. Dissertacio de Mestrado. Faculdade de © PROBLEMA DA INTERPRETACAO DALE] | 109 Seadecisao ea interpretacao nao se subsumem aos critérios do “unico” edo “correto”, embora possam ser consideradas racionalmente aceitaveis em vista de suas razGes justificadoras, a universabilidade constitui critério apto a demonstrar a impropriedade dessas razoes. Assim, ainda que a uni- versabilidade nao seja critério suficiente para garantir a racionalidade da deciséo, uma vez que essa depende de outras variantes contidas nas suas +az6es justificadoras, ela constitui fator da mais alta relevancia para justificar aracionalidade juridica, legitimando 0 “modo” de decidir e de interpretar. Além de contribuir para a racionalidade juridica, a universabilidade favorece a isonomia e inibe a parcialidade. Ao decidir, a Corte sabe que nao podera tratar os casos similares de modo diferente. Por isso € obrigada a proferir uma decisdo que, considerando os fatos e fundamentos juridicos relevantes, tenha validade para todos os casos posteriores que se enquadrem, namesma moldura. Significa que nao podera decidir o caso sob julgamentoa nao sera partir de critérios que tenham validade para todos os casos. Assim, ficara impedida de decidir de modo parcial, isto é, considerando particu- laridades que nao sao relevantes para uma deciso universal ¢ imparcial.* 1.11 O STJ diante da questao da interpretacao da lei O art. 105, Ill, a, da CF afirma que o recurso especial ¢ admissivel em caso de “contrariedade a lei”. A ideia de contrariar a lei aponta para a existéncia de uma interpretacdo exata ou correta da lei. S6 a lei cuja inter- pretacdo ¢ exata ou correta pode ser contrariada. Note-se, porém, que agora oconceito de falsa interpretacdo da lei nao é mais uma vantagem, pois nao hd mais qualquer duvida que o juiz interpreta a lei. O proprio conceito de “falsa interpretacdo”, portanto, é posto sob julgamento. Para admitiras ideias de interpretacdo exata da leie de falsa interpreta- cao da lei seria necessario aceitar o formalismo teorico. A interpretacao s6 pode ser exata ou falsa quando se supde que o sentido da lei é pré-existente ao exercicio da tarefa jurisdicional. Apenas quando a funcao do juiz é apta 88. “O critério de correcao, como um critério de verificacao da plausibilidade das premissas usadas pelo julgador e da conclusio inferida, favorece o afastamento de selecao de fatores pessoais para o julgamento, pois se 0 juiz tiver a intengao de favorecer um grupo ou pessoa € para tanto se utilizar de uma premissa X, deverd usar a mesma premissa para resolver todos os casos que s¢ encontrem naquele conjunto de caracteristicas ¢ circunstancias” (PESSOA, Paula. O ST] como Corte de Definicao de Direitos, Uma Justificativa a partir do Universalis- mo, Dissertagao de Mestrado. Faculdade de Direito da UFPR, 2013. p. 111). 110 | Ost) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES apermitira extragao do sentido implicito no texto legal e, portanto, a inter- pretacdo é uma atividade de conhecimento e de descricao, € possivel dizer que o produto ou o resultado da atividade interpretativa, que entdo seria um enunciado descritivo, € falso ou verdadeiro, Ocorre que a atividade interpretativa consiste em individualizacao de sentidos possiveis, valoracao e decisao. O produto da atividade de in- terpretacao esta longe de ser uma mera descricao; é um ato de decisio, de vontade, de positivacao do poder. Nessa dimensdo fica claraa existéncia de enunciados das fontese de enunciados interpretativos ou judiciais. O texto legal ow a lei, como enunciado das fontes, nao se confunde com 0 ditado judicial proveniente da atividade de interpretacdo. Esse ditado é 0 sentido atribuido pelo juiz ao enunciado legislativo. Prefere-se, assim, chamar o significado atribuido a lei de norma juridica, deixando-se lei, também costumeiramente assim designada, a designacao de texto legislativo. Com essa distincdo nao apenas se evita a confusao entrea leieo sentido aelaatributdo, como especialmente se frisa que o produto da interpretagdo Judicial é sempre um significado autonomo em relagdo a letra da lei. Dai decorre a percepeao de que o texto legislative sempre abre oportunidade a varias normas juridicas, dependendo do caminho interpretativo trilhado pelo juiz. A distingao entre casos faceis e dificeis, diante da qual se sustenta que a interpretacao constitui um enunciado descritivo nos primeiros, nao € iddnea para eliminar a atribuicdo de sentido em qualquer dos casos. Nao ha significado untvoco impresso na lei ou antecedente ao exercicio jurisdicional; o significado ou o sentido da lei sempre depende do contato do intérprete com 0 texto legal. Desse contato é possivel extrair, de modo simples e imediato, determinado significado. Mas isso, obviamente, nao apagaa distingao entre o produto da atividade interpretativa, enquanto ato de decisao, eo texto legal. Nunca hd mera descricao de algo que pré-existe 4 atividade interpretativa. Fora isso, a propria definigio de caso facil ou de enunciado legislativo claro constitui um juizo de valor, dependendo, portanto, igualmente de ‘uma op¢ao interpretativa. Trata-se de uma fase da interpretacdo, a exigir valoragdo e op¢ao no interior do raciocinio interpretativo, que, uma vez superada, abre oportunidade a uma “facil” atribuicdo de sentido a lei ou Tequer um procedimento interpretativo mais complexo. A tese da resposta correta, desenvolvida por Dworkin, também nao Socorre a quem sonha com uma unica e verdadeira interpretagdo. A tese supée que o direito que resolve a questao é pré-existente ao chamamento © PROBLEMA DA INTERPRETACAO DALEL | 111 do juiz; a resposta correta sempre pode ser “descoberta”, ainda que a partir dos principios e fundamentos que estao por detras das regras e dos prece- dentes. Contudo, a tese nao estabelece critérios que permitam definir uma interpretacdo como correta. De modo que o “juiz mortal” — ao contrario do juiz Hércules de Dworkin — nao tem qualquer possibilidade de saber se asua interpretacdo € correta e, o que é mais importante, nenhum critério para demonstrar aos seus pares ou aos tribunais superiores a correcdo da sua interpretacdo. Eimpossivel certificar como “certa” uma interpretagao judicial, mesmo uma interpretacao de uma Corte Suprema. O processo interpretativo lida com diretivas que nada tem a ver com o espaco meramente l6gico-formal; as diretivas interpretativas, em regra, exigem valoracées, insuscetiveis de afericdo pelo metro que serve a quem procura exatidao ou certeza. Nao ha procedimento interpretativo que independa da subjetividade do Juiz. E possivel supor, apenas, que o processo interpretativo ou o modelo de in- terpretagdo deva ser utilizado de forma correta e que essa corregao, sem ter pretensio de ser absoluta, seja racionalmente explicitada pelas. justificativas interna e especialmente externa da decisao interpretativa, vale dizer, por “razdes apropriadas” ou pelas “melhores razdes”, que devem necessaria- mente guardar o carater da universalidade. Assim, a funcao da Corte Suprema néo é tutelar a lei contra interpreta- ¢6es contrarias nem buscar 0 sentido exato da lei ou a interpretacdo correta. A fungdo do Superior Tribunal de Justica é definir o “sentido” da lei federal mediante deciséo dotada de razdes que tornem racionalmente aceitaveis os critérios e valoracdes em que a interpretacao se funda. Perceba-se que, dessa forma, deixa-se de lado a ideia de tutela da lei ese frisa a missao de colaboragao na definicado e no desenvolvimento do direito. A Corte deve continuamente reformular e adequar 0 texto legal as novas realidades e valores, atribuindo-he o sentido devido. Significa que © Direito, hoje, nao dispensa a conjugacdo dos esforcos do Legislativo e do Judicidrio. Mas se as Supremas Cortes definem o sentido das leis, é evidente que aautoridade do direito também est4 nos seus precedentes. Sucede que os precedentes, apesar de dotados de autoridade pelo simples fato de serem editados pelo érgao que, no Judiciario, tem poder para definir o sentido ‘do direito, dependem de justificativa, ¢ essa, quanto mais adequada for, maior autoridade dar ao precedente. Diante disso, a defini¢ao do sentido da lei deixa de pairar apenas na autoridade do orgio emissor. Ha preocupacio coma sua legitimidade e, bem por isso, com as “raz6es apropriadas”. Essas 112. | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES sao importantes para dar legitimidade aos precedentes do Superior Tribunal de Justiga. Além do mais, os precedentes devem ter cardter universalizante; ou seja, o precedente deve ter capacidade de servir a generalidade dos casos similares. O carater universalizante se relaciona com a necessidade de o precedente abarcar, desde logo, o maior numero possivel de casos similares, evitando-se futuras decisées distintas para casos iguais.®* Trata-se de critério que inibe a imparcialidade e garante a igualdade, a seguranca juridica ea coeréncia do direito. Importa considerar, por fim, que as Cortes Supremas brasileiras tem atribuido as suas decisées o qualificativo de “corretas” ° embora ngo digam que critérios estariam amparando essa qualidade.” Tenta-se sustentar, com base nisso, a possibilidade de aco rescisoria para desconstituir decisao que se pautou em interpretacao posteriormente nao admitida pela Corte. Porém, o fato de uma interpretacdo ser divergente da posteriormente fixada pela Suprema Corte evidentemente nao significa que ela tenha violado literalmente uma norma legal. Uma interpretacao razoavel, ain- da que nao a melhor, € legitimada pelo proprio sistema. $6 tem sentido pensar em violagao da lei, no caso de interpretacao posteriormente firmada (em outro processo) pelo STJ, caso se admita que a lei possui apenas uma interpretacao, a ser descoberta e declarada pela jurisdicéo, nos moldes da teoria formalista. Noentanto, ha outrasituacao quando se pretenderescindir decisao que negou a interpretacao do Superior Tribunal de Justica. Nesse caso, embora © conceito de violacdo literal a disposicdio de lei tenha que ser “oxigena- 89. Taruffo diz que, nessa perspectiva, o metro para medira adequacdo da interpreta- ¢ao de uma norma em sede de decisao nao € tanto aadequacao da interpretacao para resolver 0 especifico conflito de interesses que caracteriza 0 caso particular, quanto a capacidade desta interpretacdo para servir de critério de decisao para as solucdes sucessivas de casos idénticos ou similares (TARUFFO, Michele. Le Corti Supreme Europee: Accesso, filtri e selezione. Le Corti Supreme. Milano: Giuffre, 2001. p. 97). 90, Sea decisao € correta porque deriva de uma Suprema Corte, nao ha sentido ema propria Corte afirmé-la correta. A autoridade de uma decisao de Suprema Corte obviamente ndo depende de qualificativos ou proclamagdes, Uma deciséo de Suprema Corte se impose aos tribunais inferiores em virtude do seu significado, derivado da funcao da Corte, atrelada a sua posigao no Poder Judiciario. 91. Por exemplo, ST), EDiv no REsp 608.122, 1.* Secao, rel. Min. Teori Zavascki, j. 09.05.2007; STE RE-ED 328.812, 2." T., rel. Min, Gilmar Mendes, DJ 02.05.2008, ~ O PROBLEMA DA INTERPRETACAO DALEL | 113. do”, ha negacao do sentido atributdo a lei pela Corte Suprema incumbida a tanto pela Constituicao Federal. Como violar disposicao de lei é algo que remonta, no minimo, ao formalismo tedrico, e atualmente se sabe que a atividade interpretativa almeja outorgar sentido lei, constituindoanorma juridica, cabe dar ao conceito e ao dispositive do inc. V do art. 485 do CPC uma interpretacdo que se aproxime a contemporaneidade. A deciséo de tribunal ordinario que nega o sentido atribuido a lei pelo Superior Tribunal de Justica viola a norma juridica que deve imperar no territorio nacional: viola, assim, o direito, O tema sera retomado mais a frente. 1.12 Da Corte que define a exata interpretacao da lei para a Corte que atribui sentido ao direito. Da interpretacao uniforme como meio de controle a autoridade do direito como tutela da igualdade. Da Corte que controla & Corte que interpreta. E verdade que Calamandrei, ao tratar da historia da Cassacao, adver- tiu para a necessidade da definicao da interpretacao que deve prevalecer, frisando que é funcao da Corte garantir a sua uniformidade. Porém, no mesmo discurso, Calamandrei repeliu com veeménciaa ideia de as decisoes da Corte poderem obrigar os tribunais inferiores ou, mais precisamente, constituirem precedentes obrigatorios. Quando se tratou, acima, damonumental colaboracao de Calamandrei para o desenvolvimento da funcao da Corte de Cassacdo, demonstrou-se que aomestre florentino, diante das condigées politicas e juridicas dasua época, nao foi possivel outorgar autoridadeas decisdes da Corte. Calamandrei teve em conta 0 direito inglés da sua época, em que a House of Lords nao tinha poder para revogar os seus proprios precedentes. Porém, o que mais interferiu sobre o seu raciocinio certamente foi a sua concepgao dogmatica de jurisdi¢40, como fungao em que o juiz sim- plesmente individualiza a norma abstrata em face do caso concreto. Assim, embora tenha atentado para a necessidade de a Corte definir a interpreta- cdo que deve prevalecer, Calamandrei raciocinou como se a Corte devesse fixar, a partir dos critérios interpretativos do formalismo, a interpretacao que revela o sentido exato da lei. A unificacdo da interpretacdo de direito tinhao unico propésito de tutelar o direito objetivo, revelando asua devida e nica identidade. A definigo da interpretacao que deve prevalecer, nessa linha, equivale a fixagdo da interpretacdo que efetivamente corresponde ao texto da lei. A tarefa da Cassacao, embora voltada a uniformizacao da interpretagao, também consiste em descobrir e declarar o sentido da lei. A uniformi- 114 | OST) ENQUANTO CORTE DE PRECEDENTES: zacdo, portanto, ocorre para tutelar o legislador e garantir a unidade do direito objetivo. A pretensao de uniformizacao da interpretacao da lei, em tal contex- to, nao pactua com a dissociacao entre lei e norma e nem é aberta a logica argumentativa, mas, ao revés, busca responder a concepeao classica de jurisdicdo - propria 4 Calamandrei -, em que o juiz simplesmente aplica a lei ao caso concreto, incumbindo a Cassacdo, por consequéncia, somente declarar “oficialmente a ‘verdadeira’” interpretacdo da lei em nome da uni- dade do direito objetivo. Note-se bem: em nome do direito objetivo e nao da igualdade de todos perante o direito ou diante das decis6es judiciais. Considere-se 0 ponto com atencdo. Sea jurisdicao se limita a declarar a vontade concreta da lei nao ha motivo para falar em igualdade perante as decis6es; basta a unificagao da interpretacdo para garantir a unidade do direito objetivo e, por mera consequéncia, a igualdade de todos perante a lei. Ou melhor: nao hd necessidade de ter precedentes obrigatérios, mas apenas um sistema que permita a correcdo das decisées destoantes da k Para a tutela da lei basta um sistema que viabilize a correcao das deci. s6es, voltado ao passado. A uniformidade da jurisprudéncia, ao revelar 0 “sentido exato da lei”, constitui parametro para a corregdo das decisées. O recurso, assim, € visto como um direito da parte. Esta a disposicao do liti- gante, ainda que constitua um “meio” paraa Corte tutelar o direito objetivo. Adecisao, por nada acrescer a ordem juridica, diz respeito apenas as partes. Nada apresenta de util aos demais jurisdicionados; simplesmente revela ou reitera o que jd esta na ordem juridica, limitando-se a resolver © caso conflitivo que pertine aos litigantes. Obviamente nao tem porque incidir sobre os jurisdicionados ou motivo para obrigar os tribunais or- dindrios. Sublinhe-se: 0 que incide sobre os jurisdicionados e obriga os juizes éa lei. A decisao, por simplesmente aplicar a lei ao caso concreto, é revelada em sua parte dispositiva. E essa que produz efeitos sobre as partes. Comoa decisao nada acrescentaa ordem jurtdica, descabe raciocinar em termos de efeitos prospectivos. Em outras palavras: (i) como a decisao se limitaaaplicar alei, os seus efeitos nao tem porque se projetar além das partes; (ii) comoa decisao nada acrescentaa ordem juridica, nao hd motivo para considerar os seus fundamentos; e, (iii) como a decisao simplesmente reafirma a ordem Juridica, nao ha porque temer uma “surpresa injusta” ou efeitos retroativos. Entretanto, quando se toma em consideracdo a dissociacdo entre textoe “norma judicial”, os textos de carateraberto ea necessidade de conformacado da lei as normas constitucionais, percebe-se que a tarefa jurisdicional nao © PROBLEMA DA INTERPRETACAO DALEL | 115 estdlimitadaa revelaralei ouasimplesmente declararalgo quesempreesteve apercepcao de todos. Ao juiz, diante daideia de que o texto é potencialmente equivoco, delesendo possivel extrair varias normas em principio razoaveis, considera os elementos do texto com base em valores entao realiza opcdes racionalmente justificadas. Isso é ainda mais evidente no caso de textos de carater aberto ou de interpretacao de acordo com a Constituicao. Nessa dimensio, a Corte Suprema nao se presta a estabelecer a corre- ta interpretacdo da lei ou o sentido exato da lei, mas a definir o adequado sentido extraivel do texto legal, argumentando mediante as “melhores ra- z6es” ou mediante as razGes que evidenciem as opcodes do intérprete como racionalmente aceitaveis. Nesse sentido, ainda que se possa dizer que a decis4o nao escapa da ordem juridica num sentido global, ela apresenta uma solucao que constitui norma que se coloca fora ou ao lado da ordem legislativa. E exatamente ai que se encontra o pressuposto tedrico da Corte cuja funcao é extrair um sentido da ordem legislada, tornando-o parte da ordem jurfdica vinculante. A Corte fixa ou define a norma extratvel da legislacdo, ou seja,adiciona algo ordem juridica. Aqui, ao contrario do que faz a Corte preocupadaem tutelaralei, define-seo sentido atribuivel ao texto legal. Confere-se contedo Aordem juridica, agregando-se substancia ao texto legislativo. A Corte parte das premissas de que a lei ¢ insuficiente para corporificar a ordem juridica e de que a sociedade necessita de um direito que depende da conjugacao das atividades do Legislativo e do Judiciario. O Judicidrio, no contexto da dissociagao entre texto e norma e de ela- boracao da norma a partir do caso concreto e da Constituicao, tem no STJ a Corte Suprema com func¢ao de definir o sentido que deve ser extraido do texto legislativo. Definir o sentido extraivel do texto esta longe de signifi- car expressar o sentido exato da lei. O STJ € 0 orgao que, dentro do Poder Judicidrio, coloca-se ao lado do Legislativo para fazer frutificar o direito federal infraconstitucional ajustado as necessidades sociais. Vale dizer: oSTJ € uma Corte incumbida de outorgar sentido ao direito, propiciando o seu desenvolvimento. Euma Corte deatribuicao de sentido ou de interpretacao, compreendendo-se essa fungao como algo que esta muito longe daquela que fora concebida para a Corte de Cassacao em set modelo tradicional. Realmente, toca-se no cerne da questao quando se percebe que a Corte Suprema nao mais serve para tutelar o legislador contra a jurisdicdo ordinaria, mas, ao contrario, para auxiliar o legislador. Hoje, o ST e 0 Le- gislativo realizam tarefa harmonica e coordenada para que o Estado possa se desincumbir do seu dever de dar a sociedade um direito em constante

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