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FILOSOFIA

CONTEMPORÂNEA

Mayara Joice Dionizio


Liberalismo
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Avaliar a maneira segundo a qual as ideias liberais se desenvolveram


no século XIX.
 Analisar as diferenças e semelhanças entre o utilitarismo de Mill e o
liberalismo de Tocqueville.
 Comparar as ideias liberais do século XIX com a situação socioeco-
nômica brasileira.

Introdução
A teoria liberal surgiu na transição do Renascimento para a Idade Moderna,
justamente pela ascensão da burguesia. Essa teoria se concretizou a partir do
Iluminismo. Vale ressaltar que o que se entende por liberalismo atualmente
é bem distinto daquilo que pregavam as primeiras teorias liberais. A eman-
cipação das mulheres (movimento sufragista) e a harmonia entre burguesia
e interesses do proletariado, por exemplo, são questões liberais modernas.
Neste capítulo, você vai ver como surgiu o liberalismo clássico e como
ele foi aplicado ao longo do século XIX. Como você vai verificar, ao longo
da sua história, a teoria liberal teve de ser reformulada, tornando-se mais
humanista. Além disso, você vai conhecer a relação entre a sociedade brasi-
leira atual e as ideias empregadas a partir do século XIX em torno de ideários
de formação familiar, direitos trabalhistas e emancipação pedagógica.

Ideias liberais no século XIX


A teoria liberal se difundiu de maneira mais ampla no movimento iluminista.
Esse movimento teve início na Europa do século XVII, com os ideais de
emancipação do homem, os direitos civis e o direito à propriedade privada. O
liberalismo se inicia com as teorias do filósofo inglês John Locke, que consi-
dera que o direito à propriedade é um direito natural. Nesse sentido, pode-se
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reconhecer no liberalismo a legitimação de ideais da sociedade burguesa, que


se consolida em diferentes momentos tanto na Europa quanto na América. Na
Inglaterra, essas teorias se assentam por volta de 1668, a partir da Revolução
Gloriosa; já na França, a partir de 1789, com a Revolução Francesa; nos Estados
Unidos, em 1776, com a luta pela independência.
Como o próprio nome da corrente teórica indica, o liberalismo está relacionado
profundamente com a ideia de liberdade. O termo “liberalismo” deriva do latim
liberalis, em que liber significa “livre”. Portanto, liberalis significa “livre”, “nobre”,
“generoso”. Como você pode notar, está em jogo não apenas a liberdade econômica,
mas também a liberdade de pensamento e a religiosa. Outro fundamento importante
do neoliberalismo é a concepção de propriedade. Para os liberais, o indivíduo tem
direito a uma propriedade, pois é assim que se preservam as relações de produção
capitalistas. Nesse aspecto, os liberais defendiam que apenas alguns indivíduos
conseguiriam ter uma propriedade. Isso se daria por meio do trabalho. Assim,
tais indivíduos obteriam capital para ter sua própria propriedade e fazer dela um
meio de produção. O Estado, nesse contexto, deveria ter o poder limitado. Sua
intervenção nas relações de produção deveria ser mínima. Como você perceber,
um espaço maior seria dado ao indivíduo, ou seja, ao individualismo.
Já a partir do século XIX, o liberalismo passa por uma crise, apesar de as
ideias liberais terem ajudado a gerar conhecimento científico e desenvolvi-
mento. Depois da Revolução Industrial, surgem algumas correntes teóricas que
questionam essa forma de concepção econômica. Afinal, ocorria a aplicação
de noções liberais aos modos de produção, ou seja, passou-se da manufatura
ao trabalho por meio de máquinas que aceleravam o processo de produção.
Assim, os trabalhadores viviam em condições miseráveis e sofriam uma enorme
exploração. Os adultos trabalhavam de 14 a 16 horas por dia, e as crianças, de
10 a 12 horas. Isso acabou por gerar uma grande diferença entre as classes.
Por esse motivo, houve intensas revoltas das massas, já que a concepção
liberal-capitalista não concebia conciliações entre os detentores das fábricas
e comércios, ou seja, da propriedade privada, e os interesses da massa. Nesse
contexto, surgiram vários teóricos que escreveram críticas a essa forma de abor-
dagem econômica e ordem social, bem como teóricos liberais que propuseram
uma reformulação do liberalismo clássico. Estes últimos desejavam reunir, na
teoria liberal, as questões sociais e a liberdade econômica. Quem protagonizou
esse novo ideário liberal na Inglaterra foi o filósofo chamado John Stuart Mill
(1806–1873). Na França, se destacou Alexis de Tocqueville (1805–1859).
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Com a Revolução Industrial, o que também aumentou foi o colonialismo. Se antes as


colônias eram fontes de alimentos, posteriormente se tornaram fontes de matéria-
-primas como metais, fósseis e combustíveis. O auge dessa forma de exploração e
extração aconteceu na Primeira Guerra Mundial, quando os países europeus precisaram
de muita matéria-prima.

Todas as críticas feitas ao liberalismo clássico, seja pelos liberais reformistas da


teoria ou pelos críticos oposicionistas, são fundamentadas no mesmo argumento: o
livre mercado, sem intervenção do Estado, possibilita a desigualdade. Além disso,
os críticos diziam que a liberdade defendida no ideal clássico não se aplicava à
realidade de todos, apenas à realidade da parcela detentora dos meios de produção.
A maior crítica feita ao liberalismo foi a da corrente teórica socialista. Para os
socialistas, o liberalismo é resultado de uma luta temporária entre o homem e o
meio. Dentro do próprio movimento socialista, há diferentes correntes teóricas,
tais como: anarquismo, comunismo e socialismo científico/utópico.
O teórico mais proeminente desse período foi Karl Marx (1818–1883),
cuja crítica ao liberalismo teve grande repercussão. Marx, além das críticas
ao liberalismo, compreendido como produtor de desigualdades enormes entre
as classes, inaugura também uma nova forma de pensar a economia social:
todas as pessoas devem ter os mesmos direitos e deve-se abolir a propriedade
privada. Nesse sentido, pode-se sintetizar que o século XIX foi marcado pelo
avanço industrial, bem como pela possibilidade de livre contrato entre uma
minoria detentora da fábricas/comércios e a massa trabalhadora. Por esse
motivo, criaram-se leis de proteção aos trabalhadores, assim como ocorreu a
diminuição da carga horária de trabalho.

Você sabia que a primeira exposição de tecnologia aconteceu em 1851 e foi feita
para demonstrar o poder das máquinas? O interessante é que, na mesma época, os
cientistas estavam descobrindo os limites da ciência. Portanto, vários textos literários
surgiram fantasiando a possibilidade de domínio da ciência sobre a vida humana. É o
caso de Frankenstein, de Mary Shelley.
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O utilitarismo de Mill e o liberalismo


de Tocqueville
John Stuart Mill foi um importante fi lósofo inglês e um dos mais infl uentes
teóricos do liberalismo utilitarista. O utilitarismo é uma ética hedonista que
adota como princípio básico o princípio da utilidade ou da maior felicidade.
Segundo tal princípio, as ações justas são aquelas que tendem ou são capazes
de promover a felicidade. Já as injustas são aquelas que tendem ao oposto,
à falta de felicidade, à dor. A felicidade é entendida por Stuart Mill como o
prazer, a ausência de penas ou dores. Por isso se diz que sua concepção de
felicidade é hedonista. Porém, a felicidade de um não é mais desejável do que
a vontade de outro. Uma ação correta é, assim, aquela capaz de causar maior
felicidade a um número maior de indivíduos.
Os prazeres capazes de causar a felicidade são distintos uns dos outros,
de forma que alguns são mais duradouros e intensos e, consequentemente,
capazes de causar maior felicidade. Assim, os prazeres são divididos entre os
mais elevados e os inferiores. Os prazeres elevados são aqueles com origem no
pensamento ou prazeres intelectuais, prazeres da sensibilidade e sentimentos
morais, além dos prazeres da imaginação. São capazes de proporcionar maior
felicidade, uma vez que são mais intensos e duradouros. Esses prazeres provêm,
por exemplo, da contemplação do belo, da natureza, de obras artísticas, de
sentimentos como o amor, a virtude e a liberdade, que podem ser contemplados
e experimentados por si mesmos.
Os prazeres inferiores seriam aqueles ligados aos apetites físicos, como
comer, beber, ter relações sexuais, etc. Para Mill, uma pessoa que tenha mais
apreço aos prazeres inferiores pode até ser mais satisfeita, mas certamente é
menos feliz do que aquela que preza pelos prazeres elevados. Daí sua célebre
frase: “[...] é melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satis-
feito; melhor ser Sócrates insatisfeito a um tolo satisfeito” (MILL, 2001, p.
13). Portanto, para Stuart Mill, nem sempre a satisfação está ligada a maior
prazer ou felicidade. A felicidade somente é possível por meio dos prazeres
intelectuais, tendo em vista a distinção qualitativa que Mill faz dos prazeres.
Outro aspecto relevante da teoria de Stuart Mill, que o caracteriza com um
dos liberais clássicos, é sua defesa do princípio da liberdade. Segundo esse
princípio, o Estado, a sociedade ou mesmo a maioria não pode interferir na liber-
dade de qualquer indivíduo, nem mesmo sob o pretexto de lhe fazer um bem. A
única exceção de interferência dessa liberdade ocorre quando um indivíduo pode
causar danos a outros indivíduos. Assim, deve-se garantir amplamente a liberdade
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aos indivíduos, de forma que cada liberdade individual encontra seu limite na
liberdade do outro. Essa liberdade inclui: liberdade de pensamento, expressão e
religião, liberdade de gosto e de cada um escolher como traçar a própria vida e
seus projetos, bem como a possibilidade de livre associação entre os membros da
sociedade. Somente uma sociedade capaz de garantir as liberdades individuais é
capaz de dar a possibilidade de cada indivíduo desenvolver suas individualidades,
iniciativas e projetos, o que é essencial para o desenvolvimento social.
Outro importante teórico do liberalismo clássico foi o francês Alexis de
Tocqueville. Ele nasceu pouco tempo depois da Guerra de Independência dos
Estados Unidos da América (1775–1783), bem como da Revolução Francesa
(1789), fatos que tiveram grande impacto em sua teoria. Tocqueville trabalhou
conceitos como a democracia, o individualismo e o liberalismo, que entraram
em cena de maneira contundente após os referidos acontecimentos históricos.
Tocqueville entende a liberdade basicamente no mesmo sentido que os
demais liberais de seu tempo, como a ausência de interferência nas escolhas
de um indivíduo sobre outro ou do Estado sobre o indivíduo. Por igualdade,
entende igualdade formal, igualdade de oportunidade. Assim, para ele, tanto
liberdade como igualdade são parte de um regime democrático e, para a sua
manutenção, devem ser sempre equilibradas.
Esse pensador aponta para o risco de a democracia impedir o desenvol-
vimento de liberdades, de pensamentos e ações e de minorias na sociedade.
Ela faria isso ao dar ênfase às decisões e escolhas da maioria, formando um
“pensamento único”. Se você quiser materializar esse pensamento, pode
considerar o caso de uma sociedade em que a maioria impõe as suas deci-
sões à minoria, uma vez que sempre sairá vencedora nas deliberações. Isso
poderia criar uma espécie de tirania impositiva da maioria sobre as minorias.
Nesse caso, a liberdade poderia ser sacrificada em prol de uma igualdade não
de oportunidades, mas no sentido de equalizar todos os indivíduos de uma
sociedade, que, sabidamente, não são iguais.
Tocqueville, ao analisar a jovem democracia norte-americana, que possuía
aproximadamente 50 anos à época de seus escritos, vê o tribunal, o Judiciário,
como uma instituição capaz de evitar a tirania da maioria, ou seja, como uma
instituição capaz de salvaguardar os direitos da minoria. Agrupamentos ou
associações da sociedade civil também seriam exemplos de instituições capazes
de dificultar a imposição ou a tirania da maioria.
Em suma, ao comparar Stuart Mill e Tocqueville, você pode constatar que
ambos elaboraram conceitos bastante similares de liberdade, entendida como a
não coação de pensamento ou ações por outros. Por outro lado, enquanto Mill
observa que a iniciativa individual é a única capaz de garantir a felicidade geral
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da sociedade, Tocqueville aponta para os riscos do individualismo, da reunião


de uma maioria que, prezando apenas por seus interesses, pode promover o
despotismo ou a tirania sobre as minorias.

As ideias liberais do século XIX e a situação


socioeconômica brasileira
Há uma grande distinção entre o liberalismo clássico e o liberalismo atual,
principalmente se você levar em conta a situação socioeconômica brasileira.
Primeiramente, apesar das reformulações propostas pelos liberais do século
XIX, o que se mantém como núcleo é o liberalismo econômico. Ainda assim,
os ideais de liberdade religiosa e de pensamento são mantidos. Atualmente, o
que se têm no Brasil é a aplicação e a vigência de um governo liberal, ou seja,
com intervenção do Estado em alguns setores e com um sistema fortemente
capitalista. Pode-se dizer que a notória diferença consiste no conservadorismo.
Ou seja, as propostas do governo não sugerem apenas a intervenção econômica
do Estado, e sim sua influência em questões morais, tais como: orientação
sexual, estatuto da família, educação pluralista, etc.
No Brasil, há diversas formações familiares. A população LGBT, por
exemplo, é responsável por muitas adoções, assim como há avós responsáveis
pelos netos. Entretanto, segundo o art. 2º do Projeto de Lei nº 6.583/2013, que
institui o Estatuto da Família, “define-se entidade familiar como o núcleo
social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de
casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer
dos pais e seus descendentes” (BRASIL, 2013, documento on-line). Nesse
sentido, se poderia argumentar que na Europa do século XIX a sociedade não
era lá muito tolerante com a homossexualidade, por exemplo. Mas vale ressaltar
que ainda que a sociedade se mantivesse conservadora em relação a alguns
aspectos, isso não era incorporado à teoria liberal. Acontecia pelos próprios
indivíduos, do mesmo modo que na Roma Antiga os cidadãos aceitavam total-
mente a homossexualidade, tanto que vários imperadores foram homossexuais.
Desse modo, atualmente, o preconceito é de certa forma institucionalizado.
Outro aspecto que é digno de comparação são as condições dos trabalha-
dores. Atualmente, a jornada de trabalho, como é garantida pela Constituição,
de acordo com o art. 7º, é um:
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[...] direito dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social”. Esse artigo estabelece que a duração do
trabalho normal não deve ser superior a 8 horas por dia e 44 horas por semana,
“facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo
ou convenção coletiva de trabalho” (BRASIL, 1988, documento on-line).

Essa jornada é muito diferente daquela empregada a partir da Revolução


Industrial, que chegava a 16 horas para os adultos e 12 horas para as crianças.
Dessa forma, há alguns direitos garantidos atualmente no Brasil, por isso
é importante haver um ministério como o do trabalho, a fim de defender
condições de emprego humanas.
A educação também é marcada por várias distinções entre uma época e outra.
No século XIX, houve um avanço pedagógico muito grande, dado o contexto de
conflito entre o proletariado, que via na educação uma forma de emancipação,
e a burguesia, que enxergava nela um meio de controle. Foi nessa época que a
pedagogia começou a se libertar de certas estruturas de pensamento da ordem
social vigente. Atualmente, apesar de a sociedade estar avançada temporalmente,
existe o ímpeto de limitar os conteúdos trabalhados em sala de aula pelos pro-
fessores. Ou seja, se antes a educação tinha um papel libertador, atualmente
ela é vista como uma forma de controle, não somente por parte da burguesia,
mas, antes, pela própria massa proletária. Pode-se perceber essa restrição ao
conhecimento em vários projetos de lei que estão em tramitação atualmente.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de


outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituição.htm>. Acesso em: 9 maio 2018.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.583/2013. Disponível em: <http://
www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1159761>. Acesso
em: 11 dez. 2018.
MILL, J. S. Utilitarianism. Kitchener: Batoche Books, 2001.

Leituras recomendadas
ANDRADE, M. S. et al. A história de educação no século XIX. Cadernos de Graduação - Ciências
Humanas e Sociais, Aracaju, v. 1, n.14, p. 175-181, out. 2012. Disponível em: <https://periodicos.
set.edu.br/index.php/cadernohumanas/article/view/223/151>. Acesso em: 11 dez. 2018.
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MAGALHÃES, F. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia


individualista. Tempo Social, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 141-164, maio 2000.
MILL, J. S. On liverty. Kitchener: Batoche Books, 2002.
REALE, M. Obras políticas. Brasília: UnB, 1983.
SIMÕES, M. C. John Stuart Mill: utilitarismo e liberalismo. Veritas, Porto Alegre, v.58, n.1,
p.174-189, 2013.
TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. Livro I. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. Livro II. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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