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Fs -DADOS Revista de Ciencias Socials 1992 ! volume 35 = Neste numero: Transicao Democratica e Teoria dos Jogos Adam Przeworski A Eleicao Presidencial de 1989 Maria D’Alva Gil Kinzo IUPER) RQ Vol. 38, n. 1, 1992 nin ISSN 0011-5258 DO fudge ices Sans A Escolha de Instituicées na Transicdo para a Demacracia: Uma Abordagem da Teoria dos Jogos Adam Przeworski 5 A Hleicio Presidencial de 1989: O Comportamento Eleitoral em uma Cidade Brasileira Maria D’Alva Gil Kinzo 49 Orientagdes Econémicas Governamentais: As Perspectivas do ‘Perfodo Democratico-Populista Maria Izabel Valladao de Carvalho 67 A Troca Silenciosa e o Siléncio dos Conceitos Wilson Trajano Filho 87 Consideragées a Respeito do Lugar das Humanidades na Histéria da Ciéneia Moderna Mario Fuks 17 Contents + 137 Sommaire 139 DADOS - Reviste de Ciencias Sociais, Rio de Janeiro, vol. 35, n. 1, 1992, pp. 1a 140. Appropriate articles are abstracted/indexed in: Actualicad Bibliografica Iberoamericana | ABC Boletin de Sumarios de Revistas de Econemia Bulletin Analytique de Documentation Politique, Economique et Sociale Clase-Citas Lationamericana en Sociologia y Economia Current Contents/Social & Behavioral Sciences Hispanic American Periodicals Index Indice de Cidneias Sociais International Political Science Abstracts Social Sciences Citation Index Sociological Abstracts Sumdrios Correntes Brasileiras As verses inglesa¢ francesados resumos deste niimerosaode autoriade Diane Rose Grosklatis e Anne Marie Millon Oliveira, Os textos foram digitados por Geér- gia Malate Franco e Claudia Drummond Boccia e a revisao tipografica é de Joa- quim da Costa. © 1992, Instituto Universitirio de Pesquisas do Rio de Janeiro ‘Todos 6 direitos reservados, Nenhuma parte desta revista poderd ser repro- duzida ow transmiticasejam quais foremos meiosempregados, eletronicos, me- canicos, fotogrdéfieos, gravacdo ou quaisquer outros, sem uma permissao por escrito. ‘COLABORAM NESTE NUMERO Adam Praeworsiki é professor do Departamento de Ciéncia Politica da Universi- dade de Chicago. Publicouno Brasil o livre Capitatisma e Sacial-Demacracia, Sao Peulo, Companhia das Letras, 1989, The State and the Ronomy under Capital sc, Nowa lonque, Harwood Academic Publishers, 1990, e Democracyand the Mar- ket; Politicaland Economic Reforms in Eastern Europeand Latin America, Cam- bridge, Cambridge University Press, 1991, sao os seus mais recentes tyabalhos, Moria D’Alva Gil Kinzo ¢ professora do Departamento de Ciéncia Politica da Uni- versidade de Sao Paulo—USP e pesquisadora do institute de Estudos Eeonémi- cos, Socials e Politicos de Sq Paula —Idesp, Atualmenteé research fellow do ins- lituie of Latin American Studies, da Universidade de Londres, ¢ coordenadora do Centre for Contemporary Brazilian Studies desta Universidade. Maria Izabel Vallado de Carvatho é doutora em Ciéncia Politica pela Universi. dade deSio Paulo — USP e professora adjuntadoDepartamento de CiéneiaPolt- tica.e Relagées Internacionais da Universidade de Brasilia — UnB. Mi Fuks ¢ doutorando em Cigneia Politica pelo luper). Wilson Trajano Filho é doutorando-em Antropologia SocialiCultural pela Uni- versidade da Pennsylvania, pesquisador associade do Departamente de Antro- pologia da Universidade dé Brasilia —UnB e professor visitante do Departamen- tode Musica desta Universidade Pereeer TT Tren A Escolha de Instituig6es na Transi¢ao para a Democracia: Uma Abordagem da Teoria dos Jogos* Adam Przeworski INTRODUCAO. colapso de uma ditadura, sejam quais forem as raz6es, coloca no centro Oo da agenda polftica‘a questao da escolha de‘nowas instituigdes. Dado que, nag condigGes econémicas, politicas e institucionais vigentes, forgas sociais au- tGnomas lutam por impor 45 demais um sistema que lhes reforce a vantagem politica, quais instituigdes seriam voluntariamente adotaveis e, depois de ins- taladas, quais delas poderiam gerar aceitagao descentralizada? Quando ¢ ra- cional para os interesses em conflite-refvear espontaneamente sua Futura capa- cidade de explorar a vantagem politica pela devolugia de uma parcela de po: der as instituigSes? Quando as forgas estabelecero um “pacto democrético” que soja aceito ©, portanto, tome a democracia auto-sustentdvel? Essas questOes constituém o prablema cldssico da teoria politica liberal. Desde oséculo XVI, 0s filésofes politicns tem procurado encontrar 0 segredo da trans- formagao alquimica do caas brutal do conilito em. uma serena vida de eqope- fagd0, SX0 intimeras as propostas esse sentido, comecando pelo Leviata, ¢ nos tiltimas tempos cada ver mais otimistas: dizem que o problema da ordem social pode ser resolvido por conyencées,! por uma evolucdo espentanea da cooperagao,’ por normas,* pela moral‘ e por instituigdes benevolentes.* “Trabalho preparado para a mesa-tedonda da International Political Science Associa: tion — IPA. sobre Transic6es para a Democracia no Leste Europeu: Uma Perspectiva Comparada, Varsdvia, 20-24 de abril de 1991. [A traducfio do original inglés “The Choi- ce of Institutions in the Transition ta Democracy: A Game-Theoretic Approach’ é de au- toria de Wera Maria Pereira.) DADOS ~ Revistn de Ciacias Sociafs, Rio de Janeiro, Vol. 35, n, 1, 1992, np. 5 a 48. (© problema geral pode ser formulado da seguinte maneira: dada uma esteutu- 1a de interesses estratégica, montada a partir de diferentes combinagdes de con- flilo-€ cooperacao, cuja solugo néo-cooperativa apresenta caracteristicas nor mativas indesejaveis, qual mecanismo seria voluntariamente adotado — a Es» tado, o planejamento, ag convengdes, a moral, ag normas, as instituigdes, 0 acaso —e; uma vez instalado, promoveria assentimento espontaneo, livre € descen- tralizado, ou seja, comportamentos que apéieny aspiragdes nortrativas tals co mo aracionalidade coletiva (Pareto), ou algum outro critério de bem-estar, jus- tiga, imparcialidade, igualdade ow eqitidade? Observe-se que a busca dos fild- sofos tem sido por mecanismos que originem aquiescéncia esponténea, nao por instituighes que obriguom a aceitagtio, ainda que estas suscitem comporta- mentos normativamente desejéveis. Essa formulagSo baseia-se em alguns pressupostos que limitam sua utilidade.* © ponte de partida liberal — de que ‘individuas” hipotéticos enfrentano pro- blema da cooperagéo em estado de natureza — nao ajuda a analisar os proble- mas com que se deparam os atores reais em. condigdes histdricas concretas.” Osatores relevantes nao sao individuos abstratos, mas foreas politicas: organi- zagbes coletivas previomente constittifdas, calegorias de pessoas potencialmente orpanizdyeis, se provecadas, ¢ os individtias como eleitores, Estes entram em canflite em contextos nos quais preexistem sempre convengies, normas € instituigdes. Contude, apesar dessas adveritncias, © papel do pacto democraticn € exata~ mente o de efetuar uma transformagao alquimiea, Os "pactos” $80 equilibrios - de rodada tinica, ndo cooperativos" — em estratégias que consistem em al- terar ag-condisges-existentes de: manciratal que-a-aceltacto. voluntdtia e-dev- centralivada seja individualmente étima, Sao acordos pata permitir a discor- dancia. A tinica maneira de mudar as condicdes, por acordo, é estabelecer no- vas instituigbies, { As salugdes para problema da democratizarae consistem, portanto, em insti- tuigdes, EstZio dadas os recursos das forgas politicas, suas prefer8ncias e con- digdes independentes de cada um. © jogo 6 solucionado quando um sistema de instituigGes que gera aceitaco-espontanea constitui unvponto de equilibrio. natransigao. O problema do estabelecimento da democracia ¢ 0 seguinte: serd que 6s stores politicos aprovardo uma estrutura de instituigGes democraticas que seja aceita? Essa questo implica dois problemas distintos.? © pritneira ¢ se, em determi- nadas condigdes, existem sistemas de instituigSes democraticas que, estando estabelecidos,. sejarn aceites espontinea e descentralizadamente. Em alyu- 6 E F: : E : we EE a mas estruturas de interesses pode nao existir instituicdo alguma que, uma vez instalada, geja capa: de impedir que forgas politicas relovantes tentem destruf- la, O'seguitde é se poderia se estabelecer um sistema de instituigdes demoerd- ticas como resultado de conflitos acerca da escolha das instituigSes. Isso por- que, embora se possa encontrar institnigées que, depois de adotadas, sejam auto-sustentaveis, elas nao necessariamente constituem:o ponto de equilibrio dy situagao transitional, quando as oportunidades de forgas politieas particu lares diférem em face de outras opedes institucionais, Imagine-se que um gru- po de pessoas entra num cassine onde hd uma roteta, urna mesa de vinte-e- um cum estande de jogo de dados. Qual jogo fard com que os jogadores, em fungio dos recursos de que dispéem, continuem aapostar mesmo que tenham perdido varias vezes? E se houver esse jogo, sera que os potenciais jogadores concordariio em qual deles jogar? Aquestdo-central relativa as transigdes ¢ se elas conduzirdo a ama democracia consolidada, isto é, a uit sistema em que 4s forcas politicas relevarites subme- tam seus interesses e valores A incerteza da interagao das instituigses demo- criticas e aceitem os resultados do processo, Uma democracia esta cons: da quando a maioria dos conflitos se processa através das instituigdes adota- das, quando ningaém controla os resultados ex past, quanda estes nao sao determinados ex ante, quando tém importancia dentro de limites previsiveis lan eso aceitos pelas forcas politicas relevantes. A formulagao do problema que analisamos a seguir exige que se examinem to- das as possibiliclades inerentes as diversas siluacées de “transigao” — aqueles momentos em que um regime autoritério é derruhada ea demecracia entra na agenda palitiea,” Os.conflitos sobre instituigdes podem levar a vérios resultados. Umei demacracia auto-sustentada nao € a tinica safda possivel para as transigies. ‘A faléncia de um regime autoritério pode ser revertida, come o foi na Chece e Fslovdquia em 1968, no Brasil om 197Lou na Poléniaem 1981, ou pode levar auma nova ditedura, como ne Irae naReménia, Baindaque uma democracia seja'cons- titufda, ela nio necessariamente € autonoma: as instituigges democréticas po- dem sistematicamente gerar resultados que induzam algumas forgas politieas im- portantes a derrubd-las, come aconteceu recentemente no Paquistao, na Tailan- diac, muitas vezes, no passado, na Atgentina. Portanto, urna democracia conso- lidada é apenas um dos resultados possiveis docolapso dos regimes autoritérios. Dados os objetivos, 6s recursos das foreas paliticas, bem como a estrutura dos conllitos que elas enfrentam, possivel conceber cinco resultados possiveis (1) A estrutura dos conflitos é tal que nenhumie instituigaa democratica sub- siste e as forgas politicas acabam lutanda por uma nova ditadura. Os conflitos 7 acérea do papel politico da religiao, da raga ou do idioma sfo os que tém me- nos probabilidade de ser resolvidos através de qualquer conjunto de institui- Ges. O [rd talvez seja'o exemplo paradigmatico dessa situacao. @) A estrutura dos conflites ¢ tal que nenhuma instituigéo democratiea pode permanecer, porém as forgas politicas concordam com a democracia como ume solugio de transiga0. © caso paradigmatice dessas situacdes nos é ofere- cido pela andlise de O'Donnell! sobre a Argentina entre: 1956 ¢ 1976, Nas condiqSes estruturais da economia argentina, onde as principais mercadorias de exportagao eram compostas de bens de salério, a democracia, nesse pals, resulla de coaliz6es entre a burguesia e as massas urbanas: uma alianca: urbana- urbana, Os governos decorrentes dessa alianga sobrevalorizam a moeda na- cional'a fim de dirigit 9 consumo para o mercado interno, Apés algum tem- po, essa politica leva a crises do balanco de pagamentos ¢ induz a burguesia urbana a aliar-se com a burguesia terratenente, tendo como conseqiiéncia uma coalizio burguesia-burguesia. Esta busca reduzir o consumo popular @ necesita do autoritarismo para fazé-lo. Pouco depois, porém, a burguesia urbana percebe que ficou sem mercado e muda de novo suas aliangas, dessa vex de volta & democracia, Examinemos esse ciclo num momento em que a ditadura‘acabou de ser desa~ lojada, O ator central — a burguesia urbana — acha-se diante das seguintes escolhas: (a) optar imediatamente por uma nova ditadura; (b) concordar com a democracia agora e mudar de aliangas quando ocorrer uma crise do balango- de pagamentos; (c) concordar com a democracia agora e continuar'a apoidila no futuro, Considerando-se os interesses da burguesia urbana e a estrutura dos conflites, a segunda estratégia é a mais favordvel. Observe-se que ndo hé miopia alguma implicita: a burguesia urbana sabe que mudard de posicao em algum momento no futuro. A democracia é tio-somente a solugao transicional otima. "7 (8) A estrutura dos conflitos € tal que algumas instituigges democraticas se- riatn duradouras, se adotadas, mas as forgas politicas em disputa lutam por estabelecer uma ditadura, Esse resultado pode se dar quando as forcas politi- cas tém preferéncias diferentes em relagao a estruturas institucionais especifi- cas, por exemplo, 0s sistemas unitdrio e federativo. Uma parle do pais tem uma forte preferéncia pelo sistema unitério; outra prefere a federacao, O que acon- tecerd numa situagao dessas nfo é evidente — voltarei @ esse ponto varias ve- zes neste artigo. Caso se adote provisoriamente algum tipo de estrutura insti- tucional, é possivel que ela venha a adquirir forca de convencao" e se mante- nha. Mas outro resultado possivel ¢ 0 conflito aberto que degenera em guerra civil e ditadura. 8 (4) A estrutura dos conflitos tal que algumas instituigdes democrdticas per- maneceriam se fossem adotadas, mas-as forgas politicas conflitantes aprovam. ‘um quadro institucional que ndo pode durar, Esse resultado pode parecer per- ‘verso, mas hd situagdes onde deve ser espetado. Imagine-se que umt regime mnililar est4 negociando sua safda do poder. As forgas representadas pelo regi- me preferem a democracia com garantias para seus interesses & perpetuacao da ditadura, mas temem uma democéacia sem outras garantias que néo a ma- nutengao do status gro; elas-s30 capazes de sustentar a ditadura se a opos demoecrdtica nao estiver disposta a adotar as instituigdes que proporcionariam a garantia, A oposicao sabe, entao, que se nfo aprovar as instituigies, os mili- dares relomarao o controle. A conseqiiéncia ¢ a’ democracia com garantias. Mas, se as instituigdes democrdticas, uma vez instaladas, minam o peder repressivo, dos militares, clas nao duram, Tal sittiagio implica, de fato, uma miopia ou falta de conhecimento, Os fatos recentes na Poldnia representam um exemplo paradigmatic dessa solucao. (5) Finalmente, pode-se dizer, esperangosamente, que a estrutura de conflitos tal que alguma: de fato o sao. stituigdes democraticas seriam durdveis se adotadas, e elas ‘As condigdes que originam esses resultadas ¢ as vias que conduzem até éles silo o temna deste artigo, Examino a maneira como os conflitos acerca da esco- Ihe de instituigdes redundamem dois contextos.diferentes: quando 0 ancien régime se desatrela do poder através de negociacSes e quando éle se desinte- gf, de modo que o problema da consteucao das novas instituighes democrati- cas permanece inteiramente nas mios das forcas protodemocraticas. Finalmente, niltima parte dovartigo é dedicada 4 interagao entre instituigdes e ideologias. Minha interpretacao origina hipéteses comparativas que especificam as-conse- qligncias dos conilitos entre atores dotados de interesses e valores particulares operando emeircunstincias independentes de suas vontades. As hipsteses de- veriany ser testadas por evidéncias comparativas. A medida que evoluemos acon- tecimentos no Leste Europeu dispamos, pela primeira vez, de um niimero decages suficiente para testar de modo sistematico ashipdteses, até mesmocom orecurso de estatisticas. Noentanto, aqui, apenas proponho, nao chego atestar ashipsteses. A ESCOLHA DE INSTITUICOES; DESMONTAGEM E CONSTRUCAO Introdugio i © problema que aparece no centro da agenda politica quando uma ditadura & derrubada é o de as forgas politicas relevantes aceitarem instituigées que 9 permitam uma contestagao aberta, ainda que limitada, B, logo que as institui- ‘e6es estdo estabelecidas, coloca-se a questao de elas serem aceitas espontanea- mente, ou Seja, de absorverem, como partfcipes, as forgas politicas mais im- poriantes dispostas a submeter seus interesses a ineerteza da competicao ea obedecer.aes seus resultados. A fin dé organizar a andlise, convém observar que 05 conflitos inerentes 2s transi¢Ges para a democracia fregilentemente se dio em duas frentes: entre ‘os. opositores e os defensores do regime autoritirio a respeite da demecracia, entre os atores protodemocréticos entre si mesmos pelas melhores oportuni- dades na democracia, A imagem da campanha pré-democrética como uma lu- ta da “sociedade” contra “o Estado” ¢ uma fiogdo dtil apenas durante:a primei- +ra fase da transigiio; € um slogan unificador das forgas de oposigao ao regime autoritario-vigente. Mas-as sociedades se dividem de diversas maneirase a e- s@ncia da democracia ¢ exatamente a competicao entre forgas politicas que tém interesses conflitantes, Essa situacSo cria um dilema: para efetivar ademocra- cia as forcas antiautoritérias devem umir-se contra 6 autoritatismo, mas para safrem vitoriosas na democracia elas devem competir entre si, Por isso a luta sempre se realiza em dois campos: contra o regime autoritéria e contra os prd- prios aliados pela melhor pasigéo na democracia. Assim, embora as Iutas possam ooincidir temporariamente, convém focalizar em separado os dois aspectos da democratizagao: a “desmontegem' do regi- me autoritério @.@ “construgaa” do regime democrético: A importincia relat dos fatores de desmontagem e construgaa depende da lugar ocupada, no inte- rior do regime. autoritdrio, pelas forgas politicas que controlam 0 eparato de repressao, freqiiontemente as “fargas armadas”.” Onde quer que os militares a permanegam coesos na defesa do regime, elementos de desmonte dominam © proceso de transigdo. O Chile ¢ a Poldnia'sio exemplos paradigmaticos des- sasituagao, mas olemenios desarticuladores tanibém obscureceram as tranisi- goes na Espanha, Brasil, Uruguai, Corgia do Sule Bulgiria. Sempre que, 20 conirério, a coesdo militar se desintegrow por causa-de uma aventura externa fracassada — Grécia, Portugal ¢ Argentina —; bem como nos regimes em que os militares foram efetivamente submetidos ao controle civil — todos os paises do Leste Europeu —, 0 processo de construcao de uum novo regime foi menos afétado pelos fatores de desmontagem. Desmontagem Como esse processo jd foi extensamente estudado, limito-mea traté-lo de mo- do esquemético, Primeiro, acompanho O'Donnell! e O'Donnell ¢ Schmitter™ na diferenciagdo de quatro atores politicos: os linhas-duras & os reformistas 10 no interior do bloco autoritirio, e os moderados ¢ os-radicais na-oposigio. Os linhas-duras sao encontrados nos nticleos repressivos do-bloco autoritario: po- Licia, burocracia legal, censorés, alguns jornalistas etc. Os reformistas tendem aser recrutados entre os politicos do regime ¢ alguns grupos de fora do apare- Iho de Estado: selores da burguesia no capitalismo, alguns administradores de cothpankiias estatais no socialismo."* Os moderados eos radicais podem re+ presentar, mas nd necessariamente, interesses diferentes, Possivelmente-eles se diferenciam apenas pela aversdo ao riseo. Os moderados podem ser os que temem os linhas-duras, mas nem sempre-sao os que tém.objetivos menos radicais.” A desmontagem dos regimes autoritarios pode resultar apenas de entendi- mentos entre reformistas e mederados, E uma saida posstvel caso (a) se al- cance um acordo entre reformistas e moderados para estabelecer instituigses has quais as forgas sociais que representam venham_a ter uma significativa presenca politica no sistema democeatico; (b) os reformistas obtenham o con- sentimento dos linhas-duras ou os neutralizem; ¢ (¢) 08 moderados centro- fem og radicais. As duas wltimas condiges 880 logicamente anteriores pois determinam o conjunto de possiveis solugdes para os reformistas e 0s moderados. Seja qual for 0 acorda por-estes alcangado, deve induzir os linhas-duras a cooperar com os reformistas e digsuadir os radicais de promover mobilizagses em defe- sa de transformagées mais profundas. Quando essas condigées podem ser satisfeitas? Se as foreas armadas controlama desmontagem, elas tém de optar por refor- mas, ou ser persuadidas pelos reformistes a cooperar ou, ainda, pelo menos, a permanecerem passivas. Os moderados tém de pagar 0 prea por isso, Mas se 0s reformistas apenas sa0 interloculores Vidveis pata os moderados quando podein controlar ou persuadir as forgas armadas, estes deiam de ter qualquer importancia politica, a nao ser que consigam conter os radicais, Cavalheiros moderados ¢ engravatados podem estar conduzindo: negociagées civilizadas dentro dos paldcios governamentais, mas sua moderagao é irrelevante quando muitiddes enchem as ruas e as fbricas esto ocupadas por trabalhadores que exigem a cabega de seus interlocutores. Dessa maneira, os moderados ou con- seguem formular termos aceitaveis para os radicais, ou, se ndo conseguem extrai Jos des reformistas, tm de deixar nas maos:do aparato repressive poder sufi- Giente para intimidar os radicais. De um lado, 08 moderados precisam dos ta- dicais para pressionar os reformistas; dé outro, temem que os radicals. Nao admira que o cendrio 0 cone sintam no acerto que fizeram com os reformistas, vilvel esteja quase sempre vazia. 11 ‘Quando se pode chegar a um acordo que satisfaca todas essas restrig6es? Os reformistas deparam-se com a escolha estratégica entre permanecer dentro da alianga autoritéria Com os linhas-duras ou fazer uma alianca democrética com ‘os moderados. Estes, por sua vez, podem buscar a destruigao total das forcas polfticas organizadas sob o regime autoritdrio, aliando-se com os radicais, ow podem tentar conseguir uma acomadagéa mediante a negociagdo com os:re« formistas. Suponhamos que a estrutura da situagio seja a seguinte:™ Quadro 1 MODERADOS aliam-se com RADICAIS. REFORMISTAS Regime autoritérlo Regime autoritério LINHAS-DURAS — sobrevive na forma —_acelta concessdes: antiga; 2A 4,2 REFORMISTAS aliamese com Demecracia sem Democracia com MODERADOS ——garan garantias: 14 23 Se os reformistas se aliam com os linhas-duras eos moderades com os radicais, formam+se duas coalizdes Opostas ¢ elas lutam até que venga um dos lados. Se os reformistas se aliam com os moderados e estes com os reformistas, 0 resultado € a democracia com garantias. Os resultados obtidos das relagSes diagonais devem ser lidos da manelra que se segue, Quando os moderados se aliam com os radicais ¢ os reformistas com 03 moderados, os reformistas. estiio aceitando a demoeracia sem garantias que resulta da coalizSo radicais- moderados. Quando os reformistas se aliam com os linbias-duras e os moderados com os reformistas, os moderados estao aceitando a liberalizagao, Hles estaa sendo cooptados para aestrutura do regime autoritér Nessas condigées, os reformistas tem uma estratégia dominante, que 6a de sempre se aliarem com os linhas-duras, Se os moderados se-aliam com os radicais, a oposicso & derrotada ¢ © bloco autoritario subsiste intacte, o que ¢ melhor para os reformistas do que a democracia formada por uma coalizio de moderados e radicais, que nao oferece garantias. Se os maderados procuram alianga com os reformistas, sao feitas algumas concessdes } custa dos linhas- duras. Tais concessies sao melhores para os veformistas do que a democracia mesmo com garantias. Daf que os potenciais reformistas estiio sempre em melhor situagao ao defenderem o regime autoritario em alianga com og linkas- duras, 12 errs rr pre ee re A coracterfstica definidora dessa situagao 6 0 fato de os reformistas nao terem forga politica prépria e, portanto, nenhuma perspectiva de éxito politico sob a democracia, Sem garantias especiais’¢les se dariam muito mal na democra- tia &, mesmo com gatantias, eles ainda estdo em melhor situago sob a prote- 80 de seus aliados autoritdrios. Foi isso. que aconteceu na Polénia entre 1980 e 1981.” A-solugao da situacdo necessitava que duas condigSes fossem satis- feitas: (a) a oposigao insistia no principio de competi¢ao eleitoral aberta'e (b) © Partido desejava uma garantia de vencer as eleictes. A oposigio dispunha- se a aceitar a vitdria do Partide; nao exigia uma chance de vencer, apenas a de competir. © Partido nao se opunha &s eleigdes, mas queria ter uma boa opor- tunidade de vencer.®” Mas nas pesquisas clandestinas de opinigo publica, 0 Partido estava obtendo cerca de 3% das intencSes de voto, Nao houye.maneira de superar esse ernpecilho, Caso o Partido estivesse cblendo 35% de intengdes de voto, teria sido facilimo inventar um sistema eleitoral competitivo e dar-lhe uma boa oportunidade de veneer. Mas nao com 3%: nao havia instituicdes que salisfizessem as constrangimentos impostos pelos intéresses e oportunidades externas das forgas politicas em disputa,™ Nessa situacio os reformistas nao podiam se-aventurar a uma alianga democrdtica com os maderados. Suponhamos que os reformistas tenham suficiente for¢a politica para compe- tir em condighes democraticas, se lhe forem dadas garantias institucionais, Se- ri isso suficiente para que cles optem pela democracia? Tomemos a situagao seguinte: Quadio 2 MODERADOS aliam-se com RADICAIS REFORMISTAS Regime autoritérin Regime autoritério LINHAS-DURAS sobrevivenaforma _aceita concessdes: antiga: 24 32 j REFORMISTAS valiam-se com Democracia sem Demecratia com MODERADOS ——_garantias: garantias 14 43 Nesse caso, os reformistas tém peso politico independentemente dos linhas- duras: cles podem obter um certo apoio em condigées competitivas e, assim, preferem a democracia com garantias a outras opgdes. O resultado para os reformistas depende, contudo, das agdes dos moderados; caso estes optem por garantias, aqueles estarao em melhor situacgdo na demociacia, mas se os moderados se aliam com os radicais, os reformistas perderao,”* B, de sua parte, 13 0s moderados preferem a democracia sem garantias. Exarminemos essa estru- tura de conilito na forma extensiva, ou seja, supondo que os reformistas deci dam primeifo 0 que fazer, antecipando assim a reagio dos moderados: Quadro 3 REFORMISTAS a aliam-se com o8 SHE negociam com moderados linbas-duras — aa MODERADOS a dio garantiaa “SS. gem garantias 43 (aliadlos aos radicais) 1A Os reformistas analisam 2 situagao da seguinte maneira: caso s¢ aliem com os linhas-duras, o resultado serd © stattts quo, que & a segunda melhor solucao. Eles estariam em melhor posigio na democracia com garantias. Mas se deci rem negociar com os moderados, estes escolherdo uma aliangs com os radi cais, o que acarretard © pior resultado para os reformistas. Dessa maneira, ¢s- tes ultimes continuarao obedecendo ao regime. Entretanto, nao poderé a democracia resultar das repetigoes dessa situagaa?” Imagine-se que todo mundo sabe que essa situagao estratégica certamente se repetird sempre. Os moderados sabem que se reagirem & abertura ederindo ‘as demandas dos radicais, os reformistas se aliardo com os linhas-duras no pré- ximo turne, Daf que os resultados para os moderados em conseqiiéncia de sua desorgiio no primeiro ture seré (4,1,1...) ow outra combinagao desses valores, dependendo da estratégia de punigao escolhida pelos reformistas.™ Mas se os moderados decidirem dar garantias no primeiro turno, os reformistas respon- derio na mesma moeda e o resultado para os moderados seré (3,3,3...). E facil ver que os reformistas tém muitas estratégias punitivas para persuadir os mo- derados a cooperar, Assim, sé a situagio original repetir-se, a democracia po- derd evaluir espontaneamente, Eu nio acredito, no entanto, que sejam repetiveis as. situagGes em que a mu- danga de regime esteja em jogo. Bssas situacGes sao tinicas: algo se rampe dentro do aparato de poder autoritario, um de seus grupos comega a sentir que prefe- riria participar do poder com consentimento- em vez de monopelizd-lo pela foray decidem, entio, fazer uma jogadae se voltam para eventuais parceiros de fora do regime em busca de garantias para sua posigo na democracia. Dado esse passd, “a sorte estd langada”: néo hé como retornar ao status quo Os resulta- dos futuros mudam em conseqtiéncia das aces escolhidas no presente. Vollar 4 | | alris é admitir o fracasso da estratégia democedtica de abertura e experimentar aire dos linhas-duras, Reformistas que decidem arrepender-se quase nunca sobrevivem ao fracasso: sio.cartas fora do baralho.** [sso nao quer dizer que ndo se pode tentar de novo uma abertua por aio de novos reformistas: foi as, enfrentando novas cireunstincias. E sea estratégia dos reformistas € bem sucedida ea democracia é institucionalizada, os resultados também mudam, A devolugao de poder as instituigdes democraticas ¢ irreversivel, ainda que'a possa sor mais uma vez derrubada.™ ‘9 que aconteceu na Coréia e na Polénia, Mas estes so novas forcas pol democrai Implica esse argumento que a democracia jamais se estabelece como um equi= Iibrio, mas resulta sempre de um compromisso normative? Nao, Basta traba- Thar um pouco com o¢ possiveis desfechos do jogo para ver que podem existir situagGes especiais nas quais o equilfbrio resultante € a democracia, Ha duas possibilidades: uma é-a de que os radicais aceitem a demacracia com garan- tas; outra, que os moderados continuem sab a protean das forcas armadas auténomas, ‘A primeira possibilidade — que os radicais deixem de ser radieais — nao é tao absurda quanto parece & primeita vista: Até que a demoeracia esteja instalada, as forgas que lutam por transformagdes econdmicas € polfticas mais profundas nao tém outra opeao senao evar ds ruas ¢ as fabricas as suas-agdes: nenhuma instituigdo evita que suas demandas sejam violentamente reprimidas, Uma vex que se estabeleca uma estrutura democratica competitiva, em virtude de um acordo entre maderados e reformistas, Os radicais descobrem que também po- dem aceitar as regras do jogo e parlicipar. Tendem a se comportar com cautela diante das instituighes democraticas, a ser mais pessimistas em relagao as suas probabilidades ei descrenga quanto a uma tolerfincia em relagdo As suas viti- rigs. Mas a atragiio de'uma interagao democrdtica mais aberta ¢ irresistivel ¢ 0s radicais acreditam que nao participar seria rejéitar 0 apoio popular. Confor- me demonstra a histéria dos partidos socialistas da Europa Gcidental, ‘todas as forgas politicas se véem diante da alternativa de participar ou desaparecer. Com excegao das anarquistas, que resistirani com pertihicia “ao canto de se- reia das eleicies’, todos participaram.” Se-os radicais se recusam a participar das instituigées: criadas pelos modera- dos ¢ refarmistas, os interesses dos moderados podem levé-los a preferir urna estrutura democratica em que as forgas da sociedade civil, representadas pe- Jos reformistas, tenham uma presenca significativa a uma outra forma de de- mocracia dominada pelos radicais.* Nessas condicdes, os resultados no jogo extensivo acima serao invertides: os maderados preferem a democracia com garantias para os reformistas a uma alianca com os radicais. Essa situagao 15 quase sempre significa que alguns setores ligados a0 regime autoritario conti- nuam a desfrutar da protegao das forgas armadas, Caso os reformistas tenham forca politica prépria e os moderados prefitam um arranjo institucional que sustente a autonomia das forcas armadas, para contrabalancar as exigéncias dos radicais, os reformistas terda: muito pouco a temer da democracia, O equi- Ubrio fesultante, nessas circunstincias, seré a democracia, mas de um tipo em que as forcas armiadas continuarao auténomas em relacao ao controle civil ¢ exercerao tutela sobre 0 processo democrdtico.”” Mas por que os moderados folerariam a autonomia militar? Por que consenti- iam na tuteld militar que restringe‘o Ambito possivel das saidas democréticas, que as vezes humilha os politicos civis ¢ introduz uma fonte de instabilidade no sistema demoerdtico?® ‘Com excecao da Polénia, todos 0s sistemas comunistas do Leste Europeu cons: titafram regimes civis, Os militares ¢'@ maioria das forgas da ordem foram sub- metidos a minucioso controle politico que se estendeu até as dreas operacio~ rnais.# Por isso, nao é de surpreender que as forgas armadas de todas os pal- ses do Leste Europeu, por ocasiéo dos conflitos a respeito da lideranca dos partidos comunistas, tenhiam se colocada totalmente ao lado das forgas qué desejavam abolir 0 manopélio comunista do poder, “O Exército deseja servir ngo.a um partido, mas a nagao”: essa tent sido a declaracio paradigmatica dos generais. Visto de uma perspectiva latino-americana, porém, esse nobre senti- mento soa funesto: nao camo um sinal de apreso pelos valores democraticos, mas como uma declaracdo de independéncia. Na thaioria dos paises latino-americanos, os militares preservaram sua auto- nomia ¢continuaram a exercer tutela sobre a sistema politica: nao 96 nas pal- ses em que a transigio para a democracia resultou de negociagées, ras até mes- mo na Argentina, onde os militares sofreram uma humilhante derrota exter. na. O espectro da intervencao militar é um constrangimento permanente s0- bre o proceso politico; uma eventual reacao dos militares € uma preocupacao que habitwalmente permeia a vida politica dessas novas democratias, A expe- riéncia argentina € particularmente comovente, pois a impunidade dos seqiies- tradores, torturadores e assassinos tem um efeito profundamente desmorali- zante sobre toda a vida politica. Entretanto, dentre as recentes transig6es para a democracia, a Espanha e a Grécin so 08 tinicos paises em que 05 governos democraticos conseguiram instalar um controle civil efetive sabre os militares e livraram-se de sua tutela. Uma resposta'dbvia as perguntas acima formuladas € que os modetados re- ceiam que uma tentaliva de impor o controle civil provoque, de imediato, 16 ; ; exatamente o que pretendiam eliminar no futuro: a intervencao militar: cél- culo estratégico implicito nessa decisao deve ser o seguinte: a probabilidade de um golpe imediato, no caso de uma tentativa de instituir 0 controle ch deve ser mais alta do que se os militares nao fossem desalojados. Portanto, mes- mo que a instalagao do controle civil reduzisse muito a probabilidade de inter- vengio militar, a chance de ocorret um golpe & menor ainda sem o-controle civil. Consideremos, por exemple, o quadro abaixo: Quadro 4 Probabilidade de um golpe imodiato eventual com titela 0.20 0.50 sem tutela 080. 0,01 Nessas condigies, a probabilidade de uma intervengao militar imediata ou fu- tura, caso os militares continuem a tutelar o sistema politico, é de 68%, en- quanto as chances de que déem um golpe, se 0 governo procurar impor © con- trole civil, € de 80,2% 2 Mas esse ndo do fim das dificuldades, pois nem todos os golpes sao iguais. Um argumento a favor de sangGes as violaghes dos direitos humanos é que a punigao teria um efeito dissuasivo: os militares pensariam duas-vezes antes de nova intervencao, porque estariam cientes de que, uma vez fora do poder, seriam punides. Pode até ser verdade, mas se esse argumento ¢, de fato, vali- do, ele também implica que, ndo sendo os militares dissuadidos de intervir pela ameaca de punigao, seré ent3o menos:provavel ainda que desistam do poder por causa dessa anieaga. Assim, a imposigo de uin controle civil pode reduzir a chance de um golpe, mas também pode aumentar a probabilidade condicional de que, ocorrendo o golpe, ele vena a ser extremamente repressi- vo, um golpe duro, Se um governo est decidido a no provocar um golpe e nao correr 0 risco da repressio, ele pode vir a ser obrigado a conter sua afronta maral e seus ideais democraticos ¢ aceitar os limites definidos pela tutela militar. Mas duvido que esse raciocinio seja suficiente para explicar 0 comportamento dos politicos em rélagao ao3 militares, Ha duas raz6es pelas quais os politicos democratas podem nao querer desmontar a ameaga militar ainda que possam faz@-lo. Em primeiro lugar, Fontana observou que, em 1981, 05 partidos politicos ar- gentinos receavam que a remogao da ameaca militar provacasse uma nova on- da de mobilizac3e popular, como em 1973, e os empurrasse mais para a es- querda de que desejavam: eles temiam os radicais, Para usarmos uma antiga wv expresso de Ernest Bevin a respeito do Partido Trabalhista inglés, eles nao que- riam ser colocados numa posigao de ter de ouvir seu préprio povo: Se¢ pos- {vel contar com os militares para reprimir mobilizagdes populares; sua tutela & uma defesa para os partidos politicos estabelécidos. Segundo, o problema.dos paises que tém longas tradigGes de intervengao-mili- jar é 2auséncia de modelos institucionais através das quais se exerga o-controle civil sobre 9s militares." Estes sio dinetamente tesponséveis perante o presidente da Republica, através dacadeia de comando, mais do que diante das comissies parlamentares ¢ agéncias civis que fariam supervisdo de aspectos particulares de- seu comportamento. Na auséncia do aparato de controle civil, os.governos de- mocriticos podem ter de escother entre tolerar.a autonomia militar ou destruir ‘© aparato militar completamente. Acre dito que, nesse aspécto, o nacionalismo -exerca uma certa influéncia: presidente algum pode comprometer-se com ages. que abalem “a capacidade defensiva da nagao”. Quancio aalternativa é deixar os mifitares intocados ou destrui-los completamente, a perpetuacao da dominacio militar talvex paréca trm mal menor para os politicos nacionalistas. @ problema do controle civil sobre os militares é, portanto, nfo s6 0 de'decidir se a apa é prudente, mas o de saber quem a apdia.” A tutela militar pode ser preférida por certas forcas politicas como protegao diante das exigéncias de maior representatividade, para atastar as presses dos que desejam uma revolugiio social, néo sé uma revolugae politica. ‘A desmontagem dos regimes autoritarios deixa, assim, residuos institucionais, Note-se 0 prego extorquida por Pinochet ém troca de seu consentimento em. eleigdes livres: (a) permanéncia dos atuais comandantes-om-chefe das forgas armadas e da policia; (b) protecao ao “prestigio dos membros das forgas arma~ das e da policia”; (¢) “combate enérgico ao terrorism’; (d) respeito pelas opi- nides do Conselhe de Seguranga Nacional a ser formade por quatro militares quatro civis; (e) manutencao. da anistia para os crimes politicos cometidos entre 1973 @ 1973; (f) nao intervengSo das autoridades politica’ na definigaa ¢ implementagio das politicas de defesa, inclusive a nio modificagie dos po- deres dos tribunais militares, da estrutura do comands e do orgamento militar e ando interferéncia na promogao de generais (narmalmente uma prerrogati- va presidencial); (g) 0 direito de nomear nove membros de Senado; (h) auto- nomia do Banco Central, cujo presidente seria escolhide pelos tacdo das privatizagées iniciadas durante os tiltimos meses do regime militar, sem investigagées a respeito dos procedimentos; (j) destinagac automatica de 20% das receitas do cobre para o orgamento militar. acei- Quando as forgas armadas s4o-elas préprias reformistas.e-a resisténcia provém, dos burocratas, a situagao é mais simples, embora em alguns momentos mais 18 : dramética®” Note-se, porém, que, na Polénia, onde o impeto pelas reformas proveio ca iniclativa das forgas armadas, o regime também conseguiu arrancar varias garantias: (a) foram assegurados 35% das cadeiras para. Partido Co- munista na casa mais importante do Parlamento — Sejm — e aos aliados de entio garantiram.-se outros 30%; em principio, essas cadeiras significaram uma ampla base de apoio para a formagao do governo; (b) é regime deveria deixar ‘claro que a oposicao nao blequearia a eleiggo do general Jaruzelski & Presidén- cia; e (¢) 08 assuntos de defesa externa ¢ ordem interna foram confiados 20 controle-dos comunistas, Em conseqtiéncia, a estratégia Stima de desmontagem do regime ¢ contradité- ria. As forgas que promovema democracia devem ser prudentes ex antee de- sejariam ser resolutas ex post. Mas as decistes tomadas antes criam condicées dificeis de reverter depois, pois preservam o poder das forgas associadas ao ancien régime. As correntes democréticas lamentam, mais tarde, sua prudén- cia, mas, antes, nao tém outra escolha senao a cautela.” Ascondigdes criadas pelas transigbes negociadas n3a $30, porém, irreverstveis. ‘Ocardter essencial da democracia é que nela nada € decidid em definitivo: se asoberania pertence ao povo, este pode decidir solapar todas as garantias obti- ‘das pelos politicos na mesa de negociagdes. Por mais institucionalizadas que se- jamas garantias, elas permitem, no maximo, um alto grau de seguranca, jamais acerteza absoluta,”! Realmente, no Chile, na Coréia do Sul eno Paquistao as ten tativas de modificar as constituigGes legadas pelo regime autoritério foram até o momento abortadas, enquanto no Uruguai um plebiscite nao consepuiu rever- ter aauto-anistia proclamada pelos militares: Entretanto, na Pol ¢ial conclufdo em abril de 1989 foi imediatamente desfeito em conseqidéncia das. eleig6es de junhio de 1989, e seus remanescentes vém sendo gradualmente des- trufdes, A transi¢éo por desmontagem interna dos regimes incentiva as foycas democréticas a remover as garantias deixadas como herang@ autoritéria, Dessa maneira, a transigio deixa um legado institucional que 6, por natureza, instivel. nia, 0 acords ini Construgao Suponhamos que o-aspecto de desmantagem esteja ausente: as forpas arma- das desintegraram-se, como na Grécia ou na Alemanha Oriental, ou elas apoiam atransi¢3o para.a democracia, come fizeram em varios pafses do Leste Euro- peu, Uma democracia aute-sustentdvel sera instalada seas forcas politicas em conflito concordarem com um quadro instituicional que permita a contestagio aberts, embora limitada, ¢ se essa estrutura gerar ui assentimento duradou- 1), A questo tem, portanto, uma dupla natureza; (a) que instituices serio selecionadas?; (b) serao elas auto-sustentavei 1p Observe-se, primeiro, qué todas'as transicdes para-a democracia sia negocia- das; algumas com representantes do antiga regime, outras exclusivamente com as forgas favordveis A democracia ¢ que procuram constituir um novo sistema. Nem sempre se precisa de negociagdes para livrara saciedade do regime auto- ritério, mas elas sfo necessdrias para constituir instituigdes democraticas. A democracia nao. pode ser imposta: ela emerge da negociagio. Pode-se construir um modelo de negociagaio com base na mesma linha adeta- da para analisar a desmontagem, © modelo tem a seguinte estrutura: 03 con- flitos dizem respeito as instituigges; cada forga politica opta pelo quadro insti- tucional que melhor defenda seus valores, projetos ou interesses; conforme sejam as relacdes de forsa, inclusive a capacidade de atores particulares impo- fern solugdes ndo-democréticas, ou se estabelece uma estrutura institucional democritica, ou comega uma luta em favor da ditadura, © modelo implica hi- piteses que combinam as relagdes de forca e as condicées objetivas com os resultados institucionais, Particularmente, o modelo explica diferentes quadros institucionais a partir das condighes em que se processa a transisgo. ‘Antes de desenyolyermos esse modelo, permitamn-me esclarecer os problemas. envelwidos na escolha institucional. Os grupos em conflito acerca da escolha de instituig6es democréticas enfrentam trés problemas gerais: substincia versus pro- cedimentoy acordo versus compeligo; e majoritarismo versus constitucionalis- ma, Até que ponte os resultadas sociais e econdmicos devem ser deixados em aberto e em que medida alguns deles devem ser garantidos e protegidos a des- peito dos resultados da interagao competitiva?™ Que decisdes devem ser toma- das por acordo ¢ quais deveriam ser submetidas 4 competicao? Instituigdes co- moos tribunais constitucionais, as forcas armadasou os chetes de Estado devern sercolncados como arbitros, acima do proceso competitivo, ou devem ser sub- metidos a veredictos eleitorais periddicos? Finalmente, em que medida e por que melds deverin a sociedade aglutinar-se para evitar futuras transformagdes?® Es- sas silo as questdes centrais inerentes aos conflitos acerca das ihstituigges. As solugdes institucionais exigidas sao especificas e complexas, Um exemple cldssico de negociagdes bem-sucedidas foram as reformas suecas do periode entre 1905 e 1907. As soguintes questées foram negociadas e resolvidas: (a) se se deveria estender 0 direito de voto ¢ para quem; (b) se a reforma eleitoral incluiria a Camara Alta ou apenas a Camara Baixa; (¢) seas cadeiras deveriam ser destinadas:a distrites uninominais.ou multinominais com representacao proporcional; ¢d) caso fossem mantidos os distritos uninominais, se 0 vence= dor deveria ser o firs! past the post ou escolhide depois de uma rodada de alocacao de cadeiras (run-off) ¢; (c) se 0 Executivo deveri responsével perante-a Coroa do que diante do Rikstag.** continuar a ser mais 20 ‘A sezio pela qual um acordo é problematico & que as instituigdes em conse- quéncias distributivas. Se a escolha de instituiedes fosse apenas uma questac- de cficiéncia, nao provocaria controvérsia; ninguém teriarazdes para recear um sistema que coloca-as pessoas em melhor situagio sem qualquer custo para outras, Mas, dada-a distribuicio de recursos econdmicds, politicos e ideolégi- cag, as instituigdes, de fato, influenciam a maneira co grau em que sao promo- vidos interesses e valores particulares. Por conseguinte, diferem as preferén- clas relativas As instituiges. Que resultados podem, entio, ser esperados quando as situagdes so diferens les? Distinguem-se duas condigdes; se a relagao cle forgas ¢ conhecida pelas participantes quando o quadra institucional esté sendo adotado e, nesse caso, sea relagio € desigual ow equilibrada. Essas condicdes determinam og tipos de instituigdes que serio adotadas e se elas serio estiveis. Trés hipdteses de- correm do raciocinio: (2) quando se sabe de antemao que a relacao de forcas é desigual, as instituigdes rat ificam a relagio e somente sfo estdveis enquanto as condigGes originais prevalecem; (b) quando se sabe de antemao que a rela- so de forgas € equilibrada, tudo pode acontecer: guerra civil prolongada, um acordo sobre instituigses que nao podem funcionar ou um acordo sobre uma estrutura institucional que eventualmente adquire a forga de uma convencao; (c) quando a relagao de forgas ¢ previamente desconhecida, as instibuigGes con- terdo extensas cléusulas de controle &'sua duragao dependeré de indimeras con digdes. Essas hipdteses sio discutidas separadamente a seguir, (1) A relagao de forgas 6 conhecida e desigual. Nessa situagio, as instituigdes sho elaboradas sob medida pata uma determinada pessoa, partide ou alianga, Gerdes mostrou que, nia América Latina, toda vez que um novo sistema par= tidério emergiu de um perfodo autoritério, novas.constituigSes. foram adota- das. Os aspectos institucionais que ela onalisou destinavam-sea consolidar as relagdes de forca mais recentes, i ‘As otigens eo papel dessas instituigdes foram mais bem deseritos por Hay- ward,” escrevendo, nao por acaso, a respeita da Franca "Como os franceses contavam com regimes de curta dure’ — cant éfeito, suas constituigges éram freqtientemente dispensadas como titeratura periddica — confetia-se pouca autoridade & propria constituigio em qualquer época, © do- cumento em vigor era visto como um traitado proviséria que Ficava a distrib gio de poder adequada aos vitoriosos num embaie politica. Longe de ser um documento Inisico e neutro; era visto como apenas um instrumento-procedural partidario de especificagio formal das condigges segundo as quais 0 gaverno eta atitorizado @ governar’t 21 Na Polénia, a Constituicao de 1919 definiu uma presidéncia fraca, porque os adversirios do marechal Pilsudski sabiam que ele seria eleite, O marechal recusou-se a concorrer nessas condigies e assumiu o poder apés um galpe de Estado em maio de 1926. Nove anos depois, uma nova constituico foi elabora- da para ratificar seu poder dé fato, Ele morreu um ano mais tarde e ninguém foi capaz de tomar seu lugar. Na Franca, a Constituigao da Quinta Repdblica foi talhada especificamente para o general De Gaulle, mas sobreviveu ao deste: da coabitaggo, quando um presidente socialista coexistiu com uma maioria par- lamentar de direita. £ razodvel esperar-se que constituigdes ratificadoras de relagSes de forga vi- genies sejam apenas tao duradouras quanto essas relagdes, O caso da Consti- tuigio chilena de 1925 proportiona um excelente éxemple. A constituigao nado teve aceitagdo generalizada até 1932, quando se fez um acotdo paralelo para entregar nas maos dos proprietdrios de terras o controle sobre os votos dos camponeses ¢ para manter indefinidamente:a sobre-xepresentagao dos distri- tos rurais, Com efeito, a constituicao que emergin por volta de 1932 foi um car- tel de setores urbanos e latifundidrios destinade a manter baixosas preqos dos produtos agrcolas, permitindo aos proprietérios comprimir os salérios rurais. As barreiras & entrada criadas por esse pacto somente foram reduzidas duran- tog anos 60, quando os demoeratas-cristdos procuraram obter o-apoio dos camponeses: Por volta de 1968, 0 sistema entrou em colapsa e a democracia foi derrubada em 1973. Observe-se que as instituigdes em questo duraram 41 anos, mas desde o comego elas foram projetadas de modo tal que nao resisti- fiam a uma mudanca particular de condigées: a ampliagio da cidadania das massas rurais. (2) A relagaio de forgas ¢ conhecida e equilibrada, Este ¢, de longe, o conjunto de circunstincias mais complexo. Suponha-se que as forgas politicas em con- ito tém fortes preferéncias por certos motos alternativos de drganizar a vida politica da sociedade, Uma parte do pafs tem sdtida preferéncia por uma for- ma unitéria de governo, enquanto outra prefere com igual vigor o sistema fe- deralista. Cerlos grupos acreditam que seus interesses estatéo mais bem pro- tegidos no sistema parlamentarisia, enquanio outros insistem no presidencia- lismo.® Determninada alianga de forgas insiste na separagao entre a [greja’e 0 Estado; outra defende uma religido de Estado, Imagine-se, genericamente, que uma alianga de forcas, chamada Fileira, acha quea democracia ¢ mais vantajo- sa sob’o sistema institucional A, enquanto a outra, chamada Coluna, se sente ameacada por esse sistema e prefere B. Elas no concordam, Falta a essa situagao-um ponto de equilibrio nas estratégias puras e um desfe- cho possfvel é a guerra civil. Foi o que aconteceu na Argentina entre 1810 22 ene | ; ; COLUNA| A B A Methor, mais.ou Péssime, péssima FILEIRA menos | B Péssimo; péssimo Mais ou’ menos, melhor e 1862, quando duas tentativas de redigir uma constitui¢do fracassaram e so: mente se chegou a uma situacao estavel depois que a provincia de Buenos Ai res foi derrotada numa guerra,” Pade ser bem essa a situacae atual na Uniae Sovidtica, onde forgas nacionalistas, federalistas ¢ unitarias se chocam sem ne+ nhuma solugio evidente. Causam apreensio, perdi, as perspectivas de um conflito prolongado, de uma guerra civil durando talvez por geragdes. Em conseqiiéncia, as forgas politicas podem ser levadas a adotar alguma estrutura institucional, qualquer uma, ape- nas como uma solugao contemporizadora.! Conforme ebservan Rustow, quando nenhum dos partidas pade impor unilateralmente sua solugio, "essa situacao prolongada de empate leva os partidos envolyidos a buscar uma saf- da subdtima de compromisso’, Na realidade, foi isso que ocorreu em vétios paises: os conflitos sobre institul- goes foram rapidamente encerrados, No Brasil, adotou-se uma nova constitui- Gio, com pleno conhecimento de que ela néo poderia ser cumprida, como ob jetivo explicito de reduzir a intensidade dos conflitos, prometendo-se salista« er, no futuro, todos os tipes de demandas, A Constituigao de 1853 foi restau- vada na Argentina, embora ela jamais tenha funcionado e sem que se tivesse raz8o alguma para pensar que, agora, ela seria cumprida.? Por que sao atraentes essas solugdes contemporizadoras? Uma razio € a cren- ca dos atores politicos de que as instituigdes importam pouco, nao.valem o tis- code um prolongamento dos cenflitos. Com efeito, a confianga no poder cau- sal das instituigdes parece ser uma caracteristica distintiva da cultura politica dos Estados Unidos, onde politicos ¢ académicos, juntos, acreditam que as ins- tituigdes fazem as pessoas se comportarem de moda diferente de que o fariam sem elas, ¢ onde se atribui a estabilidade politica ao espirito dos Fundadores. Fora do mundo anglo-saxio, a8 instituigdes sao vistas como tendo suite me- nos efetividade. Um conhecido intelectual e politico brasileiro observou, certa vez, que “nao se detém um golpe de Estado.com um artigo da Constituigaa’™ Na Hungria, um plebiscito sobre o modo de eleger o presidente levou as urnas aperias 14% do eleitorado. Assim, embora sé necessite de alguma estrutura 23 institucional para coordenar as estratégias politicas, pouco importa qual soja ela, pois, de qualquer maneira, nao seri obedecida, Além disso, ainda que se acredite que as instituigées séo importantes, os peli- ticos sabem que nao podem prever com exatiddo-as conseqiténcias de estrutu- ras inslitucionais alternativas. Os conservadores europeus exigiram o voto com- pulséric pois pensavam que seu eleitorado se omitiria, enquanto lutavam con- trao sufrdgio feminino, na crenga de que esse voto beneficiaria aos seus adver- sérios; érrararn em ambos casos. Nio_se deve exagerar nem © ceticismo a respeito das instituiges, nem 0 des- conhecimento de seus efeitos, Os politicos sabem muito bem que os sistemas. cleltorais influenciam a distribuicdo das cadeiras — ¢ também conhecem a ma- neira coma isso se realiza, Eles sabe quanto € importante a cargo de quem fica a supervisao dos servigos de informagao; sao sensiveis as regulagées refe- rentes 20 financiamento des partidos politicos. A historia esté repleta de exem- plos de conilitos sobre instituiges nos quais os protagonistas agiram de acor- do com suas crengas a respeito da importncia de minticias institucionais, Por- tanto, é importante especifiear com precisao a hipétese implicita nos argumen- tos.acima, Na minha opinidio, os protagonistas concordam em dar fim a0 con- flitos sobre-as instituigdes porque temem que o prolongamento dos chogues leve a uma guerra civil, tao ameagadora para a coletividade quanto para as in- dividuos. £ enorme a pressao para estabilizar a situagao, pois de algum modo. o governo deve continuar, O-caos é a pior alternativa para todos. B, dentro dessas condi¢ées, 68 atores politicos calculam que, a despeito da diferenca em seu bem-estar que possivelmente resultaria de uma estrutura institucional mais fa- vordvel para eles, nao vale a pena arriscar a continuagao dos conflitos, Mas como os atores podem encerrar os conflitos? Eles tém de criaralgum arca- bouce institucional, mas qual éstrutura podem adotar se nenhulma instituigao constitu uma solucao de equilfbrio? A vinica saida ¢ procurar o que Schelling cha- mou de “pontos focais’: solugdes prontamente disponiveis e que nao sdo vistas como egoistas (self serving). A busca de pontos de concentragao leva natural- mente aarétorno As tradi¢des nacionais, s¢ elas esta disponiveis, ou aexemplos estrangelros, se nao estao. Foi por isso que os argentinos recuperaram a Consti- tuigdo de 1853, enquanto os espanhdis basearam-se, em larga medida, no siste- mada Alemanha Ocidental.* Na Polonia, muitos eram de opiniie que se devia tomar qualquer constituigao da Europa Ocidental e aplicé-Ia bem. Desde que qualquer ordem é methor do que'a desordem, estabelece-se alguma ordem, Esses fatos levam-nos a.indagar se solugdes institucionais desse tipo tém con- digGes de perdurar, A luz da teoria dos jogos, as solugSes de coordenagio 24 sio instdveis quando @ sitwacao envolve conflitos. Mas 0 problema nie ¢ sim- ples, Hardin’ mostrou que os pontos de coordenagio adquirem poder cau- sal quando sao adotados: algumas instituigdes sdo usadas simplesmente por- que tém sido experimentadas hé muito tempo em toda parte: Toda mudanga tera um custo. A teoria de Hardin encontra forte apoio na observacda de Dahl™ de que, & exe ceeao do Uraguai, a democracia jamais foi derrubada por dentro em qualquer pais onde tenha sobrevivido por 20 anos. No entanto, a teoria do “contrato por conyengao” ¢ demasiado forte: ela pade explicar por que a Constituigao dos Estados Unidos pegou, mas nao explica por que constituigdes fracassam, porque tantas foram de curta duragio ou se tornaram irrelevantes. Acrazao pela qual solugdes contemporizadoras talvez nado sobrevivam por 20 anos é a seguinte. Suponhamos que quando se dé a confrontagio original, qual- quer acordo seja melhor para as forgas politicas relevantes do que a continua- (ao das conflitos, © sistema adotado como expedicnte temparério, porém, fa- vorece mais certos grupos do que outros. Aparecem, entao, dois mecanismos. Primeiro, a alianga perdedora sabe que suas chances de vitéria dentro dese sistema sio menores do que em um sistema alternativo, A expectativa se cumn- pre € a alianga perde uma Gu mais vezes consecutivas, Em conseqiiéncia, a situagdo posterior niio é mais igual 4 anterior: se ela tivesse vencido, apesar de suas poucas chances, o cAlculo teria sido diferente, Segundo, os atores apren- dem sobre-suas futuras possibilidades observando os resultados em curso, Os perdedores rebaixam suas expectativas relativas a esse sistema de instituigdes eoncluem que o risco de reabertura dos conilitos jf nfo é to preocupante assim, Se esse argumento é valido, as solugdes contemporizadoras podem, entio, re- velar sua verdadeira face: foram adotadas porque a luta continua era conside- rada muito perigosa. Mas se essas solugSes causam resuliados negatives, ag foras politicas afetadas serao naturalmente tentadas a contornar og custos en« volvidos na competi¢ao sob regras democrdticas ou, pelo menos, a melhorar suas possibilidades ne disputa. Dessa forma, as forgas politicas que podem persoguir outras safdas:certamente o fardo. (3) A relagdo de forgas é desconhecida. Suponhamos que um pais emerja'de um longo periodo de dominagao autoritéria ¢ ninguém sabe come ficarao as telagées de forca, Torna-se importante, entao, 0 Uiming de redagao da consti- +tuigdo, Se ela € adiada até que as cleig6es ¢ outros acontecimentos clarifiquem essa relagdo, voltamos as situagGes discutidas acima: a articulagio de forgas pode mostrar-se desigual @ as institui¢Ges sero projetadas para ratificar a 25 vantagem existente; ou entao, a relaciio pode mostrar-se equilibrada, com to- das as possibilidades que a situagao implica. © timing relativo entre: as elect Ses presidenciais, parlamentates e a redacao da constituicao foi objeto de in- tensos contlitos na Polénia; a decisao foi realizar as eleiges presidenciais an- tes que ficasse pronta a redacao da Constituigio, Imagine-se, porém, uma si- tuagao em que a constituigio seja redigida primeiro, como na Grécia, ow em que as eleicSes tenham sido realizadas mas com resultados pouco esclarece- dores, como na Espanha. Se todos estiverem por trds de um “véu de ignordincia” — como Rawls o defi- niu —, isto-d, se sabem muito pouco a respeito de sua forga politica nas futuras instituigdes democrdticas, todos optam por uma solugao prudente (maximin instituigdes que introduzam freios e contrapesos, miaximizem a influéncia po- litica das minorias ou, de modo equivalente, tornem as politicas extremamen- te insensfveis as flutuagées da opinise publica, Cada uma das forcas politicas em dispula procura descobrir instituigSes que oferecam garantias contra reve- ses politicos temporsrios, marés desfavordveis de opiniao, rompimentos ad- versos de aliangas. Na Suécia, os liberais @ 08 social-democratas estavam dis postos a prover as garantias exigidas pelos conservadores: como afirmou o porta- voz conservador, bispo Gottfrid Billing, ele preferia ter “garantias mais sdlidas © uma ampliagdo do sufrdgio a garantins mais frageis¢ uma extensio menor do eleitorade* Dessa maneiza, constituig6es escritas quando as relagdes de forga ainda nao estio claras tendem a impedir © aumento de recondugées ao poder, a provi- dendiar seguro ads eventuais perdedores e a reduzir os riscos da competicao. Inclinam-se a induzir os perdedores a se submeterem aos resultados ¢ a estimulé-los a participar, Tém mais probabilidade, portanto, de se tornarem estdveis em uma grande diversidade de-situagGes histdricas. ‘As conclusdes preliminares a que chegamos, ¢ que devem ainda ser testadas por evidéncias sisteméticas, sao a5 seguinies, Instituigées adotadas quando as relagSes de forca s40 desconliecidas, ou indistintas, provavelmente subsistem em uma grande variedade de situagGes. Instituigdes adotadas como solugdes contemporizadoras, quando se sabe que as relaSes de forga sao equilibradas ¢ grupos diferentes tém fortes preferéncias por solugSes alternativas, podem assumir forga de convengio se conseguem sobreviver durante um tempo sul ciente, mas nao € provavel que durem até esse ponto. Finalmente, as institu (Ges que ratificam vantagens transilérias provavelmente sero to durdveis quan- to as condig6es que as originaram, 26 CONTESTACAO Resta considerar um aspecto adicional. Seguindo as proposigoes de O'Don- nell e Schmitter, 6 preciso distinguir entre democratizagdo do Estado e do repi- me. © primeiro proceso refere-se As instituicées; 0 segundo, as relagées entre ay instituigdes estatais e a sociedade civil. Cada uma das forgas que lutam contra o autoritarismo deve também conside- rar sua futura posi¢ao na democracia. Flas deyem permanecer todas unidas contra'a ditadura, mas devem dividir-se entre si préprias."* Se elas se dividem muito cedo, o resultado provavel é a repeticao da experiéncia da Coréia do Sul, onde @ rivalidade entre dois candidatos presidenciais — rivalidade esta que era em principio pessoal, mas também regional ¢ econémica — permitiu a vit ‘nas urnas do candidato ligado & ditadura. Se elas ndo se dividem de modo aigum, o novo regime serd a reproducao exata do anterior: ndo-representativo, ndo-competitive. Esse é o perigo que se coloca perante varios pafses do Leste Europeu: que a revolugao termine sendo apenas anticomunista, € ndo demo- erdtica,” © mesmo dilema surge, de maneira modificada, apds terem sido instaladas as instituigéies democraticas, O problema clissico de qualquer ope democracia ¢ 0 de quanto se apor e por quais meios, Se a oposic’a no se-opde, nao apresenta alternativas e nao luta energicamente por essas esco- Ihas, ent&o o poder representativo das instituigdes politicas, sua capacidade de mobilizagao e de incorparagie sao fracas. A democracia esta anémica. Mas:se.a oposigio se opde com vigor, a democracia pode: ser ameagada. Principalmente env condigdes econdmicas diffceis, uma eposicao intransigen- te pode criar uma situagdo de ingovernabilidade. Se a aposi¢So conclama a uma greve geral toda vez que um partide perde uma eleicao ou toda vez que um governo adota uma medida de politica impopular, o resultado pode seeum enfraquecimento das instituigSes democréticas € a criago de condi- Ses. para uma intervencao militar, Onde talvex se possa observar esse dilema com mais clareza’é no interior do movimento peronista na Argentina, Os “renovadores” queriam tornar-se um partido eleitoral e reduzir.as taticas & luta eleitoral e parlamentan, enquanto ivala Ortodoxa desejava permanecer como um “movimento” e lutar a todo cus- to pela “justica social”, Assim, Saul Ubaldini nao acreditava que derrotas elei- torais impedissem a CGT de convocar greves gerais, enquanto os deputadas ‘peronistas se retitavam do plendrio toda vez que previam perder uma votagio, indo, desse modo, a formacio de quorum. 27 Os “pactos politicos" sao uma sclugao para esse dilemma: acordos entre Iideres dos partidos politicos (ou protopartidos) para (a) repartir entre si cargos gover- namentais independentemente de resultados eléitorais; (b) fixar orientagdes ba- sicas de politicas; e (c} excluir, se necessdrio reprimir, o8 que ficam fora do acor- dos? Esses pactos tm uma longa tradiggo do que se costumou chamar de transformismo na Itélia, Espanha e Uruguai, O pacto veriezueland de Punta Ajo, de 1958, é 0 modelo desse tipo de acordo. Segundo esse pacto, trés part dos dividiriam os postos governamentais, perseguindo politicas comprometi- das com objetivos desenvolvimentistas, sob-o regime de propriedade privada, e@ excluindo os comunistas do sistema politico, © pacto foi muito bem-sucedido na organizagao democratica de alternancias de poder. O propésito ostensivo desse tipo de pacta é proteger as instituigdes demacrd- ticas embrionérias pela redugio do nivel do conflito acerca de politicas especi- ficas e distribuigao de cargos. Enquanto os pactos institucionais estabelecem as regras do jogo deixam toda o resto & competicao, estes sao pactos substan- tivos, destinados a retirar do processo competitivo os grandes problemas de policy: ‘[ais pactos sao apresentados como necessdrias & protecdo das institui- gGes democrdtieas diante de pressées 45 quais essas instituigdes nao podem responder. Note-se, porém, qué os pactos somente so vidveis se os parceitos extraem beneficios privados da demacsacia, e que eles sé podem auferir des- ses ganhos se exclufrem os “nao-pactuantes” da competigao.” Disso se con- clui que 6 perigo dos pactos substantivos é o de se tornarem cartéis de ecu pantes de cargos piiblicos contra os adwersdrios, cartéis esses que restringem a competicao, barram o acesso ¢ distribuem benesses do poder politico entre os pactuantes. A democracia totnar-se-ia, nesse caso, um projeto privado de lideres de alguns partidos politicos’ associagSes corporativistas, um oligopé- lio em que lideres de certas organizacdes se conluem para impedir a entrada dos que ficaram de fora do acordo, “Luctosempresatiais”; essa pode ser uma inevitével reoompensa pri queles que empreenderam o projeto demoeratico. Ademais, as instituigces de- mocréticas podem nao ser capazes de processar todas 05 importantes con: fos que dividem uma sociedade, haja vista a exclusdo deliberada de questaes religiosas do processo constitucional dos Estados Unidos, Todos os sistemas democraticos criam algumas barreitas & entrada: a politica eleitoral é talvez a indiistria mais bem protegida nos Estados Unidos. Contudo, sea democracia deve ser consolidada, o papel da competigio tem de ser ode desconcentrar a8 lucras em vex de transformé-los em beneficios permanentes: Nao se deve esquecer que 0 éxito do Pacto de Punto Fijo custou & Venezuela o maior movi mento juerritheiro da América Latina; a exclusio exige a coergio ¢ desestabi za as instituigdes democréticas.7! 28

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