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cw ROGER BASTIDE Machado de Assis, paisagista’ Machado de Assis, pintor da natureza e paisagista, nio serdo palavras que se repelem? Nao é a regra, mesmo centre os mais intransigentes admiradores de Machado, reconhecer-Ihe na obra essa lacuna, falta de descricies, a auséncia do Brasil tropical? Nao confessou ele mesmo essa limitagao da sua arte quando fez um herdi de um de seus romances, porta-voz de seus préprios sentimen- tos, dizer: “nem marinha nem paisagem, nao soube de nada..’, ou ainda: “eu nio sei descrever nem pintar”?? E entretanto?... Entretanto, reputo Machado de Assis um dos maiores paisagistas brasileiros, um dos que de- ram & arte da paisagem na literatura um impulso seme- Ihante ao que se efetuou paralelamente na pintura, e que qualificarei, se me for permitido usar uma expressio “mallarmeana’, de presenga, mas presenga quase aluci- nante, de uma auséncia. £, pelo menos, o que desejaria demonstrar nestas breves paginas, procurando primeiro saber por que a paisagem parece ausente, e, em seguida, por que ela é, todavia, terrivelmente presente. O género cultivado por Machado de Assis e seus pro- ccessos técnicos, eis sem diivida a principal razio que Ihe impedia consagrar na sua obra longos trechos & descrigdo da natureza. £, com efeito, a lei de todos os generos curtos, como o conto, a novela, resumir o dra- ma ao essencial, concentrar o interesse em vez de dei- xé-lo dispersar-se em pontos secundérios, e ¢ evidente que a paisagem sé poderia desviar a atencdo. As des- 418 cw. BASTIDE, Roger. Machado de Assis, pasagista crigdes podem, naturalmente, existir, mas desde que se reduzam a uma extensio proporcional a extensio da narrativa em que se enquadram. £ o que fazia La Fon taine em suas fabulas: dois, trés versos Ihe bastavam para sugerir um quadro, evocar um recanto de agua, verdura e sombra, E exatamente o que faz Machado de Assis: algumas linhas lhe chegam para por diante de nés uma doce paisagem maritima: “Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d’égua, ou avoacavam somente. O dia estava lindissimo. Nao era s6 um domingo cris- to; era um imenso domingo universal” Dir-me-do talvez que essas estampas ligeiras, em trés pinceladas, 6 sugerem paisagens banais, nada fixam do que é es- trita e autenticamente brasileiro. A objegao é capciosa: peco um pouco de paciéncia, responderei ao estudar a reivindicagao nativista em Machado de Assis. Por ora, fiquemos no exame de seus processos de escritor. Quase todos os seus processos condenam as lon- gas descrigdes: a conversa, que permite quando muito uma pausa de algumas linhas para evocar o jardim, a floresta, a praia luminosa; algumas linhas apenas, para nao interromper o curso da conversa, para nao perder- s€ 0 fio do didlogo; a narrativa: muitos contos so cons- truidos sobre esse tema, uma personagem que conta uma histéria; ora, se observarmos alguém falando, nio © veremos nunca entrecortar 0 mondlogo de descri- ‘g6es; a descri¢ao é uma invengio do estilo escrito, nio pertence ao estilo verbal: Machado de Assis, querendo ser natural, respeita com toda a razao essa lei. Assim a eliminacao da paisagem foi imposta ao es- critor pelas normas estéticas do género que pratica e pe- los métodos que utiliza. A dificuldade, todavia, nao esta resolvida, mas apenas adiada; resta saber por que Ma- chado de Assis escolheu esse género. Teria marcada pre- dilegao pelos seus processos? Nao os adotou justamente por nao possuir o sentimento da natureza? por ndo sa- ber pintar? para evitar, com esse desvio, que ficasse pa- tente a sua inferioridade em determinado dominio? Na realidade, tudo se prende a causas de ordem sociolégica, no momento histérico em que compés sua obra. Gilberto Freyre assinalou claramente, em Sobra- dos e mucambos, as transformagoes que se operaram durante o Império na estrutura social do Brasil eas re- percussdes dessas modificagdes na alma e na conscién- cia dos homens dessa época: depois do isolamento nas casas-grandes, na solidio dos canaviais, cortado apenas pelas visitas de parentes, pela passagem de um hdspede — a experiéncia da cidade, da comunhio, a descoberta de um novo prazer: a conversa. E evidente que a arte de Machado de Assis corresponde ao de- sabrochar dessa sociedade urbana, a esse instante de embriaguez apés trés séculos de patriarcalismo, de en- cerramento no circulo da familia, a essa nova alegria de viver. Nao é impunemente que a rua representa nos romances do nosso escritor um papel considervel: & {que ela constitui o ponto de ligacdo das casas, une en- tre si as salas de visitas, significa o fim do isolamento colonial. Ora, a sociedade urbana cria forgosamente uma arte de didlogo e de anélise psicolégica; didlogo, por causa da importancia preponderante que assu- ‘mem 0s saldes ¢ as conversas, galantes ou de negécios; andlise psicolégica, porque esta é uma conversa que continua depois da outra, uma conversa que cada um tem de si para si, em que o eu se divide em varias per- sonagens que porfiam, se criticam mutuamente, dia- Jogam umas com as outras. A técnica de Machado de Assis ndo é uma burla para dissimular fraqueza na arte da descrigéo, mas um efeito, uma resultante quase fatal da vida carioca.4 E verdade que o primeiro momento da urbaniza- ‘s40 foi marcado pela eclosio da literatura romantica, isto é, uma literatura de glorificagdo da natureza brasi- leira. Mas é que a urbanizagio ainda nao pudera fazer sentir todos os seus efeitos — o sobrado nao era mais, que 0 prolongamento do engenho, que a casa-grande transportada para a cidade, isolada no seu jardim, e 0 contacto s6 conseguia fazer sentir, ndo o que se ganhara, ‘mas o que se perdera, intensificando assim a nostalgia da vida rural, da floresta selvagem ressoante de vozes de passaros, da paz das palmeiras juncando a terra de suas sombras recortadas. Machado de Assis ndo pertence a esse primeiro periodo da urbanizagio, a esse instante romintico, em que o amor, em vez de ser didlogo, se tor- na logo, para coragdes que trazem ainda em sia heranga da solidao, poesia pessoal, canto lirico. Pertence a fase naturalista, & nova geracdo que conseguiu adaptar-se a0 novo habitat; e sabe-se que o que distingue a passagem de uma escola literéria para outra é a critica severa da primeira pela segunda. Ora, dando a primeira um lu- gar importante ao sentimento da natureza, nao seré a segunda levada a reagir contra essa proeminéncia? Dois fatos parecem corroborar essa hipétese: a existéncia, em certos contos, de descricées irénicas, ‘onde a paisagem ¢ pretexto para trocas, pelo encontro voluntério de epitetos banais: aurora de dedos de rosa, etc. ¢ de “clichés” romanticos que séo destarte relega- dos aos mesmos museus de antigiiidades, aos mesmos depésitos dos acess6rios fora de uso. Ha nisso ainda 0 desejo de mostrar que a descri¢ao romantica é um pro- cesso ficil, de um sentimentalismo banal, ao alcance de qualquer um. Poesia de cozinheira! Nao surpreendeu ele um dia a sua, que tinha “seus laivos de poesia entre acarne e a batata’,a extasiar-se, diante da janela aberta, com as noites do Rio: “As ondas estdo tao quietas! tao ‘TeRESA revista de Literatura Brasileira (6|7]; Sio Paulo, p. 418-428, 2006. 4 419 pequenas! Parecem passarinhas. Que artista seria ca- paz de fazer assim... uma peca de chita?”s Mas sua critica das descrigées da natureza nem sempre assume esse aspecto amavel ¢ esse tom de hu- ‘mour. Faz-se éspera por vezes, deixando perceber um tremor de célera. £ que ela se prende também ao “nati- vismo” de Machado de Assis. Ja se disse que ele nao foi : “Faltava-lhe... um sentimento. de amor 8 terra, & sua paisagem, a sua gente’, diz Auré- lio Buarque de Hollanda,e Cassiano Ricardo acrescenta este qualificativo: “grande escritor brasileiro de espirito antibrasileiro”® Confesso que essas opinides mexem um pouco comigo. O patriotismo de Machado de Assis foi ardente ¢ ele celebrou em seus versos tanto a india como a humilde mucama seduzida pelo senhor-mogo, introduziu em suas Americanas termos tupis, procurou cescrever & brasileira e nao a portuguesa... Mas seu pa- triotismo soube, com razao, ver um perigo no gosto de seus predecessores pelas paisagens exéticas. Quando, convidada a dar uma impressio sobre o Brasil, Sarah Bernhardt respondeu aos jornalistas: "Ce pays féérique’, Machado de Assis se sentiu revoltado: © meu sentimento nativista |... sempre se doeu desta adoragdo da natureza. Raro falam de nés mesmos; alguns mal, poucos bem. No que todos estao de acordo, & no pays féérique, Pareceu-me sempre um modo de pisar o homem e as suas obras. Quando me louvam casaca, louvam-me antes a mim que ao alfaiate. Ao ‘menos, é 0 sentimento com que fico; a casaca é minha; senioa fiz, mandei fazé-Ia. Mas eu nao fiz, nem mandei fazer 0 céu eas montanhas,as matas € 0s rios. Jé os achei rontos, € ndo nego que sio admiraveis; mas hé outras coisas que ver? 420 cw, wasripe, Roger. Machado de Assis, paisagista Um dia mostrara a um estrangeiro de passagem a Igreja do Castelo, e aquele, depois de haver relanceado 0s olhos pela velha capela, logo saiu sem uma palavra, para contemplar o mar, o céu e a montanha: “Que na- tureza que voces tém!”, E certamente, acrescenta Ma- chado de Assis, nossa bafa é um magnifico espetéculo. Mas essa beleza jé existia antes do aparecimento dos homens. O visitante queria excluir do Brasil a agio do homem, a vontade brasileira; s6 retinha a criagao de Deus, suprimindo tudo o que lhe acrescentara 0 povo da terra: ora, é nessa adigdo que melhor se manifesta a mistura das ragas, a estrutura peculiar do pais, o dese- jo de fazer alguma coisa de novo, em suma, a origina- lidade brasileira E preciso lembrar que pintar a natureza brasilei- ra no que ela tem de mais tropical, de mais antieuro- peu, é de um nativismo ilégico. Porque, quer queira quer nao, o artista se coloca, para isso, exatamente no mesmo pé que o estrangeiro recém-chegado: quer dar uma sensagdo de exotismo, Para poder elogiar o que a paisagem carioca tem de original, é preciso compara- la mentalmente com outras, ¢, logo, adotar, provisoria- ‘mente pelo menos, uma alma européia, ‘A historia literdria o confirma, O romantismo, que tanto contribuiria para a descrigdo lirica, foi do- minado pela influéncia do romantismo francés, de Lamartine e Hugo particularmente. E 0 exotismo de suas paisagens reflete largamente 0 gosto do’exotismo desses poetas de além-Atlantico. Mas 0 que se com- preende num europeu dvido de sensagdes novas nao corresponde ao que deve ser a viséo de um autécto- ne, habituado desde cedo a um certo tipo de natureza. Outro fato ainda mais significativo é que a literatura modernista, porque comecou em Sao Paulo, grande centro de imigrantes, encerra uma espécie de secreto desespero a manifestar-se na busca do “tipicamente brasileiro’, como se pretendesse o nativo libertar-se da alma do imigrante que, por contégio, se vai infltrando na sua; mas justamente s6 quem traz.em si um pouco de imigrante é que consegue descobrir esse “tipica- mente brasileiro’, no curso do diilogo que se abre no espirito dividido contra si mesmo, entre o brasileiro e 0 recém-desembarcado da Europa. Machado de Assis, vivendo numa época em que apenas comegava a colonizacdo estrangeira, sob a for- ma de col6nias agricolas relativamente afastadas do conjunto da vida brasileira, nao precisou imprimir a0 seu nativismo 0 feitio duro e patético de batalha inte~ rior. Podia dar-lhe um aspecto mais natural, mais es- pontaneo. Quando, por conseguinte, se Ihe censura a banalidade das descrigoes répidas que insinuava por vezes, em tragos ligeiros, entre as linhas da narrativa, esquece-se a reivindica¢ao nativista que elas porventu- ra encerram: o desejo de nao cair no exotismo, porque 0 exotismo é ver o préprio pais com olhos de estran- geiro — a vontade de exprimir 0 que vé 0 olho habitua- do A paisagem, 0 olho de um escritor que nunca saiu de sua terra, que no tem que fazer comparagdes, que gra- ‘ya 0 conjunto, ¢ nao o pitoresco de certos pormenores tropicais. E sempre a nota do dinamismo do brasileiro civilizador, de que faz questdo fechada: “Morro verde e crestado, palmeiras que recortais 0 céu azul, € tu, loco- motiva do Corcovado que trazeis o sibilo da industria humana ao concerto da natureza, bom dia!”? Tais so, creio eu, as razdes que levaram Macha- doa dissimular a paisagem na sua obra, dissimulé-la por detras dos homens. Nao se deve, pois, falar de falta de sentimento da natureza ou de auséncia de sensibili- dade brasileira. Machado de Assis poderia, se quisesse, ter recheado sua obra de descrigdes. Sua poesia no-lo prova. Com efeito, para bem conhecer um grande pro- sador, deve-se, quando possivel, recorrer a seus versos. Porque a poesia de um prosador é como que 0 aves- so de sua obra: revela o que ele teve de recalear para atingir a perfeigao que se propés conseguir. Charles Maurras di-lo excelentemente: queria escrever sob 0 signo da Razio, queria alhear completamente a sua politica, do sentimento; mas nem por isso deixava de possuir uma sensibilidade cujas ondas turvas precisa- vam escoar-se fosse como fosse; e, como ele mesmo confessou, a poesia foi a libertagao desse outro lado da sua personalidade, Ha, portanto, oportunidades de descobrirmos nos volumes de poesias do nosso escri- tor o sentido da natureza e o gosto da descrigao. Deixemos de lado as Americanas, onde entretanto a descrigio é tio desenvolvida que se torna fatigante, porque, embora cantem os moradores das “[..] flores- tas/ Aonde habita o jaguar,/ Nas margens dos grandes rios/ Que levam troncos ao mar’, trata-se sobretudo, nesses versos, de descricdes histéricas. Mas os outros livros esto cheios de paisagens, que provam como 0 poeta amava sua terra e lhe entendia a beleza sabo- rosa e triunfal; assim, para s6 citar um exemplo, esta “Manha de inverno’, que tenta exprimir o que ha de estranho numa manhi fria em pleno trépico: Vento frio, mas brando, agita as folhas Das laranjeiras timidas da chuva; Erma de flores, curva a planta o colo, Eo chao recebe o pranto da vitiva. Gathardo moo, 0 inverno deste clima Na verde palma a sua histéria escreve. Sabe-se que, na mocidade, consagrara ao Pio de Agiicar ‘ronesa revista de Literatura Brasileira [6|7]; Sto Paulo, p. 418-428, 2006, «#7 421 ‘um extenso poema, Mas ndo gostava que Ihe encomen- dassem paisagens. A anedota citada por Alfredo Pujol sobre 0 pedido de Ramos Paz para que 0 autor de A mao ea luva ornasse seu romance com um parque, ¢ a resposta de Machado de Assis, aquela descrigao geo- métrica, seca, voluntariamente geométrica (sé fala em separacdes, em caminhos que se cortam...), néo tem, a meu ver, outra significagdo, Quando é seu coracio que fala, entdo os termos Ihe ocorrem facilmente; quando a prefeitura carioca, com pruridos urbanisticos, demo- liu a velha rua Direita, o artista, comovido de ver de- saparecer o pitoresco colonial escondido nesse bairro, tira de suas lembrangas uma tocante evocacio.” Mas nao sao apenas os versos que permitem co- nhecer um talento, mas também a critica. Que quali- dades exigia o escritor de seus contemporineos? Qual © seu ideal de estilo? Fala freqiientemente de meias- tintas, de arte esfumacada, da necessidade de ser s6- brio em literatura. E poderia por isso ser acusado de se haver forjado um ideal em contradicéo com a natu- reza tropical, violenta, rica, colorida, exuberante, com uum pafs que ainda se acha, na expressio de Keyserling, no sétimo dia da criagao. Certo, nao nego a beleza do estilo tropical. Mas logo me detém esta frase de Ma- chado: “E preciso nao confundir 0 sentimento com 0 vocabulério’. Assim como se podem exprimir sobria- mente as tempestades do cora¢do humano, como o fez Mérimée, nao se poderia exprimir sem exuberancia um clima tao vivo e ardente? E nao serd justamente isso que vamos descobrir na paisagem interiorizada do nosso autor? Falando das Cenas da vida amazénica, de José Ve- rissimo, Machado de Assis elogia este iiltimo por ter sabido dar a sensacdo quase fisica da realidade vege- tal e aquatica do pais. Mas acrescenta: “Nao sio des- 422. Bastipe, Roger. Machado de Assis, paisagista crigdes trazidas de acarreto’” E foi isto, com efeito, 0 que procurou realizar em seus romances: nao permi- tir descrigdes para divertimento, verdadeiros enfeites postigos no livro; é preciso que a natureza seja uma Personagem que represente o seu papel, que a paisa~ gem tenha significacdo e finalidade proprias, que sirva para facilitar a compreensio dos homens ou auxiliar 0 desenrolar da a¢do, e nao seja um mero quadro rigido. Problema dificil, a0 qual, como veremos, deu, depois de um primeiro periodo de hesitagées, a melhor solu- Ao possivel. Referindo-se, alias, a Coelho Netto, Machado de Assis notou que ele possufa o sentido da paisagem, que empregava sempre as cores proprias, as palavras ade- ‘quadas. Mas, ainda aqui, esse nao é o seu maior elogio. © que Ihe agrada nesse escritor é que a natureza est em toda parte. Em toda parte, isto 6, mesmo onde nao aparece a primeira vista, nos conflitos dos homens no intimo das almas. Texto particularmente revelador, pois que nos trai o segredo de Machado de Assis e nos indica a diregdo a tomar para descobrir a paisagem machadiana.* 0 Quando se estuda a evolugdo da pintura, vé-se que a paisagem foi de inicio apenas um fundo de quadro so- bre o qual se destacava um retrato, uma cena mitol6gi- ca ou religiosa. Hé entao dois casos a considerar: ou a natureza é unfssona com a cena, a dogura da atmosfe- ra, 0 brilho torrencial da luz, 0 patético do crepisculo correspondendo a docura da parabola evangélica, a expresso apaixonada ou dramética dos personagens; ou, ao contrario, a paisagem contrasta com o assunto, 0 qual, por essa oposigaio mesma, faz ressaltar. Mais tarde, devia a natureza destacar-se da pintura anedética ou de retratos, para viver vida independente. Essa ruptura corresponde, no final das contas, a grande arrancada descritiva do romantismo literario, Apenas ‘os maiores pintores guardaram a nostalgia de uma unio cada vez mais estreita entre o homem e as coi- sas,de uma espécie de participagao mistica do humano ‘com o teliirico. Mas, para realizar esse sonho, langaram mio de miltiplos processos, de técnicas variadas. O primeiro desses processos é 0 que flie Faure chama a transposicao dos elementos. Consiste em re- vestir os individuos das cores e nuangas da natureza que os cerca, em por 0 colorido das geleiras, as cinti- lagdes do mar, 0 castanho ou o ocre da terra natal so- bre a pele e as roupas das personagens: “Para o pintor espanhol, a laranja do cesto do vendedor se reproduz no alaranjado dos crepiisculos de Castella, a neve da sierra nos vestidos das infantas. Para o pintor holandés, 0 irisado do arenque no balcdo da peixaria de Ams- terda se encontra nos andrajos dos mendigos ou nas, fontes de um rabino dos bairros pobres"* A natureza pode, pois, parecer ausente de uma tela, estando na re alidade estranhamente presente, no homem vestido de ‘Agua, de céu e de terra. Mas essa tentativa de unificacdo sé atinge a per- feigo plena quando o pintor se recusa a representar unicamente a estrutura carnal superficial e seus estigmas sociais, deixando de inscrever nela o peso de sua relacio total com 0 mundo exterior. Porque nao é 0 caso de uma presenca da paisagem conservando ainda uma aparén- cia de exterioridade pelo fato mesmo da separagao do modelo e do meio onde vive, como se vé em certos retratos de grandes mestresitalianos ou flamengos que reservam, ao lado da figura, um canto da tela para uma vista campestre de sua terra. Masse quisermos ver nessa representago, nlo 0 desejo de colocar ao lado do ser ‘vivo o quadro material em que evolve, mas, a0 contra rio, uma expressio simbélica da paisagem interior” do modelo, teremos que ao espectador cabe estabelecer a fusdo entre os dois termos, e que um intervalo existi- rd sempre entre a personagem e a paisagem. Para que 1a fusio seja perfeita e a presenca realmente absoluta é necessdrio que no retrato a paisagem se faga sentir como que virtualmente presente na propria arquitetura, da face, na qualidade da luz — a grande unificadora, o ‘meio universal —,na escolha das cores, na sua transpa- réncia, na espessura da tinta.* Foi exatamente esse o progresso que Cézanne imprimiu 4 pintura, como muito bem viu Eugenio d’Ors. Seus modelos, dizia este, trocam com a natureza ambien- te “tantos sinais, tantas mensagens, tantas influéncias, realizam com ela tantos miituos compromissos’, que, “como as naturezas-mortas, esses retratos so, no fundo, paisagens”, Pois bem, eu quereria demonstrar que foi uum progresso do mesmo género que Machado de Assis, imprimiu a literatura: a natureza, nele, néo € ausente, mas ele soube suprimir o intervalo que a separava das, personagens, misturando-a com estas, fazendo-a colar- se-lhes a carne e sensibilidade, integrando-a na massa com que constréi os heréis de seus romances. Certo, nao chegou de golpe a essa maestria. No comeco de sua carreira, deixa claros de paisagem, nao enche a separacio entre o homem eo mundo exterior; ‘mas, como nas velhas escolas de pintura, esses répidos panoramas, bosquejados com poucos tragos de pena, ‘runssA revista de Literatura Brasileira [67]; Sdo Paulo p. 418-428, 2006. 9 423, tém por fim mostrar a analogia de sentimentos de seus herdis com a natureza, ou, ao contrario, seus con- trastes. Esses dois temas so muito nitidos em Ressur- reigdo, por exemplo, onde vemos no inicio o fervor de Félix, unissono com o fervor das coisas, seu ardor par- ticipando do esplendor da luz, do jogo das nuvens e da magnificéncia do céu; enquanto 0 processo oposto foi utilizado no capitulo xrx (“A porta do céu”), em cujo curso a mudanga de tempo segue a marcha inversa da evolugio psicolégica do heréi: “Que the importava a ele a melancolia da natureza, se tinha dentro d’alma uma fonte de ineféveis alegrias?” Abandonaré, porém, felizmente, esses métodos sumérios, e, como os pintores espanhdis e flamengos, operard a transposigao dos elementos; vestira suas personagens — sobretudo as femininas, mais per- meaveis as influéncias teliricas ou climaticas, menos separadas do ambiente pelos artificios sociais — das cores, das coisas, da luz do mundo exterior. A mulher nao se isola da paisagem, mas aproveita-a, apropria-a, uune-se-lhe, tré-la em si, Este trecho de Jaid Garcia & sintomético do processo que Machado vai utilizar lar- gamente: “A alma cobigava um imenso banho de azul € ouro, €a tarde esperava-a trajada de suas puirpuras mais belas”® O que caracteriza a natureza carioca sio a vegetacdo sensual, as voluptuosas noites quentes de verdo, e sobretudo a presenga do mar. Ora, esses trés elementos sdo transpostos para se tornarem car- ne, sangue e vida, para integrar a arquitetura da face, para correr nas veias e bater docemente no pulso, sob a delicadeza de uma pele feminina. As laranjeiras per- fumadas das chécaras, os recantos de sombra imida sob as drvores, a vida vegetal dos trépicos, que talvez nao descreva, inscrevem-se no andar dessas mulheres- 424.0% pastipe, Roger. Machado de Assis paisagista vegetais, dessas mulheres-paisagens. As noites do Rio se tornam cabeleiras, cabelos soltos, perfumados, mor- nos, voluptuosos, “cortados da capa da tltima noite’ E se, na Europa, o poeta pode dizer que “Les yeux des femmes sont des Méditerranées’, os olhos das heroinas de Machado de Assis, olhos verdes, olhos de ressaca, olhos de escuma com reflexos irisados, so feitos da propria cor do oceano que banha as praias do Brasil, guardando em suas vagas 0 encanto de Iemanja, o ape- o dos abismos, a caricia e a traicao. Nao se deve buscar alhures a descrigdo da natureza brasileira; temo-la pin- tada por transposigao, transparente através dessas mu- Iheres vegetais e maritimas, que deixam no leitor um gosto de sal, de jardim adormecido ou de noite tépida. Mas essas trocas constantes, essas mensagens su- tis entre as coisas e os homens transcendem a natureza feminina para se algarem por vezes a uma verdadeira lei cosmica: As estrelas pareciam-Ihe outras tantas no- tas musicais fixadas no céu a espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas entao a terra seria uma constelaco de par- tituras’ Sim, é bem isso, Machado descola as estrelas, as palmas, a cor das aguas e da terra, para p6-las nas faces, no desenho das mios e no fundo dum sorriso. Mais ainda, porém, do que para a transposicao dos elementos, é para a paisagem interior que 0 nosso escritor apela para unir 0 homem e a natureza. O que nos obriga, para descobri-lo, a nos voltarmos “para dentro’y” na sua expressio. A forca de vivermos num certo meio, vio-se-nos impregnando dele os poros da pele, a carne, a propria personalidade, de que passa a constituir parte integrante; por isso, tornada interior, a paisagem transparece-nos nos gestos, cobre-nos © rosto, canta-nos na voz ou brilha-nos nos olhos. Machado tinha disso experiéncia profunda; tornara- se o Rio; podia dizer, como um de seus heréis, que “as ruas faziam parte da minha pessoa’ E foi certamen- te dessa experiéncia que partiu para renovar a arte da paisagem, para descobrir um meio de fazer a beleza carioca servir mais intimamente a beleza de seus ro- mances, de amplificar a miisica de suas frases com a misica do oceano préximo. Seria muito longo citar todos os trechos que corroboram a minha idéia. Para me ater a Quincas Borba, Rubiao nao diz.que traz sua terra natal “em si mesmo’, e Sofia, para ver melhor 0 mar, nio fecha os olhos, porque ele batia-lhe no pulso as vagas lhe arrebentavam no coracdo? Sem diivida, esta na janela, mas se erguesse as pilpebras, a praia que veria nao seria a verdadeira; a verdadeira praia, a sua, aquela na qual o barulho das ondas se confunde com 0 surdo ruido do coragao, esta dentro dela, e as ‘Aguas a levam, sem vela nem remo° Assim, sem a menor descrigao, sem molduras, sem fundos de quadro, abolidas todas as distancias, Macha- do de Assis realiza o milagre de tornar a natureza mais presente do que se a pintasse em longas pginas. Um de seus contos é absolutamente caracteristico a esse respeito:“O enfermeiro”. Sem nenhum pitoresco, sem digressdes nem alusdes a0 meio, toda a oposigao entre o litoral e o serto mineiro se descobre na simples mu- danga dos gestos, na loucura sombria que sobe, numa espécie de surda angtistia que terminard em crime. Este é,alids, um tema caro ao autor: suas personagens vio encontrar a loucura, 0 desespero ou a destruigao na solidao de Minas Gerais, cujo clima assim se exprime sem necessidade de fazer apelo a descri¢ao do mundo exterior. Porque a natureza se confunde com o heréi. Poderia citar também “S6’, ritmado pela chuva inter- ‘Teresa revista de Literatura Brasileira 6|7];Sio Paulo, p.. minvel, a chuva dos trépicos, empapando o jardim da chécara, mas que também se infiltra pelas janelas, pelas, paredes timidas, pelos forros, pela carne, gotejando no coracdo, caindo sem trégua no cérebro, até transformar alma do herdi numa intermindvel chuva tropical." Nao é, porém, nos contos, mas nos romances, que esse processo € utilizado com maior éxito. A natureza surge neles como uma realidade afetiva que se preci- sa descobrir nas entrelinhas, presente sob a forma da atmosfera que banha as pessoas, aureola-Ihes os ges- tos, transparece-Ihes nas palavras. Nao é, com efeito, impunemente que as casas dao para os jardins, nio é impunemente que ha em todos os seus romances uma janela aberta de par em par para a noite e para 0 mar. A noite ¢ 0 mar entram nas salas, nos quartos, nas personagens que no se livram mais desse sortilégio. Jé Machado tentara esse processo em A mao e a luva, ‘onde o apaixonado se coloca entre a janela aberta e 0 mar, para que este some a sua beleza aos seus préprios sentimentos, de tal forma que o amor se torna uma atragdo da égua. A mesma cena foi retomada, com muito maior mestria, em Quincas Borba, Sofia busca através das trevas a pdlida luminosidade do mar de franja de espuma, procura nessa sombria auséncia os sinais da voz do amado: “A noite estava clara. Fiquei quase uma hora entre 0 mar e sua casa. Quase ouvia a sua respiragao, O mar batia com forga, é verdade, mas meu coragio nao batia com menos intensidade”, Ro- mance urbano, romance psicolégico, como quiserem, ‘mas conhe¢o poucos livros em que o ritmo do mar, a mnisica das noites cariocas, a natureza brasileira, enfim, vivam de modo tio intenso, imponham a sua presenca alucinatéria, fagam de tal modo corpo coma narrativa que esta se torne um drama noturno e marinho. 428, 2006, 4 425 Eo mar banha Dom Casmurro nas suas ondas sal- gadas, verdes e turvas; ondas que vém morrer em cada linha, deixando sobre cada palavra flocos de espuma, cangées noturnas. Nao esta somente nos olhos de Ca- pitu, esses olhos de cigana obliqua e dissimulada: Traziam nao sei que fluido misterioso e enérgico, uma forga que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para nao ser arras- tado, agarrei-me 4s outras partes vizinhas, as orelhas, aos bragos, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tdo depressa buscava as pupilas,a onda que saia delas vvinha crescendo cava e escura,ameagando envolver-me, puxar-me e tragar-me. ‘mas liga ainda, com sua branca orla, suas linhas sinuo- sas, todas as partes do romance. Como o caminho das eglantinas do Cété de chez Swan de Marcel Proust, © pedago de praia entre a Gloria e 0 Flamengo une com sua areia timida, sua geografia ocednica e senti- mental, a casa de Casmurro e a de Escobar; todos os acontecimentos do drama se situam em dois planos estreitamente misturados, dogura da luz na égua e nos espiritos, tempestades nos coracdes e nas éguas; cons- tantemente é o olhar do leitor dirigido para as ondas furiosas ou acariciantes. A ligagdo é tio completa que © citime do herdi s6 se precisa pouco a pouco, depois de se desviar, de hesitar entre o mar ¢ 0 amigo;** é 0 mar que se encarregaré da vinganca, vinganga ainda ignorada, palpitando ainda nas profundezas aquéticas do inconsciente; “o mar perverso’,“o mar desencadea- do’, o que s6 restitui os cadaveres; si0 0s olhos oce- nicos que virdo buscar 0 afogado, arrasté-lo, levé-lo para o palacio das lembrangas como se fora a0 magico palicio das sereias: “Momento houve em que os olhos 426 cu BastiDE, Roger. Machado de Assis, paisagista de Capitu fitaram 0 defunto, quais os da viva, sem © pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar ld fora, como se quisesse tragar também o nadador da manha’;* todo 0 estilo de Ma- chado de Assis torna-se maritimo: -] 08 nossos temporais eram agora continuos e terri- veis. Antes de descoberta aquela mé terra da verdade, tivemos outros de pouca dura; no tardava que o céu se fizesse azul, 0 sol claro ¢ 0 mar chao, por onde abriamos novamente as velas que nos levavam as ilhas e costas mais belas do universo, até que outro pé de vento des- baratava tudo, € nds, postos a capa, esperévamos outra bonanga, que nao era tardia nem dibia, antes total, pr6- xima e firme. Releva-me estas metaforas; cheiram ao mar e a maré que deram morte ao meu amigo e comborgo Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte de minha vida, como um marujo contaria o seu nau- frigio.* Em crianga, Machado, interrogando o seu destino pela sorte da clara de ovo no copo d’égua, via nos filamentos esbranquigados a imagem de um navio partindo. E,em- bora homem de terra, sem aventuras,citadino agarrado is ruas cariocas, a predico se realizou. Como nas Naus Catarinetas do sertio, carregadas pelos homens sobre a terra dura e seca, como nas longinquas capelas do in- terior onde se balanca, entre os ex-votos, uma caravela branca, o complexo brasileiro do mar, de que tio bem falou Mario de Andrade, habitava no coragio desse ho- ‘mem imével, mas cercado pelas aguas em pleno Rio, e seus livros, como o copo da infancia, encerram em fila- mentos dispersos a imagem alucinatéria do Atlantico.

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