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O Caminho Da Redução de Danos Associados Ao Uso de Drogas - Do Estigma À Solidariedade
O Caminho Da Redução de Danos Associados Ao Uso de Drogas - Do Estigma À Solidariedade
I. Introdução .................................................................................................................1
1. Redução de danos: definindo o campo..................................................................1
2. Drogas: aspectos históricos ...................................................................................5
3. Drogas: uma visão epidemiológica do problema no Brasil.................................11
4. Drogas e AIDS no Brasil.....................................................................................17
X. Considerações Finais...........................................................................................180
Desde meados dos anos 80, a precariedade das condições de vida dos usuários de
drogas ilícitas tem se tornado uma das preocupações de departamentos e de especialistas em
drogas em muitos países da Europa. Para enfrentar este problema, havia uma necessidade
de integrar a atenção à saúde e a atenção social voltadas para os usuários para melhorar suas
condições de vida. Como decorrência desta preocupação, a aproximação de reduzir danos
sociais e à saúde de usuários de drogas ganhou importância (Fuchs & Degkwitz, 1995,
p.81).
1
Conforme Bastos, (1995, nota de roda pé, p.101) esta denominação se refere à subcultura tradicional de
usuários aditos à heroína, numa configuração que remonta à geração “beat” dos anos 50.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 1
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
política de guerra às drogas na solução dos problemas associados às drogas (Shultz, 1990;
Trebach & Zeese, 1990a; O’Hare et al., 1992).
Em todas as definições está presente a idéia de que os objetivos devam ser flexíveis
ou ponderados em função dos contextos (“tão seguros quanto as situações possibilitem”), e
que passam a ter como foco o dano associado ao uso (“efeitos negativos”, “impacto
negativo do uso”, “consequências danosas”) e não mais ter como foco todo e qualquer uso
de drogas (ilícitas).
Henman (1995) chama a atenção par o fato de que a adoção da expressão francesa
“reduction des risques” no continente europeu, tradução da expressão no inglês “harm
reduction”, ocorre em um momento histórico em que as propostas mais radicais
2
M. Watson. Harm Reduction: Why do it? Intern. Journ. Of Drug Policy, v. 2, n. 5, p. 197-208, 1989.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 2
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originalmente propostas pelo “modelo de Mersey” estavam sofrendo um retrocesso em
direção a propostas consideráveis mais “amenas” pela lógica proibicionista.3
3
Retomaremos com mais detalhes esta questão na seção “O modelo de Mersey: uma resposta emergente
ao problema da AIDS entre usuários de drogas injetáveis”.
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alternativas para programas de prevenção do abuso de drogas: uma que previne o uso de
drogas e outra - aquela em foco neste trabalho - que busca a “redução de danos” associados
aos usos de drogas.
Ressaltamos que, embora o foco deste trabalho nos leve a abordar principalmente as
questões mais diretamente relacionadas aos usos de drogas ilícitas, a perspectiva de redução
de danos inclue ações voltadas igualmente para as drogas lícitas.
Nos séculos XVI e XVII, estudos históricos revelam que alguns governos
impuseram restrições ao consumo de café e tabaco por razões de cunho social e econômico
(Escohotado, 1992). Tanto o tabaco quanto o café - substâncias produzidas e trazidas do
Novo Mundo - eram consideradas ameaçadoras para o mercado local; um exemplo deste
tipo é o caso do movimento social dos produtores de cerveja que resistiram à chegada das
novas bebidas destiladas fabricadas e trazidas das colônias pelo seu fácil transporte
(Barata,1992; Escohotado, 1992).
4
R. Doria. Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício. (1915) In: Henman, A. & Pessoa, O.
diamba Sarabamba. São Paulo, Ground, 1986. P. 19-37. L. Mott A maconha na história do Brasil. In:
Henman, A. & Pessoa, O. diamba Sarabamba. São Paulo, Ground, 1986. P. 117-135.
5
J.C. Adiala. O problema da maconha no Brasil: ensaios sobre racismo e drogas. Rio de Janeiro,
IUPERJ, Série Estudos, n. 52, 1986. M.Y. Monteiro. Folclore da maconha.. Revista Brasileira de
Folclore, v. 5, n. 11, p. 285-300, 1965.
6
G. Freire. Nordeste. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1937.
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A difusão do uso da maconha, inicialmente entre os escravos, se expande aos
caboclos e por fim migra de área rural para a urbana (Bucher, 1992). No entanto, cabe
salientar que o uso da maconha esteve arraigado às camadas populares, sendo testemunho
disso menções nos cancioneiros populares que são sugestivas de diferentes usos: uso que
tem um caráter puramente lúdico, um caráter medicinal tradicional quando usada pelos
feiticeiros ou velhos caboclos, ou uso como remédio propriamente dito (Bucher, 1992).
A coca, observada pela primeira vez pelos espanhóis em 1499, era a planta sagrada
dos Incas; conta a história incaica que esta planta havia sido mandada pelo Deus-Sol para “
mitigar a fome, prover os cansados e fracos com o vigor renovado e levar os infelizes a
esquecer suas misérias” (Lewin, 19747, citado por Bastos, 1992a). Quando da chegada dos
espanhóis, o uso das folhas de coca já havia se estendido às castas inferiores da sociedade
incaica, sendo amplamente utilizada pelos indígenas da região andina.
7
L. Lewin. Cocainism. 1924. Traduzido e reimpresso em BYCK (1974).
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particularmente adaptado a elevar a capacidade de trabalho do organismo, sem quaisquer
conseqüências danosas.” (citado por Bastos, 1992a, p. 29).
A conferência de Haya de 1912, cuja iniciativa partiu dos Estados Unidos, consolida
o primeiro acordo internacional em que se limitava a “usos médicos e legítimos o ópio, a
morfina e a cocaína” (Escohotado, 1992, p. 29).
Este período (final do século XIX e início do século XX) é considerado como o
primeiro ciclo de intolerância às drogas seguido por um segundo ciclo consolidado nos anos
80 e 90, segundo vários autores como Room (1985a, 1985b), Reinarman e Levine (1989) e
Musto (1991)8 citados por Carlini-Cotrim (1992, p. 13-23). Os períodos de intolerância são
caracterizados pela “explosão de sentimentos e ações contrárias às drogas” como
8
Os trabalhos citados são: C. Reinarman E H. Levine. Crack in context: politics and media in the
manking of a drug scare. Contemporary Drug Problems, v. 16, p. 535-577, 1989; R. Room. Alcohol
as a cause: empirical links and social definitions. In: Van Wartburg, J.P.; Magnenat, P.; Müller, R.,
Wyss, S. eds. Currents in alcohol research and prevention of alcohol problems. Berne; Stuttgart,
Toronto, Hans Hueber, 1985a; R. Room. Drugs, conciousness and society: can we learn from other’s
experience? In: INTERNATIONAL CONGRESS ON ALCOHOL AND DRUG DEPENDENCE, 34.
Proceedings. Alcohol, drugs and tobacco: an international perspective: past, presente and future.
Edmonton (Alberta), Alberta alcohol & Drug comission, 1985b. p. 174-176. D. Musto. Opium,
cocaine, and marijuana in American history. Scientific American, v. 265, n. 1, p. 40-47, 1991.
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“movimentos de massa, ações legislativas, políticas públicas e campanhas dos meios de
comunicação” de caráter anti-droga (Carlini-Cotrim, 1992, p.10).
Nos anos 70 o uso progressivamente crescente da heroína, tanto nos EUA quanto na
Europa, é seguido de perto, pelo uso crescente da cocaína; ambos os usos acentuando-se
nos anos 80 e 90, guardadas as diferenças de intensidades absolutas e relativas dos usos
entre os EUA e países da Europa.
9
Há indícios de que a heroína está entrado em nosso mercado, conforme levantamentos epidemiológicos
de práticas de risco entre usuários feitos em 4 regiões , conhecido por Projeto Brasil, que será visto em
seções posteriores. A entrada de heroína já tem despertado o interesse alardeante da mídia, conforme se
observa na reportagem feita pelo programa Fantástico (29.06.97).
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p. 20), pela intensa compulsão relatada pelos seus usuários e a rápida instalação de quadros
compatíveis com o diagnóstico de dependência. Também se associa ao consumo de crack
um maior risco de infecção pelo HIV devido a práticas sexuais de risco conforme trabalho
de (Ratner, 1993b) e Ellerbrock et al. (1995) citado por Andrade (1996, p. 20) 12.
O uso de crack foi pela primeira vez descrito em nosso meio entre prostitutas de São
Paulo em 1991 (Cavallari et al. 1992). Em um estudo com usuários de drogas ilícitas
(injetáveis e não injetáveis), realizado na cidade de São Paulo em 1991/1992, com 306
usuários de drogas recrutados na rua (153 indivíduos) e em clínicas de tratamento (idem),
encontrou-se 138 indivíduos (45% do total da amostra) que relataram fazer uso de crack.
(Cavallari et al., 1992).
10
“Crack”, nome onomatopaico de um derivado da planta de coca, preparação “caseira” obtida
habitualmente pela adição de Bicarbonato Sódio ao Cloridrato de Cocaína (o “pó” de cocaína) que após
aquecimento, se transforma em uma “pedra”, cuja quebra em partes menores produz um som
característico o “crack”. Outra forma de preparo, menos habitual nos países avançados e comum em
nosso meio, substitui o cloridrato pela “pasta básica”, produto intermediário obtido pela cocção das
folhas de coca, misturadas à querosene. O crack produzido a partir da pasta básica (às vezes conhecido
como “casca”),contém querosene, responsável por uma maior toxicidade ao organismo quando de sua
inalação.
11
D.B. Kandel & M. Davies. High school students who use crack and others drugs. Arch. Gen.
Psychiatry, n. 53, p. 71-80, 1996.
12
T.V. Ellerbrock et al. Risk of human immunodeficiency virus infection among pregnant crack cocaine
users in a rural community. Obstet. Gynecol., v. 86, n. 3, p. 400-404, 1995.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 10
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Nações Unidas, apresentam uma relativa hegemonia no tratamento proibicionista dado à
questão droga.
Portanto pode-se dizer que a história recente das drogas é uma história de
proibições, de movimentos cíclicos de intolerância/tolerância a seu consumo (Carlini-
Cotrim, 1992) de "guerras santas ou etnocidas" como a guerra às drogas (Trebach & Zeeze,
1990b; Henman, 1994), de encantamentos e "demonizações" (Zaluar, 1994b), uma história
das paixões e miséria humana.
13
A classificação dos usos de drogas proposta pela OMS para populações em geral é: uso na vida,
quando a pessoa fez uso de qualquer droga pelo menos uma vez na vida; uso no ano, quando a pessoa
utilizou droga pelo menos uma vez nos últimos doze meses antes da consulta; uso no mês ou recente,
quando a pessoa utilizou a droga pelo menos uma vez nos 30 dias que antecederam à consulta; uso
frequente, quando a pessoa utilizou a droga 6 ou mais vezes nos 30 dias que antecederam à consulta.
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mesmo tipo de uso de maconha em São Paulo foi de 4,9%. Se se considera o uso frequente
ou recente de maconha as estimativas caíram para a faixa de 0,8 a 2% (São Paulo: 0,8 %) .
Para outras drogas ilícitas as taxas encontradas eram muito baixas como por
exemplo o uso na vida de cocaína foi estimado entre 0,5% (para estudantes de 2º grau) e
2% (para estudantes mais velhos) (Almeida et al., 1991); em São Paulo, o uso na vida de
cocaína foi de 2,4%, e uso no mês de 0,8%. Os índices nacionais são comparáveis com
aqueles encontrados em estudos latino americanos, feitos com metodologias similares: o
uso de qualquer substância ilícita foi de 2 a 7%, (bastante próximo dos nossos); as taxas de
consumo de medicamentos psicotrópicos e inalantes foi de 5 a 6% (mais baixas que as
nossas) e as taxas de consumo de cigarros de 53-56% (muito maiores que as nossas)
(Galduróz et al., 1994a, p.364).
14
O consumo habitual foi definido: ser usuário atual, sub-dividindo-se os usuários em duas categorias: uso
semanal : mais de 2/3 dos usuários habituais, e uso diário: o restante.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 13
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porque a metodologia não foi adequada para sua identificação" (p. 98); dentre as
especificidades metodológicas necessárias para realização de estudo de dependência de
“outras drogas” - as ilícitas- está a inclusão de procedimentos que garantam o sigilo,
privacidade e anonimato na obtenção das informações, bem como um reasseguramento
cuidadoso quanto ao destino a ser dado às informações obtidas. Neste estudo a ausência de
privacidade no momento da obtenção das informações a domicílio, com entrevistas
conduzidas muitas vezes na presença de outros membros da família (Almeida et al., 1992,
p. 97) inviabilizou a abordagem de questões sobre drogas ilícitas.
15
A classificação da OMS dos tipos de uso para populações que sabidamente fazem uso de drogas é: não
usuário, nunca utilizou droga; usuário leve, utilizou drogas, mas no último mês o consumo não foi
diário ou semanal; usuário moderado, utilizou drogas semanalmente, mas não diariamente, no último
mês; usuário pesado, utilizou drogas diariamente no último mês.
16
Gutierrez et al. Control social y uso de drogas en menores que trabajam em la via publica (cao
Monterrey). Salud Mental., v. 8, n. 3, p. 3-7, 1985; R. Fuente & M.E. Medina-Mora. Las adicciones en
México: II- el abuso y la dependencia de fármacos psicoativos. Salud Mental, v. 10, n. 2, p. 14-21,
1987.
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crianças de rua em São Paulo, no mesmo ano foi: não-usuário: 17,5%; uso leve: 36%; uso
moderado: 16% e uso pesado: 30,5% (Noto et al., 1994, p. 27).
Sobre o uso de drogas pela via injetável 19 crianças referiram este uso, no total de
565 crianças entrevistadas, assim distribuídas: 3 em São Paulo, 6 em Porto Alegre, 4 em
Fortaleza, 6 em Recife e nenhuma no Rio de Janeiro (Noto et al., 1994, p. 37).
Os recortes populacionais dos estudos sobre uso de droga ilícita de que dispomos
em nosso país (Bastos, 1995, p. 125)17 não permitiram a identificação de números
expressivos de casos de uso de drogas injetáveis.
17
Estes estudos foram realizados pela equipe da Psicofarmacologia da EPM e CEBRID, e constituem
dentro da produção nacional, aqueles considerados metodologicamente corretos; Bastos (1995, p. 125),
cita os trabalhos feitos com usuários de solventes orgânicos (Carlini-Cotrim e Carlini, 1988); usuários de
psicofármacos (Carlini-Cotrim e Silva Fº, 1988) e pacientes hospitalizados (Masur & Carlini-Cotrim,
1987), ou a revisão de precrições indevidas em farmácias (Carlini & Masur, 1986) .Os trabalhos
mencionados são: B. Carlini-Cotrim & E. Carlini, The use of solvents and otrhers drugs among
homeless and destitue children living in the city streets of São Paulo, Brazil. Social Pharmacology, n. 2,
p. 51-62, 1988; B. Carlini-Cotrim & A.R. Silva Fº, O abuso de Artane por meninos e meninas de rua de
São Paulo: possíveis influências da portaria 27/86. Da DIMED. J. Bras. Psiqu. , v. 37, n. 4, p. 201-203,
1988; J. Masur & B. Carlini-Cotrim, Padrão de uso de drogas psicotrópicas precedendo a iternação por
Bastos (1995a), chama a atenção para o fato de que este padrão foi relatado com
uma grande regularidade nas 13 cidades, o que ele considera incrível se levarmos em conta
as diferenças culturais entre as 13 cidades participantes do estudo19 (p. 126). Portanto pode-
se dizer que os estudos feitos em secundaristas e crianças de rua, não são os segmentos
populacionais mais apropriados para identificar o personagem usuário de drogas injetável.
dependência. Rev. ABP/APAL, n. 9, p. 154-150, 1987; E. Carlini & J. Masur, Venda de medicamentos
sem receita médica nas farmácias da cidade de São Paulo. Rev. Ass. Med. Bras. N. 35, p. 75-78, 1986.
18
UDI: usuário de droga injetável
19
As cidades em questão são: Atenas, Bangkoc, Berlim, Glasgow, Londres, Madri, Nápoles, New York,
Roma, Rio de Janeiro, Santos, Sydney, Toronto.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 16
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
4. Drogas e AIDS no Brasil
20
Os trabalhos citados são: Arbex Jr., J. Narcotráfico: um jogo de poder nas Américas. São Paulo, Ed.
Moderna, 1993 e United Nations International Drug control Programme -UNDCP. Relatório de
atividades no Brasil: 1987-1993. Brasília, UNDCP, 1993.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 17
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O Brasil ocupa o 3º lugar do mundo em número de casos; do total de casos e AIDS
do país, 82.852 (ocorridos entre 1980 e 1/06/96), cerca de 60% (49.381) encontram-se no
estado de São Paulo. A proporção da via injetável no conjunto de casos em São Paulo é
razoavelmente maior que a média nacional, por exemplo, em 1993 esta via contribuiu com
37,6% e em 1996, 32,53% do total de casos notificados (Secretaria de Estado de Saúde de
São Paulo, 1996). No estado de São Paulo, o número absoluto de casos pela via de
transmissão por droga injetável (16.973, até 31/12/96) é maior que o número absoluto de
casos por transmissão homossexual (11.291), segundo o Boletim Epidemiológico da
Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo, de março de 1997 (tabela 7, p.12).
Foi realizado um estudo na cidade de São Paulo por Ferreira et al. (1992), entre
setembro de 1991 e janeiro de 1992, com uma amostra de 306 usuários de drogas
recrutados na rua (153 indivíduos) e em clínicas de tratamento (idem). A comparação dos
21
Em uma análise feita com dados extraídos do relatório “Trends and Patterns of HIV/AIDS infection in
selected developing countries” do Center for International Research, 1993.
22
O trabalho é: J.R. Carvalheiro et al. Estudo de incidência entre homens que fazem sexo com homens:
Projeto Bela vista. São Paulo. Instituto de Saúde. Março 1996. [ relatório de pesquisa].
23
Prevalência de HIV observado em abril de 1996 no COAS/CRT.
24
O trablho citado é: J. Laurindo et al. Estudo epidemiológico e comportamental entre profissionais do
sexo feminino em uma região de baixa renda do município de São Paulo. São Paulo. Centro de
Treinamento e Referência- DST/AIDS-SES/SP. Agosto de 1996. [relatório de pesquisa].
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O uso de drogas injetáveis teve importante papel no aumento do número de casos
em mulheres: tanto por serem elas mesmas usuárias de drogas injetáveis, quanto por serem
parceiras sexuais de homens usuários de drogas injetáveis. Estudos feitos no município de
São Paulo indicam que as mulheres tem um risco 10 vezes maior de se infectarem se forem
usuárias de drogas injetáveis, e 5,5 vezes maior se forem parceiras de homens usuários de
drogas injetáveis. De 1987 a 1990, o uso de drogas injetáveis foi a principal categoria de
transmissão para as mulheres; a partir de 1991 a prática heterossexual passou para primeiro
lugar, sendo que 34,6 % das mulheres que relataram esta categoria de transmissão
revelaram serem parceiras sexuais de usuários de drogas injetáveis. Ao aumento de casos
entre mulheres correspondeu um aumento de casos entre crianças, através da transmissão
peri-natal (Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo, p. 3-4, 1996).
A partir de 1989, a OMS deu início à seleção de 13 cidades do mundo com altos
índices de casos de AIDS notificados para a categoria de transmissão pela via droga
injetável, para participarem do estudo multicêntrico de soroprevalência do HIV entre
usuários de drogas injetáveis. O Brasil foi representado duplamente neste estudo pela
inclusão de Santos e Rio de Janeiro (WHO Colaborative Study Group, 1993). Foram
encontrados índices de contaminação pelo HIV de 59% em Santos (Mesquita et al., 1992a)
e 33% no Rio de Janeiro (Bastos et al., 1992b). Nestas cidades ocorreram os únicos estudos
com usuários de drogas injetáveis, em que se realizaram análises seccionais plurianuais
(Telles et al., 1992, 1993; Mesquita et al., 1992a, Bueno et al., 1993; Carvalho et al., 1997a,
25
WHO Colaborative Study Group, Final Report of the World Health Organization programme on
substance abuse- multi-city Study of HIV infection among injecting drug users. Genebra: WHO, 1995.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 20
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Turienzo et al., 1997). Tomando o exemplo de Santos, não foram observadas mudanças nos
padrões sócio-econômicos e de comportamentos de risco (Turienzo et al., 1997), bem como
nas associações entre intensidade de uso de droga injetável e prevalência do HIV (Carvalho
et al., 1997a), entre os anos de 1992 e 1994.
Projeto Brasil
Uma análise dos dados conjuntamente produzidos pelo Projeto Brasil é feita no
Relatório “Projeto Brasil- 1996: soroprevalência e seus determinantes para infecção pelo
HIV em usuários de drogas injetáveis em 7 cidades brasileiras” apresentado ao
PNDST/AIDS do Ministério da Saúde, em julho deste ano, cujo relator Heráclito Carvalho
é um dos principais pesquisadores responsável pelo referido projeto. Foram recrutados um
total de 668 UDIs, entre abril de 1993 e dezembro de 1996;
26
Atualmente modificou-se o plano inicial de fazer o estudo somente na cidade de Campo Grande,
incluindo-se um pool de cidades da região centro-oeste: Corumbá, Campo Grande e Cuiabá.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 21
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[1]
3 cidades compuseram a região Centro-Oeste: Corumbá, Cuiabá, Goiânia
[2]
do total de 668 indivíduos testados, estavam disponíveis para análise 627 entrevistas
Fonte: Relatório “Projeto Brasil- 1996: soroprevalência e seus determinantes para infecção pelo HIV
em usuários de drogas injetáveis em 7 cidades brasileiras”, PN-DST/AIDS, Ministério da Saúde,
julho/1997.
Nesta amostra predominaram indivíduos adultos jovens (sendo 28,8 anos a idade
média), do sexo masculino. Referiram saber ler 83%, sendo o tempo médio de estudo, 5,5
anos completos; 84% deles eram residentes na cidade em que foram entrevistados, morando
23% em casa de outros, 19% em casa própria e 27% não tendo moradia fixa (Carvalho,
1997, p. 12-13).
O tempo médio de uso de droga injetável foi de 10,8 anos, sendo a droga
principalmente utilizada pela via injetável a cocaína (referida por 92% dos sujeitos).
O crack foi utilizado por 45% do total de entrevistados, havendo uma maior taxa em
Santos (61%) e Centro-Oeste (61%).
27
Ainda a respeito do crack, vale a pena mencionar o livro dedicado ao assunto, feito pelo jornalista
Marcos Uchôa, Crack: O caminho das pedras. São Paulo, Ática, 1996
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 23
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
próprias agulhas por ocasião do uso de droga’ (55%), e ‘o medo dos efeitos da droga,
incluindo a overdose’ (26%)”, programas que se propusessem a interferir nestas variáveis,
teriam grande chance de sucesso no controle da epidemia junto a esta população (p. 125-
126).
1. dentre eles, a média de indivíduos que referiram ter recebido algum tipo de
tratamento anteriormente à entrevista foi de 35%. Houve grande variação neste item
entre as cidades, pois parte da amostra foi obtida partindo de clínicas de tratamento,
como certamente é o caso no Rio de Janeiro onde 79% referiram ter tido algum
tratamento anterior, e 30% nas cidades do Centro-Oeste, e 35% em Itajaí, onde
parte da amostra foi obtida em clínicas de tratamento, e, finalmente, em Santos com
24% {porcentagem que tem se mantido inalterada desde 1992 e 1994 (Turienzo et
al., 1997)} e Salvador com 8% tendo respondido positivamente, local onde a
amostra foi obtida diretamente nas ruas.
28
Trabalho entitulado: Addiction treatment and AIDS prevention in the US: low enrollment, retention,
and therapeutic efficacy limit population impact. Poster (PoC 4317) apresentado na VIII Int. Conf. On
AIDS, Amsterdam, 1992 .
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 24
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
cultura hospitalocêntrica (Pereira e Giordano, 1996) objeto de crítica e mote das ações de
Saúde Mental prevalece. Cabe aqui um comentário: o modo como foi formulada a pergunta
sobre tipo de tratamento no questionário utilizado pelo Projeto Brasil, não permite
distinguir se esta internação deu-se em hospital psiquiátrico ou em “comunidade
terapêutica”. Esta última modalidade, constitui a principal forma de atenção voltada para
usuários de drogas em nosso país, em sua maior parte utilizando-se de técnicas de
convencimento, calcadas em princípios religiosos, não dispondo de profissionais de saúde
em seu quadro funcional (Bucher, 1992, p. 323). No entanto a crítica à predominância da
internação permanece, mesmo que se resguarde a diversidade entre as duas modalidades,
seja quanto à duração de internação e quanto suas propostas “terapêuticas”, pois em ambas
tanto o isolamento quanto a abstinência constituem instrumentos e finalidades inadequados,
quando exclusivos ou predominantes.
Estudos etnográficos
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Medicamento analgésico, composto por um opiáceo sintético, o Cloridrato de D-propoxifeno.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 25
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
UDIs identificados no centro da cidade de São Paulo. Buscando “compreender o uso
comunitário de agulhas e seringas”, Fernandez aborda “alguns pontos relativos ao uso de
drogas: a iniciação, o histórico do consumo, o ritual do preparo, o compartilhar de
equipamentos, a dependência, a frequência de uso, a sociabilidade, a relação com a lei e
com o trabalho”. Para este autor, a condição de clandestinidade, imposta pela
criminalização dos usuários de droga, a perseguição policial de que são objeto,
conjuntamente à introjeção de um clima persecutório e um sentimento de medo, não
permite que os usuários de drogas desenvolvam e assimilem aos rituais de consumo da
droga medidas de segurança que evitem a transmissão o HIV. A prática de injeções de
drogas é um segredo compartilhado pelos usuários, o que contribui para a constituição de
um grupo bastante fechado e isolado. Esta prática pode se caracterizar por um uso pouco
frequente, esporádico e ou circunstancial; os indivíduos que tem esta prática circunstancial,
tem mais facilidade mantê-la em segredo inclusive de seus parceiros sexuais. Já os usuários
que consomem droga injetável de forma compulsiva, frequente e cotidiana, tem mais
dificuldade em ocultar tal prática. Portanto, as diversas práticas de injeções, junto com a
diversidade de graus de dependência, ações farmacológicas de distintas drogas, permitem
inferir diferentes dinâmicas no consumo de drogas e na transmissão do vírus do HIV nas
redes de usuários de drogas injetáveis.
• os UDIs com parceiro sexual único (homens com mais de 18 anos e eram também
os que menos usam preservativo) tem maior risco de infeção pelo HIV;
• os que mais compartilham seringa, são os UDIs que não usam preservativos (do
gênero masculino, com mais de 18 anos e moradores do Centro Histórico);
1. as altas taxas de positividade do HIV entre UDIs (comparadas com as taxas de outras
populações específicas);
4. a importância maior que o consumo de drogas tem entre jovens adultos, os achados
do Projeto Brasil, que além de revelarem altas taxas de soropositividade, apontaram
para uma baixa interação entre os UDIs e serviços de saúde (e quando presente,
predominando o tratamento por internação).
Objetivo Geral
Objetivos Específicos
3. Analisar os trabalhos de rua voltados para usuários de drogas e sua articulação com
as práticas de redução de danos
O proibição legal de certas drogas tem sido o modo histórico pelo qual a sociedade
contemporânea tem respondido neste século ao “problema da droga”.
30
Parte destes críticos organizaram-se, fundando em 1990 a Liga Internacional Anti-proibicionista, com
sede em Bruxelas. Esta fundação teve como facilitadores a existência prévia de 3 grupos organizados de
experts em políticas de drogas: o “The Radical anti-prohibicionista Coordination” (ligado ao Partido
Radical Italiano), o “The European Movement for the normalization of drug policy” (fundado por
especialistas médicos e juristas holandeses) e o “The Drug Policy Fundation” (organização com sede em
Washington , uma extensão da “National Organization for the repeal of marijuana laws”) (Henman,
1990).
31
Reuter, P. & Kleiman, M. Risks and prices: an economic analysis of drug enforcement. In: TONRY,
M. & MORRIS, M. eds. Crime and Justice. Chicago, The University of Chicago, v. 7, p. 289-340,
1986;.M. Kleiman. Marijuana: costs of abuse, costs of control. [s.l.], Greenwood, 1989.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 31
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
131), seja pelas contribuições de juristas e criminologistas que criticam o tratamento penal
dos chamados crimes sem vítimas (como o uso de drogas ainda hoje, ou como,
historicamente, as práticas homossexuais tem sido tratadas) considerado pela corrente da
criminologia crítica como representando um abuso do poder do Estado em detrimento dos
direitos individuais (Sá, 1993, 1994; Flach, s.d.[a], s.d.[b], s.d.[c], 1993; Karam, 1997;
Barata, 1992, 1994; Scheerer, 1992, 1997; Caballero, 1992; Stengers & Ralet, 1991).
Ainda que possamos dizer que nos anos 90 há uma tendência do debate
internacional a cerca do proibicionismo ampliar-se para além de círculos anteriormente
mais restritos (Scheerer, 1994), a luta pelas modificações das legislações nacionais,
condição necessária mas não suficiente para a alteração das políticas nacionais em matéria
de drogas (as quais não podem distanciar-se excessivamente dos acordos firmados
internacionalmente pelos países), tem obtido resultados muitas vezes tão tímidos, que estão
longe de representarem avanços em relação a legalização (Rocco, 1996), ou mesmo, como
propõem alguns, em relação à descriminalização da droga (Sá, 1993, 1994). Esta tendência
também tem sido observada, mais recentemente, nacionalmente; começam a surgir espaços
para uma discussão pública sobre a questão das políticas de drogas, como por exemplo o
“Drogas- Debate Multidisciplinar” ocorrido em São Paulo em setembro de 1996, sob a
organização do Conselho Estadual de Entorpecentes (órgão normativo ligado a Secretaria
de Justiça do Estado) em que “conferencistas nacionais e estrangeiros abordaram com
profundidade, quantas vezes, em oportuna revisão crítica (…) a questão drogas”, conforme
as palavras do jurista Luis Matias Flach, atual presidente do Conselho Federal de
Entorpecentes, convidado a apresentar o livro que compilou as contribuições do debate, sob
o provocativo título: “Drogas: Hegemonia do Cinismo” (Ribeiro e Seibel, 1997).
32
Para obter uma visão da história dos ciclos de intolerância neste século, e do papel desempenhado pelos
“empresários morais” nesta história ver o capítulo entitulado: “Os movimentos e discursos contra as
drogas nas sociedade ocidentais contemporâneas”(p.9-48), da tese de doutorado de Beatriz Carlini-
Cotrim: “A escola e as drogas”, São Paulo, PUC, 1992.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 33
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
As correlações que constituem esta imagem, são antes “exceção do que a regra no
tocante ao que ocorre quando se consome drogas”. Os conhecimentos científicos mostram
que esta imagem não corresponde à realidade. Mas com o passar do tempo a distância entre
esta imagem inicial e a realidade atual foi progressivamente diminuindo. O elemento
fundamental deste sistema é o efeito da intervenção da justiça penal na dinâmica das drogas
e seus usos. Os conceitos da moderna sociologia, tais como o Teorema de Thomas33 da
profecia que se auto-realiza, explicam este processo de auto-reprodução ideológica e
material. Segundo este teorema “quando se sustenta uma determinada imagem da realidade,
esta imagem produz efeitos reais.”(p.22)34.
Por um lado é imediatamente visível o poder crescente dos “barões da droga”, cujas
organizações criminosas atingiram tamanho poder - inicialmente poder econômico,
propiciado pelos lucros extraordinários que o comércio ilegal propicia, e através da
corrupção, expandindo-se para um poder político, que chegam a constituir, na expressão
usada por alguns, um “Estado paralelo” (Uprimy, 1997). Por outro lado é muito menos
visível a participação conivente (direta ou indiretamente lucrativa) de membros de diversos
setores da sociedade (desde, numa ponta pela corrupção do policial para “relaxar o
flagrante”, ou “arquivar processos”, até noutra ponta pelos acobertamentos fornecidos por
empresas-fachadas que servem para lavar o dinheiro do tráfico). Mais difícil ainda a
visualização da circulação dos lucros fornecidos pelo narcotráfico através dos mercados
financeiros internacionais, que escolhem os “albergues de sigilos bancários e corporativos
que o mercado atual proporciona” (Cervini, 1997, p.197), ou em operações nos “atuais
33
Cujos autores são William e Dorothy Swaine Thomas, segundo Barata. Os editores do livro do qual faz
parte o capítulo de Barata (“Introdução a uma sociologia da droga”) em nota editorial (p.21) explicam
que “por critérios editoriais não ( ) foi possível incluir o extenso sistema de “notas” aposto ao texto”.
Mesmo nosso contato direto com os editores, não permitiu a recuperação destas “notas”, impedindo que
incluamos as referências bibliográficas originalmente presentes no texto de Barata.
34
A respeito do mesmo tema - da realização de uma profecia- deve-se consultar o capítulo de Lévi-Strauss
-“A eficácia simbólica” (p.215-237) do livro clássico do autor “Antropologia Estrutural”, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1985.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 34
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
mercados da era da informação que giram em torno de uma espécie de “ciberespaço
financeiro” (Cervini, 1997, p.204).
35
Segundo este autor, os sistemas podem ser classificados segundo o seu grau de homogeneidade interna -
isto é, o grau de consenso entre seus atores - em sistema abertos e fechados. O primeiro se caracteriza
pelo predomínio do dissenso e a dinâmica da mudança de estrutura de comportamentos e significados.
No segundo tipo uma maioria homogênea se estende a todos os grupos de atores, com exceção de um
único grupo que constitui uma minoria dissidente. (p. 23, “Introdução a uma sociologia da droga” (1994)
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 35
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Nos sistemas fechados o papel dos meios de comunicação é fundamental, mas a
relação destes meios com os demais atores sociais é de um condicionamento recíproco.
Estes refletem o consenso generalizado que existe em relação ao status quo da droga nas
sociedades ocidentais. Uma vez que as atitudes são homogêneas, o fluxo de informações
também o é. E desta forma os meios de comunicação são um elemento determinante de sua
auto-reprodução ideológica e material. (p.24-25). Nas palavras do autor:
A esse respeito remetemos o leitor à descrição feita por Zimberg36, das dificuldades
encontradas para obter autorização e financiamento para sua pesquisa, uma das primeiras da
área médica a tratar de um tema tabu no “sistema droga”: o “uso controlado”, tanto de uma
droga considerada leve (a maconha), quanto de duas drogas consideradas pesadas (LSD e
heroína).
Portanto através desta seletividade circular,
36
Zimberg é autor de um dos primeiros trabalhos científicos da área médica, que “quebrou a barreira do
silêncio” em relação à existência do uso controlado de drogas ilícitas. Veja-se o prefácio (p.VII a XIV)
de Zimberg N. E. Drug, set and setting: the basis for controlled intoxicant use. New Haven; Yale
University Press, 1984.
37
Quanto à falta de referência bibliográfica, remetemos o leitor à nota de rodapé de nº 17.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 36
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
vimos para o sub-sistema droga, acompanha os processos de comunicação em geral das
sociedades industriais avançadas. A esfera de comunicação de experiências diretas vem
perdendo espaço para a comunicação através dos meios (p.26).
Alguns estudos sobre o modo pelo qual a mídia tem tratado o tema drogas (Damasio
et al. 1987) e o efeito deste tratamento no público (Patterson, 1994), mostram a
predominância de mensagens que produzem medo (Carlini-Cotrim, Galduróz & Noto,
1995), associando frequentemente o uso de drogas com violência (Imbert, 1995; Restrepo,
1995); em seu conjunto estes trabalhos corroboram a tese de Barata de como a participação
da mídia contribui para esta homogeneidade da percepção social das drogas e seus usuários.
Becker propõe passos ou etapas diferenciadas, que constituem em seu conjunto "a
carreira do comportamento desviante em questão". O exemplo citado é o caso do usuário de
maconha, que precisa passar por etapas definidas para tornar-se um usuário habitual de
maconha. O capítulo "Becoming a marijuana user" (p. 41-53) descreve estas etapas, como
sendo: "aprendendo a técnica", "aprendendo a perceber os efeitos", e "aprendendo a
usufruir os efeitos".
A transposição direta deste "poder aditivo" das drogas em animais como principal
forma de explicar os efeitos e padrões de uso nos homens tem contribuído para uma
compreensão empobrecida da complexidade envolvida no fenômeno dependência40, ao
38
a self full-filling prophecy"
39
Para um exame desta abordagem comportamental centrada na droga, remetemos o leitor a 2 capítulos do
livro: livro de Edwards, Griffith; Lader, Malcolm. A natureza da dependência de drogas. Artes Médicas,
Porto Alegre, 1994. O primeiro é “O comportamento da busca de drogas: implicações para a teoria de
dependência de droga” (p. 206-231) no qual Charles Schuster aborda a questão utilizando-se das teoria
de condicionamento operante; o segundo: “Bases sociais e psicológicas da dependência de drogas: uma
análise do comportamento de busca de drogas em animais e a dependência como um comportamento
adquirido” (p. 232-251) de Tim Stockwell, que ao enfatizar as teorias cognitivas de aprendizagem,
critica a abordagem de Schuster.
40
Uma interessante discussão a respeito da complexidade que envolve a dependência é encontrada no
capítulo final do livro “A natureza da dependência”, de Jim Orford (1994), entitulado: “Em busca de
uma síntese no estudo da natureza da dependência de drogas: enfrentando as complexidades”. (p. 253-
278).
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 39
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
mesmo tempo que tem servido, frequentemente, para reforçar os preconceitos a respeito das
drogas e de seus usos.
41
A esse respeito remetemos o leitor ao exame crítico do Relatório Pelletier, feito por experts a pedido do
governo francês em 1978, para examinar uma possível proposta de descriminalização da maconha;
segundo Marie André Bertand (citado por Stengers e Ralet) este é o único relatório de especialista que
conclui pela necessidade de manter o “status quo” da penalização da cannabis e seus derivados. Esta
discussão encontra-se no livro de I. Stengers e O. Ralet “Drogues: le défi hollandais”, Les Empêcheurs
de Penser en Ronde, 1991, p. 55-70; conforme estes autores demonstram, parte dos argumentos
contrários à despenalização da maconha se calca na idéia da escalada, ainda que sejam utilizados outros
argumentos calcados na função psíquica desempenhada pela droga.
42
Propositalmente utilizamos termos relativamente pouco precisos ou gerais (tal como “configuração
psíquica”, e “autonomia”) para poder caracterizar genericamente as posições psicodinâmicas ou
psicoanalíticas. Foge aos propósitos deste trabalho um detalhamento das divergências ou distinções entre
estas escolas, que reproduzem no campo das drogas em particular, as divergências no campo das
terapêuticas psicológicas em geral. Um exame destas diferenças entre psicanalistas pode ser encontrado
nas páginas 173-178, do capítulo entitulado "Personality and Social Learning: The Theory of controlled
Drug Use” de Zimberg (1984); ou, em Bucher (1992) nos capítulos “Psicopatologia da toxicomania e
vivência do toxicômano” (p. 199-217) e Alienação psicótica e alienação toxicômana” (p. 218-228), nos
quais ele trata mais especificamente de aspectos clínicos, ou nos capítulos “Psicanálise, drogas e
drogadição” (p. 275-298) e “A toxicomania, paradigma da dependência humana” (p. 299-312) onde ele
se detém em aspectos teóricos.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 41
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
independentes e individualizadas, e sim como fenômeno coletivamente (ou socialmente)
constituído.
43
Uma análise aprofundada sobre os aspectos ideológicos do discurso de combate às drogas (ao qual
correspondem as referidas “alegações excessivas”) foi objeto de uma dissertação de mestrado feita por
Oliveira “Ideologia no discurso sobre drogas.” de 1992; parte deste trabalho foi publicado por Bucher
e Oliveira, sob o título: O discurso do "combate às drogas" e suas ideologias. Rev. Saúde Pública, v.
28, n. 2, p. 137-145, 1994.
44
O título do livro de Elias Murad. O que você deve saber sobre os psicotrópicos. A viagem sem bilhete
de volta, é um exemplo que ilustra o uso típico desta expressão comumente encontrada nos discursos de
cunho repressivo às drogas.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 42
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Pode-se encontrar uma razoável superposição na descrição feita acima sobre os
excessos peculiares à posição de combate às drogas e a sistematização feita por Mudgford
(1989, p. 4) dos mitos encontrados sob uma postura proibicionista. Tais características
preconceituosas, próprias aos discursos dominantes a respeito das drogas ilícitas,
constituem o tratamento dado a questão das drogas pelos principais livros didáticos
adotados no ensino de 1º e 2º graus em nosso meio (Carlini-Cotrim & Rosemberg, 1991a).
Para Mudgford (1989), o encadeamento das crenças que constituem estes mitos
sustentam (ideologicamente) as medidas repressivas próprias do proibicionismo.
Os três primeiros criam a base que justifica as medidas de controle social, sobretudo
aquelas voltadas para os jovens45.
O conjunto formado pelos 3 primeiros mitos listados por Mudgford, produz uma
falsa impressão de que os casos extremos - os dependentes grave de drogas, com problemas
anti-sociais - são a regra e não a exceção do universo de usuários de drogas. Assim sendo
criam um efeito de reafirmação de que o mal está nas drogas, pois qualquer um que
45
Cássia B. Soares em sua tese de doutorado Adolescentes, drogas e AIDS: avaliando a prevenção e
levantando necessidades. 1997, trata dos aspectos ideológicos que sustentam medidas preventivas
“controlistas”, particularmente no capítulo “O caso da prevenção”, à seção “Os pressupostos ideológicos
da prevenção” , p.80-82.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 43
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
experimente uma droga tornar-se-á um dependente anti-social, corroborando o poder
corrompedor da droga.
Os efeitos das drogas, não são exclusivamente determinados por suas características
psicofarmacológicas (Del Porto & Masur, 1984), mas pela interação entre o produto, o
sujeito (com suas particularidades psíquicas), e o contexto do uso (condições particulares
dadas pelas circunstâncias em que o uso se dá) (Zimberg, 1984; Ratner, 1993).
46
Sobre a temática da demonização da droga como fenômeno associado à violência e exclusão social ver o
texto de Alba Zaluar A criminalização das drogas e o reencantamento do mal. p. 97-128.
47
Um estudo sobre o tema da representação social da droga em Brasília aponta para uma visão
predominantemente negativa da droga. Martins F.; Totugui M.; Catunda C.; Santo L.C. A representação
social do produto da droga em Brasília: o Produto. Psic.: Teor. E Pesqu., v. 7., n. 1, p.47-58.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 44
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
O fato omitido é a existência de sujeitos que só experimentaram a(s) droga(s), ou
que fazem delas um uso controlado. Se é possível usar controladamente uma droga, o
“poder destrutivo” não é intrínseco à droga, mas fruto da interação sujeito-droga.
Esta visão, tal como a que toma a droga como “o mal”, reduz, novamente, os
sujeitos a uma condição de absoluta incapacidade de (ao menos potencialmente) administrar
sua relação com o prazer, mesmo que seja o prazer que extraem da sua interação com a
droga e seus significados. Ao mesmo tempo, ao se associar “o mal” intrinsecamente à droga
(tomando-a de um modo a-histórico e a-social), deixa-se de levar em conta que parte dos
prejuízos ou efeitos negativos experimentados pelos sujeitos se associam aos múltiplos
contextos nos quais as drogas são usadas, muitas vezes gerados em circunstâncias ligadas à
exclusão social.
Desde o final os anos 60 início dos 70, nos EUA a questão do uso controlado de
uma substância lícita - o álcool - havia se tornado objeto de controvérsia (Marlatt et al.,
1993, p. 467-469). Esta se intensifica no final dos anos 70 quando Sobell e Sobell (197848,
citado por Marlatt et al. 1993) publicam um estudo que considera que o uso controlado
pode ser uma meta alternativa ou preferencial no tratamento de determinados perfis de
alcoolistas. As divergências em torno desta questão saíram do âmbito científico para
tornarem-se um debate público explorado pela mídia (Marlatt et al., 1993, p. 471).
48
A publicação em questão é: Behavioural treatment of alcohol problem drinkers. New York, Plenum.
Um exame acurado50 dos possíveis “viéses” da metodologia deste estudo dos Sobell,
sugerem que o único reparo metodológico a ser feito era que a entrevistadora dos pacientes
seguidos no “follow-up” - Linda Sobell - sabia a quais das duas técnicas de tratamento os
pacientes haviam sido submetidos. Este conhecimento impedia que o “duplo-cego” do
pesquisador estivesse presente no momento das entrevistas de seguimento, o que pode ser
“corrigido” pela formalização da entrevista e pela existência de gravações de todas as
entrevistas realizadas por ela.
Segundo esta publicação: “os resultados provêem positiva evidência de que o beber
controlado pode ser uma meta de tratamento preferível [grifo nosso] para alguns
alcoolistas.” (Marlatt et al. 1993, p. 470). O casal Sobell foi vítima de acusação de fraude
49
Esta definição foi publicada em 1992 pelo Joint Committee of the National Council on Alcoholism and
Drug Dependence e pela American Society of Addiction Medicine, no Journal of the American Medical
Association (Marlatt et al., 1993, p. 463).
50
O caso Sobell levou a que alguns cientistas checassem o referido trabalho; dentre estas mencionamos o
acompanhamento de 3 anos com os pacientes tratados pelo casal Sobell feito por um grupo de
pesquisadores independentes chefiados por Glen Cady e publicado posteriormente por G. Cady, H.J.
Os estudos sobre consumo de drogas dos anos 60 em diante, tendiam a igualar uso
(qualquer tipo de uso) com abuso. Ainda que fosse aceito a possibilidade do uso não
abusivo, ele era tratado como um período curto, transicional para a abstinência ou para o
uso compulsivo (p.3). Os pesquisadores buscavam primeiro determinar os efeitos
potencialmente danosos das drogas ilícitas e então estudavam os distúrbios de
personalidades resultantes do uso destas substâncias - distúrbios os quais ironicamente eram
colocados em primeiro lugar como responsáveis pelo uso da droga (p. 3). Zimberg fez uma
revisão da literatura científica (de 1958 a 1981) dedicada ao estudo de uso de opiáceos, na
Addington, e D. Perkins. Individualized behaviour therapy for alcoholics: A third year independent
double-bind follow-up. Behaviour Research and therapy, n. 16, p. 345-362, 1978.
51
Este parecer consta do relatório final do comitê: Dickens, B.M.; Doob, A.N.; Warwick, O.H. &
Winegard, W.C. Report of the Committee of enquiry into allegations concerning Drs. Lina and Mark
Sobell. Toronto, Canada: Addiction Research Foundation, oct. 1982.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 48
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
qual foi encontrado apenas uma dúzia dentre centenas de estudos que tecia considerações
substanciais sobre o uso ocasional de opiáceos (appendix C, p. 241-254).
Zimberg lista 4 razões para este limitado número de estudos que mencionavam o
uso ocasional de opiáceos:
O nascimento do interesse no estudo do uso ocasional de opiáceo data dos anos 60;
os estudos são em número reduzido (5 estudos mencionam a existência deste padrão de uso,
mas tendem a considerá-lo como transitório para a abstinência ou uso compulsivo). Um
53
único estudo, de autoria de Douglas Powell (1973) dedicou-se a descrever 12 casos de
uso controlado de heroína, por um período de 3 anos, cabendo portanto a este estudo o
mérito de ser a primeira descrição consistente da existência deste padrão de uso (conforme
Zimberg, p. 244-245) 54.
52
Expressão que designa ao mesmo tempo um dependente grave de heroína injetável, decadente,
marginal, criminoso, figura a que se associa todo e qualquer usuário de droga, conforme mito que
compõe o imaginário coletivo.
53
D.H Powell. A pilot study of occasional heroin users. Arch. Gen. Psychiat., n. 32, p. 955-961, 1973.
Algumas diferenças entre os grupos formados por usuários controlados das 3 drogas
(maconha, LSD e heroína) foram observadas. Foi mais fácil encontrar usuários controlados
de maconha e psicodélicos do que abusadores ou dependentes destas drogas; o oposto
ocorreu com a heroína. Os usuários controlados das duas primeiras drogas, tendem a não
considerarem a si próprios como “junkies” considerando seu uso algo bom (o que é
explicado pela condenação moral intensa e generalizada ao uso da heroína).
54
Uma descrição detalhada desta revisão feita por Zimberg encontra-se no apêndice C, de seu livro, obra já
O grupo formado pelos usuários controlados de heroína era mais frágil e centrado na
droga, devido à dificuldade em encontrar em número significativo de usuários controlados
que pudessem se tornar amigos compatíveis. Uma parte substancial dos usuários
controlados de heroína deste estudo, eram ex-dependentes. Desta forma eles mantinham e
partilhavam com outros usuários os rituais de uso da droga.
A maneira pela qual cada indivíduo construiu seus rituais e sanções era variável.
Constituía-se, geralmente, em um processo gradativo, e a mais importante fonte de
citada.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 51
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
preceitos e práticas de controle vinha da relação que eles estabeleciam com seus pares,
usuários não compulsivos de drogas.
Em síntese, ao construir sua teoria do uso controlado, Zimberg, tal como Becker,
relativizaram o papel atribuído à droga em si, bem como o papel atribuído à personalidade
na gênese da dependência.
Enfatizamos uma vez mais que a originalidade e riqueza da contribuição trazida por
Zimberg advém em primeiro lugar de ele tornar visível um novo objeto: o uso controlado de
drogas ilícitas, que se acresce de importância em se tratando de uma droga "pesada" como a
heroína.
Um estudo francês (Caiata, 1996) aborda também esta questão. A autora entrevistou
11 usuários de heroína, cujo “modo de vida” e estilo de uso da droga, levou a mesma a
nomeá-los como sendo “toxicômanos integrados” (toxicodépendants integrés). Esta
expressão pretende dar conta ao mesmo tempo das estratégias utilizadas por estes
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 52
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
indivíduos para manterem sua integração social, a despeito de manterem, simultaneamente
o uso da heroína. Caiata considera que função deste uso é prover uma “auto -assistência”
(p.18). Para esta autora tal fenômeno pode representar a incorporação de novos padrões de
consumo das drogas ilícitas, reflexos de mudanças mais amplas da cultura da droga.
Em quarto lugar este novo objeto - uso controlado - tem consequências teórico-
práticas relevantes para analisarmos a atenção à saúde dos usuários de drogas ilícitas.
Acresce-se a isso que a descrição feita por Zimberg das estratégias (sanções e
rituais) usadas por estes usuários para manter o uso controlado, revela a existência de um
grande cuidado deles para se protegerem dos efeitos negativos da incorporação de uma
"identidade (social) deteriorada" (Goffman, 1978) bem como em se protegerem do processo
de rotulação que acompanha o desenvolvimento de uma "carreira desviante" (Becker,
1973).
O fato de que tais usuários sejam menos visíveis, é assim explicado por Mudgford:
“a razão pela qual existe maior visibilidade dos usuários pesados com problemas sérios é
que, por um lado, são estes que chegam aos serviços de tratamento e, por outro, que os
outros tipos de usuários, dado a ilegalidade desta prática, mantém seu uso clandestino.”
(p.6).
55
O estudo, citado neste artigo, foi publicado no mesmo ano , com o título: Drug Use, Social Relations
And Commodity Consuption: A Study Of Recreational Cocaine Users In Sydney, Caberra And
Melbourne. Report To The Research Into Drug Abuse Advisory Committee, National Campaign Against
Drug Abuse, Canberra, June, 1989.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 54
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Estes achados são corroborados por outro estudo realizado em São Francisco com
267 pessoas usuárias atuais e ex-usuárias de cocaína, pertencentes a uma mesma rede de
sociabilidade (Waldorf, Reinarman & Murphy, 1991). Como os autores estavam
interessados em conhecer histórias de usos de cocaína, as pessoas entrevistadas não foram
recrutadas a partir de serviços de tratamento, com o intuito de não acessar redes de usuários
onde predominassem o uso dependente. Foi utilizada a técnica de amostragem chamada de
“snowball” (bola de neve), apropriada para acessar populações escondidas (Biernarki &
Waldorf, 1981; van Meter, 1990). Parte da amostra de 267 indivíduos foi constituída por
uma rede de usuários de cocaína que vinha sendo acompanhada por estes mesmos
pesquisadores há longa data; os resultados deste acompanhamento foram publicados num
artigo de 1989, entitulado: “An 11-year follow-up of a network of cocaine users”. Uma de
suas conclusões ressalta a importância que os controles informais e normas usadas pelos
usuários exercem na obtenção do uso controlado da cocaína.
A descrição dos percursos e técnicas utilizados para manter um uso controlado, são
similares aquelas encontradas em Zimberg (1984) e Mudgford (1989a).
1. Material e fontes
56
Toxibase é uma associação de 8 centros que compõe uma rede francesa de documentação sobre
farmocodependências que conta com 17.000 referências de publicações em língua francesa e inglesa.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 57
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Através da colaboração de pesquisadores e amigos, pudemos contar com o
fornecimento de publicações de “difícil acesso” ou textos não publicados, estrangeiros e
nacionais.
Dos livros que tratam sobre drogas elegemos um que é referência nacional
obrigatória no assunto: “Drogas e Drogadição no Brasil” (Bucher, 1992), e um de
atualização: “Drogas: Atualização em Prevenção e Tratamento” (Andrade, Nicastri &
Tongue, [1993?]).
B. Por ocasião do estágio promovido pela University of the State of New York -
SUNY: “Grassroots and Outreach Prevention Strategies” dirigido a trabalhos de
“outreach”57 para usuários de drogas, adolescentes “foragidos de casa” ou instituições de
reabilitação/reinserção social, em 4 cidades norte-americanas (Chicago, Boston, Nova
Iorque e Washington). O estágio cobriu o período de 26 Junho a 24 Julho de 1994. Foram
visitados 12 serviços dentre os quais: Justice Resource Institute, Martha Elliot Center,
Bridge Over Troubled Waters, Coalition for the Homeless/Massachusetts General
Hospital (Boston); Trabalho comunitário do Dr. Ron White, Chicago Alliance
Recovery/Needle Exchange Program, AIDS Intervention Model- Chicago (programa
coordenado por Dr. W. Wiebel) (Chicago); Iris House, Caribean Women’s Health
Association, ADAPT- Needle Exchange Program (Nova Iorque); Drug Strategies,
Sasha Bruce Youth Works (Washington).
57
Este termo, que em nosso meio tem sido traduzido por “agente comunitário ou agente de saúde”, refere-
se a utilização de ex-usuários ou pessoas extraídas desse meio, em programas que atuam nas ruas e
locais frequentados por usuários de drogas.
57
“outreach work”: Esta expressão se consagrou no campo da prevenção da AIDS entre usuários de drogas
ilícitas; de tradução não ainda convencionada se refere genericamente a “trabalho que utiliza
(comumente) pessoas extraídas da própria comunidade para “atingir” usuários de drogas que não
procuram serviços”.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 59
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Chicago Alliance Recovery/Needle Exchange Program), selecionados segundo dois
critérios: dispormos de material suplementar (numerosas publicações em periódicos
científicos sobre o trabalho, no caso do AIDS Intervention Model- Chicago, feitas pela
equipe de Dr. W. Wiebel) ou termos tido um contato mais estreito e ou prolongado como no
caso dos dois outros serviços (participamos de um curso realizado pelo ADAPT em
Chicago: “An Outreach Strategies Training”, e visitamos a sua sede e seu posto de troca
de seringas em Nova Iorque; a convivência durante 20 horas no curso com um membro (ex-
UDI, um “outreach worker” do Chicago Alliance Recovery) e a visita ao ônibus de troca de
seringa desta entidade, possibilitaram a produção de observações e relatos mais completos
que os obtidos nas demais visitas.
6. MÉDECINS DU MONDE. Exclus des soins, qui sont-ils? nov., 1996. [mimeo] 4p.;
7. SÃO PAULO (Estado) Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Programa Estadual
de Controle das DST/AIDS-CRTA-SP. Prevenção do HIV entre usuários de drogas
injetáveis: estratégias de redução de danos. São Paulo, 1995.
13. SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Programa
Estadual de Controle das DST/AIDS-CRTA-SP. Prevenção do HIV entre usuários de
drogas injetáveis: estratégias de redução de danos. São Paulo, 1995;
14. SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Programa
Estadual de Controle das DST/AIDS-CRTA-SP. Boletim Epidemiológico: AIDS e
drogas. n. 3, 16p, 1996;
15. SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Programa
Estadual de Controle das DST/AIDS-CRTA-SP. Boletim Epidemiológico: tendências da
epidemia. n. 1, 16p, 1997.
Uma vez que a perspectiva de redução de danos opera com uma racionalidade de
saúde pública (nova para o campo das drogas) ela inclui questões tais como facilitar o
acesso aos usuários de drogas, ampliar e diversificar formas de abordar e atuar junto aos
mesmos. O capítulo seguinte, dedica-se ao exame dos trabalhos de rua, que constituem uma
modalidade de atenção a esta população, anterior à emergência das propostas diretamente
reconhecidas como de redução de danos. Novamente rastreando práticas que guardem
potencialidades emancipadoras aos sujeitos-usuários, identificamos em algumas destas
propostas de trabalho de rua, saberes e práticas passíveis de serem articuladas com
propostas mais diretamente ligadas às práticas de saúde de redução de danos.
1. Primeiras experiências
1.1. O modelo de Mersey: uma resposta emergente ao problema da AIDS entre usuários de
drogas injetáveis
•atualmente nesta região se encontra a 2a menor taxa de infeção pelo HIV entre
UDIs de Inglaterra: 6 por milhão da população;
•em 1990 Mersey foi a única região do país em que a taxa de crimes relacionados
com droga caiu;
•em 1985 foi aberta a primeira clínica para tratamento de dependência de drogas em
Liverpool (Drug Dependency Clinic); até então os pacientes eram tratados em clínicas
privadas por psiquiatras que mantiveram o antigo “Sistema Inglês” de prescrição de
•em 1986 iniciou-se através do “Mersey Regional Drug Training and Information
Centre” um dos primeiros programas de troca de seringa ingleses, que era manejado pelos
usuários de drogas (tal como na Holanda)
As metas do conjunto de serviços que passaram a atuar para reduzir danos sociais e
à saúde, incluíam estabelecer contato com usuários de drogas; preservar este contato e
promover mudanças de comportamento.
Tais ações articuladas foram implementadas por uma variedade de serviços, tais
como: abertura de postos de trocas de seringa; engajamento de farmácias que garantissem o
fornecimento, sem entraves, de seringas e agulhas estéreis e gratuitas (financiadas pelo
Serviço Sanitário Regional); estabelecimento de equipes volantes de recolhimento de
seringas descartadas pela cidade; programas de “outreach workers59” - agentes
comunitários- cujas ações permitissem que fossem localizados os usuários de drogas de
mais difícil acesso.
58
expressão usada em informática que se refere as facilidades novas que tornam as máquinas ou
programas mais fáceis de serem manejadas, isto é, mais “amigáveis aos usuários”.
Para o bom funcionamento deste sistema era fundamental que a polícia local desse
seu apoio, pois se as ações repressivas fossem cumpridas “ao pé da letra” poderiam
inviabilizar ou dificultar grandemente o caráter acessível e amigável dos serviços. Portanto
o sucesso do modelo de Mersey incluiu uma cooperação da polícia local com as autoridades
sanitárias, possibilitado por sua participação no Conselho Consultivo de Drogas, e traduzido
diretamente pela sua decisão em “não exercer vigilância sobre os centros de assistência” e
“encaminhar os UDIs a estes centros”, além de dar “apoio público aos postos de troca de
seringas” (O' Hare, p. 68)
Henman em seu texto “Harm Reduction on Merseyside 1985-1995: the rise and fall
of a radical paradigm of health care for illicit drug users” faz uma análise das
transformações político-ideológicas sofridas pela “modelo de redução de danos de Mersey”,
quando de sua expansão e organização em “movimento de redução de danos” de âmbito
internacional.
59
Este termo, que em nosso meio tem sido traduzido por “agente comunitário ou agente de saúde”, refere-
se a utilização de ex-usuários ou pessoas extraídas desse meio, em programas que atuam nas ruas e
locais frequentados por usuários de drogas.
60
“outreach work”: Esta expressão se consagrou no campo da prevenção da AIDS entre usuários de drogas
ilícitas; de tradução não ainda convencionada se refere genericamente a “trabalho que utiliza
(comumente) pessoas extraídas da própria comunidade para “atingir” usuários de drogas que não
procuram serviços”.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 70
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
às quais Henman atribui uma facilitação da aceitação das medidas de redução de danos que
foram progressivamente implantadas por líderes locais. Tais medidas contaram com apoio
formal ou informal dado por importantes instituições governamentais ou de profissionais,
dentre elas “Mersey Regional Health Authority, o “Home Office’s Drug Branch”, o “Royal
College of Psychiatrists” e o “The Royal Pharmaceutical Society” e as publicações
especializadas “The Lancet” e “Druglink”.
Em paralelo, a polícia local passou a atuar em sintonia com estes programas uma
vez que suas próprias avaliações sugeriram que tais medidas estavam contribuindo para
62
uma redução significativa do envolvimento criminal associado às drogas (Fazey, 1992 ,
citado por Henman, 1995). Progressivamente as autoridades policiais locais passaram a se
mostrar “desiludidas com a política proibicionista” (p. 3).
61
MINO, A. Analyse scientifique de la litérature sur la rémise controlée d’heroine ou de morphine, redigée
à la demande de L' Office Fédéral de la Santé Publique. Genève: Instituitions Universitaires de
Psychiatrie, 1990.
62
C. Fazey. An empirical study of the relationship between heroin addiction, crime and medical treatment.
In O’HARE, P; NEWCOMBE, R.; MATTHEWS, A.; BUNING, E.C.; DRUCKER, E. The reduction
of drug-related harm. London/New York, Routledge, 1992. Chap. 16, p. 154-161.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 71
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
atacaram vários profissionais participantes dos trabalhos em Mersey. Os ataques
focalizaram especialmente John Marks, o psiquiatra que foi o responsável pela instalação
do programa de prescrição médica de heroína e cocaína, pois tal prática era uma das que
mais incomodava as posições próprias ao proibicionismo.
Desta forma após 1990 ao mesmo tempo que a redução de danos tornou-se um
movimento de âmbito internacional, houve uma perda da radicalidade inicial no nível local,
com a “reforma” realizada pelo nível central, com a eliminação das estratégias mais
“ofensivas”, pela sua radicalidade, à política “oficial” (p. 5).
O “modelo holandês” (Marllat, 1996) teve seu início nos anos 70, mais
especificamente em 72 quando da publicação de um documento pelo “Narcotics Working
Party” onde se concluía que as premissas básicas de uma política de droga deveriam ser
congruentes com a extensão de riscos envolvidos no uso de droga” (p. 784). Em 1976
houve um revisão do “Dutch Opium Act” na qual a lei passa a diferenciar o tratamento a ser
dado às drogas com risco inaceitável (como heroína, cocaína, anfetaminas e LSD) e aquelas
que oferecem riscos mais baixos como a maconha e o haxixe (p. 784). Tal política reflete
um princípio implícito, segundo o qual seu objetivo “não é a erradicação do uso de droga
ilícita, mas a minimização do seu dano. Este princípio é comumente descrito como
‘normalização’, isto é, redução da demanda através da integração social dos usuários de
drogas”. (Van Vliet, 198963, citado por Chapell et al., 1993, p. 119).
63
O trabalho de H.J. Van Vliet é: Drug Policy as a management strategy: some experiences from the
Netherlands. International Journal on Drug Policy, n. 1, p. 27-29, 1989.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 73
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
• veto à propaganda acerca das drogas ou do seu uso. (p. 50)
Segundo outro autor holandês (Grund, 1994) a política holandesa de droga é “uma
mistura de pragmatismo, de compromisso, de realismo, de planejamento estratégico, mas
também de tentativa e erro e, talvez, um pouco de sorte” (Grund, 1994, p. 71). A política de
drogas acompanha a política social holandesa [tolerante] no que se refere a questões morais
ou sociais tais como a homossexualidade e o aborto (p.72). Diferentemente da maioria das
políticas européias que são repressivas e levam os usuários de drogas a um “ostracismo
social”, os princípios que regem a política holandesa são de “circunscrever (o problema),
adaptar e integrar (os usuários)”.
Como visto acima, foi no ano de 1990 que teve início em âmbito internacional o
movimento de redução de danos (Fromberg, 1995). A “1ª Conferência Internacional de
redução de danos”, ocorrida em Liverpool em 1990, é considerada o marco deflagrador
deste movimento. “Nesta 1ª conferência havia aproximadamente 250 participantes, dentre
os quais uma grande parte eram trabalhadores na rua ou ativistas” (p.189). Esta composição
dá o tom de “movimento” que, neste momento, tem como preocupação predominante
64
O trabalho de Van de G.F. Wijingaart é: Competing perspectives on drug use: The dutch experience.
A partir da 3ª conferência, ocorrida em 1992, cujo título foi: “From faith to science”
(da fé à ciência), ganha importância a necessidade de obter um reconhecimento científico
das práticas e saberes que compõem a proposta de redução de danos.
Buscando ordenar este cenário composto por uma multiplicidade discursiva, Fuchs e
Degkwitz (1995) propõem a definição de campos distintos. No título do editorial por eles
escrito: “Harm reduction in Europe- trend, movement, or change of paradigma?”, tais
campos começam a ser parcialmente delineados como indicam os termos: “tendência”,
“movimento” ou “paradigma”.
Na opinião dos autores, a separação desta dimensão - efeito direto sobre o grau de
dano - das demais dimensões (como aquelas entretidas em discussões de ordem político-
legal, ideológico/moral, etc.) é necessária para que o debate em torno da redução de danos
sobreviva. Por exemplo, “...a discussão sobre legalização de drogas, do ponto de vista da
redução de danos, deveria se concentrar na questão de quais as desvantagens e benefícios
que tal medida traria para a sociedade, para os IDUs, para os novos usuários etc.” (Fuchs &
Degkwitz, 1995, p. 84).
Fromberg (1995) faz uma análise distinta, que consideramos mais apropriada, a
cerca da direção tomada pelo movimento a partir da 3ª conferência.
Para ele uma “ciência honesta” é aquela que deixa transparecer sua ideologia. No
entanto a preocupação crescente em obter um caráter científico da “redução de danos” pode
obscurecer as posições ideológicas do movimento, cuja natureza o autor se propõe a
detalhar em nome da “honestidade intelectual” (Fromberg, 1995, p. 190).
Desde o seu início o movimento despertou a atenção de órgãos que tiveram, e ainda
tem, importante papel dentro do proibicionismo, tal como a OMS e a ICCA.65
65
ICCA: International Council on Alcohol and Addiction, é uma organização não-governamental, que atua
em cooperação direta com a Comissão sobre Drogas Narcóticas das Nações Unidas (Comission On
Narcotic Drugs -CND/ONU. (Tongue E. Visão geral dos problemas das drogas no mundo (p. 9-26), in
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 78
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
“Quanto mais científicos nos tornamos, mais obscuros se tornam nossas motivações
ideológicas, mais semi-conscientes tendem a se tornar as raízes de nossos assim chamados
‘dados’.” (Fromberg, 1995, p. 190).
Andrade A.; Nicastri S.; Tongue E.(orgs.) Drogas: Atualização em Prevenção e Tratamento,
PNUDCP/ICAA/GREA, s.d.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 79
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
A posição 1: atitude positiva/legalização parece ser um necessidade lógica. Se o uso
de drogas pode ser positivo só caberia à sociedade regular este uso, para otimizar os
benefícios e reduzir os efeitos negativos.
Fuchs e Degkwitz (1995) consideram que nos anos 80, na maioria dos países da
Europa a implementação da redução de danos teve um caráter de disputa ideológica. As
características particulares que as práticas ou políticas de redução de danos adquiriram em
cada país, guardaram estrita relação com fatores sociais e históricos de cada local (Berridge,
1992).
Em alguns países foi feita uma revisão das políticas repressivas de drogas. A
Holanda foi pioneira, pois havia estabelecido as bases conceituais e implantado uma
66
Uma extensa revisão bibliográfica destes trabalhos é encontrada ao final do artigo de Des Jarlais D.C.;
Friedman, S. R.; Ward, T. P. Harm Reduction: a public health response to the AIDS epidemic among
injection drug users. Annu. Rev. Publ. Health, 14: 413-430, 1993.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 83
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
3. A atenção à saúde dos usuários de drogas injetáveis: ações específicas
O caráter fixo ou móvel dos postos de troca tem sua relevância, sobretudo se o local
escolhido para fixar o posto for uma região residencial.
Tais problemas são de menor relevância, quando se trata de postos móveis (ônibus,
perua), os quais cumprem roteiros pré-fixados, geralmente em locais onde atividades
noturnas relacionadas com uso/comércio de drogas ou sexo já ocorrem previamente à
introdução do posto volante de troca.
Mesmo neste caso, a escolha do local para estacionar (uma perua) sistematicamente,
estabelecendo um posto de troca de seringas móvel, pode exigir negociação com outro
segmento social que não os moradores: o traficante, “dono daquele território”, que pode se
sentir prejudicado. Obtivemos a seguinte explicação, de um “outreachworker”, membro de
uma ONG69 em Chicago, que prestava este serviço, quando indagado sobre as dificuldades
67
Comunicação pessoal durante visita que realizamos em 26 de março de 1997, ao STEP, localizado em
Goutte D’Or, um bairro de imigrantes africanos, e árabes, na região 18ème de Paris.
68
Este tipo de prática será examinado mais abaixo.
69
O caso em questão ocorreu em Chicago, quando de uma visita previamente agendada pelos
organizadores de um estágio promovido pela University of the State of New York -SUNY: “Grassroots
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 85
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
e critérios para escolher o local para estacionar regularmente o ônibus: este local fora eleito,
após negociação feita com um traficante local (“dono daquele território”) que indicou a
esquina exata onde ele supunha que a presença do ônibus não atrapalharia “seu comércio”;
e o nosso informante70 acrescentou, que quando tal negociação não era possível, o programa
simplesmente desistia do local e partia para outro “point”.
and Outreach Prevention Strategies” dirigido a trabalhos de “outreach” para usuários de drogas em 4
cidades norte-americanas (Chicago, Boston, Nova Iorque e Washington). Participamos deste estágio,
que cobriu o período de 26 Junho a 24 Julho, 1994. O serviço visitado era um ônibus de troca de
seringa, do Chicago Alliance Recovery, uma ONG, que desenvolve trabalhos de prevenção e
aconselhamento de AIDS para usuários de drogas injetáveis.
70
Membro do Chicago Alliance Recovery -um homem de mais de 40 anos, ex-usuário de heroína
injetável, mas que não negava ( em conversa privada) seu uso de maconha atual. Para ele o importante
era nunca mais ter se aproximado da heroína, pois só com ela perdia sua capacidade de manter uma vida
produtiva. Sua profissão na ocasião era de “outreachwork” e “conselour” para assuntos de droga,
conforme constava de um cartão de apresentação profissional que ele nos entregou. O contato com este
homem, havia se tornado mais estreito pois participamos durante 3 dias um mesmo curso de treinamento
(“Outreach Strategies Training”), promovido pela prefeitura de Chicago, entre 29 de junho e 1º de julho,
realizado pelo ADAPT (uma outra ONG, de Nova Iorque, que também desenvolve trabalhos de
“outreachworker”, troca de seringa e treinamentos por todo os EUA). A participação como colegas de
um curso propiciou uma relação de confiança de tal sorte que pudemos obter informações que
habitualmente são omitidas diante de “estranhos”.
71
Foi este o caso relatado pelo coordenador do programa de troca de seringas de Brooklin/ New York,
pertencente ao ADAPT - Association for Drug Abuse Prevention and Treatment-, que após várias
detenções e um processo judicial, conseguiu um acordo com as autoridades (policiais e judiciais ) locais
de agirem “tolerantemente”, uma vez que puderam demonstrar, com seus registros, que os usuários que
faziam troca em seus postos tinham uma média maior de 10 anos de uso de injetável, e eram de uma
Podemos supor que haja uma tendência de que as restrições impostas à troca de
seringa, venham a diminuir, na medida em que as avaliações que tem sido feitas destes
programas têm mostrando a sua eficiência para a prevenção da AIDS, ao mesmo tempo
que afastam o temor de que tais programas tenham contribuído para o aumento do consumo
de drogas (Des Jarlais, Friedman & Ward, 1993; Lurie & Reingold, 1993 e Lurie,
1997).
faixa etária média maior de 30 anos, o que não levava a crer que a troca estivesse estimulando novos
usuários a se injetar.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 87
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
decidiu fazer uma ação que corresponde a sua demanda, aquela de
obter seringas limpas e de obter informações simples sobre os seus
direitos sociais e sobre as possibilidades de se tratar72 (Avril et
al.,1997, p. 2).
E mais adiante,
Este papel de “médico na rua” acaba por ter um caráter simbólico reparador, pois o
distingue daquele papel altamente normatizado e normatizador, que é desempenhado pelo
profissional dentro dos serviços convencionais de tratamento dos dependentes de droga.
72
Tradução livre do francês.
73
PTS: programa de troca de seringa.
Em 1996, havia ainda na maioria dos estados norte-americanos uma lei que exige
que os farmacêuticos avaliem se “o comprador potencial pretende usar (as seringas) para
um “legítimo propósito médico”; uma segunda lei, que mantinha-se em vigor em apenas 10
estados norte-americanos, exigia receita médica para a venda de seringas, segundo Gostin,
Lazzarini e Flaherty (1996)75, citados por Lurie (1997, p. 262).
74
Por ocasião de uma visita feita a um destes ônibus do Médecins du Monde em Paris, em março de 1997,
o “membro da rede”, um ex-usuário de drogas, era o motorista.
A partir deste ano de 1993, tais atividades de EGO, passam a ser denominadas de
ações de “reduction de risques”, conforme consta do relatório anual da associação (EGO,
1994, p. 20-29).
75
O trabalho citado é: Limitations on the sale and possession of syringes: results of a national survey of
laws and regulations. Atlanta, Center for Disease Control and Prevention, 1996.
76
EGO: Associtacion Éspoir Goutte D’Or, localizada no 18ème , há 10 anos em atividades nesta localidade.
O presidente desta associação é um morador antigo do local que é farmacêutico. Esta associação tem
como principal objetivo promover ações locais junto à comunidade que propiciem uma reintegração
social dos usuários de drogas.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 90
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Em 1994, EGO passa a disponibilizar o kit preventivo, colocado em uma cesta sobre
uma mesa na sede da associação, onde qualquer usuário pode ter acesso nos horários de
funcionamento do local (horário comercial, exceto pelas 4as feiras que funciona até às 22
horas). A evolução desta estratégia foi a abertura do posto de troca em novembro de 1995, o
STEP, como foi visto acima.
Sua maior utilidade é permitir que o acesso a seringas seja garantido, mesmo em
horários (sobretudo de madrugada) nos quais outras fontes de seringa não estão disponíveis.
Uma segunda vantagem é apontada para a utilização das máquinas automáticas de troca de
seringa: é que através delas, o usuário não necessita ter contato com nenhuma pessoa (seja
profissional convencional ou “outreachworker”) para obter o seu lote de seringa estéril
(Avril et al., 1997).
No Brasil não temos heroína sendo usada em larga escala, como confirmam estudos
epidemiológicos feitos junto a populações de usuários de drogas no chamado “Projeto
Brasil” (Bueno et al., 1997; Seibel et al., 1997; Mesquita, 1997 ).
Como os programas conhecidos com o nome de substituição não tem uma aplicação
imediata em nosso país, faremos um resumo mais sucinto de suas variações.
São considerados de “baixa exigência” aqueles programas que não utilizam exames
de urina para checar as informações dos pacientes sobre quais outras drogas estão ou não
usando, que não incluem a obrigatoriedade de encaminhar o cliente para aconselhamento,
que não eliminam o paciente do programa se este refere uso concomitante de drogas ilícitas,
que tem maior flexibilidade quanto à quantidade de metadona disponibilizada, não
restringindo a provisão de metadona somente para as próximas 24 horas. As únicas
exigências feitas aos pacientes são: avaliações médicas a cada 3 meses; inclusão das
informações sobre o paciente para alimentar um banco de dados: Central de Registro de
A pesquisa foi conduzida pelo National Centre for Epidemiology and Population
Health (NCEPH) em colaboração com o Australian Institute of Criminology (AIC), após a
solicitação feita pela Assembléia Legislativa australiana.77
77
As informações sobre este ensaio clínico foram obtidas no livro From Faith to Science, editado a
primeira vez em 1993, e a segunda vez em 1996. Não consta desta 2ª edição nenhuma informação
adicional sobre o andamento desta pesquisa.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 94
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
nunca tivessem tido contato com serviços de tratamento ou que houvessem respondido mal
aos mesmos.
Ainda que na maioria dos países europeus as leis que proibiam o porte de seringa
(sem receita médica) tenham sido suspensas, os riscos (legais) de portar a própria droga por
trajetos mais ou menos longos, pode contribuir para que o usuário, procure se
“desvencilhar” rapidamente da droga, isto é, use a droga o mais rápido possível, assim que
acaba de adquiri-la. Nem sempre os UDIs estão habilitados ou desejosos de injetar-se a
droga sozinho. Seja a razão para este comportamento o medo de ser preso ou a compulsão
em ficar alto rapidamente, os UDIs buscam frequentemente minimizar o tempo entre a
compra e a injeção da droga (Ouellet et al., 1991, p.3).
78
O trabalho de Harvey Feldman e Patrick Bienacki é: The etnography of needle sharing among
intravenous drug users and implications for public policies and intervention strategies. In: Battjes R.J. &
Pickens R.W. eds. Needle sharing among intravenous drug abusers: National and International
Perspectives. Rockville, NIDA Research Monograph 80, 1988 [p.28-39].
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 98
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Tais utilitários comuns nos EUA, são substituídos na Europa pelas chamadas cenas
abertas da droga.
A lógica que norteia a proposta das salas de injeção, é oferecer um espaço seguro,
para um uso com menor risco. Este era um dos objetivos do projeto da Platzpitz (Muller &
Grob, 1992; Lehman, 1993; Vogt, 1993), no entanto com o passar do tempo a fama que o
local adquiriu na comunidade de usuários de drogas, fez com que houvesse uma aumento da
circulação de usuários e traficantes, que provocavam distúrbios ou desconforto na
vizinhança (a praça localiza-se em uma bairro de classe média).
Este programa suiço desperta ainda controvérsias localmente, sendo que alguns
foram bem aceitos (pelas comunidades vizinhas) e outros tiveram de ser fechados
(Uchtenhagen, 1995, p.88).
A utilização desta estratégia permanece restrita em outros países, sendo que tanto o
programa suiço, quanto algumas experiências feitas em poucas cidade alemãs e holandesas
79
“fissura” é um termo do jargão de usuários de drogas, assimilado por alguns profissionais da área, que
se refere à premência que assola um indivíduo quando ele se aproxima do momento do uso; em nosso
meio este termo é usado primordialmente para se refererir à premência produzida pela cocaína
80
Conforme informações fornecidas por Cristina Brites (coordenadora do projeto de redução de danos da
APTA/SP) que em visita oficial pelo Ministério da Saúde esteve em uma destas salas de injeção, em
Zurique (em abril de 97).
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 99
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
tem começado a despertar o interesse de implementadores de políticas de drogas, pela
possibilidade que tais programas oferecem de produzir um impacto positivo na ordem
pública (ao reduzir o uso de droga nas ruas) bem como na situação de saúde dos usuários
de drogas (de Jong, 1997).
Uma nova abordagem dos usuários de drogas, centrada nas redes de relações
sociais de usuários, será examinada nesta seção, tomada tanto como uma metodologia de
intervenção quanto de investigação. Esta tem sido considerada uma “promissora
aproximação para o entendimento da epidemiologia e comportamentos de risco nesta
população” (Friedman, 1995, p.281).
81
Tivemos acesso a este texto em uma versão mimeografada, previamente à sua publicação, cuja
referência obtivemos posteriormente. Esta é a razão pela qual a numeração das páginas não é a mesma
do texto publicado.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 100
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
reconhecida de longa data. Estudos do epidemiologista John Cassel82 (citado por Gotlieb,
1985, p.303-323) oferecem evidências da influência da exposição à desorganização social
nos distúrbios mentais; por outro lado indivíduos que tinham um processo de "feedback"
favorável de seus grupos primários de maior importância, não eram afetados por condições
estressantes, indicando o poder do suporte social na proteção à saúde (Gotlieb, 1985,
p.307). O trabalho do psiquiatra social Gerald Caplan83, aponta para a influência dos
suportes sociais informais (grifo meu), no aparecimento e evolução de múltiplas
desordens mentais. Estes autores desenvolveram propostas que eram coincidentes com o
movimento de desinstitucionalização de tratamento (p.308), servindo-lhes como
sustentação teórico-empírico. Na década que se seguiu à explanação das idéias de Caplan,
inúmeras iniciativas da comunidade de trabalhadores de saúde mental foram implementadas
no sentido de estabelecer mais efetivos sistemas de suporte social. Estas iniciativas tinham
em comum o fato de serem intervenções de caráter preventivo, envolvendo a mobilização e
otimização de suportes sociais informais a populações em risco (Gotlieb, 1985).
Uma vez que a linha de pesquisa de redes sociais é relativamente recente no campo
da prevenção da AIDS, o próprio conceito de rede social não está homogeneizado.
82
J. Cassell. Psychossocial processes and stress: theoretical formulation. Intern. Journ. of Health
Services. N. 4, p. 471-482, 1974.
1. quem se infecta;
Um estudo de Latkin (citado por Friedman, 1995) sugere que “sessões de redução
de risco” feitas em grupos de usuários de drogas recrutados de uma mesma rede tiveram
mais sucesso que sessões feitas com indivíduos usuários de drogas isoladamente”.
83
G. Caplan. Support systems. In: G. Caplan. ed. Support systems and community mental health.
New York, Human Science Press, 1974.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 102
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
múltiplas funções para os investigadores ou membros da equipe (os “outreach workers”-
ORW):
Estas “estações de campo” nunca haviam sido financiadas por verbas de agências
governamentais até o aparecimento da AIDS (Feldman & Aldrich, 1990).
Tanto em Chicago, quanto em São Francisco cidades que contam com uma tradição
de trabalhos etnográficos em drogas, considera-se que a "aproximação mais efetiva para
levar mensagens educativas-preventivas contra o HIV entre usuários de drogas e suas
parceiras sexuais é através de uma estratégia agressiva de “outreach” baseada em
etnografia" (Feldman & Aldrich, 1990, p.24).
84
Cuja tradução é busca ativa com base na rua.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 103
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
O modelo de Chicago: uma práxis multi-método
Com a combinação das informações obtidas segundo estes dois recortes distintos - o
epidemiológico e o etnográfico - é possível estabelecer intervenções culturalmente
ajustadas e metas viáveis de mudanças das práticas de risco identificadas nesta população
em direção a práticas de menor risco.
85
Uma discussão sobre a complementaridade do qualitativo e quantitativo, como estratégia metodológica
contemporânea necessária ao campo das drogas é feita por Bastos (1995) em seu capítulo “Os riscos e
singularidades”, particularmente entre as páginas de 116 a 125, op.cit..
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 105
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
As metas inicialmente propostas são aquelas que parecem mais viáveis para cada
segmento; progressivamente os outreach workers vão estimulando os membros do grupo a
adotarem práticas progressivamente mais seguras. Este princípio é condizente com a
perspectiva de redução de danos, para a qual as metas (do conjunto de medidas) devem
seguir uma hierarquia em que os objetivos mais viáveis antecedem os “ideais” ou “mais
ambiciosos”.
Uma amostra de 641 UDIs, HIV negativos, contatados pela 1ª vez em 1988, pela
equipe do programa foi aleatoriamente constituída para participar deste estudo.
Houve um decréscimo na incidência do HIV observada de 8,4 para 2,4 por 100
pessoa-ano. A prevalência dos comportamentos de risco relativos ao uso da droga injetável,
também decresceu de 100 para 14%. A soroconversão mostrou-se associada com os
comportamentos de risco relativos aos usos da droga injetável, mas não claramente
associado com os comportamentos de risco sexuais. Desta forma os autores concluem que:
“Os UDIs fora de tratamento em Chicago reduziram suas taxas de nova infecção pelo HIV,
reduzindo seu comportamento de risco relacionado ao uso de droga injetável.” (Wiebel et
al., 1996).
Ao afastar outros fatores aos quais pudessem ser atribuídos os decréscimos das taxas
de soroconversão ao longo do período, os autores concluem que a intervenção deve ser
responsável por tal decréscimo. As características do processo de construção da amostra
não permitiu medir o quanto e em quais aspectos a intervenção deste programa está
contribuindo para este decréscimo (Wiebel et al., 1996, p. 288).
Os autores sugerem, a partir dos achados deste estudo, que “uma ênfase na
distribuição de materiais de prevenção deveria ser menor do que a relevância a ser atribuída
ao conjunto das estratégias de intervenção e serviços adotados” (p.288). E finalizam,
afirmando que: “As mudanças observadas nas práticas de injeção, no presente estudo,
sugerem um alto grau de motivação para evitar a infecção do HIV [grifo nosso] por
parte dos membros da coorte e o potencial do modelo de intervenção usado para ajudar a
motivar tal mudança.”
Concluindo...
As ONGs, ao tratar questões ligadas à AIDS, cobrem uma gama de atividades, tais
como:
Exceção feita à Holanda, na qual existe, a partir de 1980, uma liga nacional formada
por associações de usuários de drogas - a "Junkieboden" - nos demais países as associações
de UD são um fenômeno mas recente que data do final dos anos 80 início dos 90 (Marlatt,
1996).
Nos países onde existem associações de UD/ex-UD estas tem contribuído para
ampliar a discussão na sociedade em geral, e em particular ao divulgar em suas
comunidades e construir com os principais interessados - os usuários de drogas - a agenda
de prioridades que os afetam mais diretamente. Os países que adotaram modificações em
suas políticas de drogas, compatíveis com os princípios da redução de danos, tem
favorecido o desenvolvimento das comunidades de usuários de drogas. Friedman, Jong e
Wodak (1993) fizeram uma repertorização das organizações UD/ex-UD, distribuídas em 3
continentes -Europa, América e Australásia; com esta repertorização foi possível verificar
que os usuários de drogas tem tido uma maior dificuldade em se organizar e ganhar
visibilidade nos países com políticas mais repressivas em relação às drogas.
Algumas das práticas reconhecidas como de redução de danos, tais como programas
de prevenção do HIV/AIDS entre UDIs, particularmente aquelas que se utilizam de
membros extraídos da própria comunidade, (os “outreach workers” ou “peer-user
educator”) tem favorecido a emergência de uma consciência mais ampla a cerca da
importância do suporte social desempenhado pelos pares também entre os usuários de
drogas (Friedman et al., 1992). A ênfase destas práticas na identificação e mobilização dos
membros das redes de sociabilidade de UDIs, com vistas a disseminar medidas de
prevenção do HIV/AIDS, tem propiciado um investimento valorativo destes sujeitos não
habitual. As mesmas redes de disseminação do HIV, são, potencialmente, redes de
disseminação de medidas de prevenção (Bastos, 1997). Dominantemente os usuários de
drogas ilícitas são tidos como incapazes de cuidar de si próprios, pois tendem a ser tomados
redutivamente como aqueles dependentes graves, cuja capacidade para o auto-cuidado se
encontra seriamente comprometida, dado o caráter compulsivo que caracteriza seu uso de
droga; também não são considerados capazes de se engajar em ações solidárias para com
seus iguais, acreditando-se que apenas se envolvam coletivamente com as ações voltadas
para a obtenção das drogas, pois são majoritariamente serem percebidos, como
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 112
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
generalizadamente desviantes ou criminosos, distorção que leva as pessoas lhes retirarem
qualquer qualidade positiva.
Podemos dizer que em países como Holanda, Alemanha e Austrália, tais associações
vem desempenhando um importante papel no sentido de pressionar os governos ou oferecer
programas alternativos à rede de atenção à saúde oficial, e desta forma estarem
contribuindo para "alterações dos quadros epidemiológicos nacionais" (Bastos, 1995, p.
214). Além desta fundamental contribuição, uma transformação mais sutil, na percepção
social dos usuários de drogas, está se operando; estes tem sido apontados como vítimas dos
prejuízos que acompanha a estigmatização, mas na medida em que estes usuários passam a
ser vistos como capazes de solidarizar-se aos seus iguais, ao perfilarem-se junto a outros
segmentos sociais, na mobilização contra o avanço da epidemia da AIDS, poderão ser
apreendidos também como merecedores da mesma solidariedade dirigida aos demais
militantes da luta anti-AIDS.
Howard Becker, em suas obras desde os anos 50, tais como “Becoming a marijuana
user” de 1953 e o clássico “Outsiders Studies on the sociology of Desviance”, de 1963 (mas
só publicado 10 anos após) deu forma à sua teoria da “carreira desviante” e da “teoria do
rótulo”.
A nova linha de pesquisa passou a adotar a hipótese de que o uso de droga tinha
uma importante relação com o acréscimo de estatus social que o seu uso propiciava.
O relatório final do “The Add Center Project final Report: The World of Youthful
Drug Use” de Herbert Blumer (1967) citado por Feldman (1968), tornou-se um documento
chave para essa mudança de direção da maneira de encarar o uso de drogas. Esta visão do
uso da droga como uma atividade capaz de propiciar acréscimo de estatus social dentro de
certas comunidades nas quais a ação na rua e os comportamentos de alto-risco eram
altamente valorizados, foi referendada por outros trabalhos, tais como os de Edward Preble
(Preble and Casey, 1969) e Feldman (1968).
Nos anos 60 e 70 inúmeros estudos foram realizados tendo como foco populações
específicas usuárias de drogas. Alguns exemplos: estudos realizados com usuários de
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 115
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
anfetamina em São Francisco (Carey & Mandel, 1968); estudo de clientes de programas de
metadona (Soloway, 1974), usuários de cocaína em Miami (Cleckner, 1976a, 1976b, 1977);
com prostitutas em Seattle (James, 1976, 1977) ou de Marsha Rosenbaum e Sheila Murphy
(1987, 1988) estudando o uso de drogas entre mulheres.86
Nos anos 80, as pesquisas etnográficas tomaram dois caminhos: o estudo do tráfico
nas ruas e dos usuários de droga fora de instituição.
Dentro desta última linha, 2 trabalhos tiveram grande importância: “Life with
Heroin” de Hanson et al. (1985), cuja contribuição foi de propiciar um entendimento do
caminho que os dependentes percorrem desde o início do uso da heroína até a procura de
programas formais de tratamento; o segundo trabalho foi o de Patrick Biernacki: “Pathways
Heroin Addiction” (1986) 87.
O uso de etnografia como método para identificar novas drogas foi abordado em 2
importantes conferências, posteriormente publicadas como “Street Etnography: Selected
86
J.T. Carey & J. Mandel A San Francisco Bay Area speed scene. J. Health Soc. Behav., n. 9, p. 164-174,
1968; I.H. Soloway. Methadone and culture of addiction. J. Pchedelic Drugs, n. 6, p. 1-99, 1974; P.J.
Cleckner blowing some lines: Intracultural variations among Miami cocaine users. J. Pchedelic Drugs,
n. 8, p. 37-42, 1976a; P.J. Cleckner. Dope is to get high: a preliminary analisys of intracultural variation
in drug categories among heavy users and dealers. Addict. Dis. , n. 2, p. 537-552, 1976b; P.J. Cleckner.
Cognitive and ritual aspects of drug use among black urban males. In: DuToit, B.M. ed. Drugs, rituals
and altered States of Consciousness. Rotterdan, A.A. Balkema, 1977; J. James. Prostitution and
addiction: an interdisciplinary approach. Addict. Dis, n. 2, p. 601-618, 1976; J. James. Ethnography and
social problems, In: Weppner, R.S., ed. Street Ethnography : Selected studies of Crime and Drug Use
in Natural Settings. Beverly hills, Sage, 1977; S. Murphy & M. Rosenbaum. Money for methadone. II:
Unintended consequences of limited-duration methadone maintenance. J. Psichoative Drugs. , v. 20, n.
4, p. 397-402, 1988; M. Rosenbaum & S. Murphy . not the picture of health: women on methadone. J.
Psichoative Drugs, v. 19, n. 2, p. 3217-226, 1987.
87
Os trabalhos citados são B. Hanson et al. Life with Heroin: voices from the Inner city. Lexington,
MA, Lexington books, 1985; P. Biernacki: Pathways from Heroin Addiction: Recovery without
Treatment. Philadelphia, Temple University, 1986.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 116
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
studies of crime and drug use in natural settings” (Wppner, 1977) “Etnography: A research
tool for policymackers in drug and alcohol fields” (Akins and Beschner, 1980)88.
88
Este trabalho foi publicado pelo NIDA, DHHS Pub. Nº (ADM)80-946, Washington, Supt. of docs., US
Govt Print. Off.
89
O estudo foi realizado nas seguintes cidades: Chicago, Nova Yorque, Denver, Miami, São Francisco,
Los Angeles, Newark e Filadélfia.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 117
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
No fim dos anos 60, começo dos anos 70, se desenvolvem projetos de trabalho de
rua em muitos países europeus (Inglaterra, Holanda, Alemanha, Noruega etc.); na Suiça o
trabalho de rua se inicia principalmente em Zurique em 1976 (Maurer, 1992, p. 9).
O trabalho era desenvolvido por uma instituição não governamental, sem fins
lucrativos, cujo quadro funcional incluiu, ao longo de sua história, voluntários ex-
toxicômanos ou não, técnicos (assistentes sociais e educadores) e estagiários.
Um objetivo que pode ser extraído da leitura dos relatórios anuais, a que tivemos
acesso, era que a ação da equipe de rua e da equipe de retaguarda buscava promover a
reinserção social dos jovens dependentes vinculados à equipe; esta reinserção era um
processo lento em que se previa um percurso não linear mas, ao contrário, sujeito a
inúmeras “recaídas”, idas e vindas, aliás, percurso esse conhecido pelos serviços
especializados no tratamento de dependentes de drogas. Este acompanhamento tinha um
caráter individual e personalizado. Este programa foi desativado em 1990 90.
90
Segundo informou um psiquiatra que era membro desta instituição, Dr Samuel Werebe, a desativação
deste programa se deu pela reestruturação da instituição L’Abbaye.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 119
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Em 1972, o trabalho de rua, que existia há 25 anos, foi reconhecido oficialmente na
França, com a criação do “Conseil technique des clubs et équipes de prévention spécialisée”
(CTPS), organismo privado, dispositivo de caráter “consultivo” junto aos poderes públicos,
que agrega as associações de “terreno” (Girard, 1994, p. 111).
Ainda que o texto de Girard não faça uma descrição aprofundada dos trabalhos de
rua realizados em França atualmente, os princípios acima mencionados são sugestivos de
que há uma tendência em modificar a abordagem centrada na pessoa do usuário, através da
inclusão nas propostas de intervenção de uma “aproximação etnográfica e sociológica”, que
toma os usuários de drogas e as pessoas de sua relação como atores sociais.
91
A ASIT foi fundada em 1989; segundo seus organizadores, esta associação refletia a preocupação dos
educadores de rua era “ganhar peso (através de sua organização profissional) nas discussões em curso
(na Suiça) em torno da política em matéria de drogas” , Maurer, 1992, p.21, op. cit.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 120
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Inicialmente a rua é tomada como “um espaço público que serve à circulação eficaz
da força de trabalho e de consumo”, mas também é tomada como “o cruzamento das
contradições da sociedade contemporânea”; desta forma “aqueles que fazem da rua seu
campo de trabalho se inscrevem nessas contradições”.
O apoio dado pelo trabalho de rua à auto-organização de pessoas da rua, tais como
“movimento dos “sem-abrigo”, o sindicato de “junkies”, os grupos musicais das pessoas da
“zona” dentre outros é coerente com sua proposta de favorecer a (re)inserção social dos
marginalizados.
92
Dos 6 centros citados como referência no tratamento da dependência de drogas neste catálogo, 3
adotavam conceitos e práticas próprias do “modelo francês”. Em São Paulo, dos 3 centros de tratamento
de dependentes ligados à universidade , um deles se aproxima bastante do “modelo francês” .
93
Para um exame mais detalhado da história das políticas de drogas deste século consultar: Escohotado, A.
história de las drogas, vol 2, Madrid, Alianza Editorial, 1992; Scheerer S. Estabelecendo o controle
sobre a cocaína (1910-1920). In Bastos F.I., Gonçalves O. D, orgs. Drogas: É legal ? Um debate
autorizado. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1993; Barata A. Fundamentos ideológicos da atual política
criminal sobre drogas. In Gonçalves O. D., Bastos F.I., orgs., Só Socialmente, Relume Dumará, Rio de
Janeiro,1992; Tongue E. Visão geral dos problemas de droga no mundo. In: Andrade, Nicastri, &
Tongue. Drogas: Atualização em Prevenção e Tratamento, PNUDCP/ICAA/GREA, São Paulo, [1993?].
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 125
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
No âmbito da clínica a “resistência francesa” ao “modelo norte-americano de
tratamento”, se caracterizou por uma recusa de adotar qualquer medida (terapêutica) que
ferisse os direitos humanos (Valleur, Debourg & Matysiak, 1992; Bucher, 1992;
Olievenstein, 1983; 1985).
94
Lembrando que o álcool e o tabaco, não são considerados ilegais na sociedade ocidental, apesar de
serem substâncias que agem no SNC, cujos usos são associados com danos à saúde, dentre os quais está
a dependência.
95
A garantia do tratamento gratuito, nã o r es tr i n ge o a t en di ment o a os que pod em pa ga r, nem
as c on s tr içõ es d o si s t em a pr e vi denc i ár i o f ra ncê s, que oper a pe l o s is t ema de
ree mb ols o, e ex ige u ma i ns er çã o s óc i o- pr of is s i ona l qu e n em se mpr e os us uár i os de
dr oga s t em.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 126
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
servirá a propósitos repressivos, risco potencial a que todos os usuários de drogas ilícitas
estão sujeitos, dado o caráter criminoso de suas práticas.
96
No Brasil, também a opinião consensual da comunidade formada por especialistas em drogas
(psiquiatras e outros profissionais de saúde atuantes neste campo específico) é de que a internação
compulsória do dependente de droga não é tecnicamente adequada. No entanto, distintamente do que
acontece na França, a inexistência de uma política de saúde de drogas, faz com que os usuários de
drogas estejam sujeitos pela legislação vigente a serem submetidos a tratamentos compulsórios, muitas
vezes por determinação judicial
97
A demanda do toxicômano tem sido objeto de inúmeros obras psicanalíticas ou psicodinâmicas
dedicadas à clínica da dependência.: Aulagnier, P. Les destins du plaisir. Paris, PUF, 1975.Kaes R.,
Anzieu D.(org.) Le psychanalyste à l’écoute du toxicomane. Dunod, Paris, 1981; Freda H;
Communication séance Plennière, Journées du CATS, déc, 1983 (mimeo); Ferbos C., Magoudi A.
Approche psychanalytique des toxicomanes. PUF, Paris, 1986; Ocampo E. V. L’Envers de la
toxicomanie: un idéal d’indépendance. Denoël, Paris, 1989; Poulichet Le S. Toxicomanies et
Psychanalyse. Les narcoses du désir. PUF, Paris, 1987; Bucher R. Drogas e Drogadição no Brasil.
Artes Médicas, Porto Alegre, 1992.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 127
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Os pacientes aceitos seriam aqueles que ao passarem por estas “consultas
preliminares”, teriam seu “pedido de cura”, transformado em uma “demanda de cura”. Tal
“transformação”, consiste no início do trabalho (psico) terápico em direção à cura.
98
Esta conquista dos especialistas, permitiu um grande desenvolvimento da clínica psicodinâmica
especializada em toxicomania. Isto não impede que na França também existam serviços psiquiátricos
“clássicos” que também tratam de pacientes dependentes. A orientação psiquiátrica, adotando um
modelo médico, com ênfase na terapêutica psicofarmacológica, exclui estes serviços do chamado
“modelo de cura francês” ao qual estamos dando especial atenção, sobretudo pela extensão e
importância que este adquiriu na atenção aos dependentes de drogas na França.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 129
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
A redução de danos: o [difícil] diálogo com esta nova racionalidade para o campo das
drogas
Tais críticas são norteadas por um recorte de prioridades (de saúde pública)
diferente daquele proposto pelo “modelo” que aqui examinamos. As prioridades para este
modelo são aquelas que constituem, de uma maneira geral, as preocupações dos serviços de
atendimento médico individual e, em particular, de uma clínica psicodinâmica da
dependência, construída sob as constrições de uma legislação de drogas repressiva.
99
Os profissionais que atuam no campo de tratamento de dependência de drogas, formaram em 1980, uma
associação a ANIT - Association Nationale des Intervenants en Toxicomanie; um órgão que é
constituído não só por profissionais, como também por outras pessoas “não diplomadas” - como ex-
toxicômanos- ligados a rede de instituições de tratamento de toxicômanos francesa. (Coppel, 1996, note
42, p. 106).
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 130
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Como visto acima, algumas particularidades da história da implantação do “sistema
de cura francês”, certamente determinaram o atraso da França em adotar uma política de
redução de danos. Dois relatórios o Rapport Pelletier de 1978 e o Rapport Trautmann,
1989100 citados por Stenger e Ralet (1991) afirmam que o problema da toxicomania não é
um problema de saúde pública, pois a amplitude do problema (número de casos de
dependência graves, ou de morte por overdose) não justifica tal inclusão. Portanto a
toxicomania permanece como um problema de ordem social, uma vez que este
comportamento ameaça esta ordem (Coppel, 1996).
100
ambos foram analisados extensamente por Stengers I., Ralet O. no livro: Drogues le défi hollandais, Les
Empêcheurs de Penser en Ronde, 1991.
101
É socióloga, mais afeita a posições anti-proibicionistas na França, figura aliada ao movimento da
redução de danos em França, foi convidada para presidir a 8th International Conference on the reduction
of Drug Related Harm, ocorrida em Paris neste ano.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 131
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
aos medos coletivos, que tem ao menos o precioso mérito de
oferecer um espaço que escapa à lei.” (p. 89).
Uma vez estruturada esta “lógica defensiva libertária”, posições inovadoras para o
campo das drogas, sustentadas por uma racionalidade de saúde pública (trazidas no bojo do
novo paradigma da redução de danos), foram, vigorosamente, rejeitadas.
Desta forma criou-se um silêncio nos primeiros anos da epidemia de AIDS, que
contribuiu para um enorme atraso da França na adoção de medidas de redução de danos. Só
em junho de 1994, que o Ministério de Saúde francês passa a adotar a política de redução
de riscos oficialmente.103
No entanto, dado que o “modelo de cura francês”, preconiza um tratamento feito por
especialistas (não identificados com o sistema de atenção médico em geral), as mudanças
102
Uma discussão aprofundada sobre a lei francesa de drogas, datada de 31 de dezembro de 1970 é feita
por Izabelle Stengers e Olivier Ralet , no capítulo: “Contrastes” (p. 29-45). O interesse desta discussão é
que ela descreve a complexa injunção entre crime e doença no caso do uso de drogas, cuja solução
determinou algumas das características .
103
Conforme citado por Coppel (p. 107, nota 56) na conferência de imprensa de julho de 1994, de Mme.
Simone Veil, alta funcionária representante oficial do Ministério da Saúde francês.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 132
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
para absorver os problemas de saúde trazidos apela AIDS para a população de usuários de
drogas injetáveis, têm sido excessivamente circunscritas.
No entanto para solucionar os novos problemas (de saúde) trazidos pela AIDS,
modificações mais amplas no “sistema de cura francês” se tornaram imprescindíveis.
Sua estrutura instituída sob uma lógica curativa psicoterápica, criou obstáculos ao
acesso de usuários de drogas que tivessem demandas menos “ambiciosas” de cura (assim
definidas, por Marc Valleur, as metas do tratamento dos dependentes).
Como já vimos em seção anterior, uma das práticas que compõe o leque de
intervenções de redução de danos é a utilização de tratamentos de substituição de heroína
(droga ilegal principalmente utilizada pela via injetável) por metadona (droga legal,
utilizada por via oral).
104
psiquiatra francês, médico chefe e fundador do Centre Médical Marmottan.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 134
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
substituição pela metadona, do Centre Pierre Nicole, localizado em Paris - o primeiro e
único pertencente a rede especializada de tratamento de dependentes - que adotou esta
medida. (Coppel, 1996, p. 96). Estes números testemunham, para Coppel, as resistências à
adoção desta medida na França.
Alguns autores como Wieviorka105 (1996), tem posições que indicam um avanço no
impasse criado pela confrontação dos modelos. Em seu artigo entitulado: “Les toxicomanes,
entre prise de risque et réduction des risques”, Wieviorka, afirma considerar impróprio
utilizar-se de conceitos da clínica para opor-se a uma política de redução de danos (p.100).
105
Sylvie Wieviorka, é diretora médica do Centre Saint Germain Pierre Nicole, serviço especializado que
faz parte da rede do sistema francês de tratamento de dependentes de drogas, o primeiro da rede a adotar
106
As obras citadas são: Nowlis H. A verdade sobre as drogas. Rio de Janeiro, IBESC/UERJ, 1982 [3ª
ed.]. Kornblit, A.L. Actualizaciones sobre prevención de la drogadicción. Bol. De invest. Buenos
Aires, Ed. Convivir, v. III, n. 4, 1988.
107
Uma análise desta mesma classificação, foi feita por Bucher (1992), como será visto abaixo.
108
Como foi visto acima a terminologia para se referir à redução de danos não é, ainda neste momento,
padronizada também em nosso país, sendo muitas vezes utilizada a expressão redução ou minimização
de riscos” com o mesmo sentido.
109
Como vimos na seção dedicada ao “O proibicionismo e sua relação com a construção do problema
droga” que as críticas à postura de “guerras às drogas” inclui outros argumentos além destes dois.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 139
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
como uma postura que fere os direitos humanos, nem sempre encontramos uma menção
explícita a esse respeito, mas quando se fala em direitos dos usuários, a posição adotada é
sempre concordante com a explicitada por Carlini-Cotrim (ver Mudgford, 1989a; Trebach
& Zeese, 1990a; Des Jarlais et al., 1993; Mesquita & Bastos, 1994; Henmam, 1994).
Dentro de uma mesma linha crítica aos modelos de prevenção calcados no combate
às drogas, Bucher (1992) contrapõe uma prevenção ao uso indevido de drogas110, que se
baseie em proposições de valorização da vida e da pessoa humana.
A clínica da dependência de outras drogas que não o álcool, tem uma história
recente, datando de 1987 a definição ainda em uso de dependência, proposta pela
Associação Psiquiátrica Americana na Revisão da 3º edição do Manual de Diagnóstico e
Estatística das Doenças Mentais, o DSM-III-R (Spitzer & Robert, 1987).
110
Esta expressão, “prevenção ao uso indevido e drogas”, tem sido usada para diferenciar uma postura que
não acredita que todo e qualquer uso deva ser prevenido, posicionamento este que preconiza que os
esforços devam ser dirigidos ao uso indevido ou abusivo das drogas, admitindo portanto a possibilidade
de existirem usos não problemáticos (ou “devidos”).
111
Este modelo jurídico-moral, ao qual corresponde estratégias preventivas calcadas no amendrontamento,
é fartamente utilizado pelos livros didáticos adotados em nossas escolas de 1º e 2º graus conforme foi
demonstrado por um estudo de Carlini-Cotrim e Rosemberg (1991a).
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 140
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
regras objetivas para as formulações diagnósticas das dependências (Nicastri, [1993?],
p.44,). Dentro desta perspectiva, os critérios diagnósticos do DSM-III-R, são um avanço na
objetividade na medida em que suas definições não fazem nenhuma suposição a respeito da
etiologia, adotam um modelo comportamental para a caracterização da dependência e
eliminaram suposições psicológicas e biológicas [grifos nossos] que estavam presentes em
definições anteriores (Nicastri, [1993?], p. 45). Esta padronização de fato favorece uma
tomada de decisão calcada em regras objetivas para a categorização de pessoas em função
de razões legais, médicas e psiquiátricas (Nicastri, [1993?]). Mas para o exercício da
clínica, o estabelecimento de uma “terapêutica” da dependência, momento que sucede o
diagnóstico clínico, necessariamente, deverá incluir as “suposições psicológicas e
biológicas” que foram suprimidas, bem como considerar os sujeitos dependentes de drogas,
como reprodutores de processos de sociabilidade particulares a contextos historicamente
determinados. 112
112
Cf. O capítulo “Complexidade e diversidade na relação dos indivíduos com as drogas” (p. 8-35) em
especial à seção “Diferentes contextos: variadas relações com as drogas” (p.14-18), onde a autora
apresenta suas concepções, sobre a construção de “comportamentos” relacionados aos usos de drogas,
sob uma perspectiva que considera as complexas relações entre as subjetividades e contextos geradores
dos distintos usos. Cássia Soares, Op. Cit.
113
Emprestamos o conceito de reificação, utilizado por Gonçalvez e Schraiber (1996, p.31), para definir o
processo segundo o qual as necessidades sociais ou de saúde “são tomadas como naturais, destituídas de
sua história e razão social”.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 141
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
estatística e causal e, ao descuido para com as variáveis recortadas de categorias
epistemológicas díspares e homogeneizadas de modo simplista”.
Feitos estes reparos, entendemos como pertinente a crítica que Bucher faz ao
“modelo sanitarista” que faz um uso acrítico de estudos epidemiológicos de “fatores de
risco” para a dependência de drogas114. A maioria destes estudos são norte-americanos, e
foram construídos sob circunstâncias particulares à guerra às drogas. Tais circunstâncias
determinam, entre outras coisas, quais os “problemas de interesse” para serem pesquisados,
dentre os quais não se encontra, o estudo do uso controlado de drogas proibidas115.
Portanto concordamos com Bucher quando ele afirma que tal como o modelo
jurídico-moral, este modelo (médico) sanitarista acrítico, ao se centrar na droga e “não levar
em conta as razões pelas quais se procura drogas” torna-os inoperantes quando aplicados à
prevenção (Bucher, 1992, p. 146).
114
Remetemos o leitor à discussão feita por Soares (1997, op.cit. ) sobre o conceito de risco aplicado ao
campo das drogas, para tanto valendo-se das críticas feitas pelos autores latino-americanos à
epidemiologia clássica, constituindo o corpo teórico conhecido como epidemiologia crítica ou social (p.
71-73). Para uma abordagem histórico-filosófica exaustiva do conceito de risco em epidemiologia,
consultar “Sobre o risco. Para compreender a Epidemiologia”, de José Ricardo Ayres, Ed.
HUCITEC, São Paulo, 1997.
115
Dedicamos uma seção à questão do uso controlado, no capítulo “Aspectos teórico-metodológicos”.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 142
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
O modelo historicamente sucessor é o psicossocial, desenvolvido nos anos
cinquenta. Considerado um avanço em relação aos anteriores por incluir “em primeiro
plano o indivíduo, enquanto agente ativo (e portanto responsável) do consumo de drogas”
(p.149). Os efeitos das drogas e tipo de uso (recreativo, abuso ou dependência) passam a ser
compreendidos como fruto da interação entre diferentes drogas, quantidades, frequências e
modalidades de uso com situações e indivíduos particulares. O contexto imediato é incluído
na compreensão dos tipos de uso.
116
Esta expressão identifica a parcela de pacientes que ao seguir um tratamento para o “beber
problemático”, passa a beber menores quantidades, provavelmente reduzindo o nível dos problemas
observados anteriormente ao tratamento
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 145
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Heather finaliza seu capítulo, afirmando que “o renovado interesse em almejar
realisticamente a redução dos danos (em contraposição a meta exclusiva pela abstinência)
causados pelo álcool aos indivíduos e à sociedade, poderá ajudar a re-estabelecer a
disciplina como um genuíno discurso científico” (p. 180).
Em nosso meio, dois estudos sobre intervenção breve, utilizada desta feita como
tratamento da dependência não apenas de álcool, mas para dependência de outras drogas
demonstraram sua eficácia, além dos benefícios potenciais de sua aplicação em ampla
escala, dada sua potencial menor relação custo-benefício. (Formigoni, 1992; Marques &
Formigoni, 1997a).
O segundo estudo (em fase final de redação) compara a eficácia da terapia breve
individualmente aplicada com a mesma técnica adaptada para sessões grupais. Os
resultados indicam que os pacientes alcoolistas que foram submetidos a intervenção breve
grupal, tiveram maior aderência do que os alcoolistas tratados individualmente. Já os
pacientes que tinham dependência a outras drogas que não o álcool tiveram aderência
similar em ambas aproximações - grupal e individual. A conclusão do trabalho de Marques
é que as vantagens representadas pelo mais baixo custo relativo na utilização da técnica de
terapia breve em grupo deve ser considerada como forma de tratamento a ser adotada pelo
sistema público de saúde (Marques & Formigoni, [1997?b]; Marques & Formigoni, 1997a).
117
Sanchez-Craig et al. Random assigment to abstinence and controlled drinking: evaluation problem
drinkers. Joun. Of consult. And clinical Psychology, v. 52, n. 3, p. 390-403, 1984.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 146
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
A preocupação com a redução de danos (ou riscos) associados ao uso do álcool,
prioritária se consideramos a extensão do consumo do álcool na população em geral, e por
conseguinte dos problemas relacionados ao seu uso, faz parte do redimensionamento de
prioridades das políticas que pretendam propor medidas que fujam do modelo de guerra às
drogas. Estudos mostram que mudanças na legislação que estipula a idade mínima a partir
da qual o consumo de álcool se torna permitido que os acidentes de carro relacionados ao
consumo de álcool diminuem na faixa etária entre os 18 e 21 anos, nos períodos em que
esteve vigente uma lei que proibia o consumo de álcool nesta faixa etária (O’Maley &
Wagenaar, 1991). Este exemplo nos remete a posição do movimento de redução de danos,
majoritariamente defendida desde a 3ª conferência, segundo a qual as mudanças nas
políticas de drogas (e álcool, consequentemente) para serem uma tradução da perspectiva de
redução de danos, deverão levar em conta o impacto (estimado, ou previamente relatado
cientificamente) potencial sobre o dano que se pretende evitar (Fuchs e Degkwitz,
1995, p. 84).
Programas de prevenção que se coadunem com esta perspectiva podem ser aqueles
delineados previamente para acessar populações que potencialmente estão expostas a um
maior risco de apresentar problema no consumo de álcool. Um exemplo deste tipo de
programa é o estudo de intervenção voltado para jovens universitários da Universidade de
Washington; o “High Risk Drinkers Project” (Baer, 1993) é um projeto de “prevenção
secundária”, “a meio caminho entre a prevenção primária e os cuidados terciários”, que
além de ser flexível, adota múltiplas estratégias (grifo nosso) que integra outras
aproximações àquelas próprias ao tratamento dos problemas associados ao álcool (Baer,
1993, p. 131). Baseando-se em uma aproximação com passos hierarquicamente articulados,
grande ênfase é dada à utilização dos recursos pessoais para modificar padrões
problemáticos do uso; a adoção desta estratégia como primeiro passo deste programa se dá
pelas evidências revelada por estudos de “recuperação espontânea” (Sobell, Sobell &
Toneato, 1992118, citados por Baer, p. 132) que mostram que muitos indivíduos são capazes
de se recuperar sem ajuda de tratamentos formais (McCartney, 1996).
118
Sobell, L.C.; Sobell, M.B. & Toneatto, T. Recovery from alcohol problems without treatment. In:
Heather, N.; Miller, W.R. & Greeley, J. eds. Self-control and addictive behaviours. Botany Bay, NSW,
Australia: Maswell MacMillan. 1992. [p. 198-242].
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 147
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Um estudo brasileiro (o único desta natureza em nosso meio) entitulado “A história
não-oficial do uso de drogas” (Galduróz & Masur, 1990) corrobora a existência de
recuperação espontânea mesmo entre pessoas que fizeram um “uso intensivo de drogas
ilícitas”.
Um outro exemplo de programa que focaliza uma droga lícita, desta vez visando a
redução dos danos associados ao cigarro, é aquele descrito por Russell (1993); seus
objetivos são: 1. reduzir o número de casos novos (“recruitment”); 2. incrementar a
interrupção; 3. reduzir os riscos do “fumar ativo”; 4. reduzir a exposição passiva dos não
fumantes aos fumantes. Estes objetivos devem ser focalizados articuladamente. Por
exemplo a restrição dos locais onde o fumar é permitido, pode ao mesmo tempo proteger os
não-fumantes da exposição passiva, quanto reduzir a quantidade de cigarros consumida
pelos fumantes. Ou, então, a interrupção do consumo de adultos, pode favorecer a redução
do início do consumo por parte de seus filhos (Russell, 1993, p. 154-155).
Incluímos ainda a discussão a respeito da maconha ser legalizada ou ter seu uso para
fins terapêuticos, sob prescrição médica autorizada (Morgan, Riley & Chesher, 1993;
Ferguson, 1997). Podemos afirmar que as evidências científicas sobre os efeitos da
intoxicação aguda ou crônica da maconha, falam a favor de se estabelecer um tratamento
jurídico diferenciado entre esta e as demais drogas ilícitas, o que já foi estabelecido desde
os anos 70, pela política holandesa, ou em alguns estados norte-americanos (Scheerer,
1996; Johnston, O’Malley & Bachman, 1981119, citado por Morgan, Riley & Chesher,
1993).
119
Trata-se do trabalho de L.D. Johnston, P.M. O’Mally & J.G. Bachman, Marijuana decriminalization: the
impact on youth 1975-1980. Monitoring the future: Occasional papers series, paper 13. Ann. Arbor:
Institute for social Research, University of Michigan, 1981.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 148
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
A título ilustrativo citamos o trabalho feito em nosso meio por Labigalini e
Rodrigues (1997), “O uso ‘terapêutico’ de cannabis por dependentes de crack no Brasil”,
que aborda os possíveis efeitos terapêuticos a maconha para reduzir os sintomas de
abstinência ( a “fissura”) após a suspensão do crack. Foram acompanhados 20 casos de
pacientes dependentes do crack (diagnosticados pelo DSM-III-R), durante o período de 9
meses, observando-se que o uso mais intenso nos 3 primeiros meses imediatamente após a
suspensão do uso do crack (uso diário, em média de 3 a 4 baseados por dia), acompanhou-
se de uma redução espontânea posterior. O uso de maconha observado nos 14 pacientes que
foram acompanhados até o final deste período, pode ser classificado como um uso
recreativo (Labigalini & Rodrigues, 1997, p. 4).
120
Tema desenvolvido, no capítulo “O caso de Prevenção”, particularmente nas páginas 76-99. Op. Cit.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 150
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
AIDS”, o PPUID-AIDS121. Este projeto foi escolhido por constituir um exemplo em nosso
meio do surgimento de propostas inovadoras que quebram com o “status quo” das
intervenções convencionais no campo da atenção à saúde dos usuários de drogas.
O principal desafio que o PPUID-AIDS deveria enfrentar era encontrar uma forma
de garantir uma atenção à saúde dos usuários de drogas que fosse uma resposta mais
adequada às necessidades de saúde desta clientela. Desafio porque estes eram (e ainda são
uma clientela predominantemente virtual), isto é, não buscam os serviços de saúde, exceto
em situações de grande agravo à saúde.
Como fruto do trabalho das educadoras de rua, foi possível estabelecer relações de
confiança estáveis com uma parte da rede de usuários contatados, desenvolvendo ações
educativas, com ênfase na prevenção da transmissão sexual do HIV, aconselhamento para
questões relativas ao uso de drogas, relacionamentos familiares e com seus parceiros
sexuais, problemas de saúde, trabalho e moradia, dentre outros. Algumas características da
parcela da rede de usuários que estabeleceu vínculo com as educadoras foi descrita em dois
trabalhos (um comunicação oral apresentada no “Prevenção secundária e terciária em
usuários de drogas em seu meio”, Reale & Cavallari, 1993a; e no capítulo entitulado “Hard-
To-Reach or Out-of-Reach? São Paulo Outreach Workers and Inner-city Addicts”, Kirsch,
Reale & Osterling, 1995).
122
Um panorama atualizado da extensão das ramificações do crime organizado em escala mundial, em
torno do comércio das drogas ilícitas, é encontrado na obra do Observatoire Géopolitique des Drogues,
entitulada Atlas Mondial des Drogues , PUF, Paris, 1996
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 153
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
relacionar-se e responder adequadamente às situações do cotidiano intra e extra-
institucional, que envolvessem o uso de drogas.
Uma vez que uma das principais barreiras encontradas em diversos momentos e
níveis entre os diversos interlocutores do PPUID-AIDS, relacionava-se às inúmeras
manifestações de preconceito, entendemos que um trabalho que fosse voltado para a
dissolução ou redução deste em relação aos usuários de drogas seria prioritário.
A resposta ao curso foi bastante positiva, tendo sido possível realizar 5 treinamentos
atingindo 105 pessoas, durante o ano de 1994. A boa receptividade dos treinandos ao curso,
é uma provável evidência de que este veio preencher uma lacuna da formação profissional
em educação em saúde voltadas para a questão das drogas e seus usos.
123
O tema grupo focal, como instrumento de avaliação, foi objeto de uma comunicação coordenada, no V
Congresso de Saúde Coletiva (agosto de 1997), sob o título “Uso de grupo focal como instrumento de
avaliação”, de autoria de Soares C.B.; Reale D.; Brites C.M.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 156
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Examinaremos no próximo capítulo esta situação tomando o caso particular de São
Paulo.
“Educação para a Saúde” prevê que “as atividades a serem desenvolvidas neste
âmbito são prioritariamente do tipo pedagógico...sua finalidade é a saúde em geral ainda
que faça referência ao tema drogas”. Mais adiante ao examinarmos as atribuições das
diferentes Secretarias fica claro que “Educação para a Saúde” será realizada pela Secretaria
da Educação, em acordo com o previsto pelas regulamentações oficiais anteriores.
124
O documento do MEC citado é “Brasil- diretrizes para uma política educacional de prevenção ao uso de
drogas”, produzido por ocasião do Fórum de Especialistas sobre a Redução da Demanda ao uso indevido
de drogas na América Latina, realizado em 1994.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 160
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Hierarquizado de Atenção ao Dependente de Álcool e Drogas”, datado de agosto de 1991,
com timbre da Secretaria de Estado da Saúde e Área Técnica de Atenção à Saúde Mental -
ATA de Saúde Mental. Tal documento parece ser um parecer fornecido pela Área Técnica
de Saúde Mental que subsidiou os responsáveis pela resolução publicada pelo Secretário a
posteriori.
Esta passagem poderia estar prenunciando que alguma recomendação de ação com
os usuários ocasionais ou frequentes, não dependentes, seria incluída dadas as
“vantagens em termos de custo-benefício” de se atuar “preventivamente”. No entanto há
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 161
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
um vazio a esse respeito nas recomendações finais, a menos que se considere a detecção de
uso abusivo de drogas em gestantes ou adolescentes como pretendendo ser uma medida (ou
programa?) dirigida aos usuários e não aos dependentes125.
O texto não inclui um levantamento do quadro funcional destas unidades que mapee
o não mencionado “desfalque” das equipes, que pudesse ser um “diagnóstico funcional” de
perfis profissionais e das vagas e a serem preenchidas.
Estes centros são lotados, na resolução 430, em hospitais gerais, e deveriam prever
até 20 leitos para desintoxicação, com os pacientes permanecendo por um tempo médio de
15 dias.
Sabe-se que na capital foi criado um único Centro nestes moldes que funciona no
Hospital Geral de Taipas. 127
Não fica claro neste documento o processo de “sucateamento” que vem afetando os
serviços de saúde pública em geral, e em particular os serviços de saúde mental, graças a
Esta passagem parece sugerir que o papel do profissional de saúde diante dos
usuários ocasionais ou mesmo frequentes de drogas deve ser sobretudo (e parece que
exclusivamente) de “desdramatizar” o significado deste uso. Dentro da lógica clássica entre
os especialistas na atenção médico-psicológica da dependência de drogas em nosso meio,
não há indicação de tratamento especializado para usuários ocasionais ou frequentes de
127
Este serviço que inclui uma enfermaria para desintoxicação de dependentes de drogas, com 15 leitos, e
um acompanhamento ambulatorial (comunicação pessoal de Sérgio Seibel diretor deste serviço à autora
deste trabalho
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 164
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
drogas. Resta, segundo esta racionalidade de natureza assistencial, restringir a intervenção a
um “aconselhamento pontual”.
O atendimento aos usuários de drogas ilícitas acaba sendo feito em poucas unidades
128
ambulatoriais de saúde mental ou de especialidades , ou em pronto socorros que
encaminham, via de regra, para hospitais psiquiátricos da rede pública ou conveniados por
ela. A internação psiquiátrica muitas vezes acaba sendo a única intervenção de saúde para
esta população (“que não vem cumprindo com sua finalidade terapêutica”, conforme
afirmativa na p. 3, do documento da Secretaria de Estado da Saúde, 1991) reforçando os
mecanismos de exclusão desta população de uma efetiva atenção 129.
128
Em palestra proferida em novembro de 1992 sobre o tema “Políticas Públicas na Prevenção ao Uso
Indevido de Drogas” (mimeo), o Dr. Nilson F. Páscoa, médico da Secretaria de Saúde, reconhece que as
ações de prevenção ao uso indevido de drogas incluindo a área de saúde, ocorreram pela iniciativa de
“alguns poucos profissionais”, que se valeram de se sua “disposição, conhecimento e voluntariedade” e
que tiveram um “caráter isolado… sem o alicerçamento institucional”. Tais profissionais “não
conseguiram com efetividade transformar a estrutura na qual prestavam serviços”.
129
Para uma crítica quanto ao papel excludente do hospital psiquiátrico em nosso meio, Giordano (1996)
cita (Mourão Dias I. Sob o signo da exclusão. A história da psiquiatria no estado de São Paulo.
Dissertação de Mestrado, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 1985) e, em produção
mais recente, Pereira Urquiza L.M.F. Um tratamento para a loucura: contribuição à história da
emergência da prática psiquiátrica no estado de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Universidade
Estadual de Campinas, 1991.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 165
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
maioria para atender esta clientela, acabam por reproduzir, em sua prática, esta idéia do
senso comum.
130
Esta condição pode ser observada ao longo de minha experiência clínica de 15 anos, através de
depoimentos de pacientes ou familiares de dependentes ou usuários de drogas ilícitas.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 166
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
grupal ou individual (com variadas técnicas de psicoterapia) com acompanhamento clínico
psiquiátrico (quando dispõem de médicos) e de familiares associados.
Pela primeira vez os usuários de drogas ilícitas podem ter um contato com um
serviço de saúde (mais ligado à prevenção e controle epidêmico) sem ter de identificar.
131
Conforme aquilatamos através de depoimentos de colegas atuando em diferentes níveis de atenção do
Programa de AIDS do Estado.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 167
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
O despreparo dos profissionais torna-se evidente pelas dificuldades alegadas por
estes em manejar as situações criadas pela "rebeldia" dos usuários em seguir as
recomendações médicas, ou em submeter-se aos regulamentos das instituições durante as
internações.
Uma nova modalidade de atenção múltipla (legal, social, e de saúde) surgiu com as
associações sem fins lucrativos, as chamadas "ONGs" (organização não-governamental)
que se desenvolveram desde o início da epidemia. A título ilustrativo, em julho de 1993
havia 175 ONGs voltadas para AIDS conhecidas em todo o Brasil (Bastos, Galvão,
Pedrosa, Parker, 1994, p.51), tendo seu número estimadamente aumentado para 400 em
1995 (Terto Jr., 1995, p. 33).
Tais organizações tiveram “no ativismo de grupos americanos (leia-se, grupos gays,
sobretudo) …fundamental incentivo à criação de organizações semelhantes no Brasil e em
Uma outra parcela de usuários de drogas tem sido objeto de atenção, através das
organizações voltadas para parcelas de populações de excluídos constituídas pelas crianças
de rua, ou jovens pertencentes a estratos sócio-econômicos mais baixos, moradores de
bairros periféricos da cidade (CEDECA, 1996).
132
Um exame detalhado do perfil e papel desempenhado por esta “respostas comunitárias aos problemas
trazidos pela AIDS, foi feito por Jane Galvão no capítulo: AIDS e Ativismo: o surgimento e a
Construção de novas formas de solidariedade” (p. 341-350), do livro A AIDS no Brasil (1982-1992).
133
Como é o caso da ALIVI, uma ONG de AIDS que tem uma casa de apoio, para residentes usuários de
drogas que já desenvolveram AIDS. Além da internação a casa oferece alguns programas, para usuários
que se mantém abstinentes (comunicação pessoal de seu diretor Nivaldo (um ex-usuário de drogas).à
autora deste trabalho
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 169
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Projeto Travessia, composta de um pool de instituições como sindicatos e empresas do
sistema financeiro (Fundação Projeto Travessia, 1997)
A composição das equipes inclui educadores de rua (na maioria das vezes agentes
comunitários, não formados) e técnicos, também não necessariamente com formação
específica de área de saúde.
134
Lembrando que é recente, mas não unânime, a existência de manifestações públicas de autoridades
eclesiásticas que sejam explicitamente favoráveis às campanhas de prevenção da transmissão sexual da
AIDS através uso de preservativos.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 170
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
O caráter ilícito das práticas associadas ao uso de drogas injetáveis, associado a um
tratamento repressivo e estigmatizador dado aos usuários de drogas ilícitas torna
especialmente difícil que os usuários de drogas possam organizar-se em associações de
caráter público, como é o caso das organizações oficialmente registradas.
Ainda pouco conhecida em nosso meio, a expressão de redução de danos tem sido
utilizada para designar estratégias de prevenção à AIDS entre usuários de drogas injetáveis
(Mesquita, Moss & Reingold, 1992; Mesquita, 1992a; Mesquita & Bastos, 1994).
135
Existe uma exceção neste panorama geral dos serviços prestados pelas ONGs da cidade de São Paulo
que é o “Projeto AIDS e o uso de droga injetável” (Projeto UDI) da Associação para a Prevenção e
Tratamento da AIDS (APTA), cujas ações propostas seguem os princípios e estratégias de redução de
danos, como veremos no capítulo dedicado a este assunto.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 172
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Santos, Rio de Janeiro, Salvador, Itajaí e Campo Grande136. Este projeto, coordenado pelo
IEPAS, passou a ser conhecido como “Projeto Brasil”.
A troca de seringa foi uma estratégia adotada após 3 anos de um trabalho que se
iniciou como uma pesquisa de doutorado de um médico do CETAD/UFBA137, que aliou
uma observação etnográfica a um levantamento epidemiológico de práticas de risco entre
UDIs do centro velho de Salvador (a região conhecida como “Pelourinho”) (Andrade,
1996).
Este programa, diferentemente do caso de Santos, não teve problemas com a justiça
local, o que em parte depende da receptividade das autoridades judiciais locais. Também
deve-se atentar que este programa foi desenvolvido por uma instituição de tratamento da
dependência e prevenção de drogas, um dos centros de referência nacional para o assunto
drogas, o CETAD/UFBA, que conquistou amplo reconhecimento na região, como fruto de
seus 12 anos de existência (CPPC, 1989).
136
Posteriormente modificou-se o plano inicial de fazer o estudo somente na cidade de Campo Grande,
incluindo-se um pool de cidades da região centro-oeste: Corumbá, Campo Grande e Cuiabá.
137
Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas, ligado a Universidade Federal da Bahia -
CETAD/UFBA.
138
Os agentes comunitários são pessoas treinadas em prevenção a AIDS, que foram extraídas da rede de
interação social dos UDIs; os agentes de saúde são profissionais de saúde cujo perfil inclua habilidades
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 173
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
rede de usuários de drogas, distribuindo, na base de troca, seringas e um kit preventivo por
pessoa, batizado pelos usuários de kit “baque seguro” (Brites, 1996; Brites &
Domanico, 1996; Brites, Reale & Soares, 1997).
para manejar situações emergentes em campo, e ou que tenha experiência prévia de trabalho de rua ou
com usuários de drogas.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 174
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Redução de Danos, Centros de Referência e de Centros de Treinamento” (ambos
instituições específicas de drogas). No total, 3 centros de referência estavam incluídos:
PROAD/São Paulo, NEPAD/Rio de Janeiro e CETAD/Salvador. As 3 instituições são
ligadas a universidades e desenvolvem programas de atendimento a dependentes de drogas,
programas de prevenção/educação e pesquisa relacionadas a drogas.
Para a execução destes objetivos existem 6 linhas, dentro das quais podem se
encaixar os projetos:
1. Projeto Escola;
2. Centros de Referência Nacional;
3. Centros de Treinamento;
4. Projetos Comunitários;
5. Centros de Tratamento, Recuperação e Reinserção Social;
6. Projetos de Redução de Danos.
Estes últimos são entendidos como “ações de prevenção específica entre usuários de
drogas injetáveis” (Brasil, 1997). Portanto podemos aquilatar segundo este documento
ministerial, que a expressão redução de danos é usada oficialmente para identificar ações
preventivas da transmissão do HIV entre usuários de drogas injetáveis.
As críticas a este projeto indicam que ele não agradou nem representantes de
posições progressistas (pró-legalistas), nem de posições conservadoras (proibicionistas, que
clamam, por exemplo, por mais rigor nas punições ao tráfico). Considerado descuidado
(por ser excessivamente simplista ao tratar de matéria complexa) “cheio de falhas
avançando pouco na resolução dos problemas associados à questão” (MacRae, 1997, p.
329-330), ou que faz “inovações não condizentes com a nossa realidade jurídica, científica
e social” (como opinou o conservador autor da lei vigente à p. 335, Barreto, 1997).
Análise apurada é feita pela jurista Maria Lúcia Karam, que considera o tratamento
penal das drogas “incompatível com os postulados de racionalidade que devem enformar os
atos do governo em um Estado Democrático de Direito (…) ao se inserir no campo da
intimidade e da vida privada, em cujo âmbito é vedado ao Estado - e, portanto ao Direito-
penetrar”(p. 346). Portanto, “sob este ângulo, a descriminalização é um imperativo nascido
do indispensável respeito à liberdade individual”. Ainda pensando no consumo, “outra forte
razão para o rompimento com a irracional política legislativa, é que explicitando a intenção
Em São Paulo, passamos a ter desde 17 de setembro de 1997, data de sua publicação
em Diário Oficial, a primeira lei estadual do país, que versa especificamente sobre o
assunto distribuição de seringas: Lei nº 9.758 (projeto de lei nº 353/96, do deputado Paulo
Teixeira-PT). Assim é seu texto:
Consideramos, tal como seus propositores nacionais, que a adoção de práticas que
se dirigem diretamente à prevenção da AIDS entre UDIs são prioritárias em termos de
saúde pública. No entanto, entendemos que a perspectiva de redução de danos associados
aos usos de drogas, é muito mais ampla do que tem sido reconhecida pelos órgãos oficiais.
139
Conforme informações fornecidas pessoalmente por Fábio Mequita, em setembro de 1997.
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 177
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
Os danos associados aos usos de drogas lícitas e ilícitas, se estendem a outras
práticas de usos de drogas, além do uso pela via injetável. Por exemplo, o uso do crack,
cujo crescimento nos últimos anos, não mobilizou as autoridades de saúde, a instituirem
programas específicos, continua a testemunhar a omissão do estado em relação a constituir
um política de drogas. Sua presença no campo da atenção à saúde aos usuários de drogas,
através de medidas voltadas para a prevenção da AIDS, retrata ainda esta omissão. Drogas
continuam em nosso meio a ser um “problema de polícia”. Os méritos de haver “programas
de redução de danos” para usuários de drogas injetáveis, devem ser atribuídos
majoritariamente aos profissionais de saúde, organizações não-governamentais e militantes
do campo da AIDS. Neste sentido, não nos surpreende o fato de que o setor do Ministério
de Saúde que é o executor do “Projeto do Governo do Brasil, AD/ BRA/94/851 - Prevenção
ao Abuso de Drogas com ênfase especial na Prevenção do HIV entre usuários de drogas
intravenosas no Brasil”, seja o Programa Nacional de DST/ AIDS. Este projeto é fruto do
convênio firmado entre o governo brasileiro e o Programa das Nações Unidas para o
Controle Internacional de Drogas (UNDCP). Nas palavras do seu representante no Brasil, a
UNDCP tem como “seu papel fundamental no âmbito internacional, a promoção de ações
conjuntas em combate à produção, ao tráfico e ao consumo de drogas ilícitas [grifo
nosso]” (Brasil, 1997, p. 2). Não há dúvidas quanto ao papel político da UNDCP de
“harmonização das políticas nacionais com os Convênios internacionais” (p. 2), portanto de
órgão “executor” da política proibicionista internacional. É dentro deste contexto que
consideramos que a utilização da expressão redução de danos exclusivamente para as
“ações de prevenção específica entre usuários de drogas injetáveis”,
constitui um movimento de circunscrever (excessivamente), a adoção da
perspectiva de redução de danos em nosso meio. Tal redução, constitui uma
recusa de formulação de uma política de drogas, que fuja ao caráter
proibicionista, isto é, que assuma as proposições amplas (e críticas às
políticas proibicionistas hegemonicamente adotadas) contidas na redução de
danos.
Portanto, podemos dizer que em nosso meio, a política de drogas adotada pelo
Ministério de Saúde, através do Programa Nacional DST-AIDS, desde 1994, reproduz os
acordos firmados em convênios internacionais, mantendo o caráter proibicionista, e
retardando a reflexão e mudanças necessárias para reduzir os prejuízos associados aos usos
de drogas que tal posição conserva. O caminho da redução de danos, que substitui o estigma
pela solidariedade aos usuários de drogas abriu-se em nosso meio, apenas para os usuários
que se utilizam da droga pela via injetável.140
140
Nos dias 1º a 3 de outubro de 1997, por ocasião do encotro de trabalhadores em projetos de redução de
danos ocorrido em São Paulo, tivemos notícia da criação da “Associação Brasileira dos Redutores de
Danos” (conforme comunicação pessoal de Crstina Brites, coordenadora do “Projeto UDI”-APTA)
O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade 179
Diva Reale Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da USP
X. Considerações Finais
A perspectiva de redução de danos, sejam eles danos à saúde ou outros danos
sociais, trouxe à cena mundial um debate sobre o sistema droga, que anteriormente era
circunscrito ao círculo de especialistas.
Por razões que não eram inicial ou necessariamente de natureza humanitária, foram
postos em prática programas de atenção à saúde ou sócio-educativos voltados para
usuários/dependentes de drogas, que em seu conjunto constituem um quadro prático-
discursivo, um sub-sistema de controle terapêutico-assistencial e de controle informativo-
educacional, do sistema droga inimaginável há 10 anos atrás.
Falar de “uso seguro” de droga seria considerado uma heresia, pois mais do que
realçar a existência de usos não nocivos à saúde - coisa que já era objeto dos discursos de
ativistas do movimento anti-proibicionista nos primórdios de sua organização - esta
expressão admite que usos não recreativos ou dependentes (sobretudo o uso pela via
injetável) podem ser mantidos dentro de padrões de risco mais aceitáveis à saúde.
Supomos que nem mesmo aos anti-proibicionistas ocorreria defender o direito dos
dependentes de se injetarem mais seguramente, antes da articulação prático-discursiva de
redução de danos propiciada pela premência em estruturar respostas aos problemas de
saúde pública trazidos pela AIDS. Ocorreu aos próprios usuários de drogas, membros de
organizações de usuários de drogas holandesas, que montaram o primeiro programa de
troca de seringas para proteger os UDIs da disseminação da hepatite B, em 1984.
Sustentado pela lógica de saúde pública, o modelo de redução de danos busca nos
saberes clínico e epidemiológico, alcançar legitimidade e credibilidade científica para o
âmbito das práticas de atenção à saúde.
Uso controlado, uso seguro, efeitos benéficos das drogas ilícitas, ou uso médico da
maconha, foram objeto de estudos científicos pontuais, nem sempre referendados pela
comunidade científica.
Esta mudança radical de enfoque trazida pelo modelo de redução de danos, tem
sofrido os processos de assimilação pelo stablishment científico, o que se traduz muitas
vezes, pela resistência diante dos aspectos “mais radicais” do modelo.
1.a divisão das atribuições de competências entre os distintos poderes, estabelecidos por lei,
e o reflexo disto sobre as relações entre o sistema repressivo às drogas e o sistema de saúde;
Tais questões constituem em seu conjunto uma abertura para uma apreensão social
do uso de droga ilícita de caráter tolerante, constituindo um tensionamento à apreensão
social que vê todo e qualquer usuário como exclusivamente desviante (doente ou
criminoso).
Suas proposições para o campo das drogas vão mais além, ao tocar questões
complexas como as relações entre legislação e políticas proibicionistas e os danos sociais
(dentre os quais se encontram os danos à saúde) relacionados aos usos de drogas ilícitas,
que afetam não somente seus usuários como também a sociedade considerada em seu todo.
O sucesso destes programas deverá ser medido, não apenas segundo categorias do
tipo tudo ou nada, polarizadas entre não-uso (sucesso) e uso (fracasso), mas incluindo na
sua avaliação as condições em que o uso se dá, diferenciadas segundo uma hierarquia que
leve em consideração critérios de “tolerabilidade”, calcados, em conhecimentos, já
existentes ou a serem adquiridos, advindos de uma clínica liberta de preconceitos
dissimulados, e que reflitam decisões que aliem respeito à liberdade individual e não
percam de vista a “pragmaticidade” de sua realização.
Uma sociedade que busque dar vida a um projeto onde os danos sociais associados
aos usos de drogas sejam minimizados ao máximo deverá abandonar os mecanismos ainda
hoje atuantes, que se traduzem pela intolerância, “caça às bruxas”, segundo os quais ao bem
social é contraposto o mal da droga. Se, como diz o filósofo, in médiu virtus, a tolerância e
solidariedade que integrem as diferenças e os diferentes, numa busca do bem comum,
poderá ser uma das perspectivas despontadas pelo caminho da redução de danos.
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