Como Pessanha aderiu ao escapismo epicureo e ao ativismo marxista? Ambos se casam ao rechaçar o transcendente e a teoria e dão as mãos para erigir a natureza e a história como valores supremos, os quais serão buscados abdicando da inteligência pessoal e se entregando às crendices das ilusões coletivas. O epicurismo é materialialista à nível individual, e o marxismo numa escala social. A filosofia de Epicuro é na teoria um ceticismo e na pratica uma auto hipnose beocia. Os grupos de ética progressistas a entendem como abdicação da consciência pessoal consagrada pela filosofia tradicional e religião cristã. Imperialistas pagãos e gnósticos são os antepassados do movimento atualmente representado por Pessanha. A igreja, pretendendo fundar um império, caiu na armadilha da restauração romana, alimentando o monstro imperial que viria a devora-la. A restauração da unidade imperial romana foi a tônica da história política do ocidente. Os impérios coloniais esmiuçam a cristandade, a qual será amassada pelo império laico americano. Todas as religiões passam a existir como seitas populares autorizadas pelo Estado, o qual possui sua religião cósmica, essa sim difundida amplamente como fator unificante.
CAP.7 MATERIALISMO ESPIRITUAL
Em todas as grandes tradições espirituais, encontra-se alguma divisão ternaria da realidade. Mircea Eliade constatou a ausência da eternidade, o desinteresse de Deus pelo homem (Deus otiosus) nas pequenas culturas e o seu efeito: a multiplicação dos deuses. Desaparecendo a divindade suprema, emergem as divindades subalternas, o espaço e o tempo. A DIVINIZAÇÃO DO ESPAÇO Nicolau de cusa com a criação da douta ignorância transfere a inapreensibilidade do transcendente para a natureza. Os raciocínios matemáticos tornam o espaço infinito. A captação das contradições pela intuição é sequestrada pelas ciências que a direcionam a captação do inapreensível cosmos. O conhecimento da natureza é elevado ao estatuto de mistério. Não se percebeu que indefinição cósmica é diferente de infinitude cósmica. De Cusa, todavia, está mais consoante a cosmovisão cristã indeterminista do que consoante aos desvarios mecanicistas. Nicolau acertou na cosmologia, mas errou na gnoseologia: intuição intelectual não é produtiva no campo das aparências cambiantes, dos instáveis fenômenos naturais. A douta ignorância prometia dar-nos uma visão mais realista da posição que ocupamos no cosmos. No entanto, ela nos cercou de ilusões matemáticas impedidoras do conhecimento objetivo. O pior vem se apostares no conhecimento objetivo, pois serás desmoralizado por fantasiar o conhecimento. A ciência natural arroga-se legislar sobre a validade dos demais conhecimentos embora não domine a si mesma. Aristóteles já havia alertado para o uso indiscriminado do método matemático. Seus efeitos geometricista e formalista sobre a religião são deploráveis. Foi o fanatismo purista, o utopismo reformista, a regulamentação moral que propiciou o individualismo sentimentalista protestante e as pseudomísticas, como o ocultismo e o espiritismo. A falsa ciência desacreditou a autentica. A história da ciência passou a ser vista como sucessão de paradigmas. Abriu-se a avenida para o ressurgimento dos velhos irracionalismos – pragmatismo, relativismo, retórica e epicurismo. A DIVINIZAÇÃO DO TEMPO Do desejo de compreender as escrituras, nasceu o historicismo e o progressismo. O amor aos documentos nasceu num contexto nacionalista e esteticista. O historicismo nasceu quando Shaftesbury, Leibniz e Vico declararam que o homem só conhece o que ele faz, isto é, a história. A antropologia desprendeu-se do coisismo fixista grego, que enxergava o homem de modo esquemático, e passou a destacar as influencias cósmicas e socias. A crítica textual ao mesmo tempo que colaborou tecnicamente com a fundação da ciência histórica, lançou dúvida cética sobre todo o passado. Católicos e protestantes bem como capitalistas e socialistas enveredaram disputas no campo historiográfico. Tais disputas, almejando demonstrar seus ‘partidos’ como o cume do desenvolvimento histórico, consagrou o viés progressista. O sentido da vida foi reduzido a sentido da história. Iluministas e Hegel transformaram as sociedades nacionais em sujeitos históricos. A sociedade, tradicionalmente foi compreendida como inclinação humana, não como realidade per si concreta e viva, e sim como pano de fundo dos sujeitos ativos. Os philosophes não mais concordavam como sendo a natureza humana algo dado e determinado, mas algo maleável. Assim, o poder ativo e moldante foi outorgado a sociedade. Eis a origem do conceito de vontade geral dos revolucionários de 1789, apropriado por Hegel para cunhar a nação. Nenhuma narrativa prevaleceu. Niilismo e psicanálise atacaram com a ausência de sentido o positivismo, o marxismo e a religião. Instinto e eros eram os motores e metas da vida. O partido niilista cresceu a tal ponto que fez duas guerras mundiais obrigando os antigos inimigos a pactuarem: nações liberais e comunistas. Abandone-se o propósito imanente e restará crise existencial. As democracias divinizam a história. Creem no progresso das instituições sociais, políticas e econômicas. E o sentido da vida consiste em colaborar neste avanço. A história é doadora de sentido, eis a divinização do tempo.
CAP.8 A REVOLUÇÃO GNÓSTICA E CAP.9 A RELIGIÃO DO IMPÉRIO
Gnosticismo é nostalgia da religiosidade greco-romana em oposição ao cristianismo emergente, o qual inova radicalmente ao separar adesão de fé da estrutura social. A organização político- social não é mais uma verdade sagrada. A emancipação da consciência individual frente as crenças coletivas antecipada por Sócrates é difundida pelo cristianismo. O estado deixa de ser intermediador da relação com o Divino. Ele foi dessacralizado, e a alma foi consagrada como habitação Divina. A liberdade interior nasceu com a humanização de Deus e a secundarização dos interesses particulares e idealismos sociais na religião. A disciplina, a espiritualidade e o silêncio dos cristãos, principalmente dos monges, assustavam a aristocracia militar e letrada. Cerimonias, virtudes cívicas e discursos elaborados inexistiam na fé emergente. Sendo a ênfase cristã na vida da alma individual para com Deus, os gnósticos empenham-se em reerguer o culto a natureza e ao estado dentro da sociedade cristã. Roma cresceu organicamente comandada por civis e militares, ambos submissos a mesma tradição moral e cultual. Essa unidade cultural e organizacional inexistia na Europa medieval. Há ainda o fator do ressentimento: enxertar instituições do império pagão na religião que abomina o culto ao estado e a natureza. A igreja não quis destruir o império, mas não podia submeter-se a ele; não quis restaurá-lo, mas não podia expandir-se sem ele. Por causas externas, a igreja lança-se na organização do mundo, e mediante adaptações deformantes, é feita religião pública, religião do império. A vocação interiorizante cristã sofreu abalos com o processo de estruturação temporal. A fé cristã não nasceu para produzir códigos civis. Portanto, após constatar o desinteresse do império bizantino em assumir as responsabilidades civis no ocidente barbarizado, a Igreja subdivide a autoridade que acumulara. A nobreza barbara é sagrada autoridade nos assuntos temporais. A síntese romana e depois cristã das castas sacerdotal e real é desfeita. Desse momento até Napoleão, haverá ostensivo conflito entre sacerdócio e realeza. A casta guerreira relutava em estudar e rezar, bem como temiam e desprezavam o clero, respectivamente por superstição e soberba. Acima de tudo, os governantes públicos não se contentavam em ser legitimados por outro poder superior, a Igreja. Além da oposição de castas, a base econômica é também fator de inadaptação e conflito. O feudalismo antigo funcionava com estreita vinculação à cidade, à cultura e a política. O feudalismo medieval é majoritariamente rural e bélico. A unidade política e administrativa era absolutamente inviável com os nobres espalhados e encastelados. Não se esqueça da escravidão, a qual banida pela Igreja desagradava a aristocracia feudal. Carlos Magno foi um episódio único e razoavelmente positivo de harmonia do braço armado com o braço espiritual. Razoavelmente pois no exercício da autoridade e nos hábitos pessoais, Carlos muitas vezes distanciava-se dos princípios cristãos. Felipe, o belo, na direção inversa, foi a mais destacada antecipação de monarca arrogante auto divinizado, figura que se multiplicaria na modernidade. Os repetidos fracassos de unificar o ocidente numa aliança entre braço espiritual e secular atestam a inadaptação cristã a missão reguladora. E tal fracasso engendrou efeitos nefastos para o culto, moral e doutrina da própria Igreja. Leviatã, o espírito histórico jurídico, fez-se presente dentro da Igreja. Mas a outra cabeça do paganismo, Beemot, o espírito naturalista, permaneceu vivo nas seitas dissidentes. A história dos últimos séculos pode ser contada como uma série de embates entre os dois braços da Cruz. Abandonando-se o eixo central vertical DEUS-HOMEM, os dois braços perdem o fiel da balança, e as nações caem na alternância entre rebelião autolátrica e submissão desesperada à natureza, entre triunfalismo cientificista e temor catastrofista. A imensa transformação que inaugura a era moderna pode ser resumida na mudança do projeto Europeu, de domestico para colonial. Nesse redirecionamento, multiplica-se os concorrentes imperiais, altera-se a relação entre realeza e clero, diversifica-se as culturas nacionais rompendo a unidade cristã. Ingleses, franceses, portugueses e espanhóis largam na frente nas campanhas colonizadoras em prol da coroa e da fé. Cansadas de lutar contra o império, decidiram cada qual fazer seu próprio império com uma religião ditada pelo monarca, usurpador das chaves papais. O antigo projeto imperial – unificar o mundo sob o estandarte cristão – é reinterpretado segundo a ótica da razão de estado. Numa inversão simétrica da expansão cristã nos primeiros séculos, feita à custa do sangue dos mártires, os cristianismos imperiais inaugurarão uma modalidade de sacrifício comproporcionada à mentalidade dos novos tempos: o martírio dos outros. A epopeia da cristianização submergiu no sangue de inocentes. Augusto Comte e Hegel propuseram, para preencher o vazio criado pela rejeição do cristianismo nacionalista e burocrático, a religião da humanidade, cujo Deus é o Estado servido pelas massas conforme um calendário de ritos festivos aos grandes heróis sociais e aos feitos científicos. Napoleão tentou, mas falhou em instaurar esta religião civil, a qual aliena os cidadãos no socioeconômico. Porém, a ideia de império é decisiva e contínua, capaz de imigrar atravessando oceanos. É o fantasma de um morto ilustre que não quer morrer e insiste em voltar à vida na obsessão inconsciente dos vivos. Assim como nas metamorfoses anteriores o império fundiu-se com movimentos antagônicos, cristianismo e nação, agora ela plasmava-se a burguesia, a república, a maçonaria e ao protestantismo...