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ORDEM SENHORIAL E CRESCIMENTO FEUDAL A REFERENCIA 0 ANO MIL pode serve para marcat 0 momento em que se afirma um movimento de desenvolvimento, agora bem visivel e no mais preparado sub- terraneamente, associado a um processo de reorganizacéo social cujas bases foram, é verdade, langadas anteriormente, mas cujos resultados se manifestam sobfetudo a partir do século xi. E verdade que, como jé se disse, ninguém pretende que 0 ano mil tenha sido, por si mesmo, um limiar decisivo entre conturbagdes do “século de ferro" e 0 eld da Idade Média Central. Se o ano mil é evocado aqui, é para desig- nar um conjunto de processos que se estendem no decorrer dos séculos X e XI. Mesmo entendido assim, 0 ano mil foi, recentemente, objeto de um debate opon- do.os medievalistas que, na seqiincia de Georges Duby. associam esse periodo a uma mutagio social de grande alcance e, por vezes, convulsiva, ¢ aqueles que, aler- tando para as deformagées de perspectiva devidas a uma documentagao repentina- mente mais abundante, faziam prevalecer a continuidade para além da mudanga de milénio (Dominique Barthélemy). Essa polémica nio foi isenta de confusdo, na medida em que estava associada ao velho debate sobre os terrores do ano mil, que supostamente haviam atormentado as populagées com um panico medonho do fim do mundo no momento do milénio do nascimento (ou da Paixdo) de Cristo. Na segunda parte voltaremos ao milenarismo, mas jd se pode sublinhar que ‘tema dos terrores do ano mil é essencialmente um mito historiografico forjado no século \vil, aperfeigoado pelo Hluminismo para melhor encobrir a Idade Média em um véu de obscurantismo poeirento e de superstigdes ridiculas, e, finalmente, retomado pela verve romantica. Denunciado pela erudigao positivis- ta como uma invengio sem fundamento documental (Ferdinand Lot), a idéia de uma explosio escatoldgica em torno do ano mil foi, entretanto, reabilitada e com- binada 3s aquisigdes da historiografia recente, especialmente por David Landes. No geral. existem atualmente trés teses em vigor. Alguns notam, por volta do ano 98 Jevimue Baschet mil, sérios indicios de uma espera particularmente intensa do fim dos tempos e interpretam-na como uma reagdo popular diante da violencia senhorial e das con- vulsies da mutagio feudal. Para outros, os textos ndo permitem fundamentar essa visio renovada pela histéria social de um medo do ano mil; mas ha, de fato, um momento de tenses sociais exacerbadas pela instauragéo da nova ordem feudal. Outros, enfim, consideram que nao se passou nada de particular em torno do ano mil, nem medos escatoligicos, nem mutagio feudal. Admitir-se-d, aqui. que se alguns documentos deixam transparecer marcas de inquictagdes (e de esperangas) milenaristas no fim do século X e no inicio do século MI, notadamente sob a pluma do abade Abbon de Fleury, tais sentimentos, {que por vezes tomam a forma de explosdes de impaciéncia, enconttam-se ao logo de toda a Idade Média e. sem dvida, nao sdo mais intensos em torno do ano mil do que em pleno século xin. De outro lado, as teses "mutacionistas” artiscam- se, por vezes, a cait no excesso e & preciso entender que a dinamica de afirma- 40 do feudalismo estende-se ao longo dos séculos, desde a época carolingia, ao menos, até o século xill. Em todo caso, uma fase aguda, e muitas vezes confli- tuosa, de profunda reestruturago da sociedade pode ser situada no século (ou pouco mais de um século) que se estende em torno do ano mil, mesmo se ela intervém em datas & com ritmos diferentes segundo as regides. Enfim, 0 mais importante, se se faz questio absoluta de evocar 0 ano mil, consiste em inverter 4 perspectiva tradicional ¢ a transformar o sinistro simbolo de obscurantismo medieval em uma etapa no surgimento € na afirmagao do Ocidente cristév. No mais, a consciéncia de uma nova era aparece em alguns textos medievais, dos quais 0 mais célebre se lé nas Histérias que o monge de Cluny Raul Glaber redi- ge entre 1030 ¢ 1045, tendo por objetivo celebrar os eventos notaveis que mar- caram o milénio do nascimento e da morte do Salvador: [...] como se aproximava o terceiro ano que se seguiu a0 ano mil. v se em quase toda a terra, mas sobretudo na Italia ¢ na Gilia, renovarem-se as basilicas das igtejas; embora a maior parte, muito bem construida, no tivesse nenhuma necessidade disso, uma emulagdo levava cada comunidade cristd a ter uma igre- ja mais suntuosa do que as outras, Era como se o priprio mundo Fosse sacudi- do e, despindo-se de sua vetuster,tenha-se coberto por toda parte com um ves- tido branco de igrejas, Eintio, quase todas as igrejas das sedes episcopais, os santuirios monssticos dedicados aos diversos santos e mesino pequends orats- rios das aldeias foram reconstruidos ainda mais bonites pelos fi Este texto indica de mado notavel que a reconsteugi das igrejas mais belas © mesmo suntuosas ndo se deve a nenhuma necessidade material, mas antes 2 Vonnecto rca 9 emulagio dos grupos e das instituigdes, preocupados em manifestar, pela bele- 2a dos edificios dedicados a Deus. 0 ardor com 0 qual eles se esforcam para aproximar-se dele. Raramente colocou-se em evidéncia com tanta clarera a fun- gio social da arquitetura qu titui, para as comunidades locais, um sinal de reconhecimento, uma garantia de unidade interna, ao mesmo tempo que um meio de se medir com seus vizinhos ¢, se possivel, se afirmar como superior a eles. Longe de ser caracteristica de uma sociedade em declinio, tal ligica sugere, ao contrério, que uma parte cres- cente da produgio € subtraida do consumo para ser cousumida em uma compe- tigo sagrada generalizada, Raul Glaber nos fala de um mundo novo, na aurora do segundo milénio, nao sem um notével toque de otimismo. A célebre metafo- ra do “vestido branco de igrejas” o diz ainda melhor, é que ela se ora de uma conotagdo batismal: do mesmo modo que o batismo & uma regeneracao, um renascimento pelo qual o fil se desfaz do pecado e do antigo homem que esta- va nele, para ser, uma vez purificado, revestido de uma tunica branca, a Europa renasce entio e, desvencilhando-se do que havia de antigo nela, abre-se aos horizontes de uma histéria nova. Longe de afundar nas trevas do obscurantis- mo, 0 Ucidente do ano mil faz-se luminoso e inaugura um novo comego. intimamente ligada 8 sua eficiicia sagrada, cons- O DESENVOLVIMENTO DOS CAMPOS E DA POPULACAO (SECULO XI AO XIII) Indicaremos, de inicio, os dados relativos aos diferentes aspectos do desenvol- vimento ocidental, antes de nos interrogarmos sobre a articulagdo desses dife- rentes fatores. A pressio demogrdfica Como seria de esperar. é dificil oferecer dados demograticas confidveis para a Idade Média, pois nao existiram na época recenseamentos regulares, nem regis- tros de nascimentos e de mortes. Os pardmetros sao quase inexistentes, com exce- a0 de alguns recenseamentos notaveis, realizados com finalidades administrati- vas e, sobretudo, fiscais, como o Domesday Book, realizado na Inglaterra em 1086, pouco depois de sua conquista pelos normandos,¢ tdo extraordinario aos olhos de seus contemporineos que eles Ihe deram © nome de Juizo Final. Com base em Fas seguintes indi estimativas ¢ aproximag 100 Jeréme Baschet Entre 0 século Xt ¢ 0 inicio do século XIV, a populagao da Inglaterra teria pasado de 15 para 3,7 milhdes de habitants: a do dominio italiano, de 5 para 10 milhdes: ada Franga, de 6 para 15 milhées (confirmando o peso ja dominante da Galia no final da Antiguidade). Esses dados so suficientes para indicar uma tendéncia clara; em trés séculos (de fato, essencialmente entre 1050 e 1250), a populagao da Europa Ocidental dobra, ou mesmo triplica em certas regides. Tal crescimen- to demografico jamais havia sido alcangado na Europa desde a revolugao neoliti- ca a invengao da agricultura, € ndo seri mais observada até a Revolugio Indus- trial. Trata-se, claramente, de um fato maior da historia ocidental. Esse resultado € obtido pela conjungao de uma alta da fecundidade (que aumenta de quatro filhos por casal para cinco ou seis, beneficiando-se, em pat- ticular, do aumento do recurso as amas-de-leite, o que suprime a interrupcao da fecundidade durante o aleitamento) e de uma regressdo das causas de mortalida- de. Insistir-se-d, quanto a isso, sobre 0 recuo dos grandes periodos de fome. Muito freqiientes durante a Alta Idade Média (em média um a cada doze anos), eles cedem lugar, para tentar escapar a uma mortalidade macica, inevitével ape- sar de tudo, 4 procura de alimentos de substituigao (paes fabricados a base de gros de uva ou de outras substincias misturadas a um pouco de farinha, raizes ou ervas), ao consumo de carnes normalmente julgadas impuras e impréprias & alimentagao (cies, gatos ratos, serpentes ou carcayas de animais), e também, coino iltimo recurso, ao indizivel: a antropofagia, pelo consumo de cadaveres, ou até pela morte de seu prdximo, um fendmeno que as fontes dificilmente evocam, mas que é regularmente assinalado durante a Alta [dade Média (Pierre Bonnassie). ‘Ao longo do periodo seguinte, as grandes fomes ainda ocorrem (especialmente em 1005-06 — dltima data para a qual uma fonte, no caso Raul Glaber, mencio- na o canibalismo para sobrevivéncia — e, depois, em 1195-97 ¢ 1224-26), mas sua freqiéneia diminui claramente, a ponto de permitir uma longa pausa de um século ¢ meio sem que a fome se faga sentir de maneita generalizada (ela conti- Aus, entretanto, a manilestar-se de maneira local, em virtude de fenémenos cli- maticos pontuais, ou sob a forma de uma penuiria mais breve. que os alimentos de substituigo permitem superar). Disso decorre uma alta muito sensivel da expectativa de vida média das populagées ocidentais. Mesmo se a aplicago dessa nogao as épocas antigas ndo ¢ desprovida de dificuldade, a comparagao & significativa: enquanto ela ndo ultrapassava vinte anos no século i, apogeu de Roma antiga, ela salta para 35 anos por volta de 1300. A “tenebrosa” dade Média realiza quase o dobro que as glirias do classicismo: onde esta a barbarie e onde estd a civilizagao? A cnisgtoreenae 101 Os progressos agricolas E impossivel preservar (ou quase) da fome uma populacao reduplicada sem uma forte alta da producao agricola. © desmatamento ¢ a ampliagao clas superficie cultivadas (geralmente denominadas “essarts”, ou seja, clareiras) sio 0 primeira meio desse desenvolvimento agricola. Por volta do ano mil, a Europa do Norte € ainda uma zona selagem de vastas Mlorestas pontuadas por encraves humani- zados; no mundo atlintico, as aridas terras arbustivas dominam, do mesmo modo que, nas regides mediterrineas, dominam os terrenos pantanosos, pedre- gosos ou excessivamente escarpados. Por toda parte, o Ocidente & caracteriza- do por uma natureza rebelde ou apenas parcialmente domada, por culturas iti nerantes e incapazes de ultrapassar rendimentos derrisérios, apesar dos esforcos da Alta Idade Média, e por um povoamento frégil e instavel. Trés séculos depois, a paisagem européia € radicalmente diferente: estabelece-se a rede de aldeias, tal como ela ird subsistit, no essencial, até 0 século NIN, e a relagio quantitativa entre as zonas incultas ou de matas (o saltus) € 0 territério humanizado (o ager) mais ou menos inverteu-se. Em um primeiro tempo, as aldeias estendem pro- gressivamente seu dominio cultivado (sobretudo no século XI, depois, novos estabelecimentos, aldeos ou mondsticos, multiplicam-se no coragdo das zonas anteriormente virgens (sobretudo no século it). Entre estes tiltimos, 0s monas- térios cistercienses. que uma ética de austeridade leva a se implantarem nos lugares mais retirados. sio particularmente atentos 2 melhoria técnica da agri- cultura e do artesanato, Enfim., a ampliagio das superficies cultiva pela exploracao de terrenos julgados anteriormente pouco propicios (encostas escarpadas, margens de cursos d'igua. zonas pantanosas agora drenadas) Segundo Marc Bloch, a Europa conhece entéo “o mais intenso aumento das superficies cultivadas desde os tempos pré-historicos”, quer dizer, desde a pro pria invengao da agricultura, Mas esse fendmeno nio teria sido suficiente para nutrir uma Europa mais numerosa. Era necessirio, ainda, obter uma alta dos rendimentos das culturas cerealiferas. que fornecem a base da alimentacdo, especialmente pio € min- gaus. Se se tenta uma estimativa média, que nao tem sentido na medida em que uma das caracteristicas desse periodo é a extrema irregularidade dos rendimen- tos, submetidos a inconstancias climaticas. sao obtidos, apesar de tudo, dados significativos: passa-se. com efeito, de dois (ou 2.5) grins colhidos para cada gro plantado. durante a Alta Idade Média, para quatro ou cinco por um, por volta de 1200 (e até seis ou oite por um, nos solos mais férteis, como, por exem- plo, na Picardia). Dentre todos os fatores que se combinam para obter 0 dificil aumento dos rendimentos ocidentais, deve-se contar a densidade crescente das 102 Jeime Baschet semeaduras, permitida especialmente por um melhor uso de fertilizantes, seres humanos e, sobretudo, animais. Era preciso, ainda, escolher judiciosamente os cereais mais adaptados as caracteristicas de cada regido: trigos brancos e fru- mento, mais exigentes e que cansam mais 0 solo. mas que sao mais faceis de tri- turar e produzem uma farinha mais fina e de melhor conservacao; centeio, de menor rendimento, mas que & mais seguro e tolera solos mais pobres, embora seja vitima de parasitas. como 0 esporao do centeio, cogumelo que provoca as epidemias do “fogo de santo Anténio”, uma doenga que aterroriza as populagdes: a cevada, que se presta pouco & panificagéo e que acompanha principalmente 0s progressos do pastoreiv: a aveia, bom cereal de primavera. menos exigente + mais produtivo que o frumento, apreciado pelos cavalos e que serve também, antes do surgimento do maite no século xil, para a fabricac3o da cerveja, ou da cer- veja sem malte, bebida bem atestada desde o século vill na Europa do Noroeste: sem falar da espelta ou de uma graminea como o milhete, freqiente no Sul. Mas a solugdo mais eficaz é a de associar cereais diferentes (o méteil, uma mis- tura de graos de trigo e de centeio), o que permite obter equilibrio entre a busca de rendimentos superiores, especialmente com o frumento. e a necessidade de garantir uma produgdo minima diante dos riscos climéticos, recorrendo-se a espécies menos produtivas, mas mais resistentes. Apenas o tempo longo de uma busca paciente e de uma experiéncia acumulada podia garantir a obtencao de tal equilibrio. Se os agrénomos antigos jé tinham consciéncia da necessidade de deixar repousar periodicamente o solo, a Alta Idade Média resolveu esse problema pelo cardter extensivo e largamente itinerante de seus cultivos. Entretanto, a partir do século x1, o desenvolvimento da produgao e 0 uso mais intensivo do solo obrigam a procurar solugdes novas. E verdade que ainda se recorre a antigos sistemas, como um repouso de dez anos ou uma utilizagao em dois de cada cinco anos. Mas a opgao mais freqiiente consiste em cultivar um ano em cada dois anos, em alter- nancia com 0 pousio, que serve ao apascentamento dos animais. Depois, a partir do século Xt, 0 rodizio trienal (com uma parte em pousio, uma com cereais de inverno, e uma com cercuis de verdo), j4 conhecido anteriormente, tende a gene- ralizar-se, sobretudo no Sul, mas também no Norte. Mais exigente para os solos e menos favordvel ao pastoreio, esse sistema otimiza a producao cerealifera, ji que permite duas colheitas por ano, equilibrando, assim, os riscos climaticos. No século Nil, ele nao supée ainda uma rotatividade perfeitamente regular, e é somen- te a partir do século Xitl que essa op¢ao leva a definigao de zonas de rodizio e a uma organizagao coletiva que se baseia no acordo da comunidade alded. Intervém também uma melhor preparagdo do solo: generalizagao da pritica das trés etapas sucessivas, capinar, revolver os torres ¢ arar. Mas o essencial é, Acrvizagda reeDAL 103 seguramente, 0 progresso dus técnicas de cultivo, com a passagem do arado roma- no para a charrua (uma invengao da Alta Idade Média, provavelmente de origem eslava, mas cuja difusio intervém sobretudo a partir dos séculos \ e Ni). O primei- ro, que penetra fraca e dificilmente o solo, espalhando a terra em partes iguais de cada lado, ¢ adaptado aos solos maledveis e leves do mundo mediterraneo, enquan- to a segunda permite explorar os solos pesados das planicies da Europa do Norte, obtendo gragas a relha (uma limina de metal que abre o solo e facilita a penetra- 20 da aiveca) cultivos mais profundos e mais eficazes. Mais ainda do que as rodas que. por vezes, sustentam o equipamento, a charrua supie o acoplamento de um aparador, em madeira ou metal, que despeja a terra de um sé lado ¢ longe (Figura 27, na p. 256). Assim, em vez de acumular os monticulos que elevam a terra dos dois lados da passagem do arado, o aparador compensa a fenda de cada sulco pela terra retirada do sulco vizinho e reconstitui, dessa forma, um solo mais plano e uni forme, que o destorroamento fragmenta e prepara mais facilmente. Mas esse progresso s6 tem verdadeiramente sentido na medida em que ele se integra em um novo sistema técnico, igualmente caracterizado pela melhoria da tracdo animal. Os bois. tradicionalmente utilizados, cedem progressivamen- te lugar aos cavalos, mais fortes e mais enérgicos, capazes de puxar um apare- tho mais pesado e de desentalar uma charrua encalacrada em um solo denso, Para isso, é preciso desenvolver um novo tipo de atrelagem, ndo mais pelo gar- rote, mas que. sem diivida desde o fim do século x1, toma a forma da colhera de espdduas, rigida e recheada com palha, que faz concentrar 0 esforgo de trag3o exatamente onde a poténcia do animal & maior. Enquanto para as atrelagens bovinas o desenvolvimento de um jugo frontal constitui uma melhoria importan- te. a atrelagem em fila dos cavalos mostra-se ainda mais eficaz. Acrescentam-se, igualmente. entre os séculos IX e XI, as ferraduras dos animais. O uso dos cava- los de cultivo é atestado, pela primeira vez, no século 1x, na Noruega. e parece ter. desde a segunda metade do século Xt, larga difusdo. O recurso ao cavalo tem ainda uma outra vantagem, de inicio quase involuntiria, mas que se revela de grande influéncia. Com efeito, fora da época dos cultivos, o cavalo presta gran- des servicos para o transporte de pessoas ¢ de mercadorias, favorecendo espe- cialmente a vinda dos camponeses a cidade e a comercializagao de seus produ- tos. © desenvolvimento do cavalo ¢, entdo, particularmente importante, nio somente porque, associado 3 charrua com aparador, ele permite a exploracao de solos pesados, férteis, mas dificeis de trabalhar, mas também em virtude de seus efeitos sobre as relacdes entre cidades e campos (Alain Guerreau). O desenvolvimento das zonas rurais é, portanto, também aquele da criagao de cavalos, de bovinos (para a atrelagem, bem como para a carne e 0 leite), de ovinos (para 0 couro € a Ia, assim como para a carne; mas 0 seu sucesso seri 104 Jerime Baschet decisivo especialmente a partir do século xiv, a medida do desenvolvimento da produgao téxtil), e, enfim. de porcos, tao fundamentais na alimentagao medie- val e tao bem adaptados ao equilibrio dos campos, pois sao aproveitadas as zonas incultas e. em particular. as florestas para nutri-los (com glandes). Quanto aos outros animais, nota-se um contraste entre as zonas meridionais, onde se man- tém um pastoreio extensivo, com recurso macigo cada vez mais organizado & transumancia na Itélia ¢ na Espanha, ¢ as zonas de forte producdo cerealifera, onde a criagdo tende a se concentrar seja nas terras reservadas a pastagem, seja 1nos pousios (onde ela melhora o solo) e nas zonas de mata. Pode-se estimar que, ao longo do século x11, 0 ntimero de cabegas de gado dobra no Ocidente. Mas -atinge-se entao, e principalmente a partir de meados do século xilt, um equili- brio cada vez mais Fragil, pois 0 aumento das superficies cultivadas restringe os espagos necessdrios a alimentago do gado. A contradigao entre cultivos € pas- toreio é tal que toda modificayao da relagao entre ager e saltus pode alterar as proporgdes das partes vegetal e animal da alimentagao humana. Finalmente, um complemento notavel ¢ trazido pelas culturas nao cereali- feras, lentilhas ou ervilhas semeadas entre os farindceos, ou ainda legumes e drvores frutiferas. A principal dentre elas é, seguramente, a vinha, importante tanto pelo aporte nutritive como pelo valor simbslico (eucaristico) do vinho, que € tdo grande que a cristandade nao pode viver sem uvas. E por isso que a vinha, produto exigente em cuidados e competéncias, que impde um comprometimen- to duradouro do solo ¢ confere as parcelas um carater especifico, é cultivada em toda a Europa, inclusive na Escandindvia. Quanto aos procedimentos medievais, de vinificago, eles produzem uma bebida muito diferente do vinho atual, por vezes perfumado com especiarias e sempre fracamente alcodlico, mas que ense- ja um grande consumo (até dois litros diarios por pessoa). As demais transformagées técnicas Nao ha nenhuma verdadeira invengdo técnica da Idade Média, e, no entanto — ¢ isso ¢ decisivo —, ocorre entdo uma difusdo das técnicas jd conhecidas anterior- mente, mas que haviam permanecido. na maior parte do tempo, sem utilidade pritica. Na Idade Média, o progresso realiza-se, portanto, menos por acimulo de inovagdes do que pelo estabelecimento, em um contexto transformado, de um ‘sistema técnico” nove (Bertrand Gille). A estrutura social teve nisso um papel determinante, pois, se as técnicas conhecidas na Antiguidade eram pouco utiliza das entao, foi em parte porque a escravidio permitia dispor de uma abundante fonte de energia humana, pouco custosa ¢ facilmente utilizdvel. Era, entdo, menos A civiaagte rrepan 105 necessério desenvolver o uso da forga animal ou niecdnica. Em sentido contrario, © declinio da escravidio tora mais urgente 0 recurso a energias alternativas e constitui, entdo, um fator notavel do desenvolvimento técnico medieval. O moi- ho dgua €, sem diivida, o melhor simbolo disso. Conhecido desde o século antes de Cristo, pois Vitruvio descreve perfeitamente sua técnica, ele permanece, no Império Romano, como uma curiosidade intelectual. sem utilidade pritica A realidade continua sendo a utilizagao do moinho movido no brago por escravos (ou, eventualmente, 0 moinho movido a cavalos). O recurso ao moinho d’jgua acompanha de muito perto a curva do decl do no Baixo Império, um pouco mais freqiientemente nos séculos Ville IX, espe- cialmente nos grandes dominios, enquanto a difusdo se torna realmente significa- tiva entre meados do século x € 0 século Xt, a tal ponto que 0 Domesday Book indica a existéncia de, em média, um moinho para cada trés aldeias. Depois, 0 século Nill € © momento da generalizago. Em todos os lugares, utiliza-se a forca hidraulica para moer as farinhas e para prensar os Gleos. O moinho d‘igua é, dora- ‘ante. parte integrante da paisagem rural ocidental, mas também das cidades (Toulouse. por exemplo. conta entao com cerca de quarenta moinhos). Igualmente importante é 0 desenvolvimento de uma metalurgia artesanal. E uma novidade em relagao a Antiguidade romana que, centrada sobre um mundo mediterranico caracterizado pela escassez do ferro e da madeira e pela debilidade dos cursos de agua, fazia apenas um fraco uso produtivo dos metais. Com o deslocamento do centro de gravidade europeu para o Norte, as potencia- lidades naturais aumentam e constata-se um claro desenvolvimento da metalur- gia a partir de meados do século x, sobretudo nos Pireneus, na regio alema e no Norte da Franga. As minas de onde é extraido o minério de Ferro multiplicam-se. como também a procura do cardo mineral, destinado a alimentar as forjas. Na maior parte do tempo, estas sdo instaladas nas regides de matas (pois a madeira continua sendo o combustivel principal) e beneficiam-se dos cursos de gua io da escravidio: nds 0 vernos atesta- abundantes (cuja forca ¢ utilizada para mover os malhos ¢ os foles). Decorre dui uma rapida muliplicagio, sobretudo nas regides produtivas, das ferramentas em ferro, machados para o desmatamento, enxadas ¢ foices, pecas metilicas pura os arados, ferraduras Go de espadas e armas em geral. O dominio das técnicas metalirgicas aumenta continuamente, em particular nas forjas que os monges cistercienses instalam em seus dominios ao longo do século it. Considerando a importancia cada vez mais crucial desses produtos, o forjador tomna-se, muitas vezes em igualdade com o padre. 0 primeiro personagem da aldeia. O moleiro nao tem uma posigio menos eminente. mas. sendo homem ligado ao senhot, permanece suspeito aos olhos dos aldedos. Mais genericamente,« crescimento dos campos traduz-se em 08 cavalos e também, evidentemente. uma alta da produ- 106 Jerime Buschet um desenvolvimento do artesanato rural que, ultrapassando o simples quadro da produgao destinada ao grupo Familiar, é uma criagio medieval. Além da forja do moinho, aparecem nas aldeias dos séculos XI € NII oficinas de trabalho com a pedra e a madeira, vidrarias. fornos de cerimica, cervejarias e fornos de pio. Quanto a industria téxtil, ela é sobretudo urbana, mas também, em parte, rural, as primeiras operagdes do trabalho com a la, até a fabricagao de fios, sao feitas em geral na aldeia (especialmente gragas ao uso da roca, a partir do século xi), a menos que os produtos saiam da oficina senhorial ou dos monastérios cister- cienses, que fizeram disso uma especialidade. O conjunto dessas produgies aldeas nao é destinado unicamente ao consumo intemo ¢ é parcialmente vendi- ‘do no mercado dos burgos préximos. No total, estima-se em cerca de 10% ou 15% a propor¢ao dos artesdos rurais nas aldeias (estando subentendido que a maior parte continua sendo camponesa av mesmo tempo). Finalmente, para terminar esse panorama dos componentes do desenvohi- mento rural, acrescentaremos um tltimo fator, no qual certamente os homens nao tém nenhum papel ativo, mesmo se eles aproveitam de seus efeitos benéficos. A histéria do clima, que adquiriu grande importancia ao longo do ultimo meio século, péde demonstrar a existéncia de variagées climaticas significativas a0 longo da [dade Média. Apos uma fase fria, que termina na época carolingia, tem inicio um aquecimento entre 900 e 950 que se prolonga até o fim do século NIN. Essa leve alta da temperatura é suficiente para provocar o recuo das geleiras, um avango em altitude da vegetagdo (favorecendo o pastoreio de montanha) e, na maior parte das regides européias, uma elevagao dos niveis de dgua subterranea, que aumenta as possibilidades de instalacao das aldeias, ainda dependentes de um avesso a dgua através de pogos. Se a alta provoca um excesso de calor para as cul- turas mediterranicas, essa modificagdo climatica cria condigdes favordveis para os Jnvores da Europa do Norte, contribuindo, assim, um pouco mais para o deslocamento do centro de gravidade curopeu. Poder-se-ia, € verdade, duvidar que 0 aquecimento climatico possa explicar por si s6 0 desenvolvimento rural da Idade Média Central, mas a coincidéncia cronoldgica é tal que se deve ver ai um cereais e as importante fator favoravel, que acompanha a tendéncia descrita anteriormente. Como explicar o desenvolvimento? E surpreendente constatar, seguindo Alain Guerreau, que um fendmeno tio deci- sive como o desenvolvimento curopeu dos séculos Xt a Nill — e, sobretudo, bas tante excepcional, pois a maior parte das sociedades tradicionais constitui siste- mas em equilibrio que nio procuram o aumento da produgdo — nao recebeu uma. Vcricie rece 107 explicagao satisfatoria, nem mesmo suscetivel de obter minimamente unanimida- de, Um exame historiogrifico mostraria facilmente que as concepgies mais diver- sas foram formuladas. conduzindo a uma grande confusao teérica. Durante muito tempo, foram privilegiados os fatores externas, como o surgimento do mundo mugulmano, ao qual Henri Pirenne tinha atribuido um papel negativo, como que por reagdo. ao pass que Maurice Lombard invertia a perspectiva para evo- car 0 apelo do Oriente que. estimulando as trocas, teria sido o estopim do movi mento de crescimento ocidental. Hoje em dia, nao se encontra mais um funda- mento suficiente para essas hipsteses e volta-se. de preferéncia, para causalidades internas. Para alguns, & 0 aumento da populagio que permite produzit mais: 0 fator demografico €, entdo, considerado a causa principal (Mare Bloch), como “um pilar incontestivel’ (Robert Fossier), ou mesmo como 0 primus motus, “o motor que pe tudo em marcha” (Roberto S. Lopez). Mas o proprio Marc Bloch nota que isso & apenas postergar o problema, pois por qual motivo a populagio comeca a aumentar entio? Outros autores canferem o papel principal ao progres- so técnico: iniciado ja no fim da Alta Idade Média, ele permite aumentar a produ- io e. entio, melhor alimentar uma populago em crescimento (Lynn White). A logica inverte-se, mas é possivel perguntar-se novamente 0 que di inicio'a esse progresso, pois. como foi dito, ele ndo repousa sobre verdadeiras invencies, mas sobre a difusio de técnicas conhecidas anteriormente, embora negligenciadas. A partir de uma base parcialmente compardvel, Pierre Bonnassie combina dois fatores, que interagem durante a Alta Idade Média: a terrivel pressio da fome inci- taa aumentar a producao a fim de satisfarer as exigencias de sobrevivéncia dos homens, enquanto 0 estabelecimento de novas técnicas, lentamente difundidas, permite realizar esse objetivo explorando solos dificeis; o fenimeno comegaria, desse modo, levando a um recuo da fome e, entdo, a uma primeira alta da popu- lagdo. permitindo, por sua vez, um novo crescimento da produgao. Quanto ao filio historiogrifico aherto por Georges Duby. ele acentua uma causalidade de tipo social. A reorganizagao Feudal confere uma melhor hase para os senhores, doravante descjosos de obter rendimentos crescentes de seus domi- nins ¢ capazes de submeter as populagies a um controle mais estrto, Nos ter- mos de um vocabulirio artista, que vai de vento em popa na época (1969), 0 impulso do crescimento rural do Ocidente “deve ser situado, em tltima anillise, na pressio exercida pelo poder senhorial sobre as forsas produtivas” (ele preci sa que “esta pressio, cada ver mais intensa, resultava do desejo que as pessoas ligadas 3 Igreja ¢ & guerra compartilhavam de realizar mais plenamente um ideal de consumo para o servigo de Deus ou para a sua gloria pessoal”). Outras cau- «as de naturera social podem ser combinadas a estas, em particular, como jis disse, o decliniv da escravidio, que incita ao progresso técnica e explica, sem div 108. Jerime Baschet ee da, a contribuigao da aristocracia para a difusio das novas técnicas. Enfim. pode- se mencionar o papel dos monastérios, cujo ideal ascético ¢ traduzido por uma pri- tica do esforgo de redengao. concebido como uma forma de adoragao divina e que nao deixa de dar resultados tangiveis, especialmente no caso dos cistercienses. Mais genericamente, ha nisso uma atitude caracteristica da Igreja crista, que mis tura concep¢do penitencial do trabalho ¢ uma atitude nova diante de uma nature- za em via de dessacralizagao, da qual ja se sublinhou, por vezes excessivamente, quanto ela predispie a inovagao técnica (Lynn White, Perry Anderson). Este breve apanhado ¢ suficiente para sugerit que o problema da interpre- tagao do desenvolvimento ocidental dos séculos Xi a Nit! esta longe de ser resol- vido. Ao menos, pode-se excluir a explicagao por uma causa Unica e, seja qual for a solucdo adotada, um fendmeno essencial diz respeito, sem duvida, aos efeitos de feedbuck e de encadeamentos circulares entre os diferentes fatores tnotada- mente, entre aumento demogréfico ¢ desenvolvimento da producdo). Parece, entao, indispensdvel adotar 0 quadro explicativo mais amplo possivel. Desse ponto de vista, as causalidades sociais parecem, de todas que foram evocadas, as mais pertinentes, pois elas dizem respeito as causas de possibilidade, ao mesmo tempo materiais ¢ ideol6gicas, indispenséveis a um tal desenvolvimento produti- +0, para além dos meios técnicos e humanos necessérios para pé-lo em marcha. E preciso, sem duvida. ir ainda mais longe. pois falta explicar por que os senho- res podem repentinamente exercer uma “pressao crescente sobre as forgas pro- dutivas”, sem suseitar uma explosio social que anularia seus esforgas. A hipdte- se, entio, s6 pode ser vidvel se for demonstrado que novas estruturas sociais s 0 estabelecidas. © que nos remete ao tema jé evocado da “mutagdo feudal”. Finalmente, somos levados a admitir que ¢ impossivel compreender o desenvol- vimento ocidental sem reconstituir a ligica global da sociedade medieval, que é, definitivamente, a condigio fundamental do desenvolvimento. sua causalidade. niv inicial, mas global. E, entdo, preciso empenhar-se em dar uma visio de con- junto da sociedade feudal e de sua dindmica, deixando para as conclusdes toda eventual interpretagdo do desenvolvimento ocidental A FEUDALIDADE E A ORGANIZACAO DA ARISTOCRACIA Em uma primeira abordagem, pode-se considerar que a aristocracia, classe dominante no Ocidente medieval, é caracterizada pela conjungio do comando ividade guerreira, Entretanto, os eti dos homens, do porler sobre a terra e da z Vennizreto treo 109 térios de definigio dessa oligarquia dos “melhores” nao pararam de variar. E por isso que Joseph Morsel convida a preferir a nogio de arisicracia, que 0 riador deve construir pondo a énfase sobre a dominagao social exercida por uma minoria cujos contornos permanecem por muito tempo bastante abertos ¢ flu isto- dos. no lugar da nogdo de nobreza, E verdade que a caracterizagio como "nobre” (nobilis: “conhecido”, e depois “bem-nascido’) € freqiiente, mas € somente no fim da Idade Media que se pode conferir uma verdadeira pertinéncia & nogo de nobreza tal como nés a concebemos espontaneamente, quer dizer, como categoria social fechada e definida por um conjunto de critérios estritos (dentre (0s quais 0 sangue tem um papel primordial). A nobreza, como grupo social e ni como qualidade. é apenas a forma tardia e consolidada da aristocracia medieval. Enfim, se a nocdo de aristocracia s6 tem sentido em funcio das relagies de dominacao que as representagdes sociais da exceléncia vém legitimar, é neces- sério precisar que a caracterizagao como “nobre” nio tem sentido fora da duali- dade que a ope aos ndo-nobres. Ser nobre é, antes de tudo. uma pretensio a se distinguir do comum, por um modo de vida, por atitudes ¢ por sinais de ‘stent. yo que vao da vestimenta aos modos @ mesa, mas sobretudo por um prestigio herdado dos antecendentes. A nobreza é. de inicio, essa distingdo que estabelece uma separacio entre uma minoria que exibe sua superioridade e a massa dos dominados, confinados a uma existéncia vulgar e sem brilho. “Nobreza” e “cavalaria” A formagio da aristocracia medieval é um processo complexo, muito discutido entre os historiadores. Considera-se. comumente. que a aristocracia, tal como & observada nos séculos XI! ¢ Nill, é 0 resultado da convergéncia de dois grupos sociais distintos, Tratarse-ia, de um lado, de grandes familias que remontam, por vezes, aquela aristocracia romano-germanica cuja fusio ja se evocou aqui ‘ou, a0 menos, aos grandes da época carolingia, que receberam em troca de sua idelidade a honra de governar os condados ou outros principados territorias resultantes do Império. Esta aristocravia. que se define pelo prestigio de suas origens, reais ou principescas. condais ou ducais (a menos que ela se atribua a ancestrais miticos), perpetua um "modelo real degradado” (Georges Duby), quer dizer, um conjunto de valores que exprime sua antiga participagio na defesa da ordem publica, mas deformados na medida em que esta se estampa em um pas sado cada ver mais longinquo. De outro lado, seria necesssrio falar dos milites. que adquirem importancia erescente, No inicio simples guerreiros a servigo dos casteldes, vivendo em sua corte, por volta do ano mil eles ainda parecem ass HO Jenime Baschet miliveis a agentes militares € ndo formam um grupo coerente, mas sua ascen- sao parece clara no fim do século XI e durante o século Xil, a medida que rece- bem terras em recompensa de seus servicos. E preciso, no entanto, evitar per- petuar o mito da ascensio da cavalaria dos milites. como se fosse, desde o inicio, um grupo constituido, cujo estatuto foi melhorando para, finalmente, fundir-se com a nobreza carolingea. Se € certo que a aristocracia conhece, entdo, uma renovagio ¢ integra em seu scio novos membros. em geral de estatuto modesto, a fusio que se opera é bastante relativa, uma vez que continuam importantes as distancias, reconhecidas como tais. entre os grandes (magnates), que reivindi- cam altas atribuicées de origem carolingia, e os simples cavaleiros (milites) do “castelo, Entretanto, a concepgao mesma do grupo aristocratico conhece. entao, uma importante redefinicao em toro do prépriv qualificativo de miles e do fato de pertencer & cavalaria, & qual se ascende pela celebragao de um ritual (o adu- bamento*) e que se dota de um cédigo de ética cada vez mais estruturado. Num primeiro momento, nio ha equivaléncia entre nobreza e cavalaria, pois numero- 80s nao-nobres sido designados cavaleiros. Entretanto, pouco a pouco, opera-se uma fusdo entre esses grupos de origens diferentes: mesmo se a unificagdo jamais € perfeita, pode-se concluir por uma tendéncia a assimilagao entre nobreza de antiga linhagem e nova cavzlaria (os termos miles € nobilis tendem a ser sindnimos). A absorcao da nobreza pela cavalaria ¢ tal que se toma dificil rei- Vindicar-se nobre sem ser cavaleiro e a designago como miles termina por ser considerada até mais valorosa do que a antiga terminologia de nobilis ou prin- ceps. E verdade ‘que 0 adubamento no faz o nobre (existem cavaleiros-servos na Alemanha), mas a uniformizagao das duas nogdes tende a reservar 0 acesso a cavalaria aos filhos dos nobres (como indicam, por exemplo, as constituigies de Melfi, de 1231, ou de Aragio, de 1235). E também pelo adubamento que se realiza, sobretudo no século Ni, a integragd 0. nobreza de homens novos, geral- mente servidores que vivem na corte de um nobre. Sem tal abertura, de resto cuidadosamente limitada. um grupo social tio reduzido como a aristocracia teria rapidamente sido levado ao declinio, ou até mesmo a extingao. A aristocracia feudal repousa, portanto, sobre um duplo fundamento dis- cursivo. Ela é definida, de inicio, pelo nascimento: é-se nobre porque de origem nobre, quer dizer, na medida em que se pode lazer prevalecer o prestigio social 4. Labora freqiente na literatura especiahvada sabre a Made Medi, esta tradugio literal do terme francés adobe © correntemente dicionarizada (er, no entanto, as observagives do Diciomirio Hoaes sa lingua portugues etm sab. Na antiga lingua dos francos, a riz dubheor 2 “hater”, “golpear’, «verbo adouber investi como eaxalero", “armar um guerre”) cm que @ aspitante eta golpeado rtualmente ¢ admitide no seio da femete, assim, cayalaria1N. DD Acnniacte teow HL de seus ascendentes, Trata-se de uma insergao herdada, Mas a medida que a cavalaria ganha importincia e identifica-se com a nobreza, trata-se. a0 mesmo tempo. de uma insergio adquirida, que supde a assimilagio de valores do grupo ce de competéncias fisicas que permitem receber o adubamento. Contrariamen- te a0 que se pensou durante muito tempo, o adubamento é uma criagio tardia sem diivida do fim do século Xt: neste momento, ele é uma simples entrega das armas. que basta para “fazer o cavaleiro”, e € apenas na segunda metade do século Nil que ganha uma forma ritualizada mais consistente. Geralmente. inter- vém no final da adolescéncia, uma vez realizada a formagao ideolégica e militar necessiria & reprodugio do grupo, e enseja varias festividades, mais muitas, vezes durante o Pentecostes. O jovern cavaleiro recebe entio sua espada e suas armas das mios de um nobre tgo eminente quanto possivel, que realiza em seguida o gesto da colagdo, golpe violento sobre a nuca ou o ombro com a mao cou com a lateral da espada. rito de passagem simbolizando, sem duivida, de uma maneira ber apta a impressionar os espirits, os ideais do grupo ao qual se inte- gra 0 jovem promovido. A Igreja teve um papel importante no estabelecimento do ritusl de adubamento. que poderia muito bem derivar da liturgia de béngo da atribuigdo das armas aos reise aos principes, atestada durante a Alta Idade Médi depois transformada e aplicada a personagens de nivel mais baixo, como os prote- tores das igrejas e os castelaes do século x1. De todo modo, a cristianizagao do adu- bamento, em sua forma bem elaborada a partir de meados do século Xi, é paten- te. O ritual é com freqiigncia precedido por uma noite de oragées na igreja, € a cespada, antes de ser cingida na cintura do novo cavaleiro, é previamente deposi- tada sobre o altar e benzida, Para além do proprio ritual, pode-se. entio, insistir sobre o papel fundamental da Igreja na estruturagio da ideologia cavaleiresca. As formas do poder aristocratico Falta acrescentar as anotagées precedentes um elemento essencial para carac- terizar a aristocracia recentemente reconfigurada em torno do termo miles e dos codigos da cavalaria: o castelo, Joseph Morsel enfatizou que a “castelanizag: do Ocidente’, entre os séculos X ¢ xil, 6 0 fundamento dessa reorganiza A partir de entio, os custelos sio os pontos de ancoragem em torno dos quais se teporizar o con- define o poder aristocratico eo termo miles serve, agora, para junto daqueles que realizam direta ¢ exclusivamente a dominagii social de um espago organizado pelos castelos”. castelo & 0 coragio a um s6 tempo pr ico. 10 sobre as terras © os e simbslico do poder da aristocracia, de sua domina homens, A evolugao das formas de construgao dos castelos é, consegiientemen- 112 Jewime Baschet te, um sinal importante das transformagdes desse grupo (ilustracdo 8). A partir do fim do século x, ¢ sobretudo ao longo do século x1, multiplicam-se as cente- nas, € mesmo aos milhares, os castelos em madeira construidos sobre motes, monticulos artificiais de terra que podem atingir dez ou quinze metros de altu- ta e protegidos por um fosso. Depois, sobretudo a partir do século xt, embora se continue a construir “montes castrenses”, 0 castelo é cada vez com mais fre- qiéncia edificado em pedra e, pouco a pouco, deixa de ser uma simples torre ou donjon, 3 medida que se acrescentam a ela diversas extensies, muralhas con- céntricas e defesas cada vez mais sofisticadas. Se a fungao defensiva € eviden- te, e até mesmo exibida, 0 castelo €, a principio, um lugar de habitagao para o senhor, seus préximos € seus soldados. Geralmente associado a edificios agrico- las, em particular & drea para criagdo de animais, ele é também um centro de exploragao rural e artesanal, bem como um centro de poder, pois € nele que os camponeses pagam 0s seus tributos € também € nele que se retine o tribunal senhorial, Muitas vezes, ele se apropria do terreno mais elevado (e, quando nao é este 0 caso, a motte ou a arquitetura poem em evidéncia a mesma procura de verticalidade). O castelo domina, assim, 0 territério, como o senhor domina seus habitantes. Simbolo de pedra ou de madeira, ele manifesta a hegemonia da a tocracia, sua posigdo dominante e separada no seio da sociedade. A principal atividade da aristocracia, e a mais digna a seus olhos. é segura- mente a guerra. Na maior parte do tempo, ela consiste em razias breves e pouco mortiferas, No8 séculos \t a NIN, as guerras entre reis ou entre principes séo raras, ¢ as grandes batalhas, como a de Bouvines, em 1214, so excepcionais, a tal ponto que Georges Duby pade escrever que a batalha era o contrério da guerra cavaleiresca. E. preciso evitar, entretanto, reproduzir a visio tradicional da guerra privada entre senhores, violéncia sem limites caracteristica das desor- dens da idade feudal. Com efeito, a guerta corresponde, entio, a uma ligica propria, que predomina particularmente ao longo dos séculos X ¢ Xi: a da faide* (Dominique Barthélemy). Seu fundamento € 0 cédigo de honra, que impde um dever de vinganga, nao apenas dos crimes de sangue, mas também dos ataques contra os bens. Disso resulta uma violéncia entre senhores, inegivel mas regu- lamentada e codificada: 0 sistema da fuide associa episédios guerteiros limita- dos, cuja finalidade é menos matar do que capturar inimigos a serem trocados por um resgate, ¢ uma prudente procura de compromissos negociados. A guerra 5. Pakira do francés arcaicw ‘correspondente ao alemao Fehde): indica um procedinento formal ‘ado ¢ ntualizado com finalidade de vingar uma injustiga. Em geral, ¢ tos, como as Lamili, wocado por grupos rest 05 chis, ¢ pode nomear as lutas Fatticidas no interior das dinastias reais, como a "fuide ropale"que opde os filhos de Clotirio, no século V1, (NT) Aewniygte revo 1B Ie 8b, A fort cabo pels aragneses, a construo incl remonta a meados do século Os ris de Argo resdern nela com freqiénciae a fundam uma comunidade de cOnegos reguares. & pura ela que ees edifcar, no inicio do séeuko xa, sobre a segunda murlha, uma notivel grea omdnica,cuja cupula ¢ recoberta com um teto octogonal de Loarre, com suas ts muralhas sucessivas,€ muito mais elaborada, Base da Reconquista levada do tipo faide & menos o sinal de um caos social incontrolivel do que uma pratt- ca que permite a reprodugi do sistema senhorial. mobilizando as solidarieda- des no sein da aristocracia, regulando in fine as lutas entre senhores concorren- tes, mas também manifestando quanto os camponeses, principais vitimas das pilhagens, tém necessidade da protecéo de seus senhores. Em todo caso. a guer- ra nobre é um compromisso a cavalo, sendo o combate a pé reputado indigno tilustrac 10 9). O equipamento requerido aperfeigoa-se no coracao da Idade Média: além do indispensivel cavalo, que deve ser adestrado para o combate. € a espada de limina dupla, que a literatura indica ser 0 objeto de uma verdadei- ra veneragao, a loriga (ou cota de matha em ferro) substitui a veste de couro - grosso reforcada por placas metélicas da época carolingia. Do mesmo modo, 0 simples capacete & substituido pelo elmo, que cobre a nuca, faces ¢ natiz. Se acrescentarmos o escudo e, a partir do fim do século XI, a langa longa, mantida horizontalmente no momento da carga répida destinada a derrubar da sela o adversério (0 que se tornou mais dificil pela invenc3o dos estribos), so cerca de quinze quilos de armamento que 0 cavaleiro leva com ele. Além disso. 0 conjun- to é bastante custoso, pois estima-se que, no inicio do século xn, é preciso dis- por de cerca de 150 hectares de bens fundidrios para poder assumir os gastos necessdrios ao exercicio da atividade de cavaleiro. Enfim, embora eles sejam desprezados pelos cavaleiros, os infantes, originados das milicias urbanas ou de homens livres do campo. tem um papel cada vez mais importante, como com- plemento e ajuda aos cavaleiros, até que, nos finais da Idade Média, arqueiros ¢ besteiros determinem com freqiiéncia o resultado dos combates. Atestados a partir do i ra de exibir o estatuto dominante da aristocracia e de regular as relagdes em seu io do século Nit, os torneios sdo uma outra manei- seio. Demonstragées de forga destinadas a impressionar. so batalhas ritualiza- das, que retinem varias equipes, provenientes de regides diferentes ¢ que, em geral, se opdem de modo a reproduzir as tensées entre as facgdes aristocraticas. Os cavaleiros armados com suas longas langas fazem cargas coletivas, levando a combates muitas vezes contusos, cujo objetivo & derrubar das selas os adversé- tins e, se possivel, faver prisioneiros com os quais serdo obtidos resgates. Prova de proeza que pde em igualdade modestos cavaleitos e grandes principes, 0 tor- neio €, para os especialistas mais reputados, procurados e pagos pelas melhores equipes, a ocasiio de receber grandes somas de dinheiro: por vezes, ele permi- te que os filhos cadetes, desprovidos de heranga, como o célebre Guilherme, 0 Marechal, sejam recompensados com um casamento com uma herdeira de alta posigdo ¢ adquiram, assim, uma posigdo social invejavel. Mas tais praticas. que permitem a aristocracia redistribuir parcialmente as posigdes em seu seio, espe- cialmente através do avesso ao casamento, suscitam vivas condenagées por A civitizscto veemat H7 parte da Igreja a partir de 1130. Esta enfatiza que os torneios fazem correr em ‘do 0 sangue dos cristios e desviam os cavaleiros dos combates justos que leg timam sua misséo. A caga, outraatividade emblemtica da nobreza. ¢ igualmen- te condenada pela Igreja. Sua fungio econémica € pouco importante, pois se sabe, agora, que — longe da imagem deformada dada pelas descrighes lterarias — menos de 5% da alimentagio carnivora das mesas nobres é fornecida pelas presas de caga. Retornaremos a isso na segunda parte (capitulo i), mas jé se pode indicar que w caga preenche,sobretudo, uma fungi social (Anita e Alain Suerreau), Ela manifesta, aos olhos de todos, o prestigio do nobre cavalgando, dorninando a natureza ¢ 0 terrtério. Lire para passat com sua tropa € sua mati tha de cachorros por todos os lugares que the convierem, ele afirma seu poder sobre 0 conjunto do espaco senhorial, e particularmente sobre as matas ¢ os espagos incultos, objetos de grandes litgios com os aldedos. Assim. todas as ati- vidades da nobreza tém, a0 mesmo tempo, uma finalidade material e uma sig- nificagdo simbdlica, visando manifestar prestigio e hegemonia social, Etica cavaleiresca e amor cortés A medida que se aprofunda a unificagdo do grupo cavaleiresco, consolida-se também seu cédigo de valores. Estes sio notadamente exaltados desde a primei ra metade do século Xit por canges de gesta (como a Cangio de Rolando), nar- rativas épicas que jograis ¢ trovadores cantavam nas cortes senhoriais ¢ princi- pescas ¢, um pouco mais tarde. pelos romances de cavalaria (primeiro género literdrio nao cantado da Idade Média, mas destinado a ser recitado durante as festividades do castelo). Os primeiros desses valores sao a “proeza’. quer dizer, a forga fisica, a coragem e a habilidade no combate e, de maneira mais especifica a sociedade feudal, a honra e a fidelidade, sem esquecer um sdlido menosprezo pelos humildes, muitas vezes comparados montaria que o nobre cavalga e con- duz segundo sua vontade. Sua ética repousa tamhém sobre a prodigalidade, Ao contririo da moral burguesa da acumulagdo, um nobre distingue-se pela sua capacidade de despender e distribuir. Ele se entrega facilmente & rapina pelas costas de seus vizinhos, de modo que os nio-nobres o descrevern como um rapace vido e cheio de cobiga. No entanto, se ele comete o butim, & para poder se vestit com mais ornamentos, para oferecer festas mais suntuosas, para man- ter uma corte mais numerosa que aumente seu prestigio, para manifestar sua generosidade em relagdo aus pobres sem se esquecer da necessidade de fazer face as despesas militares indispensiveis para manter sua posiyo). Assim, mesmo se os gestos suscitados pela prodigalidade aristacratica podem, por TIS Jévime Baschet veres, parecer com caridade, ela € diferente, pois esta ¢ virtude crista por exce- lencia, que deve ser realizada, de preferéncia, na humildade de um lago frater- nal. Para 0 nobre. trata-se de distribuir e de consumir com excesso € ostentagao, para melhor afirmar sua superioridade e seu poder sobre os beneficidrios de sua prodigalidade. Mas esses valores essenciais néo demoram a se revelar insuficientes, pois, muito cedo, a Igreja exerce um papel importante na estruturagdo da cavalaria € sua unificagdo em torno de um mesmo ideal. Isso supde distinguir entre os aus cavaleiros. realizadores de pilhagens, tiranicos e impios, e aqueles que poem sua forca € sua coragem a servico de causas justas, tais como a prote- gio da Igreja e a defesa dos humildes. A Igreja esforga-se. assim. para trans- mitir aos cavaleiros os antigos valores reais de justiga e de paz (Jean Flori). Durante as assembléias da paz de Deus. no fim do século x e, depois, ao longo dos séculos seguintes, a Igreja tenta obter dos guerreiros que eles ndo ata- quem aqueles, clérigos ou simples laicos, que ndo podem se defender e que respeitem certas regras. tais como o direito de asilo nas igrejas e a suspensao dos combates durante os domingos e as principais festas. Pouco a pouco, a Igreja insiste também sobre os inconvenientes das guerras entre cristios e esforga-se para desviar o ardor combative da nobreza contra os infiéis mugul- manos. E isso que ela obtém com sucesso com a Reconquista , mais ainda, com a cruzada que. segundo a pregacdo de Urbano it em Clermont, em 1095, confere um objetivo verdadeiramente digno a cavalaria: “Que aqueles que se batem contra seus irmios e seus parentes lutem, agora, de bom direito, con- tra os barbaros”. Esse ideal, que tende a fazer do cavaleiro um servidor de Deus e, da cavalaria, uma milicia de Cristo (militia Christi), nao é, por certo, inteiramente novo (a militia jé era, na época carolingia, 0 nome que unificava os servidores de um Império ordenado por Deus), mas ele é, entio. reformu- lado de maneira a constituit o cixo que estrutura especificamente o grupo dos milites. Assim, a aristocracia beneficia-se de um importante acréscimo de legi- timidade, pois, av mesmo tempo que os clérigos se esforgam para canalizar e enquadrar a atividade © a ideologia cavaleirescas, eles afirmam que 0 oficio das armas foi desejado por Deus ¢ se mostra necessirio, desde que seja posto a servigo de fins justos. E verdade que existem inumeraveis conflitos e rivalidades entre clérigos ¢ cavaleiros. ¢ os valores de uns ¢ outros esto longe de convergit em todos os pontos, como o lembra principalmente a oposigao clerical a caga e aos tor- neios, ocupacdes favoritas dos nobres. No centro das divergéncias, pode-se identificar, de uma parte, a violencia guerreita, que a Igreja condena quando ¢ ameagada por ela © aprova quando serve a seus interesses, ¢, de outra parte, Ve nnizecte rrepae 19 a sexualidade ¢ as priticas matrimoniais, objeto de concepgées conflitantes (segunda parte. capitulo V). E, no entanto, mesmonesses terrenos, uma ver p sada a primeira metade do século Xit, as tenses tornam-se menos agudas e as aproximages acentuam-se. Um exemplo, que as analises de Anita Guerreau- Jalabert tornaram particularmente esclarecedor, é 0 amor cortés (expresséo do século MIN, 3 qual preferirei a terminologia medieval de fin'amors, quer dizer, 0 amor mais fino, mais puro). Antes de ser retomado nos romances do Norte da Franga a partir da segunda metade do século Xi, esse tema é, de ini- cio, uma criagao da poesia lirica meridional, género cantado nas cortes aristocré- ticas eilustrado, em primeiro lugar, pela produgao de Guilherme 1x. duque de Aquitdnia (1071-1127). O fin'amors & a afirmagao de uma arte refinada do amor, que contribui para marcar a superioridade dos nobres ¢ distingui-los dos dominados, cujo conheci- mento do amor s6 pode ser vulgar ou obsceno (como mostram os fabliautx, estes ‘contos para rir” que entram no repertério dos trovadores a partir da segunda meta- de do século Xi, ridicularizam clérigos, vildos e burgueses, ¢ permitem que o publi- co nobre se divirta com a baiveza deles). Mas o finamors contém também, a0 menos con suas primeiras expressdes meridionais, uma dimensao subversiva’ Com efeito, ele pée em cena um amor adtiltero, como no caso exemplar de Lancelote do Lago, apaivonado por Guinevere. esposa do rei Artur. Além disso, ele norma social de submissio da mulher em eneficio de uma exaltagio desta, que assume, em face do seu pretendente. a posicio de um senhor feudal em relacio a seu vassalo: através da relagao amorosa, € a fidelidade vassilica que €, entdo, exal- tada ou posta a prova. Se a relagio sexual nao estd excluida, s6 pode ser atingida a0 fim de uma longa série de provas, das quais a dama fixa o ritmo e as modalidades {a mais elevada consiste em partithar 0 mesmo leito, nus, evitando todo contato fi sicol. © amor cortés é. entio, uma ascese do desejo, mantido irrealizado tanto werte a tempo quanto possivel para, com isso, crescer em intensidade e ser sublimado pelos feitos cavaleiescos realizados em nome da amada. O fitamors enseja, assim, um culto do desejo, um amor do amor; convencide de que a paixio cessa quando atin- gc 0 seu objetivo, faz de sua impossiblidade a fonte do mais alto jabilo Gor. Fazendo isso, o finiamors abre a via para uma aproximayao com a ideologia clerical, pois estabelece. como signo da distingo nobiliia, a sublimagao do desejo sexual e a busca de um amor elevado, o mais distante possivel da vulga- ridade de um amor carnal consumido sem regras. O fin'amors chega mesmo a tender a uma mistica do amor, que salienta o decalque do saprado cristao: ele nio estd longe da Senhora adorada na Notre-Dame © seu corpo & por vezes venerado como o de uma reliquia sagrada. E se Tristdo e Isolda ilustra as conse- 120, Jerime Baschet quéncias destrutivas do amor (0 que explica, sem divida, 0 seu fraco sucessu junto as cortes aristocraticas), os romances de Chrétien de Troyes, um clérigo que escreve entre 1160 © 1185 para as cortes de Champagne e de Flandres, empenham-se, ao contrario, em superar as contradigées criadas pelas tematicas de corte, em particular pondo em cena a compatibilidade entre 0 fin'amors ¢ a relagdo matrimonial. Esse objetivo apaziguador & claramente atingido em seu Percival ou o conto de Graal (c. 1180), no qual, como em todos os romances pos- teriores do abundante ciclo do Graal, a temética amorosa passa ao segundo plano, enquanto se impde como um ideal supremo da cavalaria a busca de um objeto que nao € outro sendo o cdlice que teria recolhido o sangue de Jesus crucificado. Certamente, a literatura de corte nao € 0 reflexo da realidade aristocratica. Trata-se, sobretudo, de manifestar seus ideais e de tentar resolver, imaginariamen- te, as tenses que a atravessam. Sublinhou-se com freqiiéncia, na seqiiéncia de Erich Kahler, que a literatura de corte exprimia as aspiragdes da pequena nobre- 2a dos milites, especialmente dos jovens que permaneceram sem terras. desejosos de se integrar plenamente i aristocracia € perseguidos pelo sonho de uma alianca com uma mulher de alta posicdo. E também possivel que, nas formas chissicas que as grandes casas nobres contribuem a Ihe dar, essa literatura permita confor- tar um ideal comum a toda nobreza, atenuando suas hierarquias intemas. Sobre- tudo, a aprosimaco progressiva com o pensamento clerical é consideravel. E ver- dade que os esforces das maiores cortes, como aquelas dos reis plantagenetas, para por em um plano de igualdade cavalaria ¢ “clergie” (o clero) estao longe de corresponder a realidade. Também, nem todos os nobres se comportam como per- feitos membros da militia Christi ou como réplicas de hersis de romance. preocu- pados com uma superacao de si mesmos e engajados em uma incessante busca espiritual. Entretanto, no fim das contas, ainda resta algo desse ensinamento: no fim do século x11, ¢ mais tarde, o nobre que deseja manter sua posigao, ou mesmo se distinguir aos olhos de seus pares, ndo pode mais se contentar em ser um bravo (corajoso ¢ forte), ele deve ser também sdbio, 0 que, além da obrigagao vassilica de ser homem de bom conselho, supse incorporar uma ética marcada pelo ensi- namento clerical ¢ reconhecer que a dominay3o social ndo pode se legitimar ape- nas pela forga, mas impoe também a preocupagao com a justica ¢ o respeito dos valor espirituais promovidos pela Igreja ("Todo vosso sangue deveis verter para a sade da Igreja defender’, diz um tratado de cavalaria por volta de 12501. Enquanto nos s seus valores, culos \ ¢ Ni a aristocracia se opunha a [greja em quase todos os pontos de acordo cada ver mais comuns passam a ser estabelecidos, ponto de a primeira, finalmente, reconhecer 0 primado dos valores cristios ¢ aceitar submeter-se a cles, ao menos idealmente, Sem davida, isso ocorre porque Vonivcte rcp RI a Igreja, através de sua contribuigdo a elaboragao dos rituais e da ética cavaleires: ca, forneceu a aristocracia a mais sélida justificativa de sua dominagio social e um dos melhores cimentos de sua coesio interna, As relagdes feudo-vassélicas e o ritual de homenagem A vassalidade € habitualmente considerada um dos tragos mais caracteristicos da soviedade medieval. Entretanto, ao contrario das visdes clissicas, que faziam das “instituigdes feudais” um sistema homogéneo e bem estruturado, tende-se, hoje, a restringir a importincia do feudo e do lao vassélico, que dizem respei- to a uma proporcao infima da populacao (1% ou 2%). Essa mudanga de pers- pectiva é operada com vigor por Robert Fossier quando qualifica as relagdes vas- silicas de “epifenémeno negligenciével”, 0 que, apesar de tudo, no deveria fazer esquecer que elas estruturam, ao menos parcialmente, as relagdes no seio da classe dominante. Entretanto, mesmo entre os dominantes, nem todas as concessées de bens ganham a forma do feudo e a vassalidade ¢ apenas um dos tipos de lago — ao lado dos pactos de amizade, juramentos de fidelidade, asso- ciagées entre senhores laicos e monastérios etc. — que asseguram as solidarie- dades ¢ a distribuicao do poder no seio da aristocracia (Joseph Morsel). Nao se pode, entretanto, subtrair toda a importancia da relacio vassilica, que formaliza entre os dominantes (ela pode incluir também os prelados) um lago de homem para homem, entre um senhor e seu vassalo. Trata-se de uma relago ao mesmo tempo muito proxima e hierdtquica, que se colore de um valor quase familiar, como indicam os termos empregados: o senior € 0 mais velho, 0 pai: 0 vassus € 0 joven, que também pode ser qualificado de homo ou fidelis. Em sua forma classica, essa relagdo implica uma troca dissimétrica. O vassalo é o homem de seu senhor e se engaja a servi-lo conforme as obrigacdes do costume feudal. Este varia fortemente segundo as épocas e as regidies, mas trés aspectos tornam-se essenciais ao servico vassdlico: a obrigagao de se incorporar as opera- des militares empreendidas pelo senhor (por um tempo de inicio flutuante, mas que tende a ser reduzido a quarenta dias por ano, ao que se acrescenta um perio- do de guarda do castelo senhorial), a ajuda financeira (em diversas circunstan- cias que 0 senhor considera poder decidir segundo seu alvitre, mas, em seguida, limitada, sobretudo na Franga e na Inglaterra, aos casos de adubamento e de casamento dos filhos, de pagamento de um resgate, de partida para as cruzadas ‘ou peregrinacao), e, finalmente, o dever de bem aconselhar o senhor. Entre essas trés obrigagées importantes, a primeira ¢ particularmente determinante, pois é a base principal sobre a qual se formam os exércitos feudais. Em troca, o senhor 122 Jerime Baschet deve a seu vas: também a sua ‘alo protegao ¢ respeito; ele Ihe demonstra sua solicitude (e, entav. supcrioridade) por meio de presentes e assume geralmente a edu- cagao dos filhos do vassalo, que deixam a casa patema durante a adolescéncia para viver junto ao senhor. Enfim, ¢ sobretudo, o senhor prové o seu vassalo de um feudo que lhe permite manter sua posigao e preencher suas obrigagées. M do que um bem ou uma coisa, o feudo deve ser considerado a concessao de um poder senhorial. que pode dizer respeito a uma terra e seus habitantes, mas pode também limitar-se a um diteito particular, por evemplo, o de exercet a justiga, de recolher uma taxa ou cobrar um pedagio. A relacdo vassilica é instituida por um ritual, a homenagem, que. em sua forma clissica, parece caracteristica, sobretudo, das regides ao norte do Loire. Pode-se decompé-la em trés partes principais. A homenagem propria- mente dita consiste em um engajamento verbal do vassalo, que se declara 0 homem do senhor, seguido do gesto da immixtio manuum, pelo qual o vassa- lo, ajoelhado, pie suas maos juntas entre as do senhor (este gesto, que expri- me claramente uma relacao hierérquica na qual a protego corresponde & fidelidade, é tao importante na sociedade feudal que transforma as modali- dades da prece crista, que nao se realiza mais 3 moda antiga com os bracos separados ¢ as mavs elevadas para 0 céu, mas com as maos juntas, sugerindo, assim, uma relagdo de tipo feudal entre o cristdo, 0 fiel. e Deus, 0 Senhor). A segunda parte do ritual, denominada fidelidade, consiste em um juramen- to, prestado sobre a Biblia, e um beijo entre vassal © senhor, por vezes na mas com mais freqiéncia na boca (osculum), segundo um uso corrente na Idade Média. Finalmente, ocorre a investidura do feudo, expressa ritual- mente pela entrega de um objeto simbélico, tal como um punhado de terra, um bastdo, um galho ou um ramo de palha. No geral, esse ritual forma um conjunto simbélico elaborado, do qual participam gestos, palavras e objetos, com a finalidade de construir uma relagdo ao mesmo tempo hierdrquica e igualitéria. Como bem demonstrou Jacques Le Goff, o ritual de vassalagem instaura, de maneira visivel e concreta, uma “hierarquia entre iguais”, estru- turando, assim, as diferengas internas de uma classe que, em seu conjunto, se quer acima do homem comum. As origens da relagio vassilica remontam a época carolingia. Desde meados do século Vil observa-se a pritica de um juramento de fidelidade pelo qual o rei ou 0 imperador estorga-se para garantir a fidelidade dos grandes, aos quais contia as “honras” que sio os encarpos puiblicos, especialmente 0 governo das provincias. Depois, na épaca de Carlos Magno ¢ de Luis, o Piedoso, 0 engajamento vassali- co, que 6 uma forma de “recomendagao” pela qual se € posto sob a protegao de um personagem eminente, reconhecendo deveres em relagio a ele, generaliza-se Vennisgdo ices 123 como forma de subordinagao, vinculando todos os homens livtes a personagens elevados ¢, indiretamente, a0 imperador. E verdade que, hoje, nio se acredita mais que exista um quadro chissico da feudalidade. cujo berco seria o Norte da Franga, em comparago com 0 qual as demais variantes seriam apenas formas “degradadas’. E preciso, entao, reconhecer extrema diversidade regional, que se pode evocar apenas brevemente aqui (‘ndo existe tna feudalidade, mas fendal- dades", sublinha Robert Fossier\. Assim, no sul do Loire, o engajamento do vassa- To pode ser selado por um simples juramento de fidelidade, enquanto em certas regides mediterranicas a relagdo vassilica, mais igualitaria ¢ menos impositiva. cestabelece-se em geral com base em um contrato escrito, como & 0 caso na Catalunha, desde o século 1. Inversamente, no dominio germanico, a hierarquia interna da nobreza é tao pronunciada que o beijo, considerado por demais iguali titi, é eliminado do ritual de vassalidade: além disso, em oposigdo a tendéncia a tornar indissocivel a homenagem e a investidura, mantém-se por muito tempo tum prazo de cerca de um ano entre 0 estabelecimento de um lago vassilico e a cessio do feudo, enquanto a afirmagao dos “ministerales’, servidores de origem as vezes servi, que se integram a0 grupo dos milites ¢ vivem na dependéncia direta dos castlbes, contribui para manter grande distancia entre a cavalaria e a nobre- za, etardando a sua unificagao. Por fim, para tomar um iltimo exemplo, o domi- nio normando (inclusive Inglaterra), no qual os historiadores véem habitualmen- te 0 protétipo da fidelidade vassélica, beneficia-se da vigorosa reorganizayo realizada por Guilherme. o Conquistador: ali, a obrigagao militar dos vassalos per- manece particularmente forte, se bem que seja habitualmente substituida, a par- tir do século Xi, por uma contribuigo em dinheiro (a écuage"), que permite aos grandes senhores e ao rei recrutarem mercensrios, considerados mais seguros, ot ‘mesmo pagarem aos vassalos para garantir seu engajamento para além da duraydo costumeira das campanhas. Apesar das grandes diferengas regionais, é possivel assinalar algumas evo- lugdes de conjunto, a comecar pela difusio da feudalizagio. Nos séculos x ¢ Mexistem ainda muitos alidios. terras livres possuidas diretamente pelos seus proprietarios. Estes sio beneficiados com privilégios, mas sio igualmente obrigados ao servigo militar e & participagéo nos tribunais do condado. Depois, ao longo dos séculos Xt e Xil, as terras do Ocidente deixam, pouco a pouco, de ser alodiais: enquanto os mais modestos se integram em um senho- Tio, os alédios mais importantes sio geralmente cedidos a um poderoso antes de ser retomado como feudo. No século Xill os alédios subsistem apenas de 6, 0 dew indica, a principio. o escudo medieval e a utilzagdo de sua imagem nos brasées, por ‘extensao, também 4 moeda portande tais armas. (N. T.) 124 Jere Baschet modo marginal, 0 que significa, de um lado, que 0 conjunto das terras € dora- vante integrado ao sistema senhorial e, por outro, mas de maneira menos generalizada, que uma parte importante dentre elas é possuida como feudo. E ver- dade que ¢ preciso levar em conta as terras da Igreja. das quais uma propor- ¢do notavel escapa as relagdes feudo-vassilicas, e das regides, especialmente as meridionais, em que elas tém peso apenas relativo. No entanto, permane- ce o fato de que uma parte significativa do controle exercido sobre as terras te sobre os homens) passa pelo estabelecimento dos laos vassdlicos, o que Ihes confere inegavel importancia. ‘Ao mesmo tempo, os lagos feudo-vassélicos sv vitimas de seu sucesso € sua eficdcia tende a diminuir 2 medida que seu uso é mais freqiente e que a rede de dependéncias vassédlicas faz-se mais densa. Uma das principais difi- culdades aparece quando se torna corrente um nobre prestar homenagem a varios senhores diferentes. Essa pluralidade de homenagens, bem atestada desde o século XI, & vantajosa para os vassalos, mas atrapalha a boa realizac30 do servigo vassdlico e pode mesmo pér em causa o respeito & fidelidade jurada a partir do momento em que se tenha de servir dois senhores rivais entre si. Por um momento, acredita-se ter sido encontrada a soluc3o instituindo a homena- gem-ligia, homenagem preferencial que convém respeitar prioritariamente; mas a solugio tem curta duragdo, pois, por sua vez, a homenagem-ligia também se multiplica. Por fim, a evolugdo mais perigosa reside no fato de que o controle do senhor sobre os feudos que outorga atenua-se incessantemente. Se se trata- i. no inicio, de uma concessio feita pessoalmente ao vassalo e destinada a ser recuperada quando de sua morte, o feudo é cada vez mais transmitido em heranga pelo vassalo aos seus descendentes, como expressa 0 adégio “o [vassa- lo} morto investe o vivo". Por vezes, o senhor exige a homenagem de todos os filhos do defunto (parage) ou se reserva o direito de escolher o filho que julga mais capaz, mas geralmente, a partir de meados do século Xil, apenas o primo- génito presta homenagem, e seus irmaos tornam-se, eventualmente, seus prd- Prios vassalos (frérage). Seja como for, doravante, o feudo parece pertencer a0 patriménio familiar do vassalo, que também se permite, ds vezes, vendé-lo. $6 resta av senhor esforcar-se para manter ao longo das geragées o reconhecimen- to das obrigacies vassilicas. E isso que manifestam a reiteragao da homenagem no momento de cada transmissdo hereditaria do feudo € 0 estabelecimento de um direito de sucessio (direito de substituigdo, por vezes bastante elevado € fixado arbitrariamente pelo senhor, mas geralmente estabelecido em um ano de rendimento do feudo?. Finalmente, 0 senhor conserva 0 direito de punir as fal- tas dos vassalos e até mesmo a possibilidade de confiscar o feudo (direito de arresto) em caso de falta grave. Mas, na pritica, a confiscagao € cada vez mais Vcnmiascto reepar 125 dificil de realizar e limitada aos casos de traigdoflagrante ou de agressao direta contra o senhor, Em geral. a transmissio hereditaria dos feudos modifica 0 equi librio da relagdo entre senhores e vassalos, distende o lago pessoal estabelecido entre eles. restringe as exigéncias senhoriais e contribui para uma crescente autonomizagao dos vassalos Disseminagao e ancoragem espacial do poder Mais do que detalhar as regras do direito feudal, é importante captar as formas de organizagdo social ¢ as dinamicas de transformagao, no interior das quais as relagdes feudo-vassilicas puderam ter certo papel. Sem ser propriamente sua causa, a difusio destas acompanhou um proceso de disseminagdo da autorida- de. inicialmente imperial ou real (quer dizer, do poder de comando e de justiga ‘que chamamos de ban). Como vimos, desde a segunda metade do século 1X 0 lagos de fidelidade que sustentavam a aparente unidade imperial revelam-se cada vez mais frageis € as entidades territoriais confiadas a alta aristocracia local afir- mam sua crescente autonomia. O século \ €, assim, 0 tempo dos “principados". grandes regides constituidas em condados ou ducados. cujo senhor confunde aquilo que conceme ao seu proprio poder, militar ¢ fundisrio, com a autoridade publica, que no passado era conferida pelo imperador ou pelo rei. A patrimoniali- zagio da fungio do conde. que assume a defesa militar e exerce a justiga, leva a formagio de comandos auténomos ¢ transmitidos hereditariamente. O mesmo processo se repete depois, em um nivel inferior. Condes e duques utilizam a vas- salidade como um dos meios que thes permite, além dos lagos de parentesco ou de amizade, garantir a fidelidade dos nobres locais e dispor de um circulo con- fidvel e de um contingente militar tao consideravel quanto possivel. Depois, a coesdo dos principados acaba, por sua vez, cedendo, no fim do século \ ou no decorrer do século 1. 0 que 36 € acentuado pela evolugao no sentido da trans- missao hereditaria dos feudos. Em ritmos diferentes e de acordo com modalida: des variéveis segundo as regiées — aqui. desmoronamento precoce € total da autoridade condal. como no Maconnais estudado por Georges Duby: li, presen- ga mais duradoura desta, fazendo apenas concessdes limitadas e revogaveis. como no condado de Flandres: sem falar de uma infinidade de situagdes inter- medisrias —, uma parte importante do poder de comando inscreve-se, doravan- te, no quadro dos vice-condados ¢ das "castelanias”, que, por sua ver, encampam o exercicio da justiga eo direito de construir castelos, antes prerrogativas da auto- Fidade real e, depois, da autoridade condal. Por fim, senhorios de extensio ainda mais reduzida tomam-se, no fim do século Xe durante 0 século Xi, um dos qut 126. Jevime Bascht dros elementares do poder sobre os homens (uma dominagao que. num tal con- texto, hesitariamos em qualificar, conforme 0 nosso vocabulério, de “politica’) A norma da légica feudal consiste, assim, em uma disseminagao da autoridade até os niveis mais locais da organizagao social. E preciso, ainda, notar que, se ela {az dos reis personagens dotados de uma capacidade muito fraca de comando, a generalizagao do quadro senhorial amplia-se ainda mais no fim do século XII e no século Nill, enquanto ja se esboca uma retomada da autoridade real. Para a historiografia do século xix, estreitamente associada ao projeto da bur- guesia, engajada na construc do Estado nacional e que concebia sua gesta como ‘uma luta contra o Antigo Regime feudal, tal fragmentagao senhorial aparecia como 0 cimulo do horror ¢ 0 complemento légico do obscurantismo medieval. Considerava-se. entéo, um dever insistit sobre as desordens e as destruigdes pro- vocadas pelas guerras privadas entre senhores, a fim de melhor revelar a “evidén- cia" a anarquia feudal e, em contraste, a ordem trazida por um Estado nacional centralizado, fundado sobre um direito unificado (do qual o direito romano é, entio, constituido como referéncia mitica). E dificil nao ver quanto essa visao de- preciativa da Idade Média esta ligada a ideologia do século XIX e aos interesses ime- diatos daqueles que a promoveram. Era, entdo, mais do que tempo de os historia- dores submeterem essa heranga & critica; e é revelador, a este propésito, que se tenha podido, recentemente. intitular uma obra consagrada a Franca dos séculos Xte Xl! A ordem senhorial. Como indica 0 seu autor, € preciso para isso “imaginar que, antes do Estado moderno, certo equilibrio social e politico possa ter existido gracas aos poderes locais e de feicao privada” (Dominique Barthélemy). Mesmo se ela é limitada € regulamentada pelos c6digos da faide, nao se poderia negar a violencia dessa ordem, nem a rude exploracdo que ela impée & maioria dos produ- tores. A expressdo nao poderia, entdo, ser entendida como um julgamento de valor, mas somente como um julgamento de fato: a ordem reina no mundo feudal, € ndo sem eficacia, sem 0 que no poderiamos explicar o impressionante desen- volvimento do mundo rural que se opera a0 mesmo tempo que a dispersio feudal da autoridade, De fato, esta deve ser analisada menos em termos de fragmenta- do (percepsao negativa a partir de um ideal estatal) que de maneira positiva, como processo de “ancoragem espacial do poder” Joseph Morsel). A concentra- ca de poderes de origens diferentes nas maos de senhores prdximos ¢ exigentes poderia mesmo ser considerada um dos elementos decisivos do crescimento oci- dental, Ao menos, deve-se admitir que essa forma de onganizagao era suficiente- mente adaptada as possibilidades materiais de producdo e a ligica social global para que essa combinayao dé lugar a uma poténeia dindmi limita apenas a quantificagio e que, de resto, ndo se ondmica, mas abrange 0 conjunto dos fendmenos que concortem para a afirmagao da civilizagao feudal. A craescie tropa 27 A CONSTITUIGAO DO SENHORIO E A RELACAO DE DOMINIUM Uma vez que a vassalidade, restrita aos grupos dominantes. conceme apenas a uma infima proporgao dos homens (e menos ainda das mulheres). ela nao pode- ria constituir a principal relacao social no seio do sistema feudal. Esta deve engajar o essencial da populacdo e definir 0 quadro fundamental no qual se rea- lizam a produgdo € a reprodugao social: assim, 6 pode tratar-se da relacdo entre 1s senhores ¢ os produtores que dependem deles (notar-se-d, aqui, que o termo “senhor" designa aquele que controla um senhorio, na relagio com seus depen- dentes. ¢ ndo tem o mesmo sentido que na relacao feudo-vassillica; de resto. aquele que tem um senhorio recebeu-o, geralmente. senhor mais poderoso). Serdo seguidas, aqui, as andlises de Alain Guerreau, que da a esta relacio entre senhores e dependentes 0 nome de dominium (ou domi- nacdo feudal), pois ela engaja — segundo os termos da época —, de um lado, um dominus (mestre, senhor)e, de outro. produtores postos em posicdo de depen- déncia. Estes ultimos sao qualificados de homines propii (homens do senhor) ou de “viléos” (villani, quer dizer, os habitantes do lugar, originalmente a vila’. O termo “viléo”, que de inicio nao é pejorativo, é sem divida o mais adequado, em primeiro lugar porque a nogo modema de “camponés” nao tem equivalen- te nas concepgdes medievais. Nelas. os homens rurais nio eram definidos por suas atividades (0 trabalho da terra), mas pelo termo “vilio”, que abrange todos 6 aldedos, seja qual for sua atividade (ai incluidos os artesdos), e que ind essencialmente residéncia local. Ele também nao designa um estatuto juridico \livte/naorlivte), questéo que parece relativamente secundaria. A base funda- mental dessa relacao social é antes de ordem espacial: ela designa todos os habi- tantes de um senhorio, os vilios (ou, se quisermos, aldedos) que sofrem a domi- nagdo do senhor do lugar. Além disso, assim como o lago vassélico, essa relagao ‘enuncia-se nos mesmos termos que a relagio do fiel com Deus (homo/dominus). Perante o senhor feudal, os vildos estdo, entdo, na mesma posigdo que os homens diante de Deus, de mado que as duas relagdes se reforgam mutuamen- te, como em um jogo de espelhos. Antes de precisar a natureza da relagio de dominium, é indispensivel defi que. pela razao ja dita, € aspecto decisivo. como vassalo de um ir 0 quadro espacial no qual ela se estabelece ¢ 128 Jévime Bache

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