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Michell Baunard. Tradução de Albuquerque Medeiros (1908) Editora Central Gospel. Digitalizado Por SusanaCap Revisado Por Lucia Garcia
Michell Baunard. Tradução de Albuquerque Medeiros (1908) Editora Central Gospel. Digitalizado Por SusanaCap Revisado Por Lucia Garcia
Michell Baunard
ORELHAS:
Este é o livro mais belo e mais rico que alguém já escreveu sobre o
evangelista João — a testemunha mais importante e a mais bem infor-
mada da verdade do cristianismo. João foi aquele discípulo que destacou-
se entre os doze por sua corajosa ternura e fidelidade a Jesus Cristo, fa-
tores que o tornaram conhecido como "o discípulo que Jesus amava " (Jo
19.26).
Seguindo todos os dias Aquele que "tem as palavras de vida eterna" (Jo
6.68) como seu amigo e confidente, João foi o discípulo que mais próximo
esteve da transfiguração do Senhor no Tabor, de seu coração na Ceia, e de
sua Cruz no Calvário. Foi o evangelista do Verbo, o profeta de Patmos, o
pastor de Éfeso, o missionário de Jônia, o filho do Trovão.
Michell Baunard nos faz caminhar passo a passo ao lado de João
durante aqueles gloriosos dias em que ele viveu em companhia de Jesus, e
após Jesus retornar para o Céu, ainda acompanhamos João em sua
trajetória até a ilha de Patmos, e em seguida seguimos os seus últimos
passos sobre a face da terra.
Venham, venham, pois não é um artista, não é um atleta ou um
retórico que vou fazer vocês ouvirem.
É um homem cuja voz ressoa como a do trovão no céu. O universo
tornou-se cativo dessa voz inspirada pela graça. Além de encher o mundo,
ela é repleta de uma harmonia celestial indescritível. Esse filho do trovão,
que Jesus amou, que é uma das colunas da Igreja na terra, que bebeu do
cálice de Jesus, que viu abrir-se o céu e que descansou sobre o seio de seu
Mestre, vem hoje até vocês. Um grande correr de cortinas celestiais, um
portentoso rasgar de véus vai começar. O céu inteiro é a cena e os crentes
em Jesus Cristo reunidos em sua Igreja sobre a face da terra serão os
espectadores. Porém, não devemos esquecer que João é um homem sem
ciência e sem letras, um pescador de Betsaida, o filho de Zebedeu. Que
nos poderá dizer este homem da Galiléia que só conhece a sua pesca? Não
irá nos falar de redes e de peixes?
Não, ele nos falará unicamente de coisas celestiais ignoradas antes
dele. Esse homem que bebeu sua sabedoria nos tesouros do Espírito Santo,
vai fazer empalidecer todos os pensamentos sublimes de Aristóteles e de
Platão.
Este livro traz inúmeras informações inéditas sobre o Quarto
Evangelista. Seu autor, escrevendo de maneira clara e inspiradíssima,
mostra, entre outras coisas, que em lugar algum a Verdade se revela de
maneira superior à maneira como ela está no Evangelho, e em parte
alguma ela se mostra mais profunda e mais bela do que no Evangelho de
João.
INTRODUÇÃO
1ª parte
A mãe de João era aquela generosa Salomé que mais tarde veremos
acompanhando os passos de Jesus durante seu ministério (Marcos 15.40;
16.1). Nada prova, porém, como pretendem alguns autores, que Salomé,
mãe de João, fosse parente ou mesmo irmã de Maria, mãe de Jesus. Mas o
Evangelho nos faz entender que suas almas ao menos eram da mesma
família. Houve um episódio em sua vida que nos forneceu traços visíveis
de seu caráter e do seu coração. Foi quando ela se aproximou de Jesus
para interceder pelos seus filhos, solicitando para eles um lugar de honra
junto ao Rei de Israel (Mateus 20.20-21).
Veremos Salomé mais tarde no monte Calvário. Porém, naquela
hora suprema ela não passou de uma mãe cristã. Ela reconheceu que o
verdadeiro trono do Rei das dores era uma cruz, e ao ver seu filho João ao
pé daquele trono sangrento, no primeiro lugar que tinha pedido para ele,
ela certamente se posicionou ao lado do filho e ficou ali até o fim,
conservando a fidelidade mais generosa, aquela que sobrevive à morte e
que, desfeita em lágrimas, fica junto ao túmulo.
Tendo tido, portanto, uma origem modesta, uma aldeia por pátria,
um pescador por pai, uma mulher generosa por mãe, e por única riqueza
uma barca, assim foi o evangelista João. Porém, será dessa simplicidade
que Deus fará brotar o grande evangelista e o visionário de Patmos.
O filho de Zebedeu ainda não o tinha visto, mas tudo o que ouvia
dizer desse Mestre extraordinário aumentava cada vez mais o desejo de
conhecê-lo, e despertava no seu coração os primeiros indícios daquele
amor que ia tornar-se inseparável do seu nome.
A escola de João Batista era para seu discípulo uma escola de
doutrina superior e celestial, e ao mesmo tempo o aprendizado de uma
vida santamente contrita. Seguindo o exemplo do mestre, dedicou-se ao
nazireado, exercício de santidade em que os judeus se consagravam mais
particularmente a Deus, fazendo voto de abster-se de bebida fermentada,
não tocando em cadáver e deixando crescer intacta a cabeleira (Números
6.1-8).
Acredita-se que João também tenha recebido o batismo do Precursor.
Porém, aquele batismo tinha sido só uma preparação para o batismo
daquele que batizaria com o Espírito Santo e com fogo. E João Batista bem
compreendera isso. Ele preparara o caminho do Senhor, e tornara retas as
suas veredas: o Senhor podia vir.
Jesus Cristo, Filho de Deus, apareceu às margens do Jordão no 15º.
ano do reinado de Tibério, o 30º. da era cristã, e, segundo cálculos de
sábios cronologistas, no começo da primavera.
Havia ali um lugar que os judeus chamavam de Betábara, e que o
Evangelho chama de Betânia ou "casa dos navios". Fora naquele lugar que
outrora os judeus, guiados por Josué, tinham atravessado o Jordão. Era
costume os barcos que navegavam pelo Jordão fazerem uma parada
naquele lugar. Como aquela praia era muito freqüentada por causa do
movimento dos barcos, João, filho de Zacarias, batizava ali.
Naquele dia João Batista tinha junto de si só dois de seus discípulos.
O evangelista João diz que um deles era André, irmão de Simão Pedro.
Mas não revela quem era o segundo. Porém, conhecendo-se o seu costume
de nomear a todos e não se incluir por uma questão de modéstia, conclui-
se que o segundo discípulo era o próprio evangelista João.
João conservou na memória todos os pormenores sobre o
aparecimento de Jesus às margens do Jordão. Foi, diz ele, na décima hora
depois do nascer do sol. Isso correspondia mais ou menos às quatro ou
cinco horas da tarde. Essa era a hora em que os sacerdotes do Templo de
Jerusalém ofereciam o sacrifício da tarde, imolando um cordeiro
(Números 28.4). Vendo aparecer diante dele o divino Salvador Jesus
naquela hora solene do sacrifício da tarde, João Batista aproveitou a
ocasião para apontar para ele e dizer aos dois discípulos:
Eis aqui o Cordeiro de Deus (João 1.36).
Foi esse o nome pelo qual João, filho de Zebedeu, aprendeu pela
primeira vez a conhecer Jesus. Ele jamais o esquecerá. A designação
"Cordeiro de Deus" aparecerá mais tarde nos escritos do evangelista e nos
escritos do profeta de Patmos. E veremos nisso uma lembrança daquele
grande dia, e como que uma herança de João Batista, seu primeiro mestre.
Não era possível dar ao Filho de Deus que se fizera homem um
nome que definisse sua pessoa e sua missão na terra com mais vivo
esplendor.
Jesus Cristo é o Cordeiro e o Santo de Deus. Nele não há mácula
alguma. Nele só há inocência. Esse Ser absolutamente puro, que desde o
pecado original não era neste mundo senão um sentimento e uma
lembrança, desceu do seio de Deus para andar entre nós.
"Achamos o Messias!”
Qual era esse espírito que João desconhecia, e mais tarde devia
possuir melhor do que os outros e que se tornaria o espírito apostólico?
Havia o espírito antigo, o espírito judeu, absoluto, repressivo, que
castigava rigorosamente os culpados, executando por si mesmo a
vingança divina. O espírito cristão, ao contrário, era um espírito de doçura.
O amor perfeito não conhece vingança. Não há arrebatamentos de cólera
onde existe o amor em toda a sua plenitude. Não se deve repelir a
enfermidade humana, mas sim estender-lhe a mão. O desejo de vingança
não entra nas almas transformadas e magnânimas.
Jesus mostrou a João que era preciso amar, que era preciso esquecer-
se de si próprio. Os discípulos, antes de conhecerem Jesus, haviam
formado uma idéia muito grosseira do Reino de Deus, achando que ele
seria o grande império de um príncipe terrestre, cujas fronteiras se
estenderiam de um mar a outro. Era o que chamavam de reconstituição do
Reino de Israel. Inutilmente Jesus lhes repetia que seu reinado não era
deste mundo, que ele devia sofrer os males profetizados ao Varão de
dores, e que seus apóstolos e seguidores só deveriam esperar a hora em
que carregariam a cruz em sua companhia.
Porém, ninguém o ouvia. O espírito de João era nisto tão lento como
o dos outros. Parece até que sendo o maior amigo deste grande rei e
estando mais perto do seu coração, ele achava que deveria também estar
mais perto de seu trono, nesse império grandioso que todas as esperanças
da nação saudavam com entusiasmo e boas-vindas.
Esse era também o pensamento de Salomé, sua mãe. Animada pelo
zelo com o qual ela mesma havia sempre servido esse Mestre tão bom, e
seguindo os seus passos, ela aproveitou uma ocasião em que o Senhor
descia para Jerusalém, a antiga cidade dos reis, para aproximar-se dele e
reivindicar-lhe algo que estava dentro do seu coração. Ela achava que
estava se aproximando o dia em que o Senhor ia afinal tomar posse do seu
trono. O momento era urgente; ela não podia perder aquela ocasião.
Aproximando-se de Jesus em companhia de seus filhos João e Tiago,
aquela mulher o adorou e fez-lhe um pedido. Jesus a recebeu da seguinte
forma:
E ele disse-lhe: que queres? Ela respondeu: Dize que estes
meus dois filhos se assentem um à tua direita e outro à tua
esquerda, no teu Rei- no. Jesus, porém, respondendo, disse:
Não sabeis o que pedis; podeis vós beber o cálice que eu hei de
beber e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado?
Dizem-lhe eles: Podemos. E diz-lhes ele: Na verdade bebereis
o meu cálice, mas o assentar-se à minha direita ou à minha
esquerda não me pertence dá-lo, mas é para aqueles para
quem meu Pai tem preparado. (Mateus 20.21-23)
Era costume no conselho supremo da nação judaica colocar abaixo
da cadeira principal ocupada pelo príncipe do Sinédrio, dois lugares de
honra, denominados o lugar do Pai e o lugar do Sábio.
Ouvindo Salomé solicitar a honra daquela preferência, Jesus tratou
imediatamente de desenganar aquela mãe iludida que se equivocara sobre
a natureza de seu futuro reinado. Ao ouvir dos filhos de Zebedeu a
palavra "podemos", Jesus imediatamente aceitou aquela confissão de boa
vontade, e seu olhar divino penetrou o futuro até o dia em que Tiago e
João seriam levados ao martírio por seu nome. Portanto, ele não hesitou
em prometer-lhe glória muito superior às grandezas terrestres por eles
cobiçadas.
Amar a Deus e servir aos homens era bom; esquecer-se de si próprio
era ainda melhor. Porém, a grande expressão de amor era sacrificar-se
livremente e sofrer. Pois o amor precisa ter sua prova dolorosa, e o dom
supremo que ao discípulo o Mestre apresenta é um cálice de dor. Deste
cálice Jesus foi o primeiro a beber; foi o primeiro a encostar nele os seus
lábios. Jesus não tardou em dar ao seu discípulo uma amostra do que
reservava àqueles que o amam a ponto de morrerem por amor a Ele.
O paralítico em Betesda
A festa que atraiu pela segunda vez Jesus à Jerusalém era, segundo
uns, a solenidade pascal, e na opinião de outros, a festa de Purim. A
chegada do Senhor foi marcada por um de seus milagres. Havia naquela
cidade uma piscina famosa da qual ainda existe vestígios, e que João nos
descreve ligeiramente. Chamava-se em hebraico Betesda, isto é, "casa de
misericórdia". Estava situada perto de uma das portas da cidade, de-
nominada Porta das Ovelhas, pois era costume dos pastores levarem os
rebanhos para ali beberem. Tinha cinco alpendres, conforme observação
de João. Pelas escombros que ainda existem dela, pode-se reconhecer os
vestígios de uma galeria circular para onde se descia através de uns
degraus de mármore. Deitado em uma cama estava ali um homem que há
38 anos era paralítico. Ele estava ali esperando que o anjo viesse revolver a
água a fim de que ela adquirisse a virtude curativa. Mas não havia
ninguém que ajudasse aquele homem a entrar na piscina quando o anjo
agitava as águas, observa o narrador com a exatidão ordinária de seu
testemunho.
Jesus passou por ali, viu aquele homem estendido, e sabendo que
havia muito tempo que ele estava doente, perguntou-lhe: "Queres ficar
são?" E em seguida, disse-lhe:
Levanta-te, toma a tua cama e anda. Logo, aquele homem
ficou são, e tomou a sua cama, e partiu. (João 5.9)
O amor fizera a sua obra, mas o ódio ia começar a sua. O dia em que
essa cura ocorrera era um sábado, lembra João. A obrigação em se
observar o repouso do sábado tinha se tornado naquela época uma
superstição terrível e cega. O castigo infligido indistintamente contra o
idolatra, contra o assassino e contra quem violasse o sábado era o exílio.
"Deus perdoa qualquer pecado a todo aquele que guarda o Sábado, menos
o pecado de não guardá-lo", diz um texto do Talmud.
As autoridades judaicas ficaram então enraivecidas contra aquele
que acabava de se colocar acima do sábado, restituindo a saúde a uma
mortal criatura de Deus. A hipocrisia dos fariseus culpava tanto o doente
quanto aquele que o curara milagrosamente. Diante de suas pérfidas
censuras, Jesus respondeu com uma só palavra:
Meu Pai trabalha até agora e eu trabalho também. (João 5.17)
Isto é, há um sábado que Deus não conhece, é o sábado do bem. O
quê? Chamar a Deus de seu Pai é fazer-se igual a Deus. Isto era uma
grande blasfêmia. Travou-se um longo debate sobre aquela afirmação tão
audaciosa, incrível, absolutamente provocadora. Jesus fez ainda naquele
momento uma longa exposição sobre sua divindade. Porém, como a fúria
dos fariseus tornou-se cada vez mais ameaçadora contra ele, foi necessário
ele e os discípulos deixarem Jerusalém por algum tempo e voltarem à
Galiléia.
Após retornar à Galiléia, a narrativa de João nos coloca de novo
diante do lago de Tiberíades, de Cafarnaum, dos barcos e pescadores, da
fé singela da multidão e do entusiasmo do povo em seguir Jesus Cristo até
no deserto. É nessa ocasião que João nos conta a multiplicação milagrosa
dos pães e peixes, a noite em que Jesus andou sobre o mar, suas pregações
sublimes na sinagoga, a emoção dos ouvintes, a futura instituição da Santa
Ceia.
A ressurreição de Lázaro
Eis porque sua palavra é sempre tão simples como natural e elevada.
Os filhos de rei, nascidos no meio das grandezas, falam com toda
naturalidade sobre palácios, cetros e coroas. Jesus não discute, não replica,
não declama. Nem mesmo procura provar nada. O que tem a luz a fazer
senão mostrar-se? A palavra é por ele semeada como os grãos nos campos,
abundantemente, porque ele os tem em quantidade; serenamente, porque
ele é o Senhor; com simplicidade, porque ele pode humilhar-se sem nada
perder de sua grandeza; enfim, confiantemente, porque ele sabe o dia e a
hora da colheita.
Sendo ele mesmo profeta, via-se morrer e tombar no sepulcro como
o grão na terra, mas para emergir como a espiga. Dizia que seu sangue
seria seu batismo, e que sua paixão seria sua glória, e que tudo enfim seria
consumado na unidade e não haveria mais do que um só rebanho e um só
pastor. Tudo o que temos visto ao longo desses dois mil anos de história
da Igreja, todas as luzes e direções que a humanidade há de receber do
Evangelho até o fim dos tempos, Jesus o predisse.
Um terceiro poder da inteligência de Jesus é não conhecer a dúvida,
é permanecer certo e senhor de si mesmo. Esta certeza serena jamais
abandonou o Mestre. Ele mantinha-se sempre inabalável ao falar e provar
sua divindade. Enquanto os opositores a discutem, ele a sustenta;
enquanto eles a negam, ele a confirma. Ousam objetar-lhe que ele não
conhece as letras; ele responde que é a Sabedoria de Deus em pessoa. Não
querem ver nele senão o filho de José, o carpinteiro, cuja família conhecem
em Nazaré; ele assegura tranqüilamente que o próprio Deus é seu Pai, e
que veio de Deus.
Não se incomoda se seu discurso surpreende. Se sua linguagem
escandaliza, ele não a corrige; se sua palavra parece severa, ele não a
modifica. Se os incrédulos o abandonam por causa da sua doutrina, ele se
compadece dos dissidentes, mas deixa-os partir. A cada reação de espanto
por suas afirmações, o Verbo de vida responde com uma afirmação ainda
mais positiva.
Tal foi o retrato que João traçou de seu Mestre. Nada citou que Jesus
não tivesse dito, nada escreveu que não tivesse visto. Devido a uma
irremediável enfermidade humana, toda grandeza perde seu prestígio
vista de muito perto. Porém, três anos passados na familiaridade da alma
de Jesus tinham feito crescer aos olhos de seu discípulo o brilho de sua
beleza sem igual.
Qual de vós me convencerá de pecado? perguntava o Justo. Há dois mil
anos que o Evangelho sustenta o mesmo desafio ao mundo. Será que, ao
longo dos séculos, acharam em Jesus uma única ambigüidade, uma só
fraqueza, uma única sombra de injustiça? Eclipsou-a alguma beleza?
Alguém já conseguiu igualá-la? Não!
Seria possível a caneta ou o pincel criar, imaginar esse retrato de
Jesus não tendo existido qualquer original que se aproximasse, que
pudesse ao mesmo dar uma idéia e fornecer o modelo? Não, porque não é
possível criar Deus, não se inventa uma figura divina, pois o inventor
seria então maior que o herói. Se João pôde exprimir o ideal divino é que
este ideal viveu debaixo de seus olhos, e que, como o próprio João
confessa, ele usufruiu durante três anos da visão, da palavra e do contato
com Deus. Para ele nos dar um retrato verdadeiramente divino só teve
que recordar-se e descrever.
Que grande ouvinte teve Jesus de suas palavras! Que maravilhoso
contemplador de suas obras! Que discípulo fiel à doutrina! Ó
contemplador espiritual! Ó homem divinamente inspirado, tu vistes a face
do próprio Deus!
Havia três anos que João não deixava seu Mestre. Ele tinha gravado
no espírito as suas palavras, havia fixado em sua alma os traços
fisionômicos de Jesus. Tinha também participado de seus sofrimentos. Em
parte alguma se lê sobre os ultrajes dos judeus, o ódio dos fariseus, a
inveja dos sacerdotes contra o Filho de Deus em uma história mais
contínua e mais comovedora como no Evangelho de João.
Porém, naqueles últimos tempos, o apóstolo verificara que a cólera,
a princípio em surdina, prorrompia dia a dia em ameaças mais sinistras.
Os inimigos chegavam já às primeiras violências contra Jesus. Um dia os
fariseus mandaram pessoas para prender o Mestre (João 7.32,44). Outra
vez quiseram apedrejá-lo. João sabia que, em uma reunião do Sinédrio,
haviam decretado que o Justo devia morrer (João 11.47). Mas Jesus
escapou daquelas mãos deícidas, dispostas a matar o próprio Deus (João
8.59). Conseqüentemente, conforme nos conta João, os discípulos foram
obrigados a seguir o Mestre para uma espécie de exílio, e passaram um
tempo escondidos em uma cidade, junto ao deserto, chamada Efraim (João
11.54) para fugirem dos males extremos que ameaçavam cair sobre a
cabeça de Jesus.
Porém, a festa da Páscoa, que fez Jesus voltar à cidade, despertou o
entusiasmo popular com tal impulso de gratidão que os inimigos do
Salvador resolveram definitivamente acabar com ele, e João previu tristes
acontecimentos.
Muitas vezes Jesus havia dito:
Ainda o meu tempo não está cumprido. (João 7.8)
Porém, João ouvia-o dizer agora:
É chegada a hora em que o Filho do Homem há de ser
glorificado. Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de
trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer,
dá muito fruto. Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem,
neste mundo, aborrece a sua vida, guardá-la-á para a vida
eterna. (João 12.23-25)
Ora — observa o discípulo — Jesus dizia isso significando de que
morte havia de morrer. (João 12.33)
Jesus dizia ao povo que em breve a Luz lhes seria retirada (João
12.35); porém jamais aquela Luz mostrará brilho mais divino. Sua alma
parecia já cheia do céu, e João, que seguia ininterruptamente a Jesus
naquela fase suprema, podia prever revelações mais elevadas e maiores.
Era a última semana de vida do Filho do Homem. No quarto dia,
tendo ele ido ao átrio do Templo, propôs ao povo dupla parábola. Após
contar primeiro o crime dos maus vinhateiros que mataram o filho do
dono da vinha, Jesus falou em seguida de uma grande ceia que um rei
preparara para as bodas de seu filho, e para a qual convidara os pequenos
e os pobres, dizendo-lhes: "Vinde, pois está tudo pronto.”
O traidor
CAPÍTULO 8 - AO PÉ DA CRUZ
Em seguida ela se voltou e viu que havia mais alguém ali. Era o
Senhor. Todavia, no meio das lágrimas, ela não o reconheceu, e pensou
que ele fosse o jardineiro. Ela também perguntou a ele pelo seu Mestre.
Jesus só lhe disse uma palavra: "Maria!". Mas esse era o seu nome de
honra, o seu nome de reabilitada, e aquela voz ela conhecia muito bem:
era a voz do Mestre! Rabboni! exclamou Maria Madalena, e se lançou aos
seus pés para adorá-lo.
Mas o Senhor lhe disse:
Não me detenhas, porque ainda não subi para o meu Pai, mas
vai para meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu pai e
vosso Pai, meu Deus e vosso Deus. (João 20.17)
Era para poupar o coração de Madalena que Jesus lhe impunha
aquele sacrifício. Como poderias ainda ficar sobre a terra, se eu te deixasse beijar
meus pés?
Era a hora do Cristo invisível suceder o Cristo visível. Até ali tinha
sido possível derramar lágrimas e perfumes aos pés dele. Agora não seria
mais possível. Jesus fez Madalena levantar os olhos para o céu, para onde
ele em breve vai subir, e mandou-a contar a seus irmãos tudo o que
acabava de ver.
João e Madalena creram pelo que viram e ouviram; creram pelo
olhar. O de João foi mais espontâneo, o de Madalena mais ansioso. Um só
necessitou de um olhar e logo creu; o outro necessitou de palavras e apari-
ções. Ambos se apressaram e correram. Todo amor tem asas. Mas João só
precisa de um instante para contemplar as evidências e crer; Madalena
deve demorar-se algum tempo mais no túmulo. João advinha; Madalena
procura. Mas quando se ama a Jesus, não se procura durante muito tempo:
ambos o encontram no seio de seu triunfo. Como dádiva e coroamento
por o terem seguido até o lugar de seu suplício.
Eis o despertar que Deus reserva àqueles que lhe são fiéis. Há
sempre duas cabeças sobre as quais Jesus Cristo não cessa de estender no
mundo as duas mãos que foram cravadas em sua cruz ensangüentada e
gloriosa: a do arrependimento e a da fidelidade. Ele as estendeu sobre
Madalena e João. A uma ele perdoou muito; ao outro ele confiou os seus
segredos. Enquanto o arrependimento permaneceu mais abaixo, a seus
pés, beijando-os com humildade, a lealdade e a inocência repousaram
sobre o seu coração.
A princípio, o relato das mulheres foi considerado "delírios
femininos". E os primeiros relatos dos homens não conseguiram inspirar
mais fé que o das mulheres. A aparição de Jesus a Pedro tinha sido algo
pessoal. Os discípulos de Emaús tinham reconhecido o Senhor pelo partir
do pão. Eram fatos isolados. Os que ouviam essas narrações admiravam-
se, ficavam emocionados, mas não se rendiam.
João narrou os fatos da ressurreição opondo a sua fé e a de
Madalena à pertinaz incredulidade de Tomé. Agora não se tratavam mais
de aparições isoladas. Jesus aparecera aos apóstolos reunidos num mesmo
lugar.
Tais eram as mais vivas recordações de João. E mais tarde, na
abertura de sua primeira carta, ele revela em que fatores de credibilidade
sua autoridade para falar sobre a ressurreição de Jesus se baseava:
O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos olhos,
o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram a Palavra
da vida (porque a vida foi manifestada, e nós a vimos, e
testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna, que estava
com o Pai e nos foi manifestada), o que vimos e ouvimos, isso
vos anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco;
e a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo.
(1 João 1.1-3)
Por ele ter visto, ouvido e tocado, nós podemos ainda hoje ver, ouvir
e tocar em tudo aquilo que ele nos contou: a marca imortal do seu livro
permanece sempre jovem em nosso coração.
2ª parte
Simão, o mágico
Foi ali que João se achou pela primeira vez na presença de uma
dessas heresias filosóficas e místicas ao mesmo tempo que, com o nome de
gnosticismo, devia ser o campo de futuros combates. Nessa província de
Samaria achava-se um mágico conhecido pelo nome de Simão, praticante
de artes mágicas e que pretendia comprar o dom do batismo com o
Espírito Santo.
Simão era da aldeia de Giton ou Gita, na Samaria. Apresentara-se
aos samaritanos como aquele que ditara a lei no Sinai. Aos pagãos ele se
dizia o Zeus soberano, dando o nome de Minerva ou Sabedoria encarnada
a uma prostituta que ele encontrara em Tiro e que ele chamava de Helena.
De acordo com o sistema que ele pregava, ela representava o princípio
passivo e material, que ele, Simão o mágico, o Salvador, viera reabilitar no
mundo.
Quando apareceu a Boa Nova do cristianismo, Simão não a
repudiou; fez-se batizar, e tomando da doutrina do Evangelho o que
podia adaptar-se a seus sonhos e suas mentiras, apresentou-se em pessoa
como o Redentor. Não era ele, com efeito, o libertador das almas de-
gradadas no corpo? Não era ele o bom pastor que viera procurar e salvar
dos abismos do mundo onde ela se perdera, aquela Helena desgraçada,
aquela ovelha ferida e perdida no deserto das paixões grosseiras?
Simão ia, portanto, semeando suas falsas doutrinas e sua fama em
Samaria e em outras províncias. A Síria, a Fenícia, talvez mesmo Roma,
viram Simão maravilhar as multidões, menos pela sedução de suas mági-
cas do que pelo ostentação de sua vida. Fazia-se passar, segundo Jerônimo,
pelo Verbo divino. "Eu sou o Verbo, dizia ele, a Palavra de Deus, o Belo, o
Paracleto, o Todo-Poderoso, o Todo de Deus".
Simão testemunhou os milagres operados sobre os neófitos de
Samaria pela imposição das mãos dos dois apóstolos; e aqueles dons do
Espírito Santo, que o enchiam de admiração, despertaram-lhe também a
inveja. Achando que tudo aquilo não passava do efeito do prestígio
empregado por concorrentes mais hábeis, o mágico propôs a Pedro e a
João comprar-lhes o segredo. Mas aqueles que haviam dito ao mendigo
que estava na porta do Templo que não possuíam nem ouro nem prata,
repeliram as ofertas interesseiras do impostor dizendo-lhe: O teu dinheiro
seja contigo para perdição. O Senhor assim o tinha ordenado: De graça
recebeste, de graça daí. (Mateus 10.8). Aquela tentativa de negociar com
coisas santas recebeu o anátema dos apóstolos e o nome, dali em diante,
de Simonia, e iria perpetuar a lembrança de seu primeiro autor, Simão, o
mágico, assim como o anátema lançado contra ele.
Naquela época João também participou do ministério da eleição dos
pastores. Naquele tempo os apóstolos designaram a um deles, Tiago,
denominado o Menor, irmão de Jesus, para exercer as funções de pastor
de Jerusalém. Tiago, por sua grande santidade, conquistou o respeito
tanto dos judeus como dos cristãos.
O Talmude conta que o judeu Eligazer foi curado da picada de uma
cobra pela oração de Tiago em nome de Jesus.
Outra tradição diz que Tiago era tão parecido com Jesus nos modos
e nos traços, que até se pensava que ele era gêmeo com o Senhor. Vendo-o,
tinha-se a ilusão de ver o próprio Jesus Cristo.
A conversão de Paulo
Apolônio de Tiana era o seu nome. Ele tinha vindo opor os seus
falaciosos prestígios aos milagres dos apóstolos, e suas pomposas virtudes
à santidade cristã. Aquele era o único terreno onde o antagonismo do céu
e da terra não se haviam ainda encontrado e travado combate.
Mas quem era aquele homem? Qual o papel que ele representava ou
que lhe atribuíam? Que crédito merece a sua história?
Havia quase um século que a figura imponente de Jesus Cristo
irradiava seu brilho na história, lançando um fulgor que fazia empalidecer
todas as outras glórias. Por mais que se quisesse fechar os olhos à sua luz,
aquela incomparável beleza da natureza humana e da natureza divina
unidas numa só pessoa, o puro exemplo de um sábio que era ao mesmo
tempo o Justo, o legislador do mundo, e seu Salvador pelo poder do seu
sangue; aquele Deus, enfim, que era ao mesmo tempo o mais doce e o
mais humilde dos filhos dos homens, impunha admiração sem todavia
desencorajar a inveja. Era uma superioridade que não se podia
desconhecer. Para diminuí-la e esmagá-la a filosofia procurou um
concorrente que pudesse se opor vitoriosamente a Jesus.
Um sábio da Capadócia, chamado Apolônio, foi o escolhido. Seu
primeiro biógrafo, Moeragenes, citado por Orígenes, tinha-o como
poderoso encantador; Dion Cássio citava uma predição dele; o imperador
Caracala falava em erguer-lhe um santuário; a imperatriz Júlia, esposa de
Severo, pedira que lhe escrevessem sua história; Flávio Filóstrato pôs
mãos à obra e apresentou-lhe um romance.
A história de Apolônio de Tiana, escrita por Filóstrato, é uma
falsificação, um plágio da vida de Jesus Cristo. Nela não é feita nenhuma
referência ao Filho de Deus, porém nisso nota-se mais uma das
habilidades de Filóstrato. Inúmeras passagens traem a intenção do autor.
O nascimento de Cristo tinha sido anunciado à Maria por um anjo; o deus
egípcio Proteu apareceu igualmente à mãe do encantador para lhe revelar
a glória futura de seu filho. Muitos sinais tinham ocorrido em torno do
presépio de Jesus; notaram-se sinais semelhantes no berço do "grande
Apolônio".
O menino de Nazaré ia todos os anos ao templo, e em uma dessas
vezes causou admiração aos doutores; o jovem Apolônio, assíduo nos
templos, ali demonstrava possuir uma ciência ainda mais admirável. Jesus
lia nos corações, o mágico conhecia o segredo dos pensamentos; ele
descobriu um crime secreto de um ciciliano, assim como Jesus penetrou o
segredo da vida da samaritana.
Jesus é Deus e homem: Eunápio reclamou esse título para o herói
sobre-humano de Filóstrato. Jesus realizou milagres, Apolônio os realizou
ainda mais admiráveis, pois a ficção não sabe falsificar sem que exagere, e
por ali mesmo a invenção se trai. Jesus ressuscitou milagrosamente a filha
de Jairo e o filho da viúva; Filóstrato fala de um jovem de Roma cujo
cortejo fúnebre Apolônio encontrou, ressuscitou o rapaz e o restituiu à sua
mãe. Os possessos foram libertos, os demônios eram forçados a se
denunciar pela própria voz. A história de Empusa, noiva de Menippus,
um discípulo de Apolônio, libertado por ele, é a imitação de uma
narrativa do Evangelho de Lucas. Enfim, à semelhança do Homem-Deus,
é também por um de seus discípulos, o cobiçoso Eufrates, que o filósofo
foi vendido: como Jesus, Apolônio enfrentou resolutamente os juizes,
certo da sorte que lhe estava reservada.
Como Jesus, Apolônio foi abandonado; como Jesus ele sofreu os
ultrajes dos tiranos. Enfim, para que nada faltasse àquele disfarce, o
filósofo, que todos achavam que estivesse morto, apareceu entre os seus;
mostrou-se aos amigos, insistindo para que o tocassem a fim de terem a
certeza de que não era um fantasma fugido do reino das sombras.
Porém, ao lado dessas semelhanças completamente artificiais, havia
entre o Evangelho e o livro de Filóstrato a distância infinita que separa os
romances escritos por homens que não conhecem a Deus, da história sem
igual do Filho de Deus. Os pobres inventores não tinham sabido fazer de
seu sábio ideal nem ao menos um homem vulgarmente honesto. Ou muito
alto ou muito baixo, esse tipo não atinge ou não ultrapassa as medidas. É
que a medida de Deus não está nas mãos do homem para que ele possa
assim talhar uma figura conforme a sua fantasia. Não há nada melhor
para pôr em relevo a excelência do Evangelho do que aquela pobre
imitação, que serve de fortalecimento das evidências da divindade de
Jesus.
O ensino deste suposto rival de Jesus Cristo mostrava da mesma
maneira uma falsificação grosseira do Evangelho. Sua doutrina era a do
pitagorismo. Tinha tendências a voltar ao culto primitivo da natureza
universal, cujas forças múltiplas recebiam adoração sob muitos nomes e
muitas formas. Sua moral pregava a abstinência, a vida discreta, o
desprendimento, a luta contra a concupiscência. Eram as normas de vida
dos cristãos, menos a base, o meio e o vértice que é a humildade, a
verdade e o amor.
Por isso ruiu tudo por terra. A tentativa de melhorar o mundo
começada por Apolônio, continuada mais tarde por Plotino e Porfírio,
perdeu-se pela afetação, pela esterilidade e pelo ridículo, e dela só ficou a
lembrança de um frágil sonho de orgulho por parte daqueles que querem
reformar o mundo sem Deus, com a pretensão de fazê-lo melhor do que
Ele o fez.
Agora, quais são as grandes linhas dessa história? Que verdade se
destaca desse amontoado de fábulas com que Filóstrato sobrecarregou a
vida de seu herói?
Depois de ter passado os primeiros anos de sua vida na pequena
cidade de Tiana, na Capadócia, onde nascera, Apolônio partiu para as
escolas de Tarso. Ali foi seduzido pelo caráter místico da escola de
Pitágoras, e, separando-se da companhia de estudantes turbulentos,
começou a levar vida solitária, pessoal e estranha que devia dar-lhe todo o
prestígio e as honras futuras.
Observando durante alguns anos o silêncio dos pitagóricos, repartiu
a pequena fortuna entre a irmã e os pobres, e em seguida, vestido
unicamente de uma túnica de linho, pôs-se a percorrer, sucessivamente, a
Pérsia, a Babilônia, as Índias, o monte Atos, Antioquia, Chipre, a Grécia,
entretendo-se com os brâmanes e os mágicos, os filósofos e os sacerdotes,
sondando todos os mistérios da ciência e da natureza, arrancando-lhe
segredos que fez depois passar por fenômenos divinos, e desta maneira
maravilhando e fascinando as multidões, eternamente ávidas de
novidades, de milagres e revelações.
Uma grande reputação de sábio e de realizador de milagres
precedera-o, portanto, quando chegou a Éfeso. Ali ele teve acolhida digna
de sua fama. Não houve nobre operário nem homem de condição mais
baixa e vil que não lhe viesse ao encontro, deixando o trabalho para lhe
ver a face. Seguia-o tão grande multidão, que era quase impossível chegar
perto dele; uns, maravilhados com seus conhecimentos, outros com a
majestade de seu porte; uns, impressionados pela sua maneira austera de
vestir, outros, por sua alimentação, e a maior parte pelo conjunto de todas
estas coisas, com as quais se entretinham entre si de diversos modos.
Apolônio de Tiana, o perigoso impostor, o homem que tentou
usurpar o nome, a história, as maravilhas e a glória de Jesus, entrou em
Éfeso quando lá ainda se encontrava o apóstolo João.
Porém sua estada naquela cidade foi muito curta, e o entusiasmo do
povo arrefeceu prontamente. Devemos atribuir esta desconsideração à
influência secreta da comunidade cristã? João teria contribuído para isso,
esclarecendo o povo enganado e desmascarando o impostor? Filóstrato
diz apenas que seu herói encontrou grande oposição em Éfeso. Depois,
suas virtudes não foram convincentemente provadas diante do povo,
conforme quisera fazer crer o seu "biógrafo". Alguns, como Eufrates,
notaram que a pobreza austera de Apolônio era fingida. O que havia ali
era um esperto negociante sob a capa de um filósofo.
Seu orgulho e pedantismo levou o povo a rejeitá-lo e a se afastar
dele. Não recebo ordens de ninguém, dizia Apolônio; sou eu que mando em
mim mesmo. Quando, perto de Babilônia, alguém lhe perguntou o que tra-
zia consigo, o soberbo filósofo respondeu: Trago comigo a justiça, a
constância, a sabedoria, a temperança, a modéstia, a paciência, a
magnanimidade, a continência e a coragem...
Tal era o homem que mais tarde o sofista Hérocles não temeu
comparar com Aquele que foi "manso e humilde de coração"! O povo que
a princípio correra para ouvir suas lições, acabou vendo nele apenas um
charlatão da sabedoria. Apolônio abandonou então a cidade de Éfeso.
Não era essa, sem dúvida, uma crença e uma doutrina pessoal de
João. Antes dele já os três evangelistas a tinham formulado. A divindade
de Jesus Cristo manifestava-se igualmente em todas as epístolas de Paulo.
Quem escreveu esta definição:
dos quais são os pais, e dos quais é Cristo, segundo a carne, o
qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém.
(Romanos 9:5)
não foi João, mas Paulo. E João, endereçando seu Evangelho às
nações, teve todo o cuidado de prevenir aos prezados amigos que ele não
era nenhum inovador, e que seu ensinamento era o mesmo que eles tinham
ouvido desde o princípio.
O que os outros evangelistas apenas anunciaram, João desenvolveu.
Tinham verificado a divindade de Cristo, João a demonstrou. Tinham-na
feito sobressair na narrativa da vida de Jesus, João deu-lhe todo o brilho
na pregação do Senhor.
Entre os milagres de Jesus, ele preferiu narrar aqueles que melhor
provam sua divindade. Entre as palavras de Jesus, insistiu sobre aquelas
que confirmaram mais claramente a sua divindade. O caráter histórico do
livro nada perdeu com isso; porém o caráter dogmático e apologético
destacou-se mais nitidamente. Deste modo João atingiu o fim primordial
de sua obra, que era opor uma refutação indireta, porém formal às
incredulidades do tempo e do futuro quanto à natureza divina de Jesus.
João se encontrava, pelo seu apostolado, em presença das escolas
gnósticas. Isto é bem visível no seu Evangelho. Obrigado a dirigir-se às
filosofias, não desprezou, no entanto, as altas especulações que os sábios
da Ásia pretendiam achar na ciência. Daí o porquê de João, o evangelista,
ter sido chamado na antigüidade de "João, o teólogo". Daí a profundidade
dogmática do livro. Não é mais o evangelho do cumprimento da antiga
profecia; não é mais apenas a narrativa dos acontecimentos de uma vida
sublime: é o Evangelho do Verbo de Deus, mas o Verbo Vivo, palpável,
numa história fiel.
Vemos também que as palavras de Jesus, repetidas por João, foram
quase todas pronunciadas na Judéia e em Jerusalém. Não se fala a
doutores e aos principais de um povo como se fala a pescadores de um
lago. Na Galiléia, diante de uma multidão composta de pessoas simples,
numa barca, numa praia, sobre a relva de uma colina, para os pequenos e
os pobres, as parábolas familiares, como simples conversas,
harmonizavam-se muito mais com a bondade condescendente de Jesus do
que com a sua profundidade teológica.
Porém na Judéia, sob os pórticos do Templo de Jerusalém, aos
conhecedores da lei, aos prosélitos vindos de todas as sinagogas, aos
estrangeiros chegados de todas as cidades cultas, era necessário, sobre um
mesmo fundo de doutrina, Jesus usar outras palavras, outros métodos de
comunicação. Na Galiléia Jesus de Nazaré era o profeta prometido a Israel,
e seus ensinamentos simples e sua bondade bastavam para comprovar a
sua missão divina. Porém na Judéia, ele tinha que se apresentar como um
doutor, um Mestre, e seus discursos deveriam provar sua divindade. Ora,
as palavras pronunciadas por Jesus e citadas por João eram de tal
profundidade e magnitude que os próprios inimigos confessavam que
jamais homem nenhum falou como este. (João 7.46)
O Evangelho de João é como a flor dos Evangelhos. Só podia
penetrar a tal profundidade aquele cuja cabeça repousou sobre o peito de
Jesus. Só o amigo tão íntimo do Senhor, o discípulo tratado pelo Mestre
como um outro eu, seria capaz de ter os pensamentos e sentimentos que
ele apresenta no Quarto Evangelho. João bebeu em segredo naquela fonte
divina, seu evangelho é o resultado da união entre o seu coração e o
coração de Jesus.
Se é verdade que pelo estilo se conhece o homem, que homem
poderia melhor descrever Jesus Cristo como o Verbo Todo-poderoso e o
manso Cordeiro de Deus, a não ser o gênio ardente e ao mesmo tempo
meditativo do filho do trovão, do discípulo predileto? Eis porque a gran-
deza e a bondade de Jesus, sua sublimidade e ternura, todos os aspectos e
traços do Salvador se refletem no Quarto Evangelho como na mais
cristalina água. Das narrativas evangélicas a de João é a mais admirável, a
mais comovente e a mais simples. Vemos se reproduzirem ao vivo todos
os fatos que ele descreve; ele faz realmente reviver Jesus Cristo diante dos
nossos olhos. Milagre tanto de simplicidade como de sublimidade, um
vôo para a luz eterna, porém sempre amparado pelo sopro do amor que
nasceu em um coração humano.
João era um homem puro. Todos reconhecem que esse fato é uma
força intelectual indispensável nas coisas divinas. E principalmente neste
assunto que a penetração do olhar do espírito depende de sua pureza:
"Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus." A
pureza moral permite voar livre e continuamente para a luz. O olhar da
alma, como o do corpo, tem maior ou menor alcance de acordo com a
pureza da pessoa. "Há, diz muito bem Orígenes, diferentes formas sob as
quais o Verbo se revela a seus discípulos, conformando-se ao grau de luz
de cada um, conforme os graus de seus progressos na santidade. Se ele se
manifestou na montanha da Transfiguração sob uma forma mais sublime
do que aquela com a qual apareceu aos que, tendo permanecido embaixo,
não podiam atingir o alto, a razão é porque os que ficaram embaixo não
tinham os olhos capazes de contemplar a glória e a divindade do Verbo
transfigurado. João e só mais outros dois discípulos foram levados por sua
santidade a essas luminosas alturas".
O estilo do Evangelho de João é espontâneo e sublime. A expressão
jorra naturalmente, sem afetação, vertendo-se no discurso como o ouro em
fusão, sob o fogo do Espírito Santo. Daí esses vôos rápidos que são como o
bater de asas da águia dos evangelistas. A plenitude do Espírito, ao descer
do céu, achando na palavra humana vaso muito estreito para poder contê-
la, ocupou-a com violência e transbordou. As formas ordinárias da lingua-
gem foram destruídas; o pensamento entrou em luta com a expressão; e
além do primeiro sentido aparecem sentidos novos e profundos que
prolongaram indefinidamente a riqueza de significado das palavras. Isto
ocorreu com a capacidade de João se expressar por escrito.
Além do mais, ninguém duvida que o contato de João com as
escolas de Éfeso e sua convivência habitual com os gregos tenham polido
aquele pescador. Nele nada há de impróprio, de inconveniente, de rasteiro.
Dir-se-ia que João não só recebeu o dom de tudo ver, mas de exprimi-lo
muito bem. Todavia, os hebraismos, as formas siríacas, as locuções
caldaicas, traem no idioma grego que João usou o hábito de outra língua e
de outro país. Reconhece-se o galileu no cidadão de Éfeso, e as duas
pátrias de João podem ser identificadas muito bem só por seu estilo.
O conhecimento perfeito que ele tinha do judaísmo mostra a que
cultura ele pertencia por direito de nascença; mas a maneira um tanto
livre com a qual ele falou sobre os seus compatriotas prova que ele
rompera com a Sinagoga. O estilo sentencioso, entrecortado e ritmado da
frase procede claramente do elemento hebraico, ao passo que a fluidez
suprema da sua linguagem faz logo reconhecer a influência das novas
pessoas entre as quais ele terminou os seus dias. Quanto às repetições que
lhe são habituais, alguns estudiosos viram nisso um sinal da grande
velhice do escritor sagrado.
É desta forma que o Evangelho completo revela o autor e o autor
explica o Evangelho. O evangelho de João é o mais belo trabalho que a
terra possui e que jamais possuirá, mesmo entre aqueles nascidos da inspi-
ração de Deus.
Quanto mais uma palavra se assemelha a um pensamento, um
pensamento a uma alma, uma alma a Deus, mais belo torna-se tudo isso.
Ora, que beleza sem igual não devia brilhar num livro onde a palavra é a
imagem do pensamento e da alma do Filho de Deus?
O Evangelho de João termina pela confissão de sua impossibilidade
de tudo dizer e de atingir essa profundidade inesgotável de grandeza,
virtudes e graças que é Jesus Cristo:
Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e, se cada uma
das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter
os livros que se escrevessem. Amém. (João 21.25)
João confessava-se perturbado pelo sentimento do inefável que é a
revelação de nossos limites, sentimento doloroso muitas vezes, mesmo em
presença das grandes coisas humanas — desespero inevitável do homem
diante da imensidão de Deus.
Sua marca está por toda a parte: o Criador assinou a sua obra, nela
imprimindo a sua imagem e grandeza. Qual é este testemunho e esta
amostra que o Verbo nos deu de si senão a beleza indescritível do mundo
que expôs aos nossos olhos? O céu, a terra e o mar são as mais belas
palavras de um livro no qual está escrita a Palavra de Deus. "O céu é um
decálogo onde Deus se revelou, disse Clemente de Alexandria, e o mundo,
repetindo a bondade, a sabedoria e a beleza de seu autor, vai cantando por
toda a parte as maravilhas do Verbo, no tom harmonioso que o sábio
Pitágoras pensava ouvir nos céus.”
João afirmou também que o Verbo não é somente o arquiteto do
mundo físico e da ordem material; ele é Esplendor de Deus, e penetra o
mundo dos espíritos para lhes ser a luz, a inspiração e a vida:
E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a
compreenderam. Ali estava a luz verdadeira, que alumia a
todo o homem que vem ao mundo, estava no mundo, e o
mundo foi feito por ele e o mundo não o conheceu. (João 1.5,9-
10)
No terreno natural, o Verbo é a luz da razão. É aquela palavra
profunda que se faz ouvir sem cessar no mais íntimo da consciência. Esta
palavra falou, esta luz brilhou antes mesmo de Jesus Cristo vir habitar
entre nós; esclareceu os sábios antes de iluminar os santos; e este sol das
almas teve uma longa aurora, antes do belo dia em que brilhou sobre as
nossas cabeças.
Os homens ouviram. O Verbo de Deus retumbou nas alturas do
Orebe e do Sinai, ecoou nas mensagens dos profetas, cantou nas harpas
santas, e as nações guardaram-lhe os ecos. Assim, desde antes da
encarnação de Cristo o Verbo estava no mundo.
Porém o Verbo estava no mundo, mas o mundo não o conheceu. Eis, em
resumo, toda a história do homem em seus relacionamentos com Deus
durante quatro mil anos. Deus nos deu primeiro sua imagem na obra de
suas mãos. E depois nos deu sua Palavra. Porém nem o belo, nem o
verdadeiro, nem a voz da razão nem a da lei tinham sido compreendidos.
Foi então que Deus resolveu nos dar a sua presença, a sua revelação
pessoal, o seu Filho Jesus Cristo.
Foi quando ocorreu a terceira grande ação do Verbo, sua Encarnação.
Sabe-se que a razão humana a declarava impossível. Na época do
nascimento de Jesus Cristo todas as escolas eruditas dos judeus e dos pa-
gãos estavam de acordo em afirmar a impossibilidade de qualquer união
de Deus, o ser incomunicável, com sua criatura, o homem.
Por outro lado, o coração pulsava, clamava, implorava um Deus
semelhante a nós, e que vivesse entre nós. Todo o antigo politeísmo, toda
a idolatria eram apenas aspirações cegas por essa aproximação. O homem
tinha sede de Deus.
Quem nos daria ao mesmo tempo um Deus inacessível e um Deus
acessível; um Deus acima de todos os mundos e um Deus unido ao
mundo; um Deus que não se ousava nomear e um Deus que se podia
amar; um Deus diferente do homem e um Deus semelhante ao homem?
Quem nos daria? Jesus Cristo!
João nos descreveu o vôo sublime do Verbo de Deus até Belém.
Toda a magnificência termina neste mistério em que Deus desce até o
homem para elevá-lo até ele:
E o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória,
como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de
verdade. (João 1.14)
Eis a Encarnação, eis o que Orígenes chamava de "o casamento do
Verbo com a humanidade". Assim, o Verbo ou a palavra invisível de Deus
se exprimiu para nós em caracteres tangíveis, e o Ser incorpóreo revestiu-
se de um corpo pelo qual, tornando-se sensível, pôde unir-se a nós.
A humanidade de Jesus está tão bem demonstrada quanto a sua
divindade no Evangelho de João; e o homem não foi colocado ali sob uma
luz menos brilhante do que a de Deus.
O mistério da Encarnação
A morte de Timóteo
Sua morte
O impacto do cristianismo
Diante da costa da Jônia, outrora tão célebre por suas riquezas e hoje
pelas ruínas de tantas cidades importantes — Mileto, Prieno, Éfeso — vê-
se um grupo de ilhotas, de rochedos quase sem nome, na maior parte
desertos, espalhados no mar Egeu, entre Cós e Samos. Dentre estas
pequenas ilhas uma se tornou célebre: é Patmos.
A única maneira de ir-se a Patmos hoje é sempre a mesma desde os
tempos do apóstolo João. Aluga-se em Micom, antigo porto onde ficava
Éfeso, uma pequena embarcação mais ou menos coberta, tripulada por
quatro ou cinco homens, e corajosamente o viajante se entrega aos perigos
de uma travessia que pode durar até seis horas.
A ilha de Patmos é apenas um ponto perdido no mar imenso. Nela
se destacam grandes rochas negras amontoadas, inteiramente estéreis. Na
praia e nos vales internos, apesar de desprovidos de arvoredo, vê-se al-
gum verdor. Mas aquele verdor não é produzido pelas pastagens ou pelas
muitas árvores que outrora existiam ali, e sim pelas inúteis samambaias
que nascem espontaneamente. O que se vê mais? Apertadas umas contra
outras, mil e duzentas casinhas mostram seus terraços de uma brancura
deslumbrante, onde mulheres e crianças conversam e brincam. Mais para
o interior da ilha vêem-se pequenas cabanas de pastores construídas com
galhos de pinheiro, estábulos cobertos com palhas de coqueiro dentro dos
quais pastam carneiros magros, cinqüenta barcas ancoradas no porto
silencioso — eis toda a ilha de Patmos em sua austera pobreza.
Mas levantemos os olhos. Foi aqui que um homem chamado João
teve as mais extraordinárias visões que um ser humano já teve. Fitemos
além dessa terra árida e desses sinistros rochedos. Que esplendor! Que luz!
Quantas ilhas, quantos continentes alcançados pelo Evangelho que ele
escreveu, por suas cartas, pelo livro de Apocalipse! Quantas multidões de
almas alcançarão a eternidade com Deus graças ao que semeou o exilado
de Patmos! Quantas vozes estarão louvando ao Senhor “juntas como a
areia da praia" naquele mar sem limites da eternidade, por terem sido
alcançadas por alguma dessas sementes!
Uma névoa diáfana, mas que não tira dos objetos a sua nitidez, une
todos os contornos daquela paisagem e mistura uniformemente aquele
céu, aquele mar, aquelas ilhas. O céu é azul, o mar é azul, as ilhas são
azuis. Porém às vezes as ilhas tornam-se vaporosas, Patmos mostra-se
sombria, o mar torna-se escuro, e no horizonte o céu claro torna-se pálido,
quase cinzento. Ali João, o apóstolo do amor, o exilado por ter
permanecido fiel a Jesus Cristo, teve suas visões apocalípticas. Ali ele ou-
viu a voz de Deus. Ali ele viu os céus abertos.
* * *
CANTO SOBRE AS ÁGUAS DA ILHA