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MODELOS DE INVESTIGAÇÃO II 2018

Modelo de pesquisa da Psicologia Sócio-Histórica


Fundamentos
O ponto de partida na psicologia sócio-histórica é de que todos os fenômenos
sociais e humanos são históricos e produzidos a partir da vida material, a qual se constitui
num processo de transformação constante, revelador de um movimento que tem por base a
contradição. Afirmar a historicidade dos fenômenos sociais e humanos é considerar que as
experiências humanas se constituem historicamente a partir da realidade material
contraditória.
Para conhecer o método que propõe trabalhar com a historicidade como
característica fundamental dos fenômenos, devemos nos deter na compreensão da dialética
e do materialismo dialético. Os trechos a seguir tratam disso.

“Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; diferentemente, cabe


transforma-lo.” (Marx, 1978).

Marx e Engels ao aplicarem a concepção materialista e dialética não só


aos fenômenos naturais, mas a todos os domínios da vida social,
reformularam radicalmente a visão de matéria, de homem e sociedade
assumida até então. Não é a razão ou a idéia que se revela no real, mas foi
a evolução e complexificação da matéria que produziu uma espécie
animal, no caso o homem, capaz de produzir linguagem, pensamento,
consciência e sua própria existência. São as condições materiais que
produzem o homem e este por sua vez, num processo dialético, altera e
cria seu mundo material. ‘Aquilo que os indivíduos são depende, portanto,
das condições materiais de sua produção’ (Marx e Engels, 1980, p: 19).
(Kahhale; Peixoto; Gonçalves, 2011, p.62 e63)

A história expressa este processo e é regida pelas leis da dialética


(unidade e luta de contrários; transformação da quantidade em qualidade;
negação da negação; saltos em espiral) e está presente tanto nos
fenômenos naturais, como nos sociais. A sociedade não é eterna, é
produto do desenvolvimento da matéria como um todo; não se encontra
parada, está em constante transformação, os fenômenos sociais surgem e
se transformam em outros; assim, a sociedade como um todo também se
transforma. A história da sociedade se diferencia da história da natureza
devido ao aspecto da consciência, que modifica tanto as relações dos
homens entre si, como com o ambiente natural ao seu redor. O mundo
natural é movido por leis independentes de sua vontade que atuam como
parte integrante da matéria social. A ciência é uma forma mais complexa
de consciência, que representa interesses, reflete a luta de classes da base
material, portanto não existe ciência neutra, mas conhecimento que
expressa um sujeito social. Ela deve procurar desvendar as leis do
movimento geral da matéria, como ele se concretiza em cada área de
investigação, buscando a interpretação e a transformação do real,
portanto, sempre envolve uma prática, que é a ação refletida, consciente,

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na tentativa de superar as contradições. Não é possível entender os
fenômenos naturais e sociais sem entender suas múltiplas relações, pois
estão em constante movimento. O conhecimento é ativo, comprometido
com um ponto de vista determinado pelo investigador como sujeito social
e expressa como ele se insere na totalidade. Para se chegar ao
conhecimento é necessário um método que permita desvendar por trás da
aparência, o fenômeno tal qual realmente é, suas contradições e o que o
determina, o que o leva a apresentar-se da maneira como o faz.” (Kahhale;
Peixoto; Gonçalves, 2011, p. 69)

O método em questão tem como referência a concepção materialista de sociedade,


homem e história e utiliza as leis e categorias da dialética, apresentadas a seguir, como
instrumentos.
Materialismo dialético

Iniciemos, então, pela explicitação e reflexão sobre a concepção de


mundo que embasa o materialismo histórico e dialético e a Psicologia
Sócio-Histórica. Nessa concepção a matéria é base da constituição do real.
[...]

O primeiro aspecto importante na concepção materialista dialética e


histórica é que matéria existe objetivamente, isto é, fora e
independentemente da percepção e da consciência do homem. O segundo,
que ela constitui toda a diversidade infinita do mundo, do qual o homem
faz parte. Refere-se, portanto, aos objetos, fenômenos e processos que já
existiram, aos que existem e existirão ou serão descobertos futuramente.
Esses dois aspectos caracterizam a concepção materialista, que é
partilhada por perspectivas mecanicistas, dialéticas e dialéticas e
históricas. Cabe explicitar a qualificação dessa concepção materialista na
perspectiva dialética e histórica. Essa perspectiva propõe-se resolver a
questão da uniformidade na multiplicidade e da permanência no fluxo
existente na matéria. A dimensão dialética postula que matéria é
movimento, pois o todo da natureza e cada fenômeno isolado contêm uma
contradição interna, que gera transformações qualitativas e quantitativas
nas expressões materiais, ou seja, o movimento é a forma de ser da
matéria. Assim, o movimento é o estado absoluto da matéria, e o repouso,
seu estado relativo. (Kahhale; Rosa, 2010, p. 27)

Contradição

A questão da uniformidade na multiplicidade e da permanência no fluxo refere-se a


diferentes formas de lidar com essas duas circunstâncias existentes na realidade. Quando se
orienta o pensamento pelo princípio da identidade, que afirma que O Ser é, a ênfase recai
sobre a uniformidade e sobre a permanência. Quando o pensamento está orientado pelo
princípio da contradição, que afirma que O Ser é e não é ao mesmo tempo, a ênfase recai
sobre a multiplicidade e o fluxo. O princípio da contradição é a base do pensamento
dialético e expressa noção de movimento presente na matéria apontada acima.

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Assim, o princípio fundamental do materialismo histórico e dialético é a
contradição. Trata-se de princípio básico porque orienta o pensamento na abordagem e
descrição do real. E, por se tratar de uma concepção materialista, entende-se que orienta o
pensamento porque expressa uma característica da própria realidade objetiva: seu
movimento de transformação constante. O trecho a seguir trata desse princípio.

A contradição não é apenas entendida como categoria interpretativa do


real, mas também como sendo ela própria existente no movimento do real,
como motor interno do movimento, já que se refere ao curso do
desenvolvimento da realidade.

Assim, a realidade no seu todo subjetivo-objetivo é dialética e


contraditória, o que implica a centralidade desse conceito na metodologia
proposta. A contradição sempre expressa uma relação de conflito no devir
do real. Essa relação se dá na definição de um elemento pelo que ele não
é. Assim, cada coisa exige a existência do seu contrário, como
determinação e negação do outro. As propriedades das coisas decorrem
dessa determinação recíproca e não das relações de exterioridade. (Cury,
1985, p 30)

Toda condução da pesquisa na Psicologia Sócio-Histórica fundamenta-se na noção


de contradição, em uma perspectiva materialista histórica e dialética. As leis e categorias
da dialética expressam o princípio básico da contradição. Devem ser assim entendidas e,
nesse sentido sistematizam uma orientação metodológica. A partir das leis e categorias
pode-se descrever o movimento e as características dos fenômenos que são objeto de
conhecimento. Nesse sentido, as leis e categorias orientam os procedimentos de pesquisa
(coleta de informações; análise e interpretação de dados) utilizados nessa abordagem. Os
trechos seguintes tratam desses aspectos.
Leis da dialética

Quais são, por conseguinte, as grandes leis do método dialético?

a) Lei da interação universal (da conexão, da "mediação" recíproca de


tudo que existe).

Nada é isolado. Isolar um fato, um fenômeno e depois conservá-lo pelo


entendimento nesse isolamento, é privá-lo de sentido, de explicação, de
conteúdo. É imobilizá-lo artificialmente, matá-lo. É transformar a
natureza - através do entendimento metafísico - num acúmulo de objetos
exteriores uns aos outros, num caos de fenômenos. [...]

b) Lei do movimento universal.

Deixando de isolar os fatos e os fenômenos, o método dialético reintegra-


os em seu movimento: movimento interno, que provém deles mesmos, e
movimento externo, que os envolve no devir universal. Os dois
movimentos são inseparáveis. [...]

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c) Lei da unidade dos contraditórios.

Repitamos, mais uma vez, que a contradição lógica formal conserva os


dois contraditórios à margem um do outro; ela não é mais que uma relação
de exclusão, enquanto a tautologia, a identidade, representa uma inclusão
vazia.

A contradição dialética é uma inclusão (plena, concreta) dos


contraditórios um no outro e, ao mesmo tempo, uma exclusão ativa. [...]

d) Transformação da quantidade em qualidade (lei dos saltos).

As modificações quantitativas lentas, insignificantes, desembocam numa


súbita aceleração do devir.A modificação qualitativa não é lenta e
contínua (conjunta e gradual, como é o caso das modificações
quantitativas); apresenta, ao contrário, características bruscas,
tumultuosas; expressa um crise interna da coisa, uma metamorfose em
profundidade, mas brusca, através de uma intensificação de todas as
contradições [...].

O salto dialético implica, simultaneamente, a continuidade (o movimento


profundo que continua) e a descontinuidade (o aparecimento do novo, o
fim do antigo).

e) Lei do desenvolvimento em espiral (da superação).

[...] A contradição dialética é já "negação" e "negação da negação", visto


que as contradições estão em luta efetiva. Desse choque, que não é um
choque "no pensamento", no abstrato, no plano subjetivo (embora dê
lugar a um "choque de pensamentos"), surge uma promoção mais elevada
do conteúdo positivo que se revela e se libera no e pelo conflito.
(Lefebvre,1975, p. 237-240).

Categorias da dialética

Fundamentalmente pode-se indicar duas categorias fundamentais da dialética:


totalidade e mediação.
A partir do princípio da contradição e das leis da dialética, toma-se o objeto como
uma totalidade em movimento de transformação constante. A categoria totalidade é
importante no materialismo histórico e dialético e expressa uma compreensão particular da
relação todo/parte, das determinações que explicam um fenômeno, da historicidade
presente nos objetos de conhecimento. O trecho a seguir trata desses pontos.

O conceito de totalidade implica uma complexidade em que cada


fenômeno só pode vir a ser compreendido como um momento definido em
relação a si e aos outros fenômenos. Isso não quer dizer que se deva
conhecer todos os fenômenos, igual e indistintamente. Significa que o
fenômeno referido só se ilumina quando referido à essência, ou seja,
àqueles elementos que definem sua própria natureza no seu processo de

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produção. A totalidade, então, só é apreensível através das partes e das
relações entre elas.

Dados isolados não passam de abstrações. Por isso, a totalidade é


concreta. Interna aos dados empíricos, implica-os e os explica no conjunto
das suas mediações e determinações contraditórias. Os dados vistos na sua
visibilidade imediata e nas suas relações externas, só adquirem
concreticidade (tornam-se concretos) quando revistos nas relações
essenciais de uma totalidade histórico-social. Neste momento, sua
compreensão é racional e pode-se dizer como estão inseridos no todo. [...]

Pois bem, se o real é um todo estruturado em curso de desenvolvimento e


autocriação pelo movimento dialético que lhe é inerente, o conhecimento
de um fenômeno ou conjunto de fenômenos é o conhecimento do lugar
que estes ocupam na totalidade das relações. Esse conhecimento só impõe
a separação de seus momentos para sua superação em uma nova
totalidade.” (Cury, 1985, p. 36 e37)

Sobre a categoria mediação, Cury (1985) afirma:

A categoria da mediação expressa as relações concretas e vincula mútua e


dialeticamente momentos diferentes de um todo. Nesse todo, os
fenômenos ou o conjunto de fenômenos que os constituem não são blocos
irredutíveis que se oponham absolutamente, ou cuja descontinuidade a
passagem de um ao outro se faça através de saltos mecânicos. Pelo
contrário, em todo esse conjunto de fenômenos se trava uma teia de
relações contraditórias, que se imbricam mutuamente. O isolamento de
um fenômeno priva-o de sentido, porque o remete apenas às relações
exteriores. O conceito de mediação indica que nada é isolado. Implica,
então, o afastamento de oposições irredutíveis e sem síntese superadora.
Por outro lado, implica uma conexão dialética de tudo que existe, uma
busca de aspectos afins, manifestos no processo em curso. A distinção
existente entre esses aspectos oculta uma relação mais profunda que é a
fundamentação nas condições gerais da realidade. [...]

Em suma, a mediação rejeita relações de inclusão ou exclusão formais e


expressa relações concretas, que remetem um fenômeno ao outro. [...]”
(p.43 e 44)

Materialismo histórico e dialético

Como dito acima, historicidade é uma categoria fundamental para a psicologia


sócio-histórica. De que se trata, afinal? Trata-se de incluir o conteúdo histórico na
compreensão permitida pelo método materialista dialético. Ou, dito de outra forma, trata-se
de compreender de forma materialista e dialética o homem e a sociedade, os fenômenos
sociais e humanos. A visão materialista de homem e sociedade aponta a produção da vida
social a partir do trabalho como aquilo que define o humano. A visão dialética agrega a
essa compreensão a noção de que a realidade é contraditória, assim como a ação do homem
de transformação dessa realidade, dentro de relações sociais, se dá de maneira

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contraditória. A produção da vida social é a produção da história. O conteúdo histórico das
produções humanas deve ser considerado quando se estuda os fenômenos sociais e
humanos. Essa é a base da historicidade.
O materialismo histórico e dialético é o método que parte de uma visão materialista,
orienta o pensamento pela contradição e inclui a historicidade como qualidade presente nos
fenômenos estudados.

É, pois, no desenvolvimento do capitalismo que as condições sócio-


históricas estão postas para se questionar a noção de história como
passagem do tempo da natureza. A questão da história para a ser uma
categoria analítica: historicidade. Ou seja, os atos e os acontecimentos
sociais e pessoais são produtos da ação dos homens entre si no mundo;
são simbolizados e possuem intenções e significados construídos nesse
processo de existência. O que estamos dizendo é que a distinção entre o
que é da ordem natural e o que é da ordem social/humana existiu desde a
“humanização do homem”, mas só pôde ser claramente percebida a partir
de determinadas condições, assim como o processo contraditório presente
no real. Portanto, reconhecer essa distinção na produção do saber sobre o
homem, o que implica tomar a historicidade como categoria analítica na
compreensão do humano, é fundamental.” (Kahhale; Rosa, 2009, p. 35)

[...] a noção de historicidade é a referência fundamental, pois aponta a


necessidade de se incluir, na compreensão dos processos da realidade, o
conteúdo que identifica cada fenômeno na sua relação com a produção
humana histórica, inclusive e principalmente, na sua relação com
diferentes grupos sociais, definidos por diferenças no lugar social
produzido pelas contradições da base material. (Kahhale; Rosa, 2009, p.
39)

Historicidade e naturalização

A perspectiva sócio-hsitórica propõe trabalhar com a categoria


historicidade. Não considerar a historicidade implica naturalizar processos e fenômenos
sociais e humanos, o que impede a compreensão de sua inserção e referência a um tempo
histórico, a uma totalidade contraditória. Significa tomar de maneira ilusória o objeto,
produzindo um conhecimento parcial e que impede ou dificulta compreender que os
fenômenos humanos são produto da ação do homem em sociedade.

Em síntese, reconhecer a historicidade significa reconhecer que tudo que é


como é poderia ser diferente. Não há processos naturais, a vida humana é
produto de sujeitos humanos que assim a produziram. Nesse sentido, tudo
que é pode deixar de ser, pode ser alterado pela ação do homem. Por isso,
o que encobre esse processo e impede esse reconhecimento, deve ser
enfrentado, em termos teóricos e metodológicos, na produção de um
conhecimento crítico; e em termos de uma práxis transformadora.

Esse deve ser o sentido da desnaturalização que a produção de


conhecimento deve promover, enfrentando as várias facetas da
naturalização dos fenômenos. Há naturalização quando se desconsidera o

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processo de constituição histórica; quando se universalizam conceitos e
explicações; quando se desconsideram os aspectos ideológicos; quando se
desconsidera a possibilidade de ações de transformação, ou quando elas
são atribuídas apenas ao esforço individual ou a aspectos da subjetividade
intrínseca aos sujeitos; quando, enfim, se individualiza a compreensão dos
fenômenos, desconsiderando determinações e mediações sociais e
históricas. Desnaturalizar significa, então: reconhecer as mediações
sociais e históricas presentes na constituição dos sujeitos e da realidade
social; apontar as contradições que marcam as relações sociais e seus
aspectos ideológicos; reconhecer o processo de constituição mútua na
relação indivíduo e sociedade. (Gonçalves, 2015a, p. 67)

As categorias básicas do método materialista histórico e dialético podem ser


percebidas na forma como se entende a relação sujeito-objeto, bem como na definição de
um objeto para a Psicologia, segundo a psicologia sócio-histórica, itens apresentados a
seguir.

Relação sujeito-objeto
Vêm também dos princípios e leis do materialismo histórico e dialético as
referências para uma concepção de relação sujeito-objeto que considere o processo de
transformação de ambos que se dá na relação. O sujeito tem uma intenção e age sobre o
objeto no processo de conhecimento, transformando-o. Ao mesmo tempo, é por ele
transformado. O sujeito que age o faz inserido em um lugar social determinado
historicamente e é a partir dele que se posiciona perante o objeto de conhecimento. É a
práxis, dialética entre teoria e prática.
O reconhecimento da transformação constante de toda a realidade, do papel da ação
do homem no processo de transformação social e da relação desses aspectos com o
conhecimento compreendido como práxis impõem um compromisso para a Psicologia: o
conhecimento psicológico deve ser reconhecido em seu papel histórico, sujeito e objeto em
relação dialética, subjetividade e objetividade em processo.

[...] na concepção materialista sujeito e objeto têm existência objetiva e


real e, na visão dialética, formam uma unidade de contrários, agindo um
sobre o outro. Assim, o sujeito é ativo porque é racional, mas não só.
Antes de mais nada, o sujeito é sujeito da ação sobre o objeto, uma ação
de transformação do objeto. A ação do sujeito transforma o objeto e o
próprio sujeito. E essa ação do sujeito é necessariamente situada e datada,
é social e histórica.” (Gonçalves, 2015b, p.148 e149)

A partir dessa concepção geral sobre a relação sujeito-objeto é possível definir o


papel do pesquisador e qual deve ser a sua postura na produção de conhecimento. Os
trechos a seguir falam disso.

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A Epistemologia Qualitativa defende o caráter construtivo interpretativo
do conhecimento, o que de fato implica compreender o conhecimento
como produção e não apropriação linear de uma realidade que se nos
apresenta. A realidade é um domínio infinito de campos inter-
relacionados independente de nossas práticas; no entanto, quando nos
aproximamos desse complexo sistema por meio de nossas práticas, as
quais, neste caso, concernem à pesquisa científica, formamos um novo
campo de realidade em que as práticas são inseparáveis dos aspectos
sensíveis dessa realidade. São precisamente esses os aspectos suscetíveis
de serem significados em nossa pesquisa. É impossível pensar que temos
um acesso ilimitado e direto ao sistema do real, portanto, tal acesso é
sempre parcial e limitado a partir de nossas próprias práticas. [...]

Quando afirmamos o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento,


desejamos enfatizar que o conhecimento é uma construção, uma produção
humana, e não algo que está pronto para conhecer uma realidade ordenada
de acordo com categorias universais do conhecimento. [...]

Ao afirmar que nosso conhecimento tem um caráter construtivo-


interpretativo, estamos tentando superar a ilusão de validade ou a
legitimidade de um conhecimento por sua correspondência linear com
uma realidade, esperança essa que se converteu, contrariamente ao que
pensam e sentem seus seguidores, em uma construção simplificada e
arbitrária a respeito da realidade, ao fragmentá-la em variáveis suscetíveis
de procedimentos estatísticos e experimentais de verificação, mas que não
possuem o menor valor heurístico para produzir “zonas de sentido” sobre
o problema que estudam, afastando-se, dessa forma, da organização
complexa da realidade estudada. [...]

A legitimação do singular como fonte do conhecimento implica, segundo


já assinalamos, considerar a pesquisa como produção teórica, entendendo
por teórico a construção permanente de modelos de inteligibilidade que
deem consistência a um campo ou um problema na construção do
conhecimento, ou seja, o teórico não se reduz a teorias que constituem
fontes de saber preexistentes em relação ao processo de pesquisa, mas
concerne, muito particularmente, aos processos de construção intelectual
que acompanham a pesquisa. O teórico expressa-se em um caminho que
tem, em seu centro, a atividade pensante e construtiva do pesquisador. [...]
(González Rey, 2005, p. 5, 6 e 11).

Objeto da psicologia
Os princípios, leis e categorias do materialismo histórico e dialético orientam
concepções em psicologia que procuram superar a dicotomia subjetividade-objetividade no
estudo do homem, abordando o estudo de processos psicológicos na sua constituição e
produção a partir da atividade do indivíduo, a qual se dá em um contexto histórico e social,
sendo por ele determinada. Vigotski (1896 – 1934), psicólogo soviético, é considerado o
pioneiro na elaboração de uma psicologia que segue essa orientação. Os trechos a seguir, do
próprio Vigotski e de outros pesquisadores que seguem essa mesma perspectiva mostram

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como as características do materialismo histórico e dialético aparecem na psicologia,
principalmente na conceituação de seu objeto.

Na perspectiva da psicologia sócio-histórica, como já dissemos, o foco é a


dialética subjetividade-objetividade, compreendida como processo
histórico. Essa compreensão remonta às primeiras formulações de uma
psicologia marxista, que se contrapôs aos modelos dominantes entre as
teorias psicológicas e que se configurou como uma alternativa de
superação da dicotomia subjetividade X objetividade; e continua em
vertentes da psicologia que incluem a historicidade.

Há, então, um conjunto de produções teóricas que, com base em um


método que possibilita a apreensão do caráter histórico dos fenômenos,
permite apresentar uma compreensão da subjetividade como processo
complexo e multideterminado; que contém diversidade; fundado na
relação indivíduo-coletividade; não natural; em movimento constante. [...]

Vigotski representa, com suas propostas, a possibilidade de, efetivamente,


focar a subjetividade como objeto da psicologia. E, de tal maneira, que a
discussão entre objetivistas e subjetivistas, que, como vimos, levou à
própria desconsideração da subjetividade, transforma-se em discussão
vazia. Não é necessário optar entre o comportamento e a subjetividade;
entre a objetividade e a consciência. O homem é atividade e consciência,
em movimento dialético. Constitui-se na dialética subjetividade-
objetividade. A indicação dos mecanismos básicos dessa dialética, que
aparece na obra de Vigotski, inaugura a psicologia sócio-histórica que
temos hoje. (Gonçalves, 2003, p.54, 58)

Com base no materialismo histórico e dialético e nos psicólogos


soviéticos, foram realizadas pesquisas e elaboradas formulações teóricas
que têm como foco a dialética subjetividade-objetividade e seu caráter
histórico. O método utilizado indicou dois recursos fundamentais para se
chegar a essas formulações: o trabalho com a categoria metodológica de
mediação; e a utilização de categorias em vez de conceitos.

Trabalhar com a idéia de mediação permitiu apontar um movimento de


constituição dos fenômenos investigados de maneira diferente do que
permitiria uma idéia mecanicista de causalidade, ou uma idéia
reducionista de determinação. Mediato contrapõe-se, dialeticamente, a
imediato. Isso significa tomar o que é imediato como apenas um momento
de um movimento que deve ser desvendado em todos os seus aspectos,
revelando-se todos os elementos que o constituem como processo. Esses
elementos são mediatos, porque não têm ocorrência atual e/ou regular
frente ao fenômeno; ou porque não são dados pela aparência; ou porque
são múltiplos; ou porque têm força, presença ou configurações
diferenciadas. São mediações.

A partir dessa compreensão, em vez de se buscar uma relação imediata


entre consciência e comportamento; ou entre o “externo” e o “interno”; ou
entre o “social” e o “individual”; ou entre o cognitivo e o afetivo; ou entre

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a subjetividade e a objetividade; enfim, em vez de se buscar causalidades
ou determinações estritas, busca-se os elementos de mediação entre
indivíduo e sociedade, subjetividade e objetividade, compreendendo que
estão em processo constante.

As principais mediações na constituição do psiquismo, expressando a


dialética subjetividade-objetividade, são as relações sociais, a linguagem,
o pensamento e as emoções. [...]

O segundo recurso metodológico que apontamos é o de se utilizar


categorias no lugar de conceitos. Trabalhar com categorias significa
delimitar, em relação aos fenômenos que se pretende investigar, supondo
que tais fenômenos são processos da realidade, um campo de
investigação. Se os fenômenos a investigar são os subjetivos, são os
fenômenos do psiquismo, em vez de se buscar sua estrutura; ou seus
componentes; ou seus fatores determinantes; buscam-se as mediações que
os constituem como processos. E delimitam-se campos de investigação:
atividade, consciência, identidade, afetividade. Estas são as categorias do
psiquismo na psicologia sócio-histórica e, segundo essa concepção,
representam a forma de abordar a subjetividade, a dialética subjetividade-
objetividade. (Gonçalves, 2003, p. 60 e 61; 68 e 69)

Procedimentos metodológicos
A Psicologia Sócio-Histórica desenvolve a pesquisa aplicando as leis e categorias da
dialética ao objeto da psicologia. Seus procedimentos de pesquisa são definidos de forma
a desenvolver recursos e instrumentos que permitam apreender a dialética subjetividade-
objetividade, identificando as mediações que a constituem e sua relação com a totalidade.
Nesse processo, busca-se apreender a historicidade do objeto.

O conceito de uma psicologia historicamente fundamentada é mal


interpretado pela maioria dos pesquisadores que estudam o
desenvolvimento da criança. Para eles, estudar alguma coisa
historicamente significa, por definição, estudar algum evento do passado.
Por isso, eles sinceramente imaginam existir uma barreira intransponível
entre o estudo histórico e o estudo das formas de comportamento
presentes. Estudar alguma coisa historicamente significa estudá-la no
processo de mudança: esse é o requisito básico do método dialético.
Numa pesquisa, abranger o processo de desenvolvimento de uma
determinada coisa, em todas as suas fases e mudanças – do nascimento à
morte – significa, fundamentalmente, descobrir sua natureza, sua essência,
uma vez que “é somente em movimento que um corpo mostra o que é.”
Assim, o estudo histórico do comportamento não é um aspecto auxiliar do
estudo teórico, mas sim sua verdadeira base. Como afirmou P.P. Blonsky,
“o comportamento só pode ser entendido como a história do
comportamento”.

[...]

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Em resumo, então, o objetivo e os fatores essenciais da análise psicológica
são os seguintes: 1) uma análise do processo em oposição a uma análise
do objeto; 2) uma análise que revela as relações dinâmicas ou causais,
reais, em oposição à enumeração das características externas de um
processo, isto é, uma análise explicativa e não descritiva; e 3) uma análise
do desenvolvimento que reconstrói todos os pontos e faz retornar à origem
o desenvolvimento de uma determinada estrutura. O resultado do
desenvolvimento não será uma estrutura puramente psicológica, como a
psicologia descritiva considera ser, nem a simples soma de processos
elementares, como considera a psicologia associacionista, e sim uma
forma qualitativamente nova que aparece no processo de
desenvolvimento.” (Vigotski, 1996, p. 86)

Como já foi discutido, a mediação é categoria fundamental da dialética e deve ser


considerada ao realizar uma pesquisa.

[...] A Psicologia Sócio-Histórica vai propor, então, a partir de Vigotski,


que se estude os fenômenos psicológicos como resultado de um processo
de constituição social do indivíduo, em que o plano intersubjetivo, das
relações, é convertido, no processo de desenvolvimento, em um plano
intra-subjetivo. Assim, a subjetividade é constituída através de mediações
sociais.

Dentre essas mediações, a linguagem é a que melhor representa a síntese


entre objetividade e subjetividade. Isso porque o signo é, ao mesmo
tempo, produto social que designa a realidade objetiva; construção
subjetiva compartilhada por diferentes indivíduos, através da atribuição de
significados; e construção subjetiva individual, que se dá por meio do
processo de apropriação do significado social e da atribuição de sentidos
pessoais. (Gonçalves, 2015 c, p.63)

Mais uma vez recorrendo a Vigotski (2001), podemos afirmar que as


palavras/signos são o nosso ponto de partida. Para compreender a fala de
alguém não basta apreender suas palavras, é preciso apreender seu
pensamento, sempre emocionado.

Desse modo, as pesquisas [...] tomarão as falas dos sujeitos como ponto
de partida, para daí caminharem na busca de significados e sentidos
constituídos. [...]

Os significados são, pois, produções históricas e sociais. São eles que


permitem a comunicação, a socialização de nossas experiências. [...] Os
significados referem-se, assim, aos conteúdos instituídos, mais fixos,
compartilhados, que são apropriados pelos sujeitos, configurados a partir
de suas próprias subjetividades.

[...] nossa análise deverá ter como meta: não nos contentarmos com a
aparência dos fatos; não fazer simplesmente uma análise das construções
narrativas, mas sim do sujeito; fazer uma análise que nos ajude a
apreender a totalidade que representa o sujeito, entendendo-a sempre

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como aberta, em movimento; não fragmentar o texto, fazendo com que as
partes fiquem desconexas, portanto sem explicação; apreender as
contradições, os momentos lacunares.[...]

Tendo o material coletado, gravado e transcrito, iniciamos várias leituras


‘flutuantes’ para que possamos, aos poucos, nos familiarizar com ele,
visando sua apropriação. Importante considerar neste momento que
entendemos que a palavra com significado é a primeira unidade que se
destaca no momento ainda empírico da pesquisa. Assim, é preciso partir
das palavras inseridas no contexto que lhes atribui significado,
entendendo aqui como contexto desde a narrativa do sujeito até as
condições histórico-sociais que o constituem. Essas leituras nos permitem
destacar e organizar o que chamaremos de indicadores para a construção
dos Núcleos de Significação. [...] geralmente esses indicadores são em
grande número e irão compor um quadro amplo de possibilidades para a
organização dos núcleos. Um critério básico para filtrar esses indicadores
é verificar sua importância para a compreensão do objetivo da
investigação. [...]

Dando sequência à análise, propomos um processo de aglutinação dos


indicadores, seja pela similaridade, pela complementaridade ou pela
contraposição, de modo que nos leve a uma menor diversidade, que nos
permita caminhar na direção dos possíveis núcleos de significação. [...]

A partir da re-leitura do material, considerando a aglutinação resultante


(conjunto dos indicadores e seus conteúdos), iniciamos um processo de
articulação que resultará na organização dos Núcleos de Significação
através de sua nomeação.

A análise [dos núcleos] se inicia por um processo intranúcleo, avançando


para uma articulação internúcleos. Em geral esse procedimento explicitará
semelhanças e/ou contradições que vão novamente revelar o movimento
do sujeito. Tais contradições não necessariamente estão manifestas na
aparência do discurso e representam o resultado da análise feita pelo
pesquisador. Do mesmo modo, o processo de análise não deve ser restrito
à fala do informante: esta deve ser articulada (e aqui se amplia o processo
interpretativo do investigador) com o contexto social, político, econômico,
em síntese, histórico que permite acesso à compreensão do sujeito na sua
totalidade. [...]

[...] Nesse momento temos a realização da análise propriamente dita, ou


seja, quando os núcleos são integrados no seu movimento, analisados à
luz do contexto do discurso em questão, à luz do contexto social histórico,
à luz da teoria. (Aguiar, 2006, p. 13-21)

O tipo de análise da linguagem a que se propõe a Psicologia Sócio-Histórica implica


que o pesquisador se detenha em cada situação, cada caso, cada indivíduo. A busca da
gênese histórica de cada fenômeno estudado e de seu processo de transformação, também.
Isso coloca questões para a generalização do conhecimento.

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O tipo de conhecimento produzido numa pesquisa com abordagem sócio-
histórica, qualitativa, que a partir dos exemplos utilizados, poderia ser
caracterizada como Estudo de Caso (sujeito único, grupo...), tem um
caráter singular. Cada caso é único e a informação torna-se relevante e
pode ser generalizada a outros casos, não porque os resultados obtidos
sejam estendidos a outras situações ou sujeitos pretensamente
semelhantes, ou comparados a eles, mas porque essa abordagem nos
permite apreender o processo, as determinações constitutivas. Assim, a
generalização se define pela capacidade explicativa alcançada sobre uma
diversidade de fenômenos. Dá-se, portanto, pela capacidade de
desvelamento das mediações constitutivas do fenômeno pesquisado,
contribuindo qualitativamente no curso da produção teórica. O
conhecimento produzido, seja a partir de um sujeito, uma escola, um
grupo, constitui-se, pois, em uma instância deflagradora da apreensão e do
estudo de mediações que concentram a possibilidade de explicar a
realidade concreta. (Aguiar, 2001, p.13)

Referências
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