You are on page 1of 34

ec

,
ome :u
Osamu Daxai

Esto$âo Liberdode
Dec inio be um komem
Oswu DAZAi

Declinio $e um $omem

Tradu9â o do japonés

Ricardo Machado

Eaio@o Liberdode
T tulo ofiginnl: Xirigen Sbikbalni
B Editora Esta@o LiF'erdade, 20i S, para esta tradu@o

Ritz KOhl
Huendel Viana
Alex Andmde
Compostqâo
Hisae Sagara
'° 8ramas â p. Goshun Matsumura, “Cherry Blossoms',
7 Imagem de capa rolo verñml, finia e cor sobre papel, século
XVm 7 Acervo de The Meiropofitan
Museum of art
Horace Bristol/CORBlS7Latinstock
Ediior de ante Miguel Simon

€ditores Angel Bojadsen e Edilherio P. Verza

CIP—BRASIL. CATAIOGACAO NA PUBLICAVAO


SINDICATO NACIONAL DOS EDJTORES DE HVROS, Rd

D5J8d

Dazai, Osamu, 19O9-194s


Decline de um homem / Osamu mzai ; tradu@o Ricardo Machado. -
J. ed. - Rao Paulo : Esta9ao Lib'erfiade, 20J5.

Tradu@o de: Ningen shikkaku


ISBN 9788574482446

J. Romance japonés. I. Machado, Ricardo. II. Tirulo.

I 3-20210 ID: $.6$


CDU-8 .21-9
20/03/'20T $ 20/0W20tS

Toclos os direitos reservâaclos Ediiora Esm9â o tiheraade. Nenhuma parte da obra pode
ser reproduzida, adaptada, multiplicada ou divuIgada de new huma forma (em
pmrticufar por meios etc reprograf la on processos digiiais) sem auioriz 9ao exp ressa dv
eclitora, e em viriude da Iegis4a9â o em vigor.
Esta pubIica9â o segue as normas do Acordo Onogrâ fico da Lingua Portuguese, Decreto
n• 6.583, de 29 de setembrO de 2008.

Editors Esnagâo Llberdade Ltda.


ma non» xitsa, up i on s5-or i sao meio-sr
iei.. tio 5661 zsei i re. u O az5 any
Sumaño

PrOlo8° 11

Primeiro caderno 17

Segundo caderno 35

Terceiro caderno 83
Parte um 85
Parte dois 115

Epilogo 14S
Prologo
Vi trés fotos daquele homem.
Na primeira, uma fotografia de infilncia, ele aparenta ter
por volta de 10 anos, de pé, â beira do Iago de um jardim,
cercado por vfirias meninas (imagino que fossem snas ir-
mrs e primas), vestindo um haieama’ de listras largas, com
a cabeva inclinada cerca de trinta grans a esquerda, mos-
trando um sorriso feio. Feio? Nao é dizer que mo existisse
no sorriso daquele menino uma sombra do Que se chama de
“gracioso”, suficiente para que pessoas inscrisiveis (on seja,
indiferentes a estética) fizessem, sem muito interesse, algum
comentârio vago — “que menino bonitinho, riio é?” — e isso
nao scrasse como um elogio totalmente vazio. Contudo, qual-
quer um com alguma experiéncia com a estética, por me-
nor que seja, ao olhar essa foto provavelmente murmuraria
com enorme desagrado, ' que errand horrorosa!", e a lan -
ria para longe, como quem afasta uma taturana.
De fato, quanto mais olho para o sorriso daquele me-
nino, mais desconfortfivel me sinto. Em primeiro lugar,

1. Peg do vestuario formal japonés; uma espécie de caIsa, amarrada na cintu-


ra e bastante laigi nas pernas. {N.T.]
Decllnio de urn h‹srnem

isso nao é um sorriso. O menino nño estfi sorrindo nem


um pouco. A prova disso é que ele estfi parado aperiancto
amf›os os punhos com forma. Nenhum ser humano conse-
que sorrir apertando os punhos desse jeito. E um macaco.
E o sorriso de um macaco. Estfi apenas franzindo o rosto
de forma grotesca. “Que menino encarquilhado!“, é o que
da vontade de dizer diante dessa expressño tño esquisita,
até mesmo obscena, do tipo que deixaria qualquer um es-
tranhamente nauseado. Eu nunca havia visto um menino
com uma expressao tño desconcertante.
Jfi na segunda foto, sua aparéncia estfi tño transfor-
mada que causa espanto. E um estudante. Talvez de en-
sino médio on universitfirio, mo ha como saf›er ao certo,
mas é um estudante extremamente belo. Contudo, tam-
bém essa foto, inexplicavelmente, nao passa a menor im-
press'ao de se tratar de um ser humano vivo. Ele veste o
uniforme escolar, com um lenVo f›ranco saindo do bolso
do peito, e este sentado de pemas cruzadas em mrna ca-
deira de vime, novamente sorrindo. O sorriso agora nao
é mais aquele sorriso enrugado de macaco como antes,
e sim um sorriso agradabilissimo. Mas, por algum motivo,
nño parece o sorriso de um ser humano. Sua expres-
s°ao n'ao tern nem, digamos, o peso do sangue, nem a aus-
teridade da vida, nada, nem um pouco dessa sensavño de
completude; é leve, nño como uma ave, mas como uma
pluma, uma folha de papel em branco, e este sorrindo. Em
suma, passa uma impressao de artificialidade do inicio ao
fim. Se dissesse se tratar de afetapño, mo bastaria. Se dis-
sesse se tratar de superficialidade, mo bastaria. Se dissesse
se tratar de efeminaVño, nño bastaria. Se dissesse se tratar

14
Prc'logo

de elegância, é claro que mo bastaria. Além disso, olhan-


do-o com cuidado, ha algo também nesse Delo estudante
que provoca uma sensa9ño desagradfivel, como uma his-
toria de terror. Nunca havia visto um jovem com uma f›e-
leza tño estranha.
A terceira foto é a main estranha de tocias. Nño sei di-
zer ao certo quartos anos eIe devia ter ali. Seus cabelos
parecem um pouco grisalhos. Estfi no canto de um Quario
muito sujo (a foto mostra claramente a parede do Quarto
rachada em trés lugares), aquecendo as maos em um pe-
Queno braseiro, e dessa vez mo sorri. Nao tern expressao
nenhuma. Para ser mais exato, é uma foto realmente re-
pugnante, sinistra, como se, sentado com as m'aos sobre
o braseiro, ele estivesse morto. Mas o estranho nao é so-
mente isso. Nessa foto seu rosto estâ um pouco maior, en-
tño pude estudar em detalhes sua estrutura, mas sua testa
era comum, as rugas ali também comuns, sees ombros co-
muns, seus olhos comuns, seu nariz, sua boca, seu queiso.
Ah!, esse rosto n"ao sfi nño tern expressño, como nem ao
menos deixa alguma impressao ao ser visto. Nao tern nada
de caracteristico. Por exemplo, se observo a foto e fecho
os olhos a seguir, no mesmo instants jfi me esQueci do
rosto. Lembro do quarto, da parede, do braseiro, mas a
impressao do rosto do personagem dentro do quarto des-
vanece, e nao comigo lembrar dele por mais que tente.
E um rosto que n°ao poderia ser desenhado. Que nño po-
deria se tornar nem mesmo uma caricatura. Af›ro meus
olhos. Nao sinto nem mesmo a alegria de um “Ah, entao
era assim o seu rosto, lembrei“. Sencio um pouco extremo,
diria que mesmo olhando para a foto, talvez nao lembre
de seu rosto. E, sentindo-me apenas incomodado e eno-
jado, tenho vontade de desviar os olhos.
Até mesmo o rosto de um moribundo teria mais ex-
pressao, despertaria mais impressfies; talvez se
colocas- sem a cabe9a de um cavalo no corpo de uma
pessoa o resultado fosse semelhante. De todo modo, a
foto causa espanto ou nausea a quem a vé. Certamente,
nunca vi um homem com um rosto tâ o desconcertante.

i6
Primeiro caderno
Vivo uma vida repleta de vergonha.
A vida humana é algo que nño consigo entender. Tendo
nascido no interior do Nordeste, jfi era urrr menino cres-
cido quando vi um trem a vapor pela primeira vez. En
subia e descia pela passarela da esta5ao, sem perceber
que ela era uma maneira que as pessoas tinham para pas-
ear por cima dos trilhos do trem. Achava que aqu ilo ha-
via sido instalado ali para transmitir uma ideia ao mesmo
tempo de complexidade e descontraVao, de sofisticaVao,
como se o prédio da estaVño fosse um parque de diver-
sñes estrangeiro. Passei muito tempo acreditando nisso.
Subir e descer a passarela era para mim, antes de tudo,
uma brincadeira refinada, e achava que, dentre os servi-
Nos prestados pela companhia ferrovifiria, aquele era o
mais elegante. Mais tarde, Quando descobri Que aquilo nao
passava de uma escada de uso prâtico para que os passa-
geiros passassem por cima dos trilhos, men interesse de-
sapareceu instantaneamente.
E, ainda crianCa, quando via o desenho do metrfi num
livro ilustrado, mo achava que aquilo fosse algo inven-
tado em funvño de necessidades praticas, mas sim porque
Decllnio de um h‹smem

andar em trens que correm sob a terra era uma brincadeira


mais divertida e excéntrica do que anctar naqueles Quo fi-
cavam acima dela.
Por ter uma sa6de debilitada quando crianva, en vivia
de cama e, deitado, pensava que lenvois, fronhas e capas
de almofadas eram adornos muito sem grava, até que, com
quase 20 anos de idade, descobri que sño acessorios pra-
ticos e fiquei decepcionado com o comedimento humano.
En desconhecia o que era sentir fome. Nño quero di-
zer com isso que venho de uma familia abastada, nao é
nesse sentido idiota, mas eu desconhecia por completo
qual é a sensapao de ter o estfimago vazio. Pode pare-
cer estranho dizer assim, mas, mesmo que estivesse com
fome, en n°ao percebia. Quando voltava da escola primfi-
ria e, mais tarde, do ginasio, me recehiam dizendo: “Vocé
deve estar com fome! Sabemos como é isso, a fome aperta
no caminho da escola para casa! Quer feijño doce? Tern
cnsie/az e p'ao também, viu?” Para mostrar o espirito ba-
julador que me é natural, en sussurrava “que fome!”, apa-
nhava uns dez feijses doces e socava na k'oca, sem jamais
ter sabido o que era estar de estomago vazio.
E oP›vio que eu comia muito, entretanto, nño tenho
praticamente lembranva nenhuma de precisar comer p-ara
saciar a fome. Quando achava Que algo era raro, comia.
Quando achava que algo era luxu oso, comia. Tamk'ém
quando saia de casa, me forVava a comer tudo o que me
ofereciam, até nño poder mais. E assim, os momentos

2. BoIo niu ito macio, bastante apreciado no Ja pfio, semeChante ao pao de


IN. {N.T.]
Primeiro

mais penosos da minha infancia, na realidade, cram as re-


feipses familiares.
Na minha casa no interior, as cerca de dez pessoas da
familia sentavam-se em frente a snas respectivas mesinhas
de refeiVño, dispostas em dnas fileiras postas frente a
frente, sendo que o filho mais novo, en, sentava-se
obviamente no assento mais distaste. Durante a hora do
almoVo, todos os dez membros da familia comiam em
sepulcral silén- cio, naQuele recinto sombrio que me dava
arrepios. Além do mais, como era uma casa do interior,
conservadora, os pratos servidos cram quase sempre os
mesmos, e nin- guém deveria esperar iguarias raras on
refinadas. Mais e mais eu temia a hora das refeiVSes.
Tremendo de frio em meu assento naquela sala escura,
pegava pequenas por- vis de coinida e as enfiava na boca,
perguntando-me por que as pessoas precisavam comer trés
vezes por dia. Che- gava a pensar se aquilo nño seria so
uma espécie de ce- rimfinia, em que trés vezes por dia a
familia decide um horârio para se reunir num quarto
escuro, enfileirar mesi- nhas de refeiVao e, mesmo sem
vontade, comer de olhos baixos, em absoluto siléncio,
talvez como uma forma de orar pelos espiritos que
perambulam pela casa.
A frase “Se vocé nao comer, vocé morre" sempie soou
para mim como uma ameava detestavel. Essa crendice
(ainda hoje me parece que isso nño passa de crendice),
contudo, sempre me inspirou receio e medo. “As pessoas
trabalham para ganhar seu pño, pois se riio comem,
mor- rem.“ Para inim, nao havia frase mais obscure, dificil
de extender e, ao mesmo tempo, que soasse mais
ameaVa- dora do que essa.

21
Decllnio de um h‹smem

Em resumo, en ainda nño compreendia nada sobre


as ocupapses das pessoas. O receio de que a minha no-
Who de felicidade estivesse totalmente em desacordo
com a noV'ao de felicidade do resto das pessoas fazia
com que, noite apos noite, en me revirasse de um lado
para o ou- tro na cama, gemendo, qc ase a ponto de
enlouquecer. Serfi que eu era feliz? Desde pequeno eu
era chamado fre- quentemente de pessoa afortunada,
ainda que me sentisse sempre no meio do inferno. Que
ironia, sempre achei que as pessoas que me rotulavam
daquele jeito pareciam ser muito, mas muito mais
afortunadas do que en.
Chegava a pensar que sobre mim havia recaido um
fardo de dez desgra5as e que, se apenas uma delas fosse
repassada ao men vizinho, seria suficiente para matfi-lo.
En simplesmente nño entendo. Sou absolutamente in-
capaz de estimar a natureza e o gran do sofrimento alheio.
Sofrimentos prfiticos, que seriam resolvidos com um mero
prato de comida, mas que talvez sejam justamente as da-
napses mais intensas, como um inferno em chamas, que
reduziriam a po as minhas dez desgravas. Nño sei. Con-
tudo, se essas pessoas nao se suicidam, nao enlouque-
cem, se discutem sobre partidos politicos, se nño perdem
as esperanvas e seguem lutando sem se curvar, entao nâo
es- tao sofrendo, certo? Teriam essas pessoas se tornado
tño egoistas que n'ao so nño percebem o proprio egoismo,
como chegam mesmo a achar que é algo normal, sem
nunca duvidar de si mesmas? Se for assim, é fficil. Mas
serâ que todas as pessoas sño assim mesmo, serfi isso o
me- lhor que se pode esperar dos seres hurnanos? N°ao
sei... A noite, dormem confortavelmente e, pela manhñ,
talvez
Primeiro

acordem alegres. Que sonhos terao sonhado? No que


serâ que pensam enquanto andam pelas ruas? Em
dinheiro? Nño pode ser upeRas isso. Tenho a impressño
de jfi ter on- vido a teoria de que o ser humano vive para
poder comer, mas a de Que vive pelo dinheiro, acho que
nunca ouvi, nño, se bem que, dependendo... Nao,
também nño en- tendo isso. Quanto main penso, menos
consigo entender, e vivo sempre assolado pela ansiedade
e o medo de ser o unico destoante por completo. En quase
nño consigo falar com mens prsximos. Simplesmente nño
sei o que dizer e tampouco como dizé-lo.
A minha soluCño para isso foram as palhavadas.
Esse foi men 6ltimo recurso para angariar o amor dos
seres humanos. En temia as pessoas no mais elevado gran,
mas mesmo assim nao conseguia abandona-las de modo
algum. Fazendo palhaVadas, eu conseguia me ligar, pelo
menos um pouco, as pessoas. Ainda que carregasse um
sorriso permanente no rosto, era um esforVo constante
que parecia sempre prestes a fracassar, e cuja ardua exe-
cu9'ao me fazia suar aos borbotfies.
Desde crianVa eu nao tinha nosao de como devia ser
o sofrimento day outras pessoas, ou o que elas
pensavam, nem mesmo em relavao aos membros de
minha propria familia. Sentia apenas medo e, sem
suportar aquele am- biente pesado, me tornei um grande
paIha9o. Antes Que qualquer um percebesse, en jfi
havia me tornado o tipo de garoto que nño diz nada que
possa ser levado a sério. Quando vejo as fotos que tirei
com minha familia nessa época, percebo que,
enquanto todos estâo com semblantes compenetrados,
apenas en estou sempre com

2fi
Decllnio de um h‹smem

o rosto retorcido num sorriso esquisito. Era uma das face-


tas de minhas patéticas artimanhas infantis.
Mesmo quando algum parente ralhava comigo, en ja-
mais respondia. Recebia qualquer peQuena reprova 'ao como
um trovao que reverberava a ponto de me deixar atonito.
Longe de querer responder a uma reprimenda, achava que
aquilo era sem duvida a voz da "Verdade” humana fazendo-
-se ouvir ao longo dos séculos, e que talvez, se en riio era
capaz de agir de acordo com essa verdade, eu estava des-
qualificado para viver em .sociedade. Por esse motivo, nño
conseguia discutir, nem me justificar. Sempre que ouvia aI-
guma critica, acreditava que, de fato, en tinha entendido tudo
completamente errado, e recebia o impacto em siléncio, en-
quanto por dentro o medo quase me fazia perder a cabeva.
E bem provavel que ninguém se sinta bem quando é
criticado on é alvo da ira de outra pessoa, mas en vejo no
rosto daqueles que se irritam comigo uma expressâo sel-
vagem, mais assustadora do que de qualquer 1e'ao, drag'ao
ou crocodilo. Normalmente, as pessoas escondem essa in-
dole inata, mas quando alguma coisa acontece, a verdadeira
face humana se revela pelo odio de modo repentino, como
quando uma vaCa Que dorme rranquilamente no campo
mata de subito, com um golpe de rak'o, uma mosca que
pousou em sua f›arriga. Esses momentos Paziam cOm que o
medo voltasse a me assombrar, me deixando de cabelos
arrepiados, e quando pensava que essa indole inata talvez
fosse mrna condiVño para as pessoas sobreviverem, eu
aca- bava tornado pelo desespero.
Sempre tremia de medo has demais pessoas e nunca
tive sequer uma migalha de autoconfianVa em rela$ño
Primeiro

as minhas palavras e aos meus atos como ser humano.


Guardava minhas ang6stias em mrna pequena caixa den-
tro do peito e, escondendo com déscriVño minha tristeza
profunda e meu nervosismo, aperfeiVoei-me em ser um
personages excéntrico e brincalhño, permanentemente
revestido de um otimismo inocente.
“Se eu fizer as pessoas rirem, n"ao importa como, ficarâ
tudo bem. Fazendo isso, elas talvez mo se importer com o
fato de eu estar fora da tal ‘vida cotidiana’. De qualquer ma-
neira, riio posso ser um estorvo para os humane s: devo ser
o nada, o vento, o céu”, pemsava. E coriforme esses pensa-
mentos se intensificavam, mais eu fazia minha farnilia rir e
me esforCava para entreter ate mesmo os criados, pesscras
ainda mais assustadoras e incompreensiveFs.
Certa vez, no verâo, andava pelo corredor vestindo
um suéter vermelho de lñ por k'aiso do yuéa/n^, fazendo
todos rirem. Até mesmo meu irrnño mais velho, que rara-
mente ria, disse com um am^avel tom de voz:
— Yo-chan! Isso ai nao comk'ina!
Obvio que eu nao era um tipo tao insolito Que des-
conhecesse o frio e o calor e andasse por ai de suéter de
la em pleno verao. A verdade é que en havia pegado as
polainas de minha irma mais velha e enfiado nos bra os,
deixando aparecer pelas mangas do yufiatn, o que dava a
impress'ao de que en vestia um suéter.
Men pai, pot ter de ir com frequéncia a Tfiquio, tinha
uma casa no bairro de Sakuragi-cho, em Ueno, onde pas-
sava a maior parte do més. Quando retornava para nossa

3. Quimono leve de aIgodfio, usado no verio on como robe de banho. tN.T.]

2?
Decllnio de um

casa, trazia muitos presented para a familia, e até mesmo


para parentes mais distastes. Talvez isso fosse um tipo de
passatempo para ele.
Certa noite, antes de ir para Toquio, meu pai reuniu a
mim e mens irmños na sala de visitas e, sorrindo, pergun-
tou a cada um de nss que presents gostariamos de rece-
her, anotando cada uma das ienposees na agenda. Era raro
papai nos tratar com tanta afeivño.
— Yozo, o Que vocé quer? — perguntou ele. Eu en-
gasguei.
Foi so ele me abordar a respeito, Que imediatamente
mo dese jei mais nada. Qualquer coisa, tanto faz, nño
tern nada Que me divirta mesmo, foi o que me passou
pela cabe$a. Ao mesmo tempo, en nao consegu ia recu-
ear algo recek'ido de outra pessoa, por mais desagradfivel
que fosse. Nao conseguia dizer quando nño gostava de
algo e, mesmo se gostasse, hesitava como quem rouba,
sentindo um amargor intenso e um pavor inexplicâvel
que me fazia tremer. Ou seja, en nño tinha nem ao me-
nos a capacidade de escolher entre dnas op Ses. Creio
que, mais tarde, essa minha caracteristica tenha cido uma
das grandes causas do Que Chamo de “vida re pleta de
vergonha”.
Como fiquei petrificado e hesitante, meu pai fez uma
cara de enfado e se antecipou:
— Um livro, entño, como sempre? On que taI aquele
shishimai, e mfiscara de leño para a danpa dos lefies de
Ano-Novo? Estavam vendendo nas lojas de lerrrbrancas do
templo de Asakusa. Tern uns grandes, para que as crianpas
possam enfiar a cak'eva e brincar. Vocé quer?
Primeiro

Quando ele perguntou se en queria, foi o finn. Nem


consegui pensar numa resposta Mem-hiumorada. O papel
de palhaVo desmoronou.
— Vocé prefere livros, nao? — disse men irmño mais
velho, com o semblante sério.
— Ah, sei — fez men pai, desanimado, sem nem ao
menos fazer menq'ao de registrar na agenda, que ele fe-
chou de forma ruidosa.
Que desastre. En irritara men pai e, sem sombra de
duvida, sua vinganVa seria terrivel. Haveria tempo de ten-
tar remediar? — pensava en, tremendo, embaixo das co-
bertas. Levante i-me e fui sorrateiramente até a sala de
visitas. Abri a gaveta da escrivaninha, onde a inda hâ
pouco meu pai guardara a agenda, e a peguei. Procurei
a lista etc presentes, molhei com saliva o pincel e escrevi
“SHISHIMAI", indo dormir logo em segu ida. Nño que-
ria nem um pouco a mascara de leño. Contudo, ao me
dar conta de que era men pai que queria comprfi-la para
mim, obedeci ñ intenvao dele e, desejando apenas me-
lhorar ecu humor, empreendi aquela ousada aventura na
calada da noite.
Essa minha atitude desesperada mostrou-se mu ito
bem-sucedida, conforms planejei. Tempos depois, quando
meu pai retornou de Toquio, do quarto das crianVas
pude ouvi-lo contando o caso para minha m"ae:
— Quando abri esta agenda na loja de brinquedos de
Papa-misc’... Veja so, esta escrito “SHISHIMAt". Esta nao

4. £ojas qiae venclem lembranpas e guloseimas no pa.sseio que Iei'a ao templo


Senso-ji, end Asakusa. [N.T.]

27
Decllnio de urn

é a minha letra. “Mas que estranho", pensei. Foi at que me


ocorreu - mais uma travessura de Yozo! Quando perguntei
o que ele queria, ficou calado, fazendo manha. Mas ele
queria aquele leao a qualquer custo! Seja como for, aquele
garoto é esquisito mesmo. Se fez de desentendido, mas es-
creveu direitinho. Se ele queria tanto assim, devia ter dito
desde o comeCo. FiQuei rindo no meio da loja! Va chamar
Yozo de uma vez.
Numa outra ocasiño, en reuni a criadagem na sala em
estilo ocidental da casa, fiz um dos criados tocar de qual-
quer maneira o piano (era uma casa interiorana, mas dis-
punhamos da maioria das coisas bfisicas) e, em sincronia
com aquela mñsica absurda, me entreguei a uma danva
indigena, o que fez com que todos dessem boas garga-
lhadas.
Meu segundo irmño mais velho preparou o flash da
cñmera e tirou uma fotografia da minha dan5a indigena
que, quando revelada, mostrava, bem na junta do pano
que eu enrolara na cintura, o meu pintinho — o que nova-
mente gerou risadas por toda a casa. Talvez isso
tamfݎm tenha sido, para mim, um sucesso inesperado.
Todos os meses eu lia, em siléncio, mais de dez revis-
tas para jovens, além de vfirios livros trazidos de TSquio.
Estava muito familiarizado com o Doutor Sem Sen Tido,
e ainda com o Doutor Kuba Boa, e bem informado sobre
histsrias de terror, aventura, coletñneas de piadas, can-
Ses e afins, de modo que nño faltava assunto para fazer
o pessoal de casa rir das coisas absurdas que eu dizia com
ar de solenidade.
Entretanto, ah!, e a escola?
Primeiro

En era quase respeitado pelos colegas. Mas também


a ideia de ser respeitado era para mim algo assustador.
Minha definiVño de ser “respeitado“ era a de enganar a
todos quase completamente, até ser desmascarado por
al- gum ser onipotente e onisciente, que me reduziria a pñ,
numa vergonha pior do que a morte. Mesmo que vocé
en- gane os screw humanos e consiga “ser respeitado",
alguém vai saber da farsa, vai acabar contando para os
outros e, quando perceberem que foram enganados, serâ
terrivel a ira e a vinganVa dos seres humanos! So de
imaginar fico com os pelos do corpo todo arrepiados.
En estava proximo de ser respeitado pela escola nao
por ser um menino nascido numa familia rica, mas por ser
o que comumente se chama de “inteligente“. Por ter uma
saude rrruito frfigil na infiincia, estava sempre de cama,
e era comum en faltar a escola por um ou dois meses.
Certa vez, cheguei a faltar por quase um ano inteiro. Ainda
assim, recém-saido da convaIescen5a, en bia num riquixa
e seguia para as aulas, fa zia os exames de finn de ano e
me saia muito melhor do que qualquer outro da turma.
Mesmo quancto estava bem de sa6de, nao estudava nem
um pouco. Ia para a escola e ficava desenhando durante
as aulas para, na hora do intervalo, mostrar os desenhos
aos colegas e fazé-los rirem. Na aula de redaVao, so escre-
via historias cfimicas e, mesmo quando o professor cha-
mava-me a atenVño, eu n"ao parava. A verdade é que en
sabia Que o professor secretamente se divertia com meus
contos cfimicos. Certo dia contei, com um toque especial
de tristeza, o episodio de quando, levado de trem para To-
Quio pela millha mâe, resolvi, no meio do caminho, near
Decllnio de um

a escarradeira do vagño de passageiros para urinar (en-


tretanto, en nao havia feito aquilo sem saber. Fizera-o de
caso pensado, simulando a inocéncia das crianVas). Entre-
guei o texto e, como tinha certeza de que o professor iria
rir, segui-o escondido. Assim Que eIe saiu da sala de aula,
puxou minha redavao do meio das outras e comepou a
lé-la enQuanto andava pelo corredor, tentando segurar o
riso. Quando terminou a leitura, na sala dos professores,
ele estava completamente ruborizado, gargalhando com
estridéncia, e mostrou em seguida aos outros professores,
o que me deixou extremamente satisfeito.
PalhaVadas.
En consegui ser visto como um brincalhño. Assim,
pude escapar de ser respeitado. Tirava nota dez em todas
as matérias, e era somente em “comportamento” que ti-
rava nota seis ou sete, o que virava, mais uma vez, motivo
de gargalhadas em minha casa.
Minha natureza real, entretanto, era diametralmente
oposta a de um menino travesso. Nessa época, eu ja havia
aprendido coisas lamentfiveis com os empregados e em-
pregadas da casa. En fora abusado. Hoje penso que co-
meter um crime assim contra uma crian a é a coisa mais
vil, hedionda e terrivCl Que um ser humano pode fazer.
Mas eu suportei calado. Acreditava que aquilo me permi-
tia ver main um ñngulo da natureza humana, e ria abatido.
Se tivesse o hfibito de falar a verdade, teria denunciado os
criados para men pai on minha mâe sem consirangimento,
mas eu nño entendia nem ao menos mens proprios pais.
Pedir ajuda a alguém era um recurso no qual en mo tinha
esperanVa nenhuma. Ainda que contasse tudo ao meu pai
Primeiro

on ñ minha rnâe, a um policial, ao governo, serfi que eu


nño acabaria tendo minha voz silenciada por alguma pes-
soa de poder, de boas relapses na sociedade?
E evidente que o favoritismo existe, logo seria inu-
til reclamar para outros seres humanos. Sendo assim, nao
disse nada a ninguém, achando que nño havia o Que ser
feito além de suportar e continuar com as minhas estulti-
ces.
“Que conversa é essa de n'ao ter fé no ser humano?
Hein? Quando foi que vocé virou cristâo?", talvez Questio-
nem algumas pessoas, escarnecendo. Contudo, nño creio
que a descrenva no ser humano esteja necessariamente li-
gada °a religiño. Os homens, incluindo os que escarnecem
de mim neste momento, vivem em plena descren5a mu-
tua, serenamente, sem ao menos pensar em Deus, nño é
mesmo?
Tenho uma pequena historia de quando ainda era
crian5a. Certa figura de renome, do partido politico ao
qual men pai era afiliado, veio fazer um comicio no teatro
de nossa cidade, a que assisti junto com os criados. Estava
lotado e eu via todas as pessoas, sobretudo os amigos de
meu pai, aplaudindo com entusiasmo. No final, quando
voltava pelas rnas cobertas de neve em grupos de trés
on cinco a caminho de suas casas, o pu blico maldizia o
evento daQuela noite. Era possivel ouvir inclusive as vozes
de pessoas especialmente int s de meu pai. O discurso de
abertura de men pai havia sido malfeito, o discurso do po-
litico nño tinha nem pé nem cabeva, diziam os "camara-
das” de men pai, com tons de voz quase raivosos. Essas
mesmas pessoas vieram depois a nossa casa, entraram na
Decllnio de um

sala de visitas e disseram, com expressoes de alegria no


rosto que pareciam vir do fundo de seus cora oes, que a
noite havia sido um grande socesso. Até mesmo os cria-
dos, quando Questionados por minha mae, diziam logo
que havia sido muito interessante. Mas, no caminho para
casa, eles se lamentavam dizendo: “Nño existe nada t"ao
te- dioso quanto um comicio.”
Este, todavia, mo passa de um pequeno exemplo.
A vida humana estfi repleta desses exemplos, de seres hu-
manos enganando uns aos outros sem sequer se magoar
por isso, como se nem mesmo percef›essem que estño se
enganando mutuamente. Exemplos vividos, puros, alegres
e serenos de insinceridade. Nao tenho, no entanto, ne-
nhum interesse particular em enganos m6tuos. Eu mesmo
passava o dia todo, da manhñ a noite, enganando as pes-
soas com minhas palhavadas. N°ao me interesso pela vir-
tude que os livros didâticos de ética chamam de justiCa.
O Que nao comigo compreender sño as pessoas que, en-
quanto se enganam mutuamente, vivem com pureza, ale-
e a e serenidade — ou que acreditam poder viver assim.
Os homens, no finn dat contas, jamais me ensinaram esse
segredo velado. Se pelo menos en o tivesse compreen-
dido, talvez n'ao precisasse sentir medo dos screw huma-
nos e fazer esforpos tao extraordinarios para entreté-los.
Nño precisaria ter me oposto ñ vida humana, nem ex-
perimentado, noite apse noite, tormentor tao infernais.
Ou seja, creio Que mo foi pela descrenpa no ser humano
e muito menos por tendéncias cristas que mo denun-
ciei a ninguém o crime lastimfivel dos criados e criadas,
mas porque para mim, Yozo, a confianva dos seres
Primeiro

humanos era ina1canp;ivel, selada por uma carapaca. Pois


até mesmo mens pais, vez por outra, tinham atitudes in-
compreensiveis.
Tenho a impressao de que as mulheres, por instinto,
farejam em mim essa solidiio, essa incapacidade de recor-
rer a alguém, e que este é um dos motivos de, mais tarde,
terem se aproveitado de mim de varias maneiras.
On seja, para as mulheres, eu era um homem que sa-
bia guardar segredos de amor.

You might also like