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Revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 93 - Dezembro de 2022
Revista Conhecimento Prático Língua Portuguesa e Literatura - Edição 93 - Dezembro de 2022
DE REVER
LITERATURA BRASILEIRA
O VERBO
O QUE RESSALTAR E O QUE
150 ANOS DE RESSURREIÇÃO, DIRETRIZES ESQUECER QUANDO SE FALA
PRIMEIRO ROMANCE DE REVOLUÇÃO PRETA NA
MACHADO DE ASSIS ESCRITA BRASILEIRA DELE NAS SALAS DE AULA
ENTREVISTA VANESSA MARANHA DESPONTA COMO UMA VOZ QUE PRETENDE TIRAR O LEITOR DA PASSIVIDADE
Considerada uma das principais obras da
literatura inglesa, O Pequeno Lorde
de é um
livro cuja simplicidade e leveza conquistam
o leitor já nas primeiras páginas.
NAS LIVRARIAS
Ou acesse www.escala.com.br
EDITORIAL
O
s Titãs, no auge da fama, resumiram o dialógico e dinâmico tendo em vista a comunicação,
frenesi de uma época: “tudo ao mesmo mostrando sua face social. Por isso, essas demandas
tempo agora”. É mais ou menos o que exigem revoluções: Barreto apresenta quem, hoje,
acontece com a evolução de uma lín- na literatura negra, está nessa batalha, assim como
gua, seu ensinamento, sua expansão. No caso da tantos e tantas do passado. Na literatura infanto-
língua portuguesa, falada por cerca de 280 milhões juvenil dá-se o mesmo. O “era uma vez” renova-se,,
de pessoas, a confusão é geral, principalmente solta pum, fala de temas espinhosos, vira de cabeça
onde não deveria haver nenhuma: na sala de aula. para baixo os atuais contos de fadas, revela Simone
Uma das discussões que remontam a batalhas Strelciunas Goh.
napoleônicas diz respeito ao verbo. É para ensinar Mas como o escritor ou o locutor podem se cons-
conjugação? Como ensinar? Vale a pena ensinar? É tituir como sujeito que diz o que diz para quem diz?
o que Fábio Roberto Ferreira Barreto esclarece na E, ampliando o questionamento, quais recursos
matéria de capa, Rever o Verbo. Normal essa penden- linguísticos esse sujeito encontra a seu dispor para
ga quando temos um “mundo” que fala a língua por- ocupar tal lugar? Pode ser nos contos, nos romances,
tuguesa, como desvenda Abrahão Costa de Freitas, nas crônicas e, principalmente, nos discursos, políti-
traçando uma linha do tempo da Baixa Idade Média cos ou não, o texto injuntivo faz-se presente e é pre-
aos dias de hoje. Língua amplamente dominada por ciso saber usá-lo, explica Cleomar de Souza Lima.
nossa entrevistada desta edição, Vanessa Maranha, Todos esses temas, e tudo ao mesmo tempo ago-
que usa o vernáculo para instigar, tirar o leitor de sua ra, fazem parte do dia a dia dos professores, que
passividade. Muito provavelmente é o que desejava sempre, a 15 de outubro, são reconhecidos. E, para
o Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, quando que não os esqueçam, o cinema, a televisão, os livros,
publicou seu primeiro romance, Ressurreição, há 150 as HQs retratam e criam tipos inesquecíveis, relem-
anos, analisado à luz da distância de século e meio bra Márcio Scarpellini Vieira.
por Roberto Sarmento Lima.
Do túnel do tempo para as novidades que o ne- Pipoca!
ologismo apresenta, é um virar de páginas, no mes-
mo instante. Freitas demonstra como as escolhas Mara Magaña
linguísticas dos falantes apontam para um processo Editora
32. CAPA
É tempo de
revisão do
É HORA verbo
DE REVER
EDIÇÃO 93 - PREÇO R$ 17,00
© LETRAS.UFMG.BR
PRIMEIRO ROMANCE DE REVOLUÇÃO PRETA NA
ESQUECER QUANDO SE FALA
MACHADO DE ASSIS ESCRITA BRASILEIRA DELE NAS SALAS DE AULA
ENTREVISTA VANESSA MARANHA DESPONTA COMO UMA VOZ QUE PRETENDE TIRAR O LEITOR DA PASSIVIDADE
de pensar como
ensiná-la aos alunos 42
08 26 48
LEITURA RÁPIDA
08. Entrevista 40. Homenagem
Vanessa Maranha desponta na Adeus a Antonio Arnoni Prado
literatura como uma voz que
05. Ponto de Encontro
À Dona Marly, com carinho…
pretende tirar o leitor da passividade 42. Diretrizes
Revolução preta na 06. Síntese
14. Linguagem literatura brasileira Fique por dentro dos
Por onde anda o idioma português acontecimentos do mundo
da Língua Portuguesa e da
48. Literatura Educação
20. Literatura Brasileira Infantojuvenil
Primeiro romance de Machado 19. Acontece
de Assis, Ressurreição Novos autores reinventam o
Campanha distribui 2
completa 150 anos “era uma vez”
milhões de livros
À Dona Marly,
de fevereiro até maio, quando venceu
pelo cansaço. Às vezes me levava junto,
para que eu pudesse lançar olhos com-
com carinho…
pridos para a diretora e seu coque. Uma
solicitação foi feita ao órgão competente
e fui aceita apenas como ouvinte. No ou-
tro ano, teria de “repetir” o primeiro ano.
Deixaram isso bem claro para minha mãe
M
e ela explicou direitinho para mim, com
eu primeiro dia de aula as maiúsculas e minúsculas dentro medo do que eu fosse sentir no final do
começou no meio do das linhas. Preenchi caprichosamente, ano. Não escutei nada, só que, se eu
turno. Aliás, minha várias vezes, Mara Magaña, o eme quisesse, poderia finalmente ir para a
própria matrícula acon- iniciando com a perninha fora da pau- escola no dia seguinte.
teceu quase em junho, já iam longe ta, balançando no ar, tudo inclinado Dona Marly foi minha primeira profes-
as primeiras letras copiadas nos ca- um tantinho. sora: meiga, delicada, carinhosa… Sabia
derninhos com pauta, encapados com Quando ela foi verificar meu a-e-i- se conectar com aquelas pessoinhas que
papel de seda vermelho, devidamente -o-u, ficou espantada. “Você já sabe começavam a viver. Foi especial para
etiquetados: Caligrafia. escrever seu nome?”, perguntou. E eu mim, em todos os sentidos. Quando a
Fui levada pela mão a uma sala e respondi que até “o vovô viu a uva” e primeira turma recebeu o primeiro livro
recebida por uma moça magra, alta, “o macaco comeu a banana”, essa últi- de leitura, Caminho Suave, como a car-
cabelos pretos na altura dos ombros e ma frase, invencionice da minha mãe, tilha que havíamos terminado, me colo-
um sorriso convidativo. Ela era a pro- minha primeira mestra. Também contei, cou como oradora, testemunho lido do
fessora, eu tinha certeza, por causa do toda gabola, que sabia fazer conta. E papel almaço, texto meu com coautoria
avental branco imaculado. Ofereceu- cópia das historinhas de bichinhos no da minha mãe.
-me uma carteira bem à frente, do lado caderno comum. Eu avisei que eu tinha Dona Marly improvisou um palanqui-
esquerdo das fileiras, próximo a uma seis anos já e que minha mãe é que nho e, serelepe, subi e li meu discurso.
grande porta, toda em vidro e madeira, tinha pedido todo dia para a mulher de Fiz outros em minha vida. Não sei se
que dava para um pátio, delimitado coque para eu estudar. melhores que aquele, mas de algo tenho
por uma mureta e jardineiras floridas. Explique-se: pela lei da época, uma certeza: meu coração inteiro estava nele,
Para lá desse jardim, uma floresta a criança só poderia ser matriculada no expressando todo amor por minha pri-
meus olhos. primeiro ano primário, nomenclatura meira professora.
Seu nome era Marly. Com ípsilon, de então, se completasse sete anos Dela ainda ganhei livrinhos e A Caçada
aprendi rápido. Eu carregava uma até o último dia de março. Eu nasci em de Pedrinho, também de Lobato, no final
pequena frasqueira azul-marinho, com outubro, teria de esperar o próximo das aulas e a inspiração para uma futura
dois cadernos, um normal, outro, gra- ano. Mas todas as minhas amigas e carreira. Também me deu um presente
ças a Deus, da tal caligrafia, uma pera amigos passavam pela minha porta especial: um relatório emocionado
e um lanchinho de patê de cenoura. exibindo aqueles lindos uniformes pedindo que meu período fosse conside-
Ela fez um carinho em minha cabeça – com suspensórios, meias brancas, rado, com minhas provinhas anexadas e
ainda hoje sinto a leve pressão de sua gravatinhas e mala cheia de cadernos e uma solicitação formal da diretora.
mão em meus cabelos – e pediu para livros. Eu ficava doente de não poder ir No outro ano, entrei triunfante na sala,
eu fazer bolinhas. Mal se voltou para com eles. E até sabia ler de carreirinha com duas listras na gravata. Não a en-
a sala, eu havia terminado. Vieram história grande, como a Viagem ao Céu, contrei. A professora era a Dona Romilda.
os risquinhos, caídos para a direita e do Monteiro Lobato. Só restou à minha Fugi para a sala dela, que me prometeu
esquerda, e começaram as letras: a, mãe implorar para a Dona Laís me rece- estarmos juntas novamente. Dona
e… Então a ouvi pedir para todos escre- ber nas Escolas Agrupadas Dr. Fábio da Romilda nunca me perdoou por aquilo.
verem seus nomes e sobrenomes com Silva Prado. Ela o fez religiosamente, O ano passou devagar…
AUMENTA A
ANSIEDADE ENTRE
JOVENS NO PERÍODO
PÓS-PANDEMIA
Segundo pesquisa coordenada
pelo Atlas das Juventudes, seis a
cada dez participantes sofreram
ou vêm sofrendo de ansiedade nos
últimos seis meses e 50% sentem
cansaço e exaustão frequentes
como efeitos da pandemia. No
levantamento, 18% dos jovens
relataram depressão e 9% auto-
mutilação ou pensamento suicida.
O resultado faz parte da terceira
edição da série Juventudes e a
© FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO
© WILDPIXEL / ISTOCKPHOTO.COM
lho pelo Instituto Datafolha, sob en- e com os alunos, para
comenda das organizações sociais dialogar e entender
Cenpec e Ação Educativa, 56% dos o que pensam. É um
brasileiros pensam que os professo- dos 2.042.817 novos
res não devem falar sobre política eleitores, com idade
em sala de aula. Outros 54% acredi- entre 16 e 17 anos,
tam que os pais podem, sim, proibir que depositaram seus
votos nas urnas para na escola, segundo Júlio Novaes
a escola de ensinar sobre temas que
não considerem adequados. as eleições de 2022. Mestri, professor de história do mu-
No entanto, na escola em tempo Gabriel afirmou que se sentiu pre- nicípio de São Paulo. “Sem esse am-
integral Centro de Excelência Dr. parado para essa responsabilidade e biente democrático no lugar onde
Milton Dortas, na cidade de Simão também que aprendeu a exercer seu aprendem e, por vezes, vivendo em
Dias, centro-sul sergipano, o aluno direito de cidadania. Segundo ele, casa situações confusas quanto à
Gabriel de Jesus Santos, aos 17 anos, hoje entende que avaliar propostas polaridade política, esses jovens
vive uma realidade contrária: ele é melhor que acreditar em promes- crescem em um meio que ainda
participa de um grêmio que trabalha sas. Mas isso não é verdade para confunde educação com ideologia,
fortemente questões como direitos boa parte dos jovens, que em outu- professores com doutrinadores, e
sociais e respeito à diversidade, com bro fizeram suas primeiras escolhas valores democráticos com usos e
eleições diretas a cada dois anos, políticas. E isso podia ser resolvido costumes individuais”, assinala.
GOSTO DO
TEXTO QUE NOS
MOVE, QUE NOS
INCOMODA, QUE
NOS SACODE”
Dona de uma escrita que remonta
a Virgínia Woolf, mas com DNA
próprio, Vanessa Maranha desponta
na literatura como uma voz que
pretende tirar o leitor da passividade
por Mara Magaña
AL
SSO
O PE
QUIV
© AR
© ARQUIVO PESSOAL
com o seu opressor.
sempre foi dominado complexa relação entre mães e filhas, sob a perspectiva do
luto. Finalizei uma adaptação dramatúrgica, para teatro, do
pelos homens texto A GRANDE FÁBRICA DE PALAVRAS14, a ser encenado pela Cia.
enquanto autores ou Avoa ainda neste ano. E quero finalizar a trilogia proposta
para o infantojuvenil. Estou num momento de promover o
empreendedores. Isso livro em escolas e falar interativamente ao público infantoju-
venil, e tem sido muito enriquecedora a experiência.
é fato documentado
em pesquisa realizada
pela UnB, inclusive em HYPERLINKS
1 BRAINSTORMING
relação a premiações OU TEMPESTADE DE IDEIAS
Mais que uma técnica de dinâmica de
8 CHARLES PERRAULT (1628-1703)
Escritor e poeta francês do século 17 que
estabeleceu as bases para um novo gênero
muito tempo, homens 2 JULIO FLORENCIO CORTÁZAR A série é voltada para o público infantojuvenil,
(1914-1984) lançada em janeiro de 1973, pela Editora Ática.
Escritor, tradutor e intelectual argentino. Sem Ao longo do tempo sofreu alterações no formato.
UM MUNDO
QUE FALA
PORTUGUÊS
CERCA DE 280 MILHÕES DE PESSOAS
SE EXPRESSAM NO IDIOMA DE
CAMÕES, MACHADO DE ASSIS E MIA
COUTO. UMA AMPLA VARIEDADE DE
FALARES E SOTAQUES QUE COMPÕE
UM NOVO TERRITÓRIO DA LÍNGUA
O
português é uma língua de mui-
tas cores, sotaques e paisagens
que se projetam para além do
tempo e do espaço. Desde sua
consolidação como língua oficial de Portu-
gal, na transição entre BAIXA IDADE MÉDIA1 e RE-
NASCIMENTO2, ela não parou de crescer e de se
expandir, estabelecendo-se como expressão
de cultura em diversas regiões do planeta.
Em consonância com a vocação expansio-
nista do Império Colonial lusitano, o DIALETO3
herdeiro do galego-português diversificou-se
em uma ampla variedade de falares e sota-
ques e transformou-se em uma das línguas
mais faladas do planeta.
Tendo como centro de irradiação o terri-
tório português, essa língua de aventureiros
começou a sua grandiosa saga expansionista
a partir do século 15, quando se transformou
no principal instrumento para a consolidação
da hegemonia portuguesa no além-mar (ver
© QVASIMODO / ISTOCKPHOTO.COM
box As origens).
Seguindo as correntes migratórias impul-
sionadas pela expansão do Império Colonial,
a língua portuguesa espalhou-se por todos
os continentes até se transformar na quarta
língua mais falada no planeta. Atualmente,
segundo dados da Ethnologue: Languages in
the World, cerca de 280 milhões de pessoas em
todo o mundo utilizam a língua portuguesa
como LÍNGUA MATERNA4 ou LÍNGUA DE HERANÇA5.
um fator importantíssimo”
LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 17
GRAMÁTICA / Comunidade lusófona
HYPERLINKS
1 BAIXA IDADE MÉDIA • Período final ao governo do conde D. Henrique nativo do Oriente Médio. A cultura REFERÊNCIAS
da Idade Média, que se estende do no período da Reconquista Cristã e árabe envolve tradições, idioma e BIBLIOGRÁFICAS
século 11 ao século 15. Durante esse que mais tarde daria origem ao reino costumes de povos que são originários
independente de Portugal. BUENO, Francisco Silveira. A
período, o crescimento populacional dos territórios do Oriente Médio, da
formação histórica da língua
e o renascimento das cidades e do 8 PENÍNSULA IBÉRICA • Península África Setentrional e da Ásia Ocidental.
portuguesa. Rio de Janeiro:
comércio levaram ao colapso do situada no sudoeste da Europa da 14 FILÓLOGO • Aquele(a) que se dedica Acadêmica, 1958.
feudalismo e à centralização do poder qual fazem parte Espanha, Portugal, ao estudo da linguagem em fontes
real. Andorra e Gibraltar. É a mais ocidental históricas escritas, incluindo literatura, CASTRO, Ivo. Introdução à
História do Português. Lisboa:
2 RENASCIMENTO • Movimento das três grandes penínsulas da Europa história e linguística.
Meridional. Colibri, 2005.
cultural, econômico e político surgido 15 AMINI BOAINAIN HAUY • Mestra e
na Itália no século 16 e que se 9 GALIZA • Situada na região noroeste doutora em Filologia pela Universidade
HAUY, Boainain Amini. História
estendeu até o século 17. Inspirado da Espanha, é uma comunidade de São Paulo, onde também lecionou.
da Língua Portuguesa. São
nos valores da Antiguidade Clássica e independente, onde se localizam É uma das principais estudiosas da
Paulo: Ática, 2009.
gerado pelas modificações econômicas, os penhascos do Cabo Finisterra, SPINA, Segismundo (org.)
história da língua portuguesa no Brasil.
o Renascimento reformulou a vida que à época do Império Romano História da Língua Portuguesa.
medieval e deu início à Idade Moderna. eram considerados o fim do mundo
16 LÍNGUA DE CULTURA • Língua a Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008.
partir da qual se desenvolve uma
3 DIALETO • Forma como uma língua é conhecido. TEYSSIER, Paul. História da
cultura e/ou civilização.
realizada numa região específica. 10 LUSITÂNIA • Nome atribuído na Língua Portuguesa. Tradução
4 LÍNGUA MATERNA • Primeiro idioma Antiguidade ao território oeste da 17 LUSOTROPICALISMO • Modelo de Celso Cunha. São Paulo:
aprendido por uma pessoa. Também Península Ibérica, onde viviam os social proposto pelo sociólogo Martins Fontes, 2007.
é chamada de idioma materno, língua povos lusitanos desde o período Gilberto Freyre e que se baseia no
nativa ou primeira língua. Neolítico. mito da afeição que os colonizadores
portugueses teriam demonstrado
5 LÍNGUA DE HERANÇA • Idioma que 11 ROMANÇO (OU ROMANCE) • É o pelos povos indígenas.
os pais decidem transmitir aos filhos nome dado às diferentes línguas que
SOBRE O AUTOR
como parte de seu legado cultural. se originaram a partir do latim vulgar. 18 GILBERTO FREYRE (1900-1987) ABRAHÃO COSTA DE FREITAS
• Sociólogo brasileiro cuja obra foi é professor da rede municipal
6 COMUNIDADE LUSÓFONA • 12 CELTAS • Designação dada a um dedicada à análise das relações de ensino, formado em
Comunidade formada pelos povos conjunto de povos organizados em sociais no período colonial brasileiro Letras, com especialização
e pelas nações que compartilham a múltiplas tribos que se espalharam e sua influência na formação do povo em Educomunicação pela
língua e cultura portuguesas. pela maior parte do oeste da Europa a brasileiro no século 20. Seu livro mais Universidade de São Paulo e em
7 CONDADO PORTUCALENSE • Região partir do século 2 a.C. conhecido é, provavelmente, Casa Jornalismo Internacional pela
entre o Tejo e o Minho que foi entregue 13 ÁRABES • Grupo étnico semita, Grande & Senzala. Pontifícia Universidade Católica.
Campanha distribui
2 milhões de livros
O programa “Leia para uma criança” priorizará municípios
vulneráveis com os títulos De passinho em passinho: um livro para
sonhar e dançar e A pescaria do curumim e outros poemas indígenas
E
ste ano as crianças po- Este ano serão priorizados mu- visual e em formato audiovisual
derão contar com duas nicípios vulneráveis considerando com múltiplos recursos de acessibili-
obras representativas da parâmetros como grau de concen- dade, como Libras e audiodescrição.
literatura negra e indíge- tração de renda (Índice de Gini), A distribuição de tais livros prioriza
na. De passinho em passinho: um li- Índice de Desenvolvimento da instituições que desenvolvem ações
vro para sonhar e dançar, de Otávio Educação Básica (Ideb), indicadores inclusivas e acessíveis de leitura. As
Júnior com ilustrações de Bruna de pobreza e outros. versões audiovisuais acessíveis tam-
Lubamo, leva o selo Companhia Já para a população de maneira bém podem ser encontradas on-line
das Letrinhas e faz uma viagem ao geral, estão disponíveis, gratuita- na página do programa.
mundo das danças e dos ritmos pe- mente, 14 títulos da Estante Digital
riféricos, centrado em crianças e jo- e um acervo de 22 obras já distribu- CAMPANHA 2023
vens como protagonistas. Foi reali- ídas em anos anteriores em versões O Itaú Social está selecionan-
zada uma pesquisa minuciosa sobre audiovisuais acessíveis, voltadas do as duas obras de literatura para
o funk e seus aspectos culturais. Já para o público com deficiência. crianças que farão parte do kit do
A pescaria do curumim e outros poe- programa para distribuição em 2023.
mas indígenas, selo Panda Books, de SELEÇÃO POR EDITAL Nesta edição, a iniciativa recaiu so-
Tiago Hakiy, escritor do povo indíge- A iniciativa é do Itaú Social, que bre livros de literatura a respeito de
na Satereré Mawé, é um mergulho promoveu um edital para selecio- quaisquer temáticas, porém com re-
nas lembranças e nos afetos de um nar apenas obras que valorizassem corte em relação à autoria, que ficou
jeito de ser criança em contato com histórias, pessoas e culturas negras restrita somente a escritores latino-
a natureza. São 12 poemas sobre o e indígenas. Segundo a assessoria -americanos.
dia a dia na floresta. As ilustrações, do programa, a seleção teve como Foram considerados livros de
coloridíssimas, ficaram a cargo de objetivo reconhecer o potencial autores dos seguintes países: Brasil,
Taísa Borges e acrescentam ainda da literatura para contribuir com Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia,
mais riqueza ao universo retratado a diminuição das desigualdades e Costa Rica, Cuba, Equador, El Sal-
pelo escritor. com a valorização das diferenças. vador, Guatemala, Haiti, Hon-
A distribuição será feita por or- Puderam participar editoras brasi- duras, México, Nicarágua, Panamá,
ganizações sociais (bibliotecas co- leiras, com prioridade para livros de Paraguai, Peru, República Domini-
munitárias, associações de bairro, autores ou ilustradores que se auto- cana, Uruguai e Venezuela.
entre outras) e secretarias munici- declaram negros e/ou indígenas. As inscrições para participar do
pais de Educação. A campanha de Pode-se também solicitar as ver- “Leia para uma criança” acontecem
2022 teve início em agosto e distri- sões das obras em braille e fonte am- normalmente entre os meses de
buirá dois milhões de livros. pliada para crianças com deficiência agosto e setembro de cada ano.
RESSURREIÇÃO ou de um “ensaio”,
mas que guarda
revelações que podem
POSSÍVEL surpreender, segundo
nova visada crítica
Por Roberto Sarmento Lima
S
ócrates adverte GLÁUCON1, seu discípulo, de que
“a vista mais fraca muitas vezes enxerga as
coisas primeiro que a mais penetrante”. Nes-
sa passagem do Livro X de A REPÚBLICA2, PLA-
TÃO encena uma teoria da Verdade, segundo a qual o
3
20 | LÍNGUA PORTUGUESA
PORTUGUESA EE LITERATURA
LITERATURA
Hamlet – “Não estás vendo nada ali?” trem tratará o jovem poeta com educação, 1 GLÁUCON (445 A.C.-
Rainha – “Absolutamente nada, mas tudo sim, mas com reserva e talvez premeditada SÉCULO 4 A.C.)
que há eu vejo.” indiferença, numa posição cínica de quem Filho de Ariston, era
um antigo ateniense
desfruta da sua condição social elevada
e irmão mais velho de
Fazendo as devidas transferências dos diante de um pobre iniciante nas letras, cer- Platão. Ele é conhecido
casos filosófico e literário aqui lembrados tamente sem talento, com o qual não deve- principalmente como um
para as artimanhas do narrador e das perso- ria perder seu precioso tempo: “A viagem era grande conhecedor de
Sócrates na República. Ele
nagens de Ressurreição, primeiro romance curta, e os versos pode ser que não fossem também é mencionado
de Machado de Assis, quando o mancebo es- inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, brevemente no início de
critor tinha apenas 33 anos de idade, temos como eu estava cansado, fechei os olhos três dois diálogos de Platão, o
Parmênides e o Banquete.
que, se Machadinho não era ainda o Machado ou quatro vezes”. Até para ser indelicado o
dos 40 anos, quando, então, publica MEMÓRIAS homem não perde a fineza.
2 A REPÚBLICA
PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS7, já estava nele incu- Ora, em Ressurreição abre-se uma linda É o segundo diálogo
bado o mestre que viria a ser. Ou seja, como e gloriosa manhã, em que “algumas raras mais extenso de Platão,
Bentinho diria no final de DOM CASMURRO8, nuvenzinhas brancas, finas e transparentes composto de dez partes
(dez livros) e aborda
referindo-se a Capitu, bem servindo, porém, se destacavam no azul do céu”; e a perso-
diversos temas, como:
essa máxima ao próprio escritor, restava-lhe nagem Dr. Félix, apesar de indeciso e per- política, educação,
“reconhecer que uma estava dentro da outra, turbado emocionalmente a vida toda, tal imortalidade da alma
como Hamlet, e apesar de profundamente etc. Entretanto, o tema
como a fruta dentro da casca”.
principal e eixo condutor
ciumento como Bentinho, a ponto de fazer do diálogo é a justiça.
DO RAIAR DO SOL naufragar os sonhos e as esperanças, sobre- No texto, Sócrates é o
À NOITE NO SUBÚRBIO tudo as que envolvem o amor, vai permitir personagem principal,
narra em primeira pessoa
Machadinho e Machadão um dia se en- que se conheçam também os acontecimen- e é responsável pelo
contram: o de Ressurreição, de 1872, burilaria tos passados dez anos antes da abertura do desenvolvimento das
e refinaria seu artesanato em Dom Casmurro, romance, momento em que poderia refletir ideias. Essa é a principal
e mais complexa obra
de 1899 — já lá iam vinte e sete anos a contar sobre o naufrágio da sua relação doentia
de Platão, na qual estão
da sua estreia como romancista. Pois é assim com a viúva rica e enamorada, Lívia. Nos presentes os principais
mesmo, com essa expressão temporal, que Ma- dois casos — bela manhã para o dr. Félix fundamentos de sua
começar a refletir sobre o que foi e o que filosofia.
chado, numa espécie de PROLEPSE9 a indicar que
sua arte está ligada à sua existência, dá início fez e uma noite cálida para Bento Santiago
à narrativa de Ressurreição, como se o primei- mostrar realmente a que veio, com todos os
ro livro fosse o testamento de um de seus úl- pruridos de classe, com sua altiva superio-
timos livros ou, através dele, pudesse antever ridade em face dos que despreza — são en-
que um e outro terminariam se abraçando: gendradas duas personagens que reviram o
passado, reviram que reviram, mas que, no
“Naquele dia — já lá vão dez anos! — o fim, pisam vitoriosas sobre a carne seca, fa-
Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a janela zendo brilhar a autossuficiência e a autojus-
e cumprimentou o sol. O dia estava tificação. Resumindo: o outro (sempre o ou- 3
esplêndido” (o grifo é meu) tro, não? oh, velha prática brasileira, o mal PLATÃO
nunca está em mim, mas no outro, sempre!), (428 A.C.-347 A.C.)
Com esse início — que reflete confiança e sim, o outro é que não presta mesmo! Ponto Filósofo grego,
considerado um dos
alguma alegria —, Machado também deu par- para mim! Eia! principais pensadores
tida a Dom Casmurro. A diferença, a respeitar Bento Santiago, convicto e apaziguado de sua época. Discípulo
a cronologia do dia, é que a manhã translúcida em seus julgamentos que faz da outra pes- de Sócrates, procurava
transmitir uma
de Félix cede lugar à noite de Bento Santiago, soa, sai-se com esta frase, a mesma que des-
profunda fé na razão e
límpida e estrelada: “Uma noite destas, vindo taquei há pouco, ainda por cima forçando na verdade, adotando
da cidade para o Engenho Novo, encontrei no o leitor a tornar-se seu cúmplice: “Mas eu o lema de Sócrates,
trem da Central um rapaz aqui do bairro, que creio, e tu concordarás comigo; se te lembras “o sábio é o virtuoso”.
Escreveu diversos
eu conheço de vista e de chapéu”. Fica-se sa- bem da Capitu menina, hás de reconhecer diálogos filosóficos,
bendo mais adiante que o elegante senhor do que uma estava dentro da outra, como a entre eles, A República.
de solidão são obrigados a buscá-la no História dos subúrbios”. Escrever suas me- MASSA, Jean-Michel. A juventude
de Machado de Assis: 1839-1870:
meio do tumulto” — é a única saída en- mórias, pelo visto, lhe fez um bem danado. ensaio de biografia intelectual.
contrada por esse autor, ainda de vista Do mesmo modo, Félix: começa numa
Trad. de Marco Aurélio de Moura
Matos. 2. ed. rev. São Paulo:
mais fraca do que penetrante. Não ocor- manhã deslumbrante, um tanto interro- Editora Unesp, 2009.
re refrigério possível, nem solução idea- gativo e reflexivo, e termina com a mes- PEREIRA, Lucia Miguel. Machado
de Assis: estudo crítico e
lista alguma surge no horizonte. O jeito é
ma sensação que Bentinho teve ao cabo: biográfico. 6. ed. Brasília: Senado
enfrentar a multidão e as ruas, como faz Federal; Conselho Editorial, 2019.
a de que, se houve dúvidas atrozes no (Edições do Senado Federal,
o poeta da cidade pensado por Baudelai-
re e o narrador de Ressurreição promete, percurso até ali, estas se amainaram. Ele v. 236).
símbolo do tumulto da vida moderna esteve, sim, certo o tempo todo, não lhe
SOBRE O AUTOR
que o século trouxe — este “século, que é cabendo, pois, àquela altura, remoer cul- ROBERTO SARMENTO
a negação de tudo”, como declara o mes- pas ou remorsos, porque, num caso, tal- LIMA é doutor em Estudos
Literários e Professor Titular
mo Félix no capítulo III, a pretexto de vez chegue a escrever, lépido e fagueiro, da Universidade Federal de
Alagoas. Autor do livro O
falar da valsa e da quadrilha nos salões a prometida História dos subúrbios, en- Narrador ou o Pai Fracassado:
das famílias ricas. Só por esse luzir mo- quanto, no outro, se deu o esquecimento Revisão Crítica e Modernidade
em Vidas Secas, publicado
derno, que atende pela rubrica negação da memória das ilusões. O negócio, então, em 2015 pela OmniScriptum/
de tudo, é que o primeiro romance de é ir em frente; quem morreu morreu, ora, Novas Edições Acadêmicas,
em Saarbrücken, Alemanha.
Machado de Assis deve ser lembrado. ora! Simples assim. (sarmentorob@uol.com.br)
A FACE SOCIAL
DA LÍNGUA
De que modo as
escolhas linguísticas dos
falantes apontam para
Por Abrahão Costa de Freitas
um processo dialógico e
dinâmico tendo em vista
a comunicação?
OTO.COM
05 / ISTOCKPH
© MASTER13
“A criação, o reconhecimento
e a aceitabilidade de um OUTRAS PALAVRAS
neologismo envolvem aspectos O poema canção Outras palavras, de Caetano
históricos e culturais diversos. Veloso, é um exemplo de como a apropriação
As práticas linguísticas e as dos mecanismos próprios do sistema linguís-
tico da língua portuguesa pode contribuir
relações sociais vigentes à para a modificação de sentido de uma palavra
época em que foram criados alterando tanto a sua sonoridade quanto o
seu significado em um determinado contexto
são determinantes para sua e enunciação.
incorporação ou não ao léxico” Nos cinco versos abaixo transcritos, a palavra
“deslinda-se” ganha uma força que amplia não
apenas o seu significado, mas também as pos-
sibilidades de ampliação de suas definições
Cumprindo funções relacionadas ao uso
SOCIEDADE 5 para além do contexto em que é empregada.
MULTIMIDIÁTICA social da língua, esse processo é uma expe-
Sociedade histórica riência humana que faculta a cada falante “Nada dessa cica de palavra triste
e socialmente aquilo que IEDA MARIA ALVES4 chama de “direi- em mim na boca
construída e
constituída a partir to à criatividade léxica”. Travo, trava mãe e papai, alma buena,
dos recursos da Não podemos nos esquecer de que é dicha louca
multimídia. falando, ouvindo, lendo e escrevendo que Neca desse sono de nunca jamais
atribuímos um sentido às nossas experiên- nem never more
cias e aos nossos relacionamentos sociais. A Sim, dizer que sim pra Cilu,
CONTEXTO DE 6
organização simbólica que fazemos da reali- pra Dedé, pra Dadi e Dó
ENUNCIAÇÃO Crista do desejo o destino deslinda-se
Contexto no qual dade também passa pelos usos que fazemos
em belez”
se dá o processo da língua. Sob essa perspectiva, nunca é de-
de enunciação, ou mais lembrar o quanto a SOCIEDADE MULTIMI-
o ato individual A sonoridade obtida pela sequência dos
de utilização DIÁTICA5 na qual estamos inseridos intervém
versos a seguir produz efeitos que não se
da língua pelo em nossos processos de interação verbal, resumem apenas à aliteração, palavras como
falante. exigindo uma compreensão cada vez mais “ciumortevida”, “Lambetelho”, “orgasmaravalha-
ampla da realidade. -me”, “logum” e “homenina” envolvem e sedu-
As transformações de natureza política, zem tanto pelo timbre e melodia quanto pelos
econômica, técnica e científica impostas significados que podem assumir, dependendo
pela contemporaneidade também atingem do repertório cultural do leitor/ouvinte – uma
o léxico e a semântica, ressignificando os prova de que a criação de neologismo pode
usos que fazemos da língua. ser muito mais do que uma demonstração de
Nesse sentido, é importante ter claro que virtuosismo linguístico. “Palávoras”, por exem-
ela é um produto cultural histórica e social- plo, revela uma explosão de possibilidades
mente situado e que seus usos e suas aplica- de leituras também presente em “alphaluz” e
ções obedecem aos interesses e objetivos do
“sexonhei”, um verdadeiro orgasmo de hipóte-
ses e possibilidades.
falante. Cada situação comunicativa é um
processo interativo que pode seguir por di-
Parafins, gatins, alphaluz,
versos caminhos, modificando o uso que fa-
sexonhei da guerrapaz
zemos das palavras, seus sons e significados. Ouraxé, palávoras, driz, okê, cris, espacial
Projeitinho, imanso, ciumortevida, vivavid
NAS TRILHAS DO NEOLOGISMO Lambetelho, frúturo, orgasmaravalha-me
As relações estabelecidas entre língua Logun
e realidade social são fortemente influen- Homenina nel paraís de felicidadania:
ciadas pelo CONTEXTO DE ENUNCIAÇÃO6 e pela Outras palavras
Da natureza
das fortes
Menalton Braff cria simbiose
entre protagonista feminina
e a terra árida onde habita,
em prodigiosa narrativa
O
que faz um livro para merecer es- próximo, os desejos, as lutas, as inquie- No caso da história ambientada no Vale
tar à nossa cabeceira? Todos nós, tações. Ou com os personagens que habi- do Rio dos Sinos – ele, o próprio rincão,
leitores empedernidos, elegemos tam minha casa, vindos diretos da trilogia também protagonista com sua aridez –,
aquelas leituras que, de alguma maneira, O TEMPO E O VENTO5, de Erico Verissimo: temos a terra afastada dos centros comer-
irão nos acompanhar pela vida afora. Vez RODRIGO CAMBARÁ6, BIBIANA TERRA7 e eu ciais, inóspita, pontuando o destino de
ou outra um novo livro surge para engros- nos esbarramos nas noites insones. Florinda e Nicanor.
sar essa lista e, consequentemente, estar Pois bem: personagens que saem das A força da narrativa de Braff reside aí:
sempre por perto. É o caso de Além do Rio páginas onde estão contidos para exis- na primeira parte, a figura de Nicanor é
dos Sinos, de Menalton Braff, vencedor do tirem no mundo de um leitor, de vários a que assoma, construída com cinzel de
Prêmio Biblioteca Nacional 2020. leitores, de milhares de leitores, preci- escultor. Vemos o rapaz, completamente
Uma obra pode provocar múltiplas sam ter o toque genial do escritor para sozinho após a morte do pai, com a me-
leituras, múltiplas visões, a depender de que sejam reais, não apenas pareçam, mória desvanecendo aos poucos, os ros-
quando é lida. É evidente que a primeira ainda que seja em um mundo paralelo tos familiares sumindo, mãe, irmãos, que
leitura que fiz de Dom Casmurro é diferen- muito particular. também se foram. O quase garoto, em-
te da que faço hoje. Ou de AS MENINAS1, brutecido como o local, precisa fazer algo
de Lygia Fagundes Telles, na qual, na DIRETO DO MORRO DO CAIPORA por si, para não se tornar uma das pedras
estreia aos meus olhos, o envolvimento Além do Rio dos Sinos cumpre essa do lugar. Seu desejo é vender o que lhe
com as trajetórias das protagonistas LIA2, missão e, sei, vez ou outra vou relê-lo. coube como herança e, por isso, segue
LORENA3 e ANA CLARA4 me era muito Sempre faço isso quando o livro me pega. para um vilarejo, onde pretende se encon-
trar com um investidor. O negócio nunca vai “secando”, o corpo exibindo racha- che político em que o País mergulha:
chega ao fim, mas a decisão de se pôr duras, a pele áspera, como o Morro do a história se desenvolve desde pouco
em marcha muda o rumo da sua vida. Caipora onde vive, por gosto e pressão antes da Segunda Guerra à ditadura. São
Conhece um rapaz boa-praça, Jesualdo, do marido. as outras pedras do caminho, do Brasil e
camarada de fala fácil e riso largo, que o Florinda, a traidora, a pecaminosa, do morro esquecido por Deus, das gen-
leva para conhecer sua família. Ele tem vai crescendo em praticamente silêncio
tes que se costuma esconder embaixo
duas irmãs, Marialva, por quem Nicanor na trama. Outro ponto forte da narrativa
do tapete. Como os personagens desse
se apaixona, e Florinda. Mais não digo. braffiana. É dos avessos que se faz esse
livro. O País pega em armas, o presi-
romance, das entrelinhas, dos não ditos,
SIMBIOSE TERRA-MULHER do confinamento. dente se mata, mas as notícias chegam
Nesta nova leitura (cada vez que re- É importante ressaltar como o autor arrastadas, destituídas de sua importân-
lemos algo, é uma nova leitura), queria concebe e dá voz à mulher que, aos pou- cia no Vale do Rio dos Sinos. O tempo do
tirar a limpo se, realmente, a história é cos, vai engolindo o enredo. Não se trata calendário não ressoa naquele morro.
de Florinda, e não de Nicanor, ou dos do velho chavão “conhecedor da alma Florinda floresce justamente quando
dois. Num sentido primeiro, sim, são feminina”. Porque, em Florinda, a alma o País fenece. Toma em suas mãos o
as agruras de ambos que se misturam feminina vai dando espaço à alma da comando da própria vida quando as
à terra, ao embate morro versus várzea. terra, aos senões do desencanto, até à mulheres, de capitais longínquas, mar-
Mas é mais, muito mais do que isso. própria desmaternidade, às pedras que,
cham para um deus autoritário, matador,
Nessa trama com tons clássicos – a parecem, escutam mais Florinda que os
militarizado.
traição é um componente caro da lite- próprios viventes. O subir e descer morro
Florinda, finda a leitura, se recusou
ratura grega a Shakespeare, chegando torna-se a via possível para o encontro
de personagens e leitores. a ir embora, e está por aqui, na sala, na
aos dias atuais –, é em especial sobre
a simbiose entre Florinda, a que passa cozinha… Acho até que a vi tirando um
a perna na irmã Marinalva, e a terra, no MAIS PEDRAS NO CAMINHO dedo de prosa com Bibiana, que tem
caso a várzea, que assoma ao longo das Outra analogia que observo na obra cadeira cativa em minha casa. Já ouço o
páginas. A mulher, antes viçosa e fértil, estupenda de Braff é o também desman- balanço de duas delas.
HYPERLINKS
1 AS MENINAS 3 LORENA de quem gostava, chamado no Brasil, que se moldava
Lygia Fagundes Telles, com A segunda protagonista Max, usuário de drogas. entre a colônia, o império e
esse romance, ganhador morava no mesmo a república.
5 O TEMPO E O VENTO
do Prêmio Jabuti de pensionato, porém era de
Escrito ao longo de 13 anos, 6 RODRIGO CAMBARÁ
1974, apresenta diversos família rica, ou seja, seu
a trilogia de Erico Verisssimo Talvez o mais icônico dos
focos narrativos para quarto era o mais equipado.
foi assim apresentada
contar a trajetória de três Estudava Direito, gostava personagens da literatura
aos leitores: O Continente
pensionistas: Lia, Lorena e de música clássica e lia Che gaúcha. O Capitão Rodrigo
(1949), O Retrato (1951) e O
Ana Clara. Obra corajosa, Guevara. Sempre atuava representa o gaúcho
Arquipélago (1962). Os três
lançada em 1973, em plena como apoio financeiro das por excelência, que está
livros percorrem um período
ditadura, que descreve uma outras duas amigas. Era disposto a entrar em
de 200 anos e combinam
sessão de tortura. apaixonada por Marcus, pai qualquer briga, contanto
elementos do romance
de cinco filhos e casado, que acredite que haja algum
2 LIA histórico, da jornada épica
e vivia em ilusões de motivo.
Uma entre as três e da crônica, iluminando
concretizar seu romance.
protagonistas de As o caminho da família Terra
7 BIBIANA TERRA
Meninas, vivia em um 4 ANA CLARA Cambará. Ficção amparada
Neta de Ana Terra, mulher do
pensionato religioso Dentre o trio protagonista, em fatos e personagens
capitão Rodrigo Cambará.
enquanto cursava Letras era a mais bonita e reais, a saga traz episódios
e pretendia ser escritora. também mais frágil. Vivia determinantes para a Como a avó, Bibiana é REFERÊNCIA
Era militante política e seu no pensionato, cursava formação da identidade mulher generosa, sólida, BIBLIOGRÁFICA
codinome era Rosa. Tinha Psicologia, era modelo e cultural e geográfica do sofrida. Uma das grandes BRAFF, Menalton. Além do
um namorado e um amante, noiva de um homem rico e Rio Grande do Sul e para a criações femininas de Erico Rio dos Sinos. São Paulo:
ambos militantes. distante. Tinha um amante projeção política do estado Verissimo. Editora Reformatório, 2020.
alteraram”
HERÁCLITO3, filósofo grego, não esqueça- cia (mesmo os/as que tinham bagagem leitora),
mos, é quem primeiro nos explica a questão: durante o ensino médio.
“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo Rever o verbo, na gramática e nas metodo-
rio, pois quando nele se entra novamente não logias de ensino de língua portuguesa é, tam-
se encontra as mesmas águas, e o próprio ser bém, um ato peculiar. Após a introdução dos
já se modificou…”. estudos linguísticos – com distintas aborda-
Em se tratando de objetos do conheci- gens – entre nós (no país), as percepções sobre
mento, como obras literárias, entretanto, a gramática se alteraram.
perspectiva do rever tem uma peculiaridade: Os livros atinentes a essa categoria
as transformações estão apenas nas pessoas gramatical, desde 1959, estão atrelados à
(que mudam), não nos livros (cujos registros Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB),
tipográficos permanecem inalterados). mas, de lá para cá, as concepções de gramática
ÍTALO CALVINO4, em Por que ler os clássicos – li- e de ensino-aprendizagem tornaram a ques-
vro obrigatório nas faculdades de Letras de todo tão mais complexa ainda.
o País –, afirma que “toda releitura de um clássi- Rever os (ou ao menos alguns dos) concei-
co é uma leitura de descoberta como a primeira”. tos acerca de verbo, tal qual foram embasados
Reler Dom Casmurro, em uma fase madu- na Gramática Tradicional (GT), efetivamente
ra da vida, decerto levará o leitor a apreensões provocará reflexões e sentimentos, em 2022,
distintas daquelas que se teve na adolescên- outros que não aqueles que se teria outrora.
UM ADEUS
Professor titular do Departamento de
Teoria da Literatura da Unicamp, crítico
literário notável, autor de livros e artigos
de penetrante percepção da literatura e da
realidade social, despediu-se em setembro
Por Roberto Sarmento Lima
“S
e só me faltassem os outros, vá; cepção da literatura e da realidade social, que
um homem consola-se mais ou admiravelmente sempre se entrelaçam na sua
menos das pessoas que perde; escrita de insights poderosos, Arnoni resolveu
mas falto eu mesmo, e esta la- nos deixar no segundo domingo de setembro
cuna é tudo.” Essa frase, extraída do segundo deste ano, ano de tantas comemorações públi-
capítulo de Dom Casmurro, do velho Macha- cas — dentre as quais se destaca o centenário
do de Assis, é inspiradora; e, fazendo-se as de- da Semana de Arte Moderna, por exemplo.
vidas transferências, pode servir a várias oca- Partiu num domingo meio frio, 11 de setembro
siões. Inspira-me agora, neste momento em (que data!), neste fim de inverno brasileiro de
que pessoalmente perco uma pessoa querida tantas contradições: chuva e sol. Diziam meus
(o Brasil das letras, inclusive, também perde), avós que, quando chovia e fazia sol ao mesmo
embora aquilo que foi dito por Bento San- tempo, as raposas estavam se casando. Muito
tiago, no livro, falando do livro, não se ajuste pequeno ainda, eu achava interessante a ima-
bem, como a mão e a luva, ao comentário de gem. Cantante e buliçosa, com alguma coisa,
hoje. Mas vou-me esforçar, nunca é demais porém, de triste! Fim e começo: restos do in-
tentar tirar do texto machadiano alguma li- verno, início da primavera.
ção, ainda que deslocada do seu contexto de Antonio Arnoni Prado foi-se, silenciosa e
origem, ainda que fora da sintonia da obra educadamente, como é do seu feitio, sem dar
literária a que recorro, quase como epígrafe. na vista tanto assim, sem alardes, nesse inters-
A pessoa querida de que quero falar é tício de estações, em meio a conflitos políticos
o professor Antonio Arnoni Prado, o Arno- que endoidecem a toda a gente, tenham ou não
ni, como eu o chamava e muitos também, razão, segundo possamos julgar, nas suas pre-
creio, por aí, num flagrante de intimidade ferências por este ou aquele candidato que de-
respeitosa e amiga. Professor titular do De- verá nos governar a partir de 2023 (“Pão, pães,
partamento de Teoria da Literatura da Uni- questão de opiniães”, como disse o outro). Arno-
camp, desde 1979, crítico literário notável, ni, um intelectual de esquerda — aquela posi-
autor de livros e artigos de penetrante per- ção de esquerda igualmente educada, típica dos
FOLHAS
NEGRAS:
A NOVA
ESTAÇÃO
Pretos e pretas estão revolucionando a literatura
por Fábio Roberto Ferreira Barreto
N
ão é fácil ser preta ou preto no Para a escritora e geógrafa Cristiane Al-
© DIVULGAÇÃO
Brasil, não se enganem. É mais ves, que vem colocando a boca no trombone
difícil ainda, dificílimo, na ver- na literatura, independentemente de ser ne-
1
dade, ser uma autora preta ou gra ou qualquer outra divisão que inventem,
um autor preto no Brasil. Mas o preto não é não há meio termo para seu povo: “A morte é
CADERNOS NEGROS
Idealizado em 1978,
mais apenas a cor utilizada nas tipografias a sentença de nascimento para o povo preto”. por jovens estudantes
dos livros de literatura brasileira; aliás, faz É esse sentimento que aborda em seus livros, negros, para possibilitar
um bom tempo já. Só não enxerga quem assim como o fez, antes, Maria Carolina de Je- a democratização da
palavra no País. Trata-
tem problemas de visão! Também enegre- sus e o faz, atualmente, Conceição Evaristo, e -se de uma das mais
ceram suas narrativas e suas poéticas. que causaram grande espanto, a primeira por importantes iniciativas
“O surgimento da personagem, do autor ser uma favelada, a segunda por ter rompido brasileiras – senão a mais
relevante – para garantir
e do leitor negros trouxe para a literatura o casulo e ter-se tornado doutora em Litera- a autores negros um meio
brasileira questões atinentes à sua própria tura pela Universidade Federal Fluminense. de publicação. Ainda se
formação”, escreve Cuti, sobre quem fala- Todas grandes escritoras que, no entanto, são constitui como meios
pelos quais não apenas
remos mais adiante, em Literatura Negro- citadas ocasionalmente, ou nos CADERNOS NE-
surgem autores negros,
-Brasileira, uma das obras fundamentais da GROS1, importantíssima publicação que abriu mas também se renova a
crítica literária do País. as portas para muito preto ou preta da escrita. literatura no País.
Brasil, decorre da urgência de entender o País mos o pontapé inicial por meio dele, já que, ALMEIDA PEREIRA
como nunca se fez antes. até há pouco tempo, quase não se falava de Poeta, ficcionista,
ensaísta, professor e
Conceição Evaristo e Maria Carolina de sua negritude, fato atestado inclusive pelo
pesquisador da cultura
Jesus são duas das autoras negras mais men- jornal francês Le Monde, que afirmou, com e da religiosidade afro-
cionadas pelo Brasil afora na atualidade. Uma todas as letras, em artigo publicado em -brasileiras. Vencedor
rápida busca (digitando “literatura negra”) no junho de 2020, intitulado A Redescoberta do prêmio São Paulo de
Literatura de 2021 com
Google apresentará diversos resultados nos do Brasil das Grandes Figuras Negras que Front. Uma referência
quais o nome de ambas é destaque. Uma bi- Foram Branqueadas: “Hoje muitos nem sa- segura para quem
bliotecária ou uma atendente de livraria, certa- bem que o maior escritor do país é negro”. estiver à procura de
autores e autoras negras
ou de sínteses a respeito
de suas obras e links
“(…) o preto não é mais apenas a cor utilizada para seus textos, é
fundamental consultar
nas tipografias dos livros de literatura o portal Literafro – O
Portal da Literatura Afro-
brasileira; aliás, faz um bom tempo já. Só não -Brasileira, vinculado
à Faculdade de Letras
enxerga quem tem problemas de visão! Também da UFMG (Universidade
Federal de Minas Gerais),
enegreceram suas narrativas e suas poéticas” coordenada por ele.
OS NOVOS
“ERA UMA VEZ…”
Fadas e bruxas dividem o lugar com pets,
princesas que soltam pum, memórias
afetivas, contos fantásticos, problemas reais
da vida da gente e seres do sertão nordestino
Por Simone Strelciunas Goh
E
ra uma vez uma Essa história é uma uto-
menina e um recepção e pia pedagógica, todos os
menino, Cibele
e Felipe, Julia e
interpretação) educadores anseiam por ela
e acreditam nela, em suas
Marcelo ou Maria e João. e a interação possibilidades; dessa feita,
Tinham se perdido na flo-
resta, mas encontraram
(relação entre escritoras, escritores pro-
curam criar livros incríveis.
uma casinha cheia de do- o escritor- Mas as editoras e o governo
ces e… espere aí, na casa
morava uma fada-bruxa,
falante e o são como a fada-bruxa, são
eles que podem fazer a má-
porque todo ser encan- leitor-ouvinte) gica para que os livros che-
tado é bruxa e fada. Essa
bruxa-fada, fada-bruxa
proporcionam guem até as crianças.
Essa saga começa na
ajudou as crianças a volta- a compreensão cabeça das escritoras e dos
rem para casa. Lá, ensinou
a mãe e o pai a fazerem
dos sentidos do escritores que, quando en-
contram apoio, conseguem
pães deliciosos. E foi um
sucesso, a vida melhorou,
texto” editar seus textos e divulgá-
-los. Alguns projetos do go-
as crianças voltaram para verno impulsionam tudo
a escola… O mais legal foi a última mágica da isso, no entanto precisamos de mais e mais li-
bruxa-fada, que transformou uma casa ve- vros na porta das alunas e dos alunos, em suas
lha e feia em uma linda biblioteca, colorida casas, para serem lidos em família.
e cheia de livros. Todos os dias, as crianças Após o percurso de escrita, produção e publi-
liam na escola e, quando voltavam para casa, cação, poucos títulos fazem sucesso, ganham a
passavam na biblioteca e pegavam livros mídia, e você sabe de quem é a vez? Vamos apre-
© DJELICS / ISTOCKPHOTO.COM
geniais, não só Maria e João, mas todas as sentar alguns títulos que estão bombando, mas
crianças da vila. As famílias liam com elas, antes, para tornar essa leitura mais significativa,
riam com elas, conversavam sobre as histó- elencaremos elementos importantes para a TEX-
rias e assim viveram felizes para sempre. TUALIDADE1 dos livros infantis e infantojuvenis.
os pequenos e grandes leitores. O livro é base- feitas a santo Antônio. Em 2016, a versão
ado em memórias afetivas, feito especialmente americana do livro foi eleita como um dos
para crianças que estão começando a ler. A obra melhores para adolescentes pela Bibliote-
literária é formada por minicontos de quatro li- ca Pública de Nova Iorque e esteve entre os
nhas, inspirados em versos e haikais, indicados finalistas do Los Angeles Times Book Pri-
para o trabalho na educação infantil. No parâ- zes, na categoria Literatura Infantojuvenil.
metro de intencionalidade, os escritores cum- O livro nos apresenta todos os parâme-
prem a função de despertar a sensibilidade tros da textualidade, uma intertextualidade
sobre as coisas simples da vida. Não tem como implícita com os contos fantásticos. Como o
não aceitar, não gostar, é apaixo- personagem lida com essas vo-
nante. Vanessa assina também o de- zes femininas, suas dúvidas, la-
licado Menino Urso. mentações, um inusitado atrás
Já Vida da gente, de Fernando Bo- do outro; informatividade alta.
nassi, reúne crônicas que foram pu- Outro título famoso da autora é
blicadas no suplemento Folhinha, A bailarina fantasma.
do jornal Folha de S.Paulo. O escri- Menalton Braff, prêmio
tor traz como tema a vida, em tex- Jabuti no ano de 2000 com À
tos rápidos como são as crônicas. A Sombra do Cipreste, e prêmio
realidade deve e pode ser discutida Machado de Assis, da Biblioteca
por crianças e adultos. A situacio- Nacional, em 2020, com Além do
nalidade está na superfície desses Rio dos Sinos, também mergu-
textos, uma vez que podemos nos lha nas histórias para crianças
ver nas situações narradas. e adolescentes. Em A esperan-
Socorro Acioli é um nome que vem ça por um fio, Como peixe no
despontando no cenário literário in- aquário e Antes da meia-noite,
fantojuvenil. Nesse seu A cabeça do ao contrário do que ocorre nos
santo, temos, lemos, logo na apre- sombrios contos e romances
sentação: “Pouco antes de morrer, a para adultos de sua autoria, o
mãe de Samuel lhe faz um último final é mais ou menos feliz. Em
pedido: que ele vá encontrar a avó Como peixe no aquário, Rita de
e o pai que nunca conheceu. Mes- Cássia, que era balconista de
mo contrariado, o rapaz cumpre a promessa e uma papelaria, apropria-se do dinheiro da
faz a pé o caminho de Juazeiro do Norte até a venda de três cartuchos de tinta para im-
pequena cidade de Candeia, sofrendo todas as pressora com a expectativa de poder logo
agruras do sol impiedoso do sertão do Ceará. devolver a importância ao caixa.
Ao chegar àquela cidade quase fantasma, ele A vida de Artur, o protagonista de A es-
encontra abrigo num lugar curioso: a cabeça perança por um fio, muda repentinamente © JOSE LARA
oca e gigantesca de uma estátua inacabada de de maneira radical. Seu pai, arrimo de fa-
santo Antônio, que jazia separada do resto do mília, sofre um aneurisma e permanece 4
corpo. Mas as estranhezas não param aí: Sa- em coma por cerca de oito meses. Por isso, GABRIEL JOSÉ
muel começa a escutar uma confusão de vo- sem outra fonte de renda que não fossem GARCÍA MÁRQUEZ
(1927- 2014)
zes femininas apenas quando está dentro da as comissões do pai, que era representante Escritor, jornalista,
cabeça. Assustado, se dá conta de que aquilo comercial de três empresas, Artur e a mãe editor, ativista e político
são as preces que as mulheres fazem ao santo deixam São Paulo e mudam-se para o inte- colombiano. Considerado
um dos autores mais
falando de amor…”. rior, onde podiam contar com o amparo de
importantes do século
A escritora foi selecionada para participar Leonardo, tio de Artur. 20, foi um dos escritores
de uma oficina ministrada por GABRIEL GARCÍA Os problemas de Aline em Antes da mais admirados e
MÁRQUES4, e o romance foi ali desenvolvido. O meia-noite não são tão graves. Tratava-se traduzidos no mundo,
com mais de 40 milhões
texto narra a história de um jovem que desco- de controlar a compulsão por conversas de livros vendidos em
bre possuir o dom de ouvir preces de mulheres com amigos virtuais em chats e no MSN 36 idiomas.
©M
AS
TE
R1
30
5/
IST
OC
KP
HO
TO
.COM
EU DIGO,
VOCÊ FAZ!
SERÁ? Quando tratamos de textos de
injunção, se tem algo que não
podemos deixar de observar
é a relação entre sujeito que
“diz o que diz e para quem diz”
Por Cleomar de Souza Lima
© DIVULGAÇÃO
2
A partir disso, vários aspectos poderiam ser cutor numa direção específica, sugerida pelo
JEAN-PAUL
discutidos, mas, nesta rápida reflexão, vamos texto, isto é, a ação objetiva diretamente o BRONCKART
tomar como base a relação em que o sujeito se interlocutor. Já, de acordo com LUIZ CARLOS Professor de Didática de
torna autor de seu dizer (inserido num contexto TRAVAGLIA3, a injunção almeja incitar a reali- Línguas na Faculdade
de Psicologia e
social e histórico) e do processo de escrita de tex- zação de uma ação, um fato, um evento etc.,
Ciências da Educação
tos injuntivos, caracterizado por guiar indivídu- requerendo-a, desejando-a, orientando ou na Universidade de
os para a execução de uma atividade específica não como realizá-la, ou seja, o conteúdo do Genebra. Desenvolveu
ou estabelecer normas para direcionar outras texto diz respeito a algo a ser feito ou como diversos programas
de pesquisa sobre
práticas sociais. Em outras palavras, recuperan- este fazer deve ser realizado. epistemologia das
do o que Geraldi afirma (sem desconsiderar os Ainda de acordo com Travaglia, há dois ciências humanas e
demais aspectos), a ideia é jogar luz sobre o fato aspectos a serem observados. O primeiro: sociais, análise do
discurso, processos de
de o locutor se constituir como tal, isto é, como o pressuposto de que a realização da ação aquisição da linguagem
sujeito que “diz o que diz para quem diz”. orientada, solicitada ou requerida ocorre e didática das línguas.
Para ampliar o escopo dessa discussão, num momento posterior ao da enunciação, Atualmente, reorientou
seus trabalhos para
outros autores trazem contribuições impor- isto é, orienta-se para comportamentos futu-
a problemática
tantes sobre essa relação. De acordo com JEAN- ros. O segundo: a optação (ou não). Nas ma- das relações entre
PAUL BRONCKART2, ao compor um gênero com o nifestações de desejo, por exemplo, o locutor linguagem, ação-
predomínio da tipologia injuntiva, depreende- não tem controle sobre a situação, como na -trabalho e formação.
-se a intenção de querer “fazer agir” o interlo- expressão “Que Deus te ajude”.
Para além desses aspectos apontados, 3 LUIZ CARLOS
ADRIANA LETÍCIA TORRES ROSA4 apresenta um TRAVAGLIA
Linguista brasileiro
agrupamento preliminar dos textos injun-
“Observar a prática tivos, considerando a função sociocomuni-
conhecido por
seus trabalhos em
cativa de cada gênero. A autora agrupa-os
social, num primeiro em três categorias: os textos instrucionais-
linguística textual
e ensino de língua
quem foi que escreveu o texto, tal sujeito também, influenciado por tais elementos e TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL. Eleições 2022:
representa o TSE (órgão máximo da Justiça por meio da natureza do gênero textual. saiba como pedir para votar
em trânsito. Brasília. 15 de
Eleitoral), e a escolha dos mecanismos lin- As reflexões aqui propostas reforçam julho de 2022. Disponível
guísticos passa por essa contextualização. aquilo que já sabemos: tendências não são em: https://www.tse.jus.br/
comunicacao/noticias/2022/
Como já era de se esperar, há a presença regras. Sejam elas a de que o gênero notícia Julho/eleicoes-2022-saiba-
como-pedir-para-votar-em-
do imperativo, a começar pelo título da no- tem como tipologia predominante relatar transito-405649. Acesso em:
tícia, “Eleições 2022: saiba como pedir para ou expor; a de que os textos injuntivos fa- 18 jul. 2022.
IMITAÇÃO
DA VIDA
© DISNEY
É
provável que você também tenha presen-
te na memória a imagem da primeira pro- Nos desenhos, nas HQs, nos filmes e nas
fessora, daquela que o ensinou a escrever,
ou até daquela professora brava de lín-
novelas, a figura professoral surge para
gua portuguesa da antiga 5ª série que complicou a criar uma identidade cultural de um dos
nossa vida com análises sintáticas e morfológicas!
No entanto, além dos professores de carne e
profissionais mais lembrados por todos
osso, alguns professores que pertencem ao imagi-
por Márcio Scarpellini Vieira
nário e ao ambiente da “cultura pop” também fo-
ram importantes na minha, e talvez na nossa, cami-
nhada em direção ao quadro negro!
Personagens professores em histórias em qua- professores-personagens motivaram ou mesmo en-
drinhos, desenhos e filmes que ajudaram a cons- sinaram gerações sobre tais aspectos, além de criar
truir a imagem cultural da figura do mestre, da um espectro de autoridade sapiencial a respeito do
identidade deste profissional que, de tão importan- professor (ver box A linguagem como suporte).
te na vida de todos, é presença constante em qual- Quantos de nós gostaríamos de ter encontrado
quer tipo de retrato social. na sala de aula, quando criança, alguém que nos
No papel ou em formatos animados, as artes re- desse conselhos como o Príncipe Adam de HE-MAN1,
tratam a vida, as influências mais importantes, e é o abraço afetuoso da professora Helena de CARROS-
interessante a recorrência da figura de professores SEL2 ou até a excentricidade do Professor Tibúrcio do
nas narrativas de ficção, provando a importância do programa CASTELO RÁ-TIM-BUM3 da TV Cultura de São
profissional da educação na formação do caráter, Paulo? Esse cenário ficcional ajuda a criar um perfil
na formação do indivíduo e no desenvolvimento que, apesar de poder ser estereotipado às vezes, con-
das relações interpessoais e com o mundo exterior. tribuiu indelevelmente para a nosso imaginário em
Proponho aqui uma análise acerca de algumas relação à profissão docente. Bora rememorar?
figuras professorais do universo da cultura popu-
lar, que povoam camadas do nosso imaginário, e na PROFESSORES-PERSONAGENS
verdade compõem universos geracionais de influ- Nesta primeira abordagem sobre alguns profes-
ências na construção das nossas visões de mundo e sores do universo pop, a ideia é observar alguns per-
percepções sobre profissões e cenários sociais. sonagens que “viveram” seus episódios desde os anos
Como já sabemos, professores desenvolvem 1950, perpassando nossas mais tenras lembranças,
nos aprendizes características específicas de co- até os mais contemporâneos de séries que procuram
municação, linguagem, organização, liderança, explorar aspectos psicológicos e comportamentais,
respeito e relacionamento interpessoal. Esses por vezes até mais complexos e obscuros, por se tra-
HYPERLINKS
1 HE-MAN • He-Man é o ela, o ensino caminha lado a canal TV Brasil e na TV paga seu criador percebeu que o REFERÊNCIA
personagem principal da linha lado com o amor. É moderna e pela TV Rá-Tim-Bum. seriado seria destinado ao BIBLIOGRÁFICA
de brinquedos Masters of the ligada nas novas tendências da 4 CHAVES • El Chavo del público de todas as idades, NUNES, Cecília Maria
Universe da Mattel, presente educação. Helena se torna um Ocho (Chaves no Brasil e mesmo se tratando de adultos Fernandes; TEIXEIRA,
em uma série de histórias em referencial para seus alunos. O Xavier em Portugal), ou interpretando crianças. O Inês Assunção de Castro
quadrinhos e várias séries É com ela que eles contam em simplesmente El Chavo, é um elenco principal é composto et al. Telas da docência:
animadas, caracterizados pela todas as circunstâncias que seriado de televisão mexicano por Roberto Gómez Bolaños, Professores, professoras
sua força sobre-humana. Na enfrentam, sejam elas felizes criado, roteirizado, dirigido Carlos Villagrán, Ramón Valdés, e cinema. São Paulo:
maioria das variações, ele é o ou tristes. Estreou em 2012. e estrelado por Roberto Florinda Meza, María Antonieta Autêntica, 2017.
alter ego do Príncipe Adam. 3 PROGRAMA RÁ-TIM-BUM • Gómez Bolaños (conhecido de las Nieves, Edgar Vivar,
Programa infantil produzido como Chespirito), produzido Rubén Aguirre, Angelines
2 CARROSSEL • Carrossel, em 192 episódios pela TV pela Televisa. O roteiro veio Fernández, Horacio Gómez e SOBRE O AUTOR
baseada na telenovela Cultura, estreando na emissora de um esquete escrito por Raúl Padilla.. No Brasil, recebeu MÁRCIO SCARPELLINI
mexicana Carrussel, foi em 5 de fevereiro de 1990 e Bolaños, em que uma criança o título de Chaves e começou VIEIRA é pedagogo,
produzida pelo SBT e escrita sendo exibido até 1994. Criado de oito anos discutia com a ser transmitido pelo SBT em cientista social,
por Íris Abravanel. No início, por Flávio de Souza, teve como um vendedor de balões em 24 de agosto de 1984, sendo palestrante e
dirigida por Del Rangel e roteiristas Cláudia Dalla Verde, um parque (interpretado reprisado inúmeras vezes. administrador de
mais tarde substituído por empresas. Diretor-
Bosco Brasil, Mário Teixeira e por Ramón Valdés). 5 STAR WARS • Franquia do
Reynaldo Boury. A história -executivo do Colégio
Dionísio Jacob. A direção foi de Bolaños deu importância tipo space opera estadunidense
gira em torno de Helena, Ouro Preto e professor
Fernando Meirelles. Os atores ao desenvolvimento dos criada pelo cineasta George
uma jovem professora linda e Universitário.
veteranos Marcelo Tas e Carlos personagens, aos quais foram Lucas, que conta com uma
meiga que leciona ao terceiro Moreno faziam parte do elenco. distribuídas personalidades série de nove filmes de fantasia
ano da Escola Mundial. Para Foi reexibido também pelo distintas. Desde o início, científica e dois spin-offs.
RESGATE DO INFERNO
Neste ano, em que se comemora o centenário da morte de Lima Barreto,
Uma Temporada no Inferno faz um justo resgate de um dos escritores
mais mal compreendidos da nossa literatura. O personagem do romance
de Henrique Marques Samyn volta para reescrever a história no hospício
onde Lima esteve em dois períodos, na Urca. Foi na segunda internação,
entre o Natal de 1919 e fevereiro de 1920, que ele fez as anotações pu-
blicadas posteriormente como Diário do hospício e que serviram de base
para O cemitério dos vivos, um romance inacabado. “E se alguém fizesse
da tarefa de concluir essa obra a missão de vida? E se a pessoa fosse um
© REPRODUÇÃO
homem que, movido por essa obsessão, chegasse a se internar, seguindo
os passos de Lima? E se esse homem, sendo negro, acabasse preso nas
redes do racismo e da violência manicomial? Esse é o enredo. A narrativa
compila os fragmentos deixados pelo enigmático personagem, dialogando
com os escritos de Lima e incorporando ampla documentação histórica, extraída de relatórios,
textos científicos e periódicos da época”, explica Henrique Marques Samyn. Professor associado
do Instituto de Letras da UERJ, diz que o narrador-protagonista funciona como uma alegoria da
condição do povo negro no Brasil. É o desejo de tornar-se “alguém” que faz com que desenvol-
va a obsessão pelo autor de “Policarpo Quaresma”, ao perceber traços biográficos em comum.
OS FEITOS DE BEOWULF
EM CÉLEBRE POEMA
“Hwæt!” Era gritando essa palavra que J. R. R. Tolkien, o genial autor de
O Senhor dos Anéis, iniciava suas aulas de inglês antigo na Universidade
de Oxford. Os alunos, temerosos, corriam para seus lugares: eles não
sabiam que o professor estava apenas recitando os primeiros versos de
Beowulf, o mais célebre poema da literatura anglo-saxônica, composto
no século 8 e que até hoje entusiasma leitores no mundo inteiro, de
investigadores acadêmicos a fãs de RPG. Ambientado na Escandinávia
© REPRODUÇÃO
ANO 8 - EDIÇÃO 93
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Autora: Laetitia Colombani • Páginas: 224 • Editora: Intrínseca ATENDIMENTO AO LEITOR
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Reticências Reflexão de Abrahão Costa de Freitas
Galáxia Chartier
Pesquisador francês defende
tese na qual a mobilidade
e a materialidade do
texto podem influir e até
comprometer a tradução
N
o mês de setembro, o produzindo significações diversas
historiador e estudioso para aquilo que esses autores queriam
da leitura, o francês Roger expressar em sua língua de origem.
Chartier, esteve no Brasil Utilizando a metáfora das edições
© MICHAEL WÖGERBAUER
ABRAHÃO COSTA DE FREITAS é professor da rede municipal de ensino, formado em Letras, com especialização em
Educomunicação pela Universidade de São Paulo e em Jornalismo Internacional pela Pontifícia Universidade Católica.
NAS LIVRARIAS
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