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É HORA

DE REVER
LITERATURA BRASILEIRA
O VERBO
O QUE RESSALTAR E O QUE
150 ANOS DE RESSURREIÇÃO, DIRETRIZES ESQUECER QUANDO SE FALA
PRIMEIRO ROMANCE DE REVOLUÇÃO PRETA NA
MACHADO DE ASSIS ESCRITA BRASILEIRA DELE NAS SALAS DE AULA
ENTREVISTA VANESSA MARANHA DESPONTA COMO UMA VOZ QUE PRETENDE TIRAR O LEITOR DA PASSIVIDADE
Considerada uma das principais obras da
literatura inglesa, O Pequeno Lorde
de é um
livro cuja simplicidade e leveza conquistam
o leitor já nas primeiras páginas.

Cedric, o protagonista da trama, encanta a


todos por onde passa. Virtuoso e resoluto,
ao descobrir-se membro da aristocracia
inglesa, o garotinho americano se vê
em uma nova realidade ao atravessar o
oceano Atlântico a fim de viver junto de
seu avô, um conde austero, e lidar com
desafios que sua posição exige.

NAS LIVRARIAS
Ou acesse www.escala.com.br
EDITORIAL

© NATALIA DARMOROZ / ISTOCKPHOTO.COM


TUDO AO MESMO
TEMPO AGORA

O
s Titãs, no auge da fama, resumiram o dialógico e dinâmico tendo em vista a comunicação,
frenesi de uma época: “tudo ao mesmo mostrando sua face social. Por isso, essas demandas
tempo agora”. É mais ou menos o que exigem revoluções: Barreto apresenta quem, hoje,
acontece com a evolução de uma lín- na literatura negra, está nessa batalha, assim como
gua, seu ensinamento, sua expansão. No caso da tantos e tantas do passado. Na literatura infanto-
língua portuguesa, falada por cerca de 280 milhões juvenil dá-se o mesmo. O “era uma vez” renova-se,,
de pessoas, a confusão é geral, principalmente solta pum, fala de temas espinhosos, vira de cabeça
onde não deveria haver nenhuma: na sala de aula. para baixo os atuais contos de fadas, revela Simone
Uma das discussões que remontam a batalhas Strelciunas Goh.
napoleônicas diz respeito ao verbo. É para ensinar Mas como o escritor ou o locutor podem se cons-
conjugação? Como ensinar? Vale a pena ensinar? É tituir como sujeito que diz o que diz para quem diz?
o que Fábio Roberto Ferreira Barreto esclarece na E, ampliando o questionamento, quais recursos
matéria de capa, Rever o Verbo. Normal essa penden- linguísticos esse sujeito encontra a seu dispor para
ga quando temos um “mundo” que fala a língua por- ocupar tal lugar? Pode ser nos contos, nos romances,
tuguesa, como desvenda Abrahão Costa de Freitas, nas crônicas e, principalmente, nos discursos, políti-
traçando uma linha do tempo da Baixa Idade Média cos ou não, o texto injuntivo faz-se presente e é pre-
aos dias de hoje. Língua amplamente dominada por ciso saber usá-lo, explica Cleomar de Souza Lima.
nossa entrevistada desta edição, Vanessa Maranha, Todos esses temas, e tudo ao mesmo tempo ago-
que usa o vernáculo para instigar, tirar o leitor de sua ra, fazem parte do dia a dia dos professores, que
passividade. Muito provavelmente é o que desejava sempre, a 15 de outubro, são reconhecidos. E, para
o Bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, quando que não os esqueçam, o cinema, a televisão, os livros,
publicou seu primeiro romance, Ressurreição, há 150 as HQs retratam e criam tipos inesquecíveis, relem-
anos, analisado à luz da distância de século e meio bra Márcio Scarpellini Vieira.
por Roberto Sarmento Lima.
Do túnel do tempo para as novidades que o ne- Pipoca!
ologismo apresenta, é um virar de páginas, no mes-
mo instante. Freitas demonstra como as escolhas Mara Magaña
linguísticas dos falantes apontam para um processo Editora

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 3


SUMÁRIO EDIÇÃO 93

Cidinha da Silva é uma das autoras mais importantes


da atualidade. Sua produção navega entre conto,
crônica, ensaio, dramaturgia e infantojuvenil.

32. CAPA
É tempo de
revisão do
É HORA verbo
DE REVER
EDIÇÃO 93 - PREÇO R$ 17,00

Considerada uma das


LITERATURA BRASILEIRA
O VERBO
O QUE RESSALTAR E O QUE
classes gramaticais
150 ANOS DE RESSURREIÇÃO, DIRETRIZES mais difíceis, é hora

© LETRAS.UFMG.BR
PRIMEIRO ROMANCE DE REVOLUÇÃO PRETA NA
ESQUECER QUANDO SE FALA
MACHADO DE ASSIS ESCRITA BRASILEIRA DELE NAS SALAS DE AULA
ENTREVISTA VANESSA MARANHA DESPONTA COMO UMA VOZ QUE PRETENDE TIRAR O LEITOR DA PASSIVIDADE
de pensar como
ensiná-la aos alunos 42

08 26 48

LEITURA RÁPIDA
08. Entrevista 40. Homenagem
Vanessa Maranha desponta na Adeus a Antonio Arnoni Prado
literatura como uma voz que
05. Ponto de Encontro
À Dona Marly, com carinho…
pretende tirar o leitor da passividade 42. Diretrizes
Revolução preta na 06. Síntese
14. Linguagem literatura brasileira Fique por dentro dos
Por onde anda o idioma português acontecimentos do mundo
da Língua Portuguesa e da
48. Literatura Educação
20. Literatura Brasileira Infantojuvenil
Primeiro romance de Machado 19. Acontece
de Assis, Ressurreição Novos autores reinventam o
Campanha distribui 2
completa 150 anos “era uma vez”
milhões de livros

26. Língua Viva 54. Produção de Texto 64. Estante


O neologismo mostra a face social O que se diz e para quem se As novidades que estão
das escolhas linguísticas diz nos textos injuntivos chegando às prateleiras

60. Ponto de Vista 66. Reticências


30. Cabeceira Roger Chartier e os
Além do Rio dos Sinos cria Identidade cultural do comprometimentos da
simbiose entre a mulher e a terra professor em cena tradução

4 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Reflexão de Mara Magaña Ponto de Encontro

À Dona Marly,
de fevereiro até maio, quando venceu
pelo cansaço. Às vezes me levava junto,
para que eu pudesse lançar olhos com-

com carinho…
pridos para a diretora e seu coque. Uma
solicitação foi feita ao órgão competente
e fui aceita apenas como ouvinte. No ou-
tro ano, teria de “repetir” o primeiro ano.
Deixaram isso bem claro para minha mãe

M
e ela explicou direitinho para mim, com
eu primeiro dia de aula as maiúsculas e minúsculas dentro medo do que eu fosse sentir no final do
começou no meio do das linhas. Preenchi caprichosamente, ano. Não escutei nada, só que, se eu
turno. Aliás, minha várias vezes, Mara Magaña, o eme quisesse, poderia finalmente ir para a
própria matrícula acon- iniciando com a perninha fora da pau- escola no dia seguinte.
teceu quase em junho, já iam longe ta, balançando no ar, tudo inclinado Dona Marly foi minha primeira profes-
as primeiras letras copiadas nos ca- um tantinho. sora: meiga, delicada, carinhosa… Sabia
derninhos com pauta, encapados com Quando ela foi verificar meu a-e-i- se conectar com aquelas pessoinhas que
papel de seda vermelho, devidamente -o-u, ficou espantada. “Você já sabe começavam a viver. Foi especial para
etiquetados: Caligrafia. escrever seu nome?”, perguntou. E eu mim, em todos os sentidos. Quando a
Fui levada pela mão a uma sala e respondi que até “o vovô viu a uva” e primeira turma recebeu o primeiro livro
recebida por uma moça magra, alta, “o macaco comeu a banana”, essa últi- de leitura, Caminho Suave, como a car-
cabelos pretos na altura dos ombros e ma frase, invencionice da minha mãe, tilha que havíamos terminado, me colo-
um sorriso convidativo. Ela era a pro- minha primeira mestra. Também contei, cou como oradora, testemunho lido do
fessora, eu tinha certeza, por causa do toda gabola, que sabia fazer conta. E papel almaço, texto meu com coautoria
avental branco imaculado. Ofereceu- cópia das historinhas de bichinhos no da minha mãe.
-me uma carteira bem à frente, do lado caderno comum. Eu avisei que eu tinha Dona Marly improvisou um palanqui-
esquerdo das fileiras, próximo a uma seis anos já e que minha mãe é que nho e, serelepe, subi e li meu discurso.
grande porta, toda em vidro e madeira, tinha pedido todo dia para a mulher de Fiz outros em minha vida. Não sei se
que dava para um pátio, delimitado coque para eu estudar. melhores que aquele, mas de algo tenho
por uma mureta e jardineiras floridas. Explique-se: pela lei da época, uma certeza: meu coração inteiro estava nele,
Para lá desse jardim, uma floresta a criança só poderia ser matriculada no expressando todo amor por minha pri-
meus olhos. primeiro ano primário, nomenclatura meira professora.
Seu nome era Marly. Com ípsilon, de então, se completasse sete anos Dela ainda ganhei livrinhos e A Caçada
aprendi rápido. Eu carregava uma até o último dia de março. Eu nasci em de Pedrinho, também de Lobato, no final
pequena frasqueira azul-marinho, com outubro, teria de esperar o próximo das aulas e a inspiração para uma futura
dois cadernos, um normal, outro, gra- ano. Mas todas as minhas amigas e carreira. Também me deu um presente
ças a Deus, da tal caligrafia, uma pera amigos passavam pela minha porta especial: um relatório emocionado
e um lanchinho de patê de cenoura. exibindo aqueles lindos uniformes pedindo que meu período fosse conside-
Ela fez um carinho em minha cabeça – com suspensórios, meias brancas, rado, com minhas provinhas anexadas e
ainda hoje sinto a leve pressão de sua gravatinhas e mala cheia de cadernos e uma solicitação formal da diretora.
mão em meus cabelos – e pediu para livros. Eu ficava doente de não poder ir No outro ano, entrei triunfante na sala,
eu fazer bolinhas. Mal se voltou para com eles. E até sabia ler de carreirinha com duas listras na gravata. Não a en-
a sala, eu havia terminado. Vieram história grande, como a Viagem ao Céu, contrei. A professora era a Dona Romilda.
os risquinhos, caídos para a direita e do Monteiro Lobato. Só restou à minha Fugi para a sala dela, que me prometeu
esquerda, e começaram as letras: a, mãe implorar para a Dona Laís me rece- estarmos juntas novamente. Dona
e… Então a ouvi pedir para todos escre- ber nas Escolas Agrupadas Dr. Fábio da Romilda nunca me perdoou por aquilo.
verem seus nomes e sobrenomes com Silva Prado. Ela o fez religiosamente, O ano passou devagar…

MARA MAGAÑA é escritora, poeta e jornalista.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 5


Síntese POR JUSSARA CAIORU

AUMENTA A
ANSIEDADE ENTRE
JOVENS NO PERÍODO
PÓS-PANDEMIA
Segundo pesquisa coordenada
pelo Atlas das Juventudes, seis a
cada dez participantes sofreram
ou vêm sofrendo de ansiedade nos
últimos seis meses e 50% sentem
cansaço e exaustão frequentes
como efeitos da pandemia. No
levantamento, 18% dos jovens
relataram depressão e 9% auto-
mutilação ou pensamento suicida.
O resultado faz parte da terceira
edição da série Juventudes e a
© FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO

pandemia: e agora?, divulgada em


setembro. A amostragem ouviu
mais de 16 mil jovens de 15 a 29
anos de todo o País e foi reali-
zada em parceria com: Conselho
Nacional da Juventude (Conjuve),

OS CEM ANOS DE DARCY RIBEIRO Em Movimento, Fundação Roberto


Marinho, Rede Conhecimento
Para comemorar os 100 anos de nascimento de Darcy Ribeiro, Social, Mapa Educação, Porvir,
em 26 de outubro, a Agência Senado fez um resgate histórico. Unesco e Visão Mundial, com
Reuniu em uma página especial reportagens, vídeos e fotos apoio de Itaú Educação e Trabalho,
sobre a atuação de Darcy como senador. Mais conhecido como GOYN-SP e Unicef.
antropólogo e historiador, teve a atividade parlamentar marca- Em termos de aprendizagem, 55%
da pela relatoria da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). sentem que ficaram para trás
Segundo Guilherme Oliveira, autor das reportagens especiais, como consequência da pandemia.
neste ano de centenário, pessoas diferentes, de veículos dife- E 11% ainda pensaram em deixar
rentes, contam vários pedaços da trajetória dele. Para Oliveira, o de estudar nos últimos seis me-
Senado, é o relator natural da parte parlamentar dessa história. ses, enquanto 34% já pensaram,
Ao lado dos colegas Rodrigo Baptista e André Fontenelle, em- mas não querem mais parar.
penhou-se durante o primeiro semestre de 2022 na pesquisa. O Durante os anos da pandemia,
ponto de partida foi o livro autobiográfico Confissões, lançado parte deles chegou a interromper
em 1997, ano do falecimento de Darcy. os estudos em algum momento:
Conciliando a cobertura diária com as visitas ao Arquivo do em 2020, foram 28%; em 2021,
Senado o trio conheceu pessoas e histórias. Uma dessas pesso- 16%; e em 2022, 3%. Além disso,
as é Rosa Maria Vasconcellos, que trabalhou com o ex-senador 52% sentem que desenvolveram
e ajudou em parte da pesquisa. Ela virou per- ou intensificaram a dificuldade de
sonagem de uma das matérias, em que retrata manter o foco, 43% de se organi-
o gabinete como uma espécie de embaixada zar para os estudos e 32% para
falar em público, em função do
cultural e acadêmica. Quem ficou curioso pode
período remoto.
visitar a exposição em https://bit.ly/3Ubv13t.

6 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


FIQUE POR DENTRO DO QUE ACONTECE NO MUNDO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Trata-se de uma história que estima-se que haja cerca de 2 mi-


AOS TREZE, merece ser lida com muita aten- lhões de autistas. Desses, muitos
GAROTO ção. Concebido em formato HQ, o
personagem descreve seus feitos
matriculados em escolas regula-
res de todo o País. A definição de
AUTISTA cotidianos, como auxiliando seu Transtorno do Espectro Autista
ESCREVE pai nas tarefas de casa, os dias
de aula, festividades na escola e
engloba diversos transtornos,
tais como: autismo infantil, autis-
DIÁRIO SOBRE viagens com a família. Enfim, um mo de alto funcionamento, au-
SEU DIA A DIA livro de memórias de um ado-
lescente que está trilhando seu
tismo atípico, transtorno global
do desenvolvimento sem outra
Thales Lima Valêncio, um jovem próprio caminho, abraçando sua especificação, transtorno desin-
estudante de uma escola pública singularidade. tegrativo da infância, síndrome
de São Paulo, tem provado que a De acordo com o documento de Asperger etc. Dentre os desa-
inclusão é um bem para a socie- que atualiza a prevalência do fios enfrentados estão a falta de
dade. Aos 13 anos, criou coragem Transtorno do Espectro Autista informação sobre as especificida-
e entregou aos seus professores do CDC2, em 2020 havia 1 pes- des englobadas no espectro, os
o seu Diário de um autista, obra soa com autismo para cada 54 erros de diagnóstico e as dificul-
autoral inspirada no best-seller crianças de 8 anos, em 11 estados dades relacionais entre o autista,
juvenil O diário de um Banana. dos Estados Unidos. No Brasil, seus familiares e amigos.

seguindo todo o rito


DÁ PARA FAZER do voto secreto. Aluno
POLÍTICA NA do 2º ano do ensino
médio, também or-
ESCOLA? ganiza rodas de con-
Conforme pesquisa divulgada em ju- versa com a direção

© WILDPIXEL / ISTOCKPHOTO.COM
lho pelo Instituto Datafolha, sob en- e com os alunos, para
comenda das organizações sociais dialogar e entender
Cenpec e Ação Educativa, 56% dos o que pensam. É um
brasileiros pensam que os professo- dos 2.042.817 novos
res não devem falar sobre política eleitores, com idade
em sala de aula. Outros 54% acredi- entre 16 e 17 anos,
tam que os pais podem, sim, proibir que depositaram seus
votos nas urnas para na escola, segundo Júlio Novaes
a escola de ensinar sobre temas que
não considerem adequados. as eleições de 2022. Mestri, professor de história do mu-
No entanto, na escola em tempo Gabriel afirmou que se sentiu pre- nicípio de São Paulo. “Sem esse am-
integral Centro de Excelência Dr. parado para essa responsabilidade e biente democrático no lugar onde
Milton Dortas, na cidade de Simão também que aprendeu a exercer seu aprendem e, por vezes, vivendo em
Dias, centro-sul sergipano, o aluno direito de cidadania. Segundo ele, casa situações confusas quanto à
Gabriel de Jesus Santos, aos 17 anos, hoje entende que avaliar propostas polaridade política, esses jovens
vive uma realidade contrária: ele é melhor que acreditar em promes- crescem em um meio que ainda
participa de um grêmio que trabalha sas. Mas isso não é verdade para confunde educação com ideologia,
fortemente questões como direitos boa parte dos jovens, que em outu- professores com doutrinadores, e
sociais e respeito à diversidade, com bro fizeram suas primeiras escolhas valores democráticos com usos e
eleições diretas a cada dois anos, políticas. E isso podia ser resolvido costumes individuais”, assinala.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 7


ENTREVISTA / Vanessa Maranha

GOSTO DO
TEXTO QUE NOS
MOVE, QUE NOS
INCOMODA, QUE
NOS SACODE”
Dona de uma escrita que remonta
a Virgínia Woolf, mas com DNA
próprio, Vanessa Maranha desponta
na literatura como uma voz que
pretende tirar o leitor da passividade
por Mara Magaña
AL
SSO
O PE
QUIV
© AR

8 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


E
la é múltipla: escritora, psicóloga,
psicanalista. Por um tempo tam-
bém atuou como jornalista, mas
a escritora e a psicanalista ven-
ceram a parada. Maranha mostrou ao que
vem desde seu primeiro romance, Contagem
“… desde criança eu ensaiava
Regressiva, um dos finalistas do Prêmio São escritas. Quando li o primeiro
Paulo de Literatura. O segundo, Começa em
Mar, tem os pés fincados no realismo mági-
livro da minha vida, o Alladin,
co, por onde transitou com a facilidade de numa coleção da Disney, eu
um Cortázar. Em A filha de Mrs. Dalloway, faz
com que a protagonista de Mrs. Dalloway, ro- gostei tanto de ficar vivendo,
mance de Virgínia Woolf, retorne, dando-lhe
uma sobrevida. De quebra, levou para casa o
como leitora, dentro de um
Prêmio UFES de Literatura em sua categoria. livro, que pensei: quero criar
Em estilo intimista, sua característica, vem
sendo apontada como herdeira em impor-
um universo também”
tância de Clarice Lispector, só para ficarmos
em praias tupiniquins. No ano passado, foi
a vez de Estigma, livro de contos premiado
pelo ProAc – Programa de Ação Cultural de
São Paulo. A história se repetiu em A Ordem clínica. Hoje não trabalho mais com jornalismo.
do Dragão – Jornada a Tarczal, primeira in- Divido meu tempo entre as atividades no con-
cursão no universo infantojuvenil, que inclui sultório, na docência, em cursos de desenvolvi-
também sacis, cucas, duendes, medusas, seres mento humano e na literatura, seja escrevendo,
engarrafados… Para Harry Porter nenhum bo- mentorando e/ou participando de eventos.
tar defeito.
Como a escrita entrou em sua vida? Aliás,
Vanessa, você é escritora, jornalista, você já disse que “escrever é também
psicóloga, psicanalista… O que veio um jeito de não viver”. O que você já não
primeiro? Uma puxou a outra ou elas viveu por causa de uma história que
foram chegando e coexistindo? exigia sua total atenção?
Digo que antes de tudo veio a leitora. A es- Como eu disse, desde criança eu ensaiava
critora nasceu a partir da leitora, aos seis anos escritas. Quando li o primeiro livro da minha
de idade. Já nessa época eu inventava finais al- vida, o Alladin, numa coleção da Disney, eu gos-
ternativos para os contos de fadas porque não tei tanto de ficar vivendo, como leitora, dentro
acreditava no “e viveram felizes para sempre” de um livro, que pensei: quero criar um univer-
generalizante das fábulas. Então, talvez aí, da so também. Hoje eu reformularia essa ideia de
dúvida, do desejo de conhecer mais a fundo as que “escrever é também um jeito de não viver”.
motivações humanas, tenha nascido a psicólo- Diria que escrever é um jeito diferente de viver:
ga e, por extensão, veio a psicanálise, que sem reviver, ressignificar. Quando disse isso de não
dúvida, na sua interface, desde Freud, com a viver, eu me referia ao senso de missão que me
literatura e as mitologias, incensou a escri- acompanhava enquanto escritora, no sentido
tora. Mas a escritora que publica livros só da crença quase utilitarista de que o escritor de-
se fez mesmo a partir da psicanálise. veria ocupar o seu tempo criando uma obra. O
O jornalismo foi contingencial, atuei bom da vida é mudar. Não me coloco mais nesse
por uma década em jornais e revistas senso de literatura como missão ou apostolado
escrevendo matérias sobre arte, cultura – aliás, uma forma muito idealizada de perceber
e comportamento, sempre como uma o ofício –, e sim na ideia de que literatura é vida
atividade concomitante à psicologia se fazendo ou se refazendo de outra forma.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 9


ENTREVISTA / Vanessa Maranha

Como seu dá seu processo criativo? Contagem Regressiva, meu romance de


Vem sempre de um incômodo, de um deslum- estreia, foi uma experimentação. Eu já vinha
bramento, de uma pergunta. Eu digo que o meu de um longo percurso de produção de contos e
modo de escrever é um método de aproximação, crônicas, sabia escrever narrativas curtas, mas
de tangenciamento daquilo que quero pensar ou não acreditava ter fôlego para o romance. Não
ver. Vem o mote, depois o momento de pesquisa, sabia mesmo como fazê-lo, pois estava muito
inclusive sinestésica, daí, vou escrevendo o que no padrão, no arco dramático mesmo das for-
vai surgindo, colocando no papel, no fluxo da mas mais breves. Foi então que retomei JULIO
consciência, em associação livre mesmo, como CORTÁZAR2, que, com O JOGO DA AMARELINHA3, in-
numa análise, num BRAINSTORMING1. Depois vem ventou o romance desmontável, passível de
o momento da organização, da forma, da lapida- ser lido e compreendido a partir de qualquer
ção, do estilo. Não obedeço a nenhuma disciplina ponto. Pensei, com esse modelo em mente, em
de horário para criar. Ela se faz no fluxo mesmo. construir um romance em três tempos, que
Anoto num bloco, num caderno e, mais recente- pudessem ser lidos a partir de qualquer ordem
mente, no aplicativo de notas do celular. Preciso e, mais importante, para o instrumental de
anotar a ideia quando vem, senão ela escapa. que dispunha, capítulos que se fechassem em
si mesmos feito contos, mas que tivessem con-
Tanto em seus contos quanto em seus tinuidade. E já que era pura experimentação,
romances (atrevo-me a dizer mais nos coloquei também em prática a ideia de mime-
dois últimos), há uma preocupação em tizar de forma mais extensa a voz masculina.
mixar os mundos internos e externos Escrever sob o ponto de vista de um homem.
das personagens, a não linearidade Dois desafios, então, pelo menos, estavam pos-
das trajetórias de vida e dos próprios tos. Duas novidades. Mimetizar voz masculina
sentimentos, um mal-estar como uma e escrever uma narrativa extensa, com desdo-
asfixia dentro da realidade que vivemos. bramentos. O resultado foi que esse romance
Quanto a psicóloga e psicanalista experimental de estreia ficou entre os finalis-
contribui para esses perfis? tas do Prêmio São Paulo de Literatura de 2015,
Penso que a psicóloga seja decisiva para na categoria autor estreante de romance com
o tipo de literatura que faço. É um jeito de ver, mais de 40 anos. Algo que jamais imaginava
uma visão de homem e de mundo; um modo de para esse livro.
perscrutar, de inquirir, de investigar, de balizar,
de contornar. Uma literatura, sem dúvida, mais Em uma entrevista, você disse que o
psicológica e que, sim, busca essa maneira não conto é o nado ornamental, laboratório
linear de desenhar a aventura humana tanto incrível, e o romance é o mergulho. Seria
do ponto de vista externo, causal, genealógico o conto uma literatura menor?
quanto interno, em termos de funcionamento Não! De forma alguma! O conto é um gê-
psíquico. Isso me fascina. Sobretudo a constru- nero nobilíssimo, há obras-primas no gênero
ção psicológica e dinâmica dos personagens. conto e que são grandes feitos em termos de
concisão, condensação de sentidos, assertivida-
O início da sua carreira literária se dá de, precisão, manejo do tempo, anticlímax. No
pelos contos, com Coisas da Vida. Ainda meu caso, digo que os contos foram grandes la-
publicou vários livros desse gênero, boratórios para mim, assim, no sentido do nado
até que, com Contagem Regressiva, ornamental, enquanto forma. Mas claro que
ingressou no mundo do romance com alguns contos são mergulhos incríveis. Essas
um protagonista masculino e pinceladas metáforas que utilizei para explicar, no meu
machadianas, como já foi apontado. Por caso, a diferença da produção de contos e de
que você escolheu justamente um homem romance é que o romance me exige muito mais,
para dar início às histórias longas, voz no sentido da não rapidez, de me colocar numa
não natural, de alguma forma, para uma perspectiva de maior contato mesmo com a
romancista iniciante? história. Eu sempre resolvia os contos com

10 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Você toca em temas que estão em pauta,
“Penso que a psicóloga mas difíceis: patriarcado, misoginia, abusos
seja decisiva para o na infância, sexualidade reprimida, mas com
tal elegância que os tons ficam menos cinza.
tipo de literatura que É como se esculpisse a forma daquilo que
faço. É um jeito de ver, é dito, o próprio texto, com tal delicadeza,
mas com energia ao mesmo tempo. Matéria
uma visão de homem e dos grandes mestres… Como se dá esse
de mundo; um modo de processo, essa alquimia de palavras que
tudo diz, mas não fere?
perscrutar, de inquirir, Que bonita essa sua apreciação! Será que às
de investigar, de vezes elas não ferem? Fato é que eu, como leitora
e como escritora, muito talvez em função da psica-
balizar, de contornar” nálise e de uma premissa literária KAFKIANA5 de lite-
ratura não calmante, gosto do texto que nos move,
que nos incomoda, que nos sacode, seja pela forma,
pelo conteúdo ou pela junção dos dois.

muito mais facilidade. Mas, curiosamente, com o


aprendizado do trabalho, inclusive, dessa modula- Começa em Mar, que já nasceu com Menção
ção tempo da e na escrita e nos desdobramentos do Honrosa no Prêmio Governo de Minas Gerais
romance, eu modifiquei a temporalidade no conto. de Literatura 2016, é um romance sobre
A romancista influenciou a contista. mulheres, uma polifonia de vozes femininas,
e tem o realismo mágico como fio condutor.
Seus livros demandam pesquisas, Construir essa história, kafkaniamente,
mergulhos psicológicos, à moda como você gosta de exemplificar, abriu
de uma Clarice Lispector, Virgínia portas psicoliterárias para a escritora?
Woolf… E isso não é amiúde em nossa O processo de escrita desse romance foi muito
literatura. Como se dá esse movimento interessante. Eu tinha, como sempre, o ponto de par-
quando você está escrevendo? tida e algum aceno de chegada. Mas o caminho foi
O trabalho de pesquisa é como carregar bate- tão sinuoso, com personagens secundárias tomando
rias, é dilatar os recursos, trazer o acervo, de tê-lo dimensão e protagonismo, no decorrer do texto, que
à mão enquanto caixa de ferramentas – BARTHES4 sim, era como se tivessem, personagens e enredo,
– ou inspiração mesmo. Vou fazendo a pesquisa criado vida própria, para além da criadora. Portas
conforme a necessidade, conforme a escrita pede. psicoliterárias num sentido de heterônimos, sim.
Agora, algo que invariavelmente acontece, no ro-
mance, é o momento em que estou tão dentro dele, Em A Filha de Mrs. Daloway, remetendo
para além do tatear inicial, que é como se eu ficas- a Woolf, o fluxo de consciência, uma
se por bom tempo vivendo imersa naquela atmos- espécie de ficção da ficção, há uma
fera, com aqueles personagens, naquela sintaxe. passagem altamente densa: a personagem
que morre ao engolir um crucifixo, uma
Em toda sua obra, inclusive nessa última, o adolescente congolesa de 19 anos que
infantojuvenil A Ordem do Dragão – Viagem tenta desesperadamente se livrar de sua
a Tarczal, há uma ligação forte com outras cultura. Por que inserir esse contexto
culturas… De onde vem essa atração? naquele momento?
Sempre tive muita atração pelas mitologias to- Porque eu queria falar sobre o eurocentrismo,
das, gregas, indianas, nórdicas, indígenas, celtas… sobre o lugar periférico dos aculturados pela reli-
Esse universal que habita todas as culturas, em se gião, dos expatriados sorridentes e deslumbrados
tratando do ser humano, mas que ao mesmo tem- por seus algozes, numa antropofagia reversa. É
po é tão diverso, considero dialógico e fascinante. uma historieta meio louca, mas tem inspiração

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 11


ENTREVISTA / Vanessa Maranha

numa passagem do cineasta francês HENRI-GEORGES


CLOUZOT6 pelo Brasil, na década de 1950, para filmar a
ritualística das religiões afro-brasileiras. Mas o seu
estrabismo cultural é tamanho, na sua perspectiva
europeia, que o que acaba por fazer é apenas figu-
rar de modo preconceituoso e ofensivo mesmo os
adeptos do candomblé como criaturas grotescas.
Eu queria falar sobre eurocentrismo, sobre racismo
também, nesse livro. Sobre o oprimido identificado

© ARQUIVO PESSOAL
com o seu opressor.

A novidade agora vem na área infantojuvenil.


Você sempre foi próxima desse universo? O
que se pode esperar de A Ordem do Dragão?
Eu sempre fui próxima desse universo como
leitora. Desde IRMÃOS GRIMM7 a PERRAULT8, Monteiro
ATIVISTA DAS EMOÇÕES
Vanessa Maranha é uma ativista dos
Lobato, COLEÇÃO VAGALUME9, J. R. TOLKIEN10, ROWLING11,
pensamentos perpetrados em palavras.
NEIL GAIMAN12. Sou uma leitora eterna desse gênero e
O domínio que tem da narrativa e do
sempre quis escrever para essa faixa etária.
tempo psicológico, como já foi dito, re-
monta a grandes escritoras e escritores,
Vanessa, alguns de seus livros foram como Virginia Woolf, Clarice Lispector, e,
publicados graças ao ProAc (13), e a maioria na seara masculina, podemos incluir um
em pequenas editoras. Como você enxerga William Faulkner ou beber um trago de
esse atual momento literário no País? Caio Fernando Abreu.
Embora todos os prêmios na bagagem, a dificul- Isso fica claro em Estigma, obra publica-
dade para entrar no mercado das grandes editoras é da no final do ano passado pela Telucazu,
imensa, seja porque há ainda priorização da litera- graças ao ProAc – Maranha foi contem-
tura estrangeira em detrimento da nacional, sobre- plada por seu Histórico de Realização em
Literatura. O livro reúne 24 contos em
tudo a contemporânea, seja pelas linhas de força.
sintonia com uma canção. A que abre
Se você não quiser esperar demais pelo retorno das
essa viagem, Vodca, vem com fundo mu-
grandes editoras, quando há, precisa se lançar pelas
sical de “Strange Fruit”, com Billie Holiday.
independentes e pelos editais de fomento cultural Convite aceito, embarquei nesse comple-
como o ProAc. As editoras independentes revelaram xo mundo de sensações, histórias bipar-
muitos excelentes autores que não publicariam de tidas, fluxo de emoções e palavras. Zé do
outro modo. Brasil compõe um dueto na medida com
“E.C.T”, de Cássia Eller, assim como “Rosa”,
As mulheres estão dando o que falar acompanhado da voz rouca de Ângela Ro
literalmente nessa área: de coletivos a Ro. Nada é por acaso.
ações individuais, elas têm escrito cada E, mais uma vez agraciada pelo ProAc
vez mais, publicado e divulgado. Seria só e novamente em edição Telecazu, está
lançando A Ordem do Dragão – Jornada a
um boom ou agora ninguém as cala mais,
Tarczal, um mergulho no universo infan-
por mais desmandos na área da cultura que tojuvenil. Uma aventura que prende da
enfrentamos ou podemos enfrentar? primeira à última página, em um fôlego
Não creio que seja um boom. O caminho foi feito, só. Fã de mitologia, Vanessa faz o leitor,
então, é sem volta. Há ainda muito o que enfrentar, jovem ou não, mergulhar num looping de
vários desafios, mas ninguém nos calará. seres fantásticos, daqui da nossa seara
e de outras, onde sacis e dragões se en-
Quando falamos em pequenas editoras, tendem. E, o melhor, terá continuação: No
há uma esmagadora maioria masculina no céu de Meteora, o segundo da trilogia que
comando. E, mais uma vez citando Virginia pretende escrever já está em produção.

12 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Qual o próximo projeto?
“O mercado editorial São três projetos. Estou escrevendo um romance sobre a

sempre foi dominado complexa relação entre mães e filhas, sob a perspectiva do
luto. Finalizei uma adaptação dramatúrgica, para teatro, do
pelos homens texto A GRANDE FÁBRICA DE PALAVRAS14, a ser encenado pela Cia.

enquanto autores ou Avoa ainda neste ano. E quero finalizar a trilogia proposta
para o infantojuvenil. Estou num momento de promover o
empreendedores. Isso livro em escolas e falar interativamente ao público infantoju-
venil, e tem sido muito enriquecedora a experiência.
é fato documentado
em pesquisa realizada
pela UnB, inclusive em HYPERLINKS
1 BRAINSTORMING
relação a premiações OU TEMPESTADE DE IDEIAS
Mais que uma técnica de dinâmica de
8 CHARLES PERRAULT (1628-1703)
Escritor e poeta francês do século 17 que
estabeleceu as bases para um novo gênero

literárias. Chegou-se à grupo, é uma atividade desenvolvida para


explorar a potencialidade criativa de um
indivíduo ou de um grupo – criatividade em
literário, o conto de fadas, além de ter sido o
primeiro a dar acabamento literário a esse tipo
de literatura, o que lhe conferiu o título de Pai

conclusão de que, por equipe –, colocando-a a serviço de objetivos


predeterminados.
da Literatura Infantil.
9 COLEÇÃO VAGALUME

muito tempo, homens 2 JULIO FLORENCIO CORTÁZAR A série é voltada para o público infantojuvenil,
(1914-1984) lançada em janeiro de 1973, pela Editora Ática.
Escritor, tradutor e intelectual argentino. Sem Ao longo do tempo sofreu alterações no formato.

publicavam mais e, renunciar à sua nacionalidade argentina, ele


optou por adquirir também a francesa, em 1981,
em protesto contra a ditadura militar argentina.
Suas capas clássicas, nas quais as imagens ficam
para fora do quadro, marcaram época.
10 JOHN RONALD REUEL TOLKIEN
portanto, dominavam 3 O JOGO DA AMARELINHA
Considerado um dos títulos mais importantes e
(1892-1973)
Conhecido internacionalmente por J. R. R.

as premiações” inovadores da língua espanhola e da literatura


latino-americana, nasceu quando Cortázar
acreditava que já tinha atingido seu máximo
Tolkien, foi um escritor, professor universitário e
filólogo britânico, nascido na atual África do Sul,
doutor em Letras, autor de obras como O Hobbit,
O Senhor dos Anéis e O Silmarillion. Em 28 de
com os contos fantásticos. Dessa combinação
março de 1972, Tolkien foi nomeado Comendador
de insatisfação e deslumbre, Cortázar deu corpo
da Ordem do Império Britânico pela Rainha
a um romance fragmentado, em gomos, e cuja
Elizabeth II.
história se mistura à sua própria vida em Paris.
Como Cortázar, Horário Oliveira é um hermano 11 JOANNE “JO” ROWLING
exilado na Cidade Luz, um fugitivo de uma Mais conhecida como J. K. Rowling, é escritora,
Woolf, ela discorria, desde aquela época, realidade nua e crua, vivendo em uma espécie
de vórtice temporal alimentado por cigarros,
roteirista e produtora cinematográfica britânica,
notória por escrever a série de livros Harry
sobre a importância da independência e álcool, maconha, jazz e a paixão pela enigmática Potter. Os livros ganharam popularidade
– e uruguaia – Maga.
de ter um espaço físico próprio, onde as mundial, recebendo múltiplos prêmios e
vendendo mais de 500 milhões de cópias.
4 ROLAND BARTHES (1916-1980)
mulheres pudessem trancar a porta para Escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo 12 NEIL GAIMAN
e filósofo francês. Formado em Letras Clássicas Autor britânico de contos, romances, banda
escrever sem interrupções e romper uma em 1939 e Gramática e Filosofia em 1943 na desenhada e roteiros. Entre suas obras em prosa
Universidade de Paris, fez parte da escola
tradição dominada pelo patriarcado. estruturalista, influenciado pelo linguista
estão Deuses Americanos e Belas Maldições, a
segunda em parceria com Terry Pratchett.
Falava do sonho de montar uma editora Ferdinand de Saussure.
13 PROGRAMA DE AÇÃO CULTURAL
própria, e isso antes de se tornar uma 5 KAFKIANA Também conhecido como ProAc, é uma
Referente ao estilo de literatura do escritor legislação de incentivo à cultura do estado de
grande editora. Mas, mesmo sendo mais Franz Kafka, autor de Metamorfose. São Paulo criada em 2006 por meio da Lei nº
12.268/2006. Inicialmente conhecido pela sigla
6 HENRI-GEORGES CLOUZOT
empreendedoras que os homens, as (1907-1977)
PAC, no ano seguinte passou a ser denominado
de ProAC para não haver confusão com o
mulheres à frente de editoras ainda são Cineasta francês que começou a dirigir e
também a roteirizar seus filmes na década de
Programa de Aceleração do Crescimento. O
ProAc financia atividades artísticas como teatro,
poucas… Como você vê isso? 1940. Seu filme de estreia foi L’Assassin habite…
au 21. Casou-se com a atriz brasileira Vera
dança, circo, audiovisual, quadrinhos, entre
outros, oferecendo, a partir de editais anuais,
O mercado editorial sempre foi dominado Clouzot. Vários ataques cardíacos atrapalharam valores para a viabilização financeira de projetos
os últimos anos de sua vida. de diversos tamanhos e tipos apresentados por
pelos homens enquanto autores ou empreen- moradores do estado. O ProAc ganhou duas
7 IRMÃOS GRIMM
dedores. Isso é fato documentado em pesqui- Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) foram
vezes o Troféu HQ Mix na categoria “Grande
contribuição”, em 2010 e 2015, por causa dos
dois irmãos, ambos acadêmicos, linguistas,
sa realizada pela UnB, inclusive em relação a poetas e escritores que nasceram no então
editais para produções de obras em quadrinho.
Condado de Hesse-Darmstadt, atual Alemanha. 14 A GRANDE FÁBRICA DE PALAVRAS
premiações literárias. Chegou-se à conclusão Os dois dedicaram-se ao registro de várias Esse livro de Agnès de Lestrade e da ilustradora
de que, por muito tempo, homens publicavam fábulas infantis, ganhando assim grande
notoriedade, que, gradativamente, tomou
Valeria Docampo aborda a temática do valor
das palavras, mostrando que nem sempre nas
mais e, portanto, dominavam as premiações. proporções globais. Também deram grandes
contribuições à língua alemã, tendo trabalhado
“palavras mais caras” estão os sentimentos
mais sinceros. Philéas, apaixonado por Cybelle,
Sim, o número de mulheres à frente das edi- na criação e na divulgação, a partir de 1838, tem dificuldade de expressar seu amor devido
do Dicionário Definitivo da Língua Alemã (o às poucas palavras que possui. Mas conquista
toras ainda é pequeno, mas bem maior hoje Deutsches Wörterbuch), que não chegaram a Cybelle por dizê-las com todo o amor que por ela
completar, devido à morte de ambos, entre as sentia, evidenciando assim a diferença entre o
do que há vinte anos. O cenário vai mudando, décadas de 1850 e 1860. valor que tem a palavra e seu preço.

mais devagar do que gostaríamos, mas as mu-


danças são sensíveis.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 13


GRAMÁTICA / Comunidade lusófona

UM MUNDO
QUE FALA
PORTUGUÊS
CERCA DE 280 MILHÕES DE PESSOAS
SE EXPRESSAM NO IDIOMA DE
CAMÕES, MACHADO DE ASSIS E MIA
COUTO. UMA AMPLA VARIEDADE DE
FALARES E SOTAQUES QUE COMPÕE
UM NOVO TERRITÓRIO DA LÍNGUA

14 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


por Abrahão Costa de Freitas

O
português é uma língua de mui-
tas cores, sotaques e paisagens
que se projetam para além do
tempo e do espaço. Desde sua
consolidação como língua oficial de Portu-
gal, na transição entre BAIXA IDADE MÉDIA1 e RE-
NASCIMENTO2, ela não parou de crescer e de se
expandir, estabelecendo-se como expressão
de cultura em diversas regiões do planeta.
Em consonância com a vocação expansio-
nista do Império Colonial lusitano, o DIALETO3
herdeiro do galego-português diversificou-se
em uma ampla variedade de falares e sota-
ques e transformou-se em uma das línguas
mais faladas do planeta.
Tendo como centro de irradiação o terri-
tório português, essa língua de aventureiros
começou a sua grandiosa saga expansionista
a partir do século 15, quando se transformou
no principal instrumento para a consolidação
da hegemonia portuguesa no além-mar (ver
© QVASIMODO / ISTOCKPHOTO.COM

box As origens).
Seguindo as correntes migratórias impul-
sionadas pela expansão do Império Colonial,
a língua portuguesa espalhou-se por todos
os continentes até se transformar na quarta
língua mais falada no planeta. Atualmente,
segundo dados da Ethnologue: Languages in
the World, cerca de 280 milhões de pessoas em
todo o mundo utilizam a língua portuguesa
como LÍNGUA MATERNA4 ou LÍNGUA DE HERANÇA5.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 15


GRAMÁTICA / Comunidade lusófona

Transpondo suas fronteiras para fora dos


“Tendo como centro de
limites da Península Ibérica, o português re- irradiação o território português,
fez o traçado de seu mapa linguístico, esten-
dendo suas fronteiras para além do continen-
essa língua de aventureiros
te europeu. começou a sua grandiosa saga
O diálogo intralinguístico estabelecido
com as línguas dos territórios aonde chegou expansionista a partir do século
possibilitou não apenas o enriquecimento
de seu léxico, mas também sua consolidação
15, quando se transformou no
como língua de cultura de muita gente. principal instrumento para a
Falada em diversos níveis por variadas co-
munidades de emigrantes radicados em dife-
consolidação da hegemonia
rentes países, a língua portuguesa espalhou-se portuguesa no além-mar”
por diversos países dentro e fora da COMUNIDA-
DE LUSÓFONA6. As Nações Unidas estimam que
até o fim deste século haverá 500 milhões de
falantes da língua portuguesa. O número pode
mudar, uma vez que a comunicação já se dá em
AS ORIGENS
quatro continentes, sendo este o idioma mais Na arqueologia das línguas, a na” (cabana) e “leuca” (légua),
falado no Hemisfério Sul. pré-história da língua portu- coexistiam em perfeita har-
O número de pessoas que falam o portu- guesa estende-se por todo o monia com outras de origem
guês avançou nos últimos dois anos. O Brasil período anterior ao século 10, latina, como “conelio” (coelho)
época em que Portugal ainda e “ovelia” (ovelha), e tantas
ainda é o território onde a língua é mais usa-
era conhecido como CONDA- outras de origem árabe, como
da, com cerca de 212 milhões de falantes, mas
DO PORTUCALENSE7 e não almocreve (carregador) e ben-
essa situação deve mudar. Estima-se que a joim (essência aromática).
passava de um “pedacinho”
partir de 2050 e até o fim do século, existam Nessa fase a língua portu-
de terra situado às margens
mais falantes do idioma na África, sobretudo guesa ainda não contava com
do Rio Minho, no noroeste da
devido ao encolhimento populacional brasi- registros escritos. Eles só
PENÍNSULA IBÉRICA8.
leiro e à explosão demográfica verificada em É nesse período que o latim aparecem a partir do século
Angola e Moçambique. herdado do Império Roma- 13, quando se inicia a fase
No conjunto, os dois países somarão cerca no, e falado nas regiões da histórica do idioma. Ainda é
de 266 milhões de habitantes em 2100, ultrapas- uma escrita predominante-
GALIZA9 e da LUSITÂNIA10,
sando o Brasil, com população prevista de 200 mente fonética, sem nenhum
começa a se modificar até dar
milhões. Os jovens angolanos e moçambicanos
cuidado ou preocupação com
origem ao ROMANÇO11 galaico-
o léxico.
cada vez mais adotam o português como pri- -português, que passa a ser a
Avanços nesse sentido só são
meira língua. Eles estão deixando de falar idio- língua mais falada em ambas
notados por volta do século
mas originais, pois perceberam que aumenta- as margens do Minho.
15, quando o aparecimento
rão suas chances de ter uma carreira profis- Mas o latim não foi o único dos textos em prosa leva a
sional no futuro, conforme tem alardeado em idioma que contribuiu para a uma preocupação maior com
entrevistas Fleide Albuquerque, presidente da formação dessa língua feita acentuação, ortografia e pro-
Sociedade Internacional de Português Língua de tantas vertentes e cami- núncia das palavras.
Estrangeira (Ver box Aqui, Ali e Também Lá).
nhos. Muito antes da chegada Com o advento da moderni-
dos romanos à Península dade e a consolidação dos
Ibérica, CELTAS12 e ÁRABES13 já
O MAPA DA LÍNGUA haviam passado por ali, dei-
idiomas nacionais europeus, a
A cartografia da língua portuguesa há língua portuguesa ganha fôle-
xando suas marcas na cultura go e passa a soprar em outras
tempos não se restringe apenas à Comuni-
e na língua local. margens para além do Minho,
dade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
De acordo com a FILÓLOGA14 seguindo as rotas que desde
Em muitos lugares do planeta, o contato com
AMINI BOAINAIN HAUY15, du- o século 16 redesenharam
o idioma é feito a partir de algum fragmento rante esse período, palavras a cartografia do português,
de história e/ou cultura compartilhada. de origem celta, como “cappa- refazendo o mapa da língua.

16 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Em algumas regiões, como no Timor-Leste, a
língua portuguesa é vista como elemento iden-
titário capaz de diferenciar seus habitantes dos
vizinhos. Na contraposição que os timorenses
fazem entre si e os habitantes da Austrália e da AQUI, ALI
Indonésia, a língua é um fator importantíssimo.
Talvez por isso, mesmo após a independência
E TAMBÉM LÁ
do país, ocorrida há 47 anos, ainda exista um esfor-
ço comunitário para transformar o português em
língua oficial do povo timorense.
Em outras partes do planeta, no entanto, as
O português é a sexta língua mais usada
trocas simbólicas feitas a partir da língua assu- no mundo, segundo o Camões – Instituto
mem outra dimensão, e o português ganha carac- da Cooperação e da Língua –, para se fazer
terísticas bem distintas daquelas que adquiriu nos negócios, o que impulsionou vários países
países onde é utilizada como LÍNGUA DE CULTURA16. da Ásia a se interessar pelo nosso idioma.
Sua presença em novos espaços geográficos Atualmente, a China sai na frente e é a que
cria um território no qual as trocas simbólicas mais investe no português. Por meio de
aproximam diferentes culturas, redesenhando os uma parceria comercial, o Brasil fazia de
mapas da língua. Macau seu porto seguro, cidade que foi de
Na atual cartografia da língua portuguesa é domínio lusitano entre 1557 e 1999, como
centro estratégico para intermediar essa
possível incluir territórios tão distintos e diversos
aproximação entre os países lusófonos.
como Andorra, Luxemburgo, África do Sul, Namí-
bia, Paraguai e Venezuela. Lugares onde, apesar Hoje 55 universidades oferecem cursos de
de não ser língua oficial, é presença constante no graduação em português. O plano chinês é
cotidiano de boa parte da população. investir na contratação de professores nati-
Essa nova distribuição geográfica e étnica do
vos do português que ajudem seus homens
de negócios a dominar a língua, a fim de
português cria um tipo de comunidade lusófona
prepará-los para o mercado de trabalho no
em tudo diferente daquela composta de falantes
exterior e torná-los capazes de mediar pla-
“tradicionais”, como Portugal, Brasil, Angola, Mo- nos comerciais. Graça Riotorto, professora
çambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equa- de linguística da Universidade de Coimbra,
torial, Timor-Leste, São Tomé e Príncipe. diz que isso acontece porque os países não
têm com o que se preocupar: “A China está
investindo na cultura e no idioma, enquan-
to Angola, Portugal e até mesmo o Brasil
“Em algumas regiões, não têm ambições políticas imperialistas

como no Timor-Leste, a ou armamentistas de domínio, ou seja, esse


crescimento da língua não representa peri-
língua portuguesa é vista go nenhum para o mundo”.

como elemento identitário Não só a Ásia tem interesse na língua


portuguesa: os Estados Unidos também,
capaz de diferenciar seus principalmente nas regiões de Connecticut,
Massachusetts e Rhode Island, no nordeste
habitantes dos vizinhos. do país. Nos três estados vive um grande
Na contraposição que os número de portugueses, brasileiros e an-
golanos, e o idioma ocupa o terceiro lugar
timorenses fazem entre si e entre os mais falados, atrás do inglês e do
espanhol. Cerca de 850 mil pessoas – 1,2%
os habitantes da Austrália da população americana – falam o portu-
e da Indonésia, a língua é guês atualmente.

um fator importantíssimo”
LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 17
GRAMÁTICA / Comunidade lusófona

Ao contrário de lugares como A mudança dos centros de irra-


Goa e Macau, aonde a língua chegou diação da língua portuguesa amplia TERRITÓRIOS
ainda à época do Império Colonial
português, esses novos territórios
o processo de expansão do idioma,
iniciado no século 15, e dá novo sen-
DIGITAIS
Quando o assunto é a distribuição
entraram em contato com a língua tido às trocas culturais feitas dentro
geográfica do português em dife-
portuguesa a partir de uma nova ló- da comunidade lusófona.
rentes espaços, é preciso considerar
gica, inaugurada pela globalização, Mas há um grande desafio nesse também os territórios digitais. O
na qual a presença do português em estranho século 21 para os falantes número de falantes da nossa língua
outras regiões é sustentada pela he- de língua portuguesa, que pode ter presente no mundo digital tem
gemonia política e econômica do Bra- um grande protagonismo. É preciso crescido acentuadamente e hoje é
sil dentro da comunidade lusófona. que o português se revista de uma a quinta língua utilizada na web,
O modelo social de LUSOTROPICA- estratégia cultural que abarque todo ficando atrás apenas do inglês, do
LISMO17 proposto por GILBERTO FREYRE18 seu território linguístico, em vista de chinês, do espanhol e do árabe.
ganha assim uma nova configuração, ter uma afirmação global. Talvez a As discussões acerca da diversida-
e a multiculturalidade do idioma co- proposta da ortografia mais unifor- de linguística da língua portuguesa
meça a ser imposta pelo Brasil, e não mizada, conforme o Acordo Ortográ-
estão cada vez mais evidentes, sen-
do que estão mais presentes e aces-
mais por Portugal. fico assinado em 1990, possa alcançar
síveis às diversas
Em uma época na qual ninguém essa dimensão.
esferas da sociedade
mais acredita no mito da cordialidade Entretanto, é importante lembrar e funcionam como
dos colonizadores, essa influência é que a língua, enquanto ferramenta fortes aliadas para
exercida principalmente no território econômica, cultural e diplomática, que a diversidade da
difuso das mídias digitais, espaço no deve ser também uma língua de tra- língua seja conheci-
qual as relações humanas liquefazem- balho. Isso não acontece com a lín- da e valorizada por
-se e o processo de apropriação cultu- gua portuguesa, se pensarmos nas todos os falantes do
ral passa a ser visto com certa natura- Nações Unidas, apesar de termos um português.
lidade (ver box Territórios digitais). secretário-geral português.

HYPERLINKS
1 BAIXA IDADE MÉDIA • Período final ao governo do conde D. Henrique nativo do Oriente Médio. A cultura REFERÊNCIAS
da Idade Média, que se estende do no período da Reconquista Cristã e árabe envolve tradições, idioma e BIBLIOGRÁFICAS
século 11 ao século 15. Durante esse que mais tarde daria origem ao reino costumes de povos que são originários
independente de Portugal. BUENO, Francisco Silveira. A
período, o crescimento populacional dos territórios do Oriente Médio, da
formação histórica da língua
e o renascimento das cidades e do 8 PENÍNSULA IBÉRICA • Península África Setentrional e da Ásia Ocidental.
portuguesa. Rio de Janeiro:
comércio levaram ao colapso do situada no sudoeste da Europa da 14 FILÓLOGO • Aquele(a) que se dedica Acadêmica, 1958.
feudalismo e à centralização do poder qual fazem parte Espanha, Portugal, ao estudo da linguagem em fontes
real. Andorra e Gibraltar. É a mais ocidental históricas escritas, incluindo literatura, CASTRO, Ivo. Introdução à
História do Português. Lisboa:
2 RENASCIMENTO • Movimento das três grandes penínsulas da Europa história e linguística.
Meridional. Colibri, 2005.
cultural, econômico e político surgido 15 AMINI BOAINAIN HAUY • Mestra e
na Itália no século 16 e que se 9 GALIZA • Situada na região noroeste doutora em Filologia pela Universidade
HAUY, Boainain Amini. História
estendeu até o século 17. Inspirado da Espanha, é uma comunidade de São Paulo, onde também lecionou.
da Língua Portuguesa. São
nos valores da Antiguidade Clássica e independente, onde se localizam É uma das principais estudiosas da
Paulo: Ática, 2009.
gerado pelas modificações econômicas, os penhascos do Cabo Finisterra, SPINA, Segismundo (org.)
história da língua portuguesa no Brasil.
o Renascimento reformulou a vida que à época do Império Romano História da Língua Portuguesa.
medieval e deu início à Idade Moderna. eram considerados o fim do mundo
16 LÍNGUA DE CULTURA • Língua a Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008.
partir da qual se desenvolve uma
3 DIALETO • Forma como uma língua é conhecido. TEYSSIER, Paul. História da
cultura e/ou civilização.
realizada numa região específica. 10 LUSITÂNIA • Nome atribuído na Língua Portuguesa. Tradução
4 LÍNGUA MATERNA • Primeiro idioma Antiguidade ao território oeste da 17 LUSOTROPICALISMO • Modelo de Celso Cunha. São Paulo:
aprendido por uma pessoa. Também Península Ibérica, onde viviam os social proposto pelo sociólogo Martins Fontes, 2007.
é chamada de idioma materno, língua povos lusitanos desde o período Gilberto Freyre e que se baseia no
nativa ou primeira língua. Neolítico. mito da afeição que os colonizadores
portugueses teriam demonstrado
5 LÍNGUA DE HERANÇA • Idioma que 11 ROMANÇO (OU ROMANCE) • É o pelos povos indígenas.
os pais decidem transmitir aos filhos nome dado às diferentes línguas que
SOBRE O AUTOR
como parte de seu legado cultural. se originaram a partir do latim vulgar. 18 GILBERTO FREYRE (1900-1987) ABRAHÃO COSTA DE FREITAS
• Sociólogo brasileiro cuja obra foi é professor da rede municipal
6 COMUNIDADE LUSÓFONA • 12 CELTAS • Designação dada a um dedicada à análise das relações de ensino, formado em
Comunidade formada pelos povos conjunto de povos organizados em sociais no período colonial brasileiro Letras, com especialização
e pelas nações que compartilham a múltiplas tribos que se espalharam e sua influência na formação do povo em Educomunicação pela
língua e cultura portuguesas. pela maior parte do oeste da Europa a brasileiro no século 20. Seu livro mais Universidade de São Paulo e em
7 CONDADO PORTUCALENSE • Região partir do século 2 a.C. conhecido é, provavelmente, Casa Jornalismo Internacional pela
entre o Tejo e o Minho que foi entregue 13 ÁRABES • Grupo étnico semita, Grande & Senzala. Pontifícia Universidade Católica.

18 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Da Redação Acontece

Campanha distribui
2 milhões de livros
O programa “Leia para uma criança” priorizará municípios
vulneráveis com os títulos De passinho em passinho: um livro para
sonhar e dançar e A pescaria do curumim e outros poemas indígenas

E
ste ano as crianças po- Este ano serão priorizados mu- visual e em formato audiovisual
derão contar com duas nicípios vulneráveis considerando com múltiplos recursos de acessibili-
obras representativas da parâmetros como grau de concen- dade, como Libras e audiodescrição.
literatura negra e indíge- tração de renda (Índice de Gini), A distribuição de tais livros prioriza
na. De passinho em passinho: um li- Índice de Desenvolvimento da instituições que desenvolvem ações
vro para sonhar e dançar, de Otávio Educação Básica (Ideb), indicadores inclusivas e acessíveis de leitura. As
Júnior com ilustrações de Bruna de pobreza e outros. versões audiovisuais acessíveis tam-
Lubamo, leva o selo Companhia Já para a população de maneira bém podem ser encontradas on-line
das Letrinhas e faz uma viagem ao geral, estão disponíveis, gratuita- na página do programa.
mundo das danças e dos ritmos pe- mente, 14 títulos da Estante Digital
riféricos, centrado em crianças e jo- e um acervo de 22 obras já distribu- CAMPANHA 2023
vens como protagonistas. Foi reali- ídas em anos anteriores em versões O Itaú Social está selecionan-
zada uma pesquisa minuciosa sobre audiovisuais acessíveis, voltadas do as duas obras de literatura para
o funk e seus aspectos culturais. Já para o público com deficiência. crianças que farão parte do kit do
A pescaria do curumim e outros poe- programa para distribuição em 2023.
mas indígenas, selo Panda Books, de SELEÇÃO POR EDITAL Nesta edição, a iniciativa recaiu so-
Tiago Hakiy, escritor do povo indíge- A iniciativa é do Itaú Social, que bre livros de literatura a respeito de
na Satereré Mawé, é um mergulho promoveu um edital para selecio- quaisquer temáticas, porém com re-
nas lembranças e nos afetos de um nar apenas obras que valorizassem corte em relação à autoria, que ficou
jeito de ser criança em contato com histórias, pessoas e culturas negras restrita somente a escritores latino-
a natureza. São 12 poemas sobre o e indígenas. Segundo a assessoria -americanos.
dia a dia na floresta. As ilustrações, do programa, a seleção teve como Foram considerados livros de
coloridíssimas, ficaram a cargo de objetivo reconhecer o potencial autores dos seguintes países: Brasil,
Taísa Borges e acrescentam ainda da literatura para contribuir com Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia,
mais riqueza ao universo retratado a diminuição das desigualdades e Costa Rica, Cuba, Equador, El Sal-
pelo escritor. com a valorização das diferenças. vador, Guatemala, Haiti, Hon-
A distribuição será feita por or- Puderam participar editoras brasi- duras, México, Nicarágua, Panamá,
ganizações sociais (bibliotecas co- leiras, com prioridade para livros de Paraguai, Peru, República Domini-
munitárias, associações de bairro, autores ou ilustradores que se auto- cana, Uruguai e Venezuela.
entre outras) e secretarias munici- declaram negros e/ou indígenas. As inscrições para participar do
pais de Educação. A campanha de Pode-se também solicitar as ver- “Leia para uma criança” acontecem
2022 teve início em agosto e distri- sões das obras em braille e fonte am- normalmente entre os meses de
buirá dois milhões de livros. pliada para crianças com deficiência agosto e setembro de cada ano.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 19


LITERATURA BRASILEIRA / Estreia machadiana

DO AMOR E Mal considerado pela


crítica, o primeiro
romance de Machado

DA AMIZADE: de Assis completa


cento e cinquenta
anos de existência.

NENHUMA Incipiente ainda, como


diz o próprio autor, não
passa de um “esboço”

RESSURREIÇÃO ou de um “ensaio”,
mas que guarda
revelações que podem
POSSÍVEL surpreender, segundo
nova visada crítica
Por Roberto Sarmento Lima

S
ócrates adverte GLÁUCON1, seu discípulo, de que
“a vista mais fraca muitas vezes enxerga as
coisas primeiro que a mais penetrante”. Nes-
sa passagem do Livro X de A REPÚBLICA2, PLA-
TÃO encena uma teoria da Verdade, segundo a qual o
3

ser que imita o modelo original, que ele vai chamar de


Ideia, tem menos valor e, por isso, a imitação não só se-
ria uma vileza como também não merecia crédito. Den-
tro do método da MAIÊUTICA4, Sócrates criou em Gláucon
a ilusão — perversa, perversíssima — de que o aluno é
aquele que, vendo melhor esse aspecto, chegaria a tal
conclusão (quando, na verdade, todas as conclusões já
estavam guardadas na manga da túnica do mestre). Por
outro lado, ainda dentro da semântica da visão, a RAI-
NHA GERTRUDES5, de HAMLET6, responde ao filho, o prínci-
pe indeciso e cansado da Dinamarca, cheio de dúvidas,
que o que ele afirma ver é apenas uma ilusão provo-
cada pela vista martirizada do rapaz, pois ela mesma,
segura e incisiva, não viu nada para o qual ele apontava
e atribuiu isso, por sugestão maliciosa, à incapacidade
de Hamlet ver as coisas com discernimento e clareza
(estaria ela comprovando a loucura desse coitado?):

20 | LÍNGUA PORTUGUESA
PORTUGUESA EE LITERATURA
LITERATURA
Hamlet – “Não estás vendo nada ali?” trem tratará o jovem poeta com educação, 1 GLÁUCON (445 A.C.-
Rainha – “Absolutamente nada, mas tudo sim, mas com reserva e talvez premeditada SÉCULO 4 A.C.)
que há eu vejo.” indiferença, numa posição cínica de quem Filho de Ariston, era
um antigo ateniense
desfruta da sua condição social elevada
e irmão mais velho de
Fazendo as devidas transferências dos diante de um pobre iniciante nas letras, cer- Platão. Ele é conhecido
casos filosófico e literário aqui lembrados tamente sem talento, com o qual não deve- principalmente como um
para as artimanhas do narrador e das perso- ria perder seu precioso tempo: “A viagem era grande conhecedor de
Sócrates na República. Ele
nagens de Ressurreição, primeiro romance curta, e os versos pode ser que não fossem também é mencionado
de Machado de Assis, quando o mancebo es- inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, brevemente no início de
critor tinha apenas 33 anos de idade, temos como eu estava cansado, fechei os olhos três dois diálogos de Platão, o
Parmênides e o Banquete.
que, se Machadinho não era ainda o Machado ou quatro vezes”. Até para ser indelicado o
dos 40 anos, quando, então, publica MEMÓRIAS homem não perde a fineza.
2 A REPÚBLICA
PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS7, já estava nele incu- Ora, em Ressurreição abre-se uma linda É o segundo diálogo
bado o mestre que viria a ser. Ou seja, como e gloriosa manhã, em que “algumas raras mais extenso de Platão,
Bentinho diria no final de DOM CASMURRO8, nuvenzinhas brancas, finas e transparentes composto de dez partes
(dez livros) e aborda
referindo-se a Capitu, bem servindo, porém, se destacavam no azul do céu”; e a perso-
diversos temas, como:
essa máxima ao próprio escritor, restava-lhe nagem Dr. Félix, apesar de indeciso e per- política, educação,
“reconhecer que uma estava dentro da outra, turbado emocionalmente a vida toda, tal imortalidade da alma
como Hamlet, e apesar de profundamente etc. Entretanto, o tema
como a fruta dentro da casca”.
principal e eixo condutor
ciumento como Bentinho, a ponto de fazer do diálogo é a justiça.
DO RAIAR DO SOL naufragar os sonhos e as esperanças, sobre- No texto, Sócrates é o
À NOITE NO SUBÚRBIO tudo as que envolvem o amor, vai permitir personagem principal,
narra em primeira pessoa
Machadinho e Machadão um dia se en- que se conheçam também os acontecimen- e é responsável pelo
contram: o de Ressurreição, de 1872, burilaria tos passados dez anos antes da abertura do desenvolvimento das
e refinaria seu artesanato em Dom Casmurro, romance, momento em que poderia refletir ideias. Essa é a principal
e mais complexa obra
de 1899 — já lá iam vinte e sete anos a contar sobre o naufrágio da sua relação doentia
de Platão, na qual estão
da sua estreia como romancista. Pois é assim com a viúva rica e enamorada, Lívia. Nos presentes os principais
mesmo, com essa expressão temporal, que Ma- dois casos — bela manhã para o dr. Félix fundamentos de sua
começar a refletir sobre o que foi e o que filosofia.
chado, numa espécie de PROLEPSE9 a indicar que
sua arte está ligada à sua existência, dá início fez e uma noite cálida para Bento Santiago
à narrativa de Ressurreição, como se o primei- mostrar realmente a que veio, com todos os
ro livro fosse o testamento de um de seus úl- pruridos de classe, com sua altiva superio-
timos livros ou, através dele, pudesse antever ridade em face dos que despreza — são en-
que um e outro terminariam se abraçando: gendradas duas personagens que reviram o
passado, reviram que reviram, mas que, no
“Naquele dia — já lá vão dez anos! — o fim, pisam vitoriosas sobre a carne seca, fa-
Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a janela zendo brilhar a autossuficiência e a autojus-
e cumprimentou o sol. O dia estava tificação. Resumindo: o outro (sempre o ou- 3
esplêndido” (o grifo é meu) tro, não? oh, velha prática brasileira, o mal PLATÃO
nunca está em mim, mas no outro, sempre!), (428 A.C.-347 A.C.)
Com esse início — que reflete confiança e sim, o outro é que não presta mesmo! Ponto Filósofo grego,
considerado um dos
alguma alegria —, Machado também deu par- para mim! Eia! principais pensadores
tida a Dom Casmurro. A diferença, a respeitar Bento Santiago, convicto e apaziguado de sua época. Discípulo
a cronologia do dia, é que a manhã translúcida em seus julgamentos que faz da outra pes- de Sócrates, procurava
transmitir uma
de Félix cede lugar à noite de Bento Santiago, soa, sai-se com esta frase, a mesma que des-
profunda fé na razão e
límpida e estrelada: “Uma noite destas, vindo taquei há pouco, ainda por cima forçando na verdade, adotando
da cidade para o Engenho Novo, encontrei no o leitor a tornar-se seu cúmplice: “Mas eu o lema de Sócrates,
trem da Central um rapaz aqui do bairro, que creio, e tu concordarás comigo; se te lembras “o sábio é o virtuoso”.
Escreveu diversos
eu conheço de vista e de chapéu”. Fica-se sa- bem da Capitu menina, hás de reconhecer diálogos filosóficos,
bendo mais adiante que o elegante senhor do que uma estava dentro da outra, como a entre eles, A República.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 21


LITERATURA BRASILEIRA / Estreia machadiana

fruta dentro da casca” (o grifo é meu, claro, que


sou abelhudo e meto acréscimos maliciosos 4 MAIÊUTICA 5 RAINHA GERTRUDES
no discurso montado pelos outros). Método socrático que consiste Personagem da peça
na multiplicação de perguntas, Hamlet, de William
Não é diferente o Félix de Ressurreição, induzindo o interlocutor na Shakespeare. Ela é rainha
personagem que, a meu ver e de alguém mais, descoberta de suas próprias da Dinamarca e esposa
antecipa o surgimento de Bentinho. Esse Félix, verdades e na conceituação do falecido rei Hamlet.
geral de um objeto.
odioso Félix — Machado de Assis, excetuando-
-se talvez o Rubião de Quincas Borba e com
certeza o Conselheiro Aires, sempre pondera-
do, tinha vocação mesmo para fazer da figu-
ra masculina central dos seus romances uma
personagem detestável por sua descabida
pretensão à inocência —, esse Félix cínico e
insuportável termina o livro também se justi-
ficando, aliviando seus medos e culpas, enfim,
autodeclarando-se inocente da ruína moral
que arrastou a si e ao outro para a perdição to-
tal do amor. Ora, quem mandou Lívia…? O Fé-
lix de Lívia e o Bento Santiago de Capitu, am-
bos cínicos e metidos a ser o que não eram de
fato, com algum sinal de maluquice, formam
a galeria dos homens centrais da novelística
machadiana, seus maiores exemplos.
Assim, como não dar importância a Res-
© DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG

surreição, que em 2022 comemora o seu ses-


quicentenário e tal celebração tem sua razão?
O que não passava de um livrinho desenxabi-
do avulta como porta da modernidade macha-
diana, no nosso acanhado cenário literário do
século 19. Mais ao final deste ensaio espero ter
provado que o romancezinho, que não deixa,
entretanto, de ser um romancezinho, tem lá
seus méritos. Aguardemos! 6

HAMLET acusado de assassinar o pai do


DÚVIDAS PÓSTUMAS A obra dramática shakespereana jovem para tomar o poder, depois
de desposar a cunhada. O órfão,
Ouçamos agora o que diz o Félix no último mais adaptada e encenada
nos palcos de todo o porém, não apresenta nenhuma
capítulo de Ressurreição, no vigésimo quarto inclinação para cometer tal crime,
mundo é hoje uma das mais
capítulo, sugestivamente intitulado “Hoje”: importantes e renomadas
que deveria ser meticulosamente
planejado e calculado, exigindo
tragédias do dramaturgo inglês
um sangue-frio de que o nobre
“Félix é que não iria parar no claustro” William Shakespeare. Ela foi
não dispõe. Sua posição, no
Conforme se pode ver só por essa frase, ele provavelmente escrita entre entanto, leva-o a se sentir
1599 e 1602, mas não há até na obrigação de percorrer
não se arrependeu de nada; acha-se até vítima hoje uma data comprovada esse caminho sem volta. Esse
— não dele próprio, ora, como Bentinho tam- do nascimento deste clássico ponto propicia uma das várias
bém não se achava, mas da outra pessoa, como da dramaturgia. O cenário é a interpretações a que esta rica
Bentinho culpou Capitu e de algum modo Fé- Dinamarca, mais precisamente história dá margem, a que
o castelo de Elsinor, e esta peça aborda justamente os dilemas
lix culpou Lívia. Esses dois homens, com seu traz sua versão do destino do éticos e morais de Hamlet, que
ciúme doentio, viam chifres em cavalos. Lívia Príncipe Hamlet, obrigado a supostamente justificariam sua
amava o médico (que, por sinal, nunca deu um empreender um drástico ato de vacilação no momento de levar
dia de trabalho, mas gostava de ser assim cha- revanche contra seu tio Cláudio, adiante seus planos.
mado); amava-o docemente, verdadeiramente;

22 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


mas sucumbiu quando o noivo maluco veio “— Lívia tem esse defeito capital: é 7 MEMÓRIAS PÓSTUMAS
com a grosseria toda de que era capaz para romanesca. Traz a cabeça cheia de
DE BRÁS CUBAS
Romance fundador do Realismo
lhe dizer, por causa de uma carta anônima caraminholas, fruto naturalmente da brasileiro, escrito por Machado
recebida na véspera do casório, que a viúva solidão em que viveu nestes dois anos, de Assis. Considerado um dos
não era de confiança. A carta dava a entender e dos livros que há de ter lido. Faz pena melhores livros da história
da literatura brasileira, a
que Lívia, leviana, acenava para outros possí- porque é boa alma.” obra influenciou direta ou
veis amantes, com o seu natural dom de iludir. indiretamente diversos
Sem provas suficientes, baseando-se apenas Como não ver nesse juízo parasitário escritores no Brasil e no mundo.
numa carta de algum intrigante, possivelmen- do parasita Viana a sombra quase explí-
te escrita por Luís Batista, um biltre que co- cita de EMMA BOVARY10, acusada por FLAU-
lecionava amores fortuitos, o doutorzinho de BERT11 de ter sido vítima dela mesma, das 8 DOM CASMURRO
A obra mais conhecida do
meia-tigela arruinou a si e a amada. Mas, no leituras românticas que fazia, enchendo escritor Machado de Assis
final do romance, contrariando todas as evi- a cabeça de tolices romanescas? Mada- conta a história de Bentinho
dências, vem com esta: me Bovary é de 1857. Apesar de Jean-Mi- e Capitu, que, apaixonados
chel Mass, o biógrafo mais alentado do na adolescência, têm que
enfrentar um obstáculo à
“A dolorosa impressão dos acontecimentos Machadinho, afirmar categoricamente, realização de seus anseios
a que o leitor assistiu, se profundamente o de pés juntos, que “Machado de Assis, amorosos, pois a mãe de
abateu, rapidamente se lhe apagou.” o amigo de CASTILHO12, não era um dis- Bentinho, D. Glória, fez
uma promessa de que seu
cípulo de Flaubert ou Baudelaire”, não filho seria padre. Assim, no
Forçando o leitor a virar seu cúmplice, Fé- se pode dizer que nesse comentário do seminário, Bentinho conhece
lix deixou claro que a tragédia amorosa (cau- irmão de Lívia não esteja presente o es- Escobar, que se torna seu
melhor amigo e encontra uma
sada por ele mesmo, com seu jeito instável de critor francês. Para a confirmação disso
solução para o problema. O
ser) foi só um episódio: se fez sofrer no co- valho-me aqui da última carta escrita livro, de 1899, é um romance
meço, agora é coisa de que ele nem se lembra por Machado de Assis ao amigo MÁRIO DE psicológico do Realismo
bem. Mas perguntemos a Lívia se nela se deu ALENCAR13, datada de 29 de agosto de 1908, brasileiro, com narrador em
primeira pessoa. A trama
a mesma coisa: o que se sabe é que, traumati- a um mês do falecimento do escritor, atinge seu ponto alto quando,
zada pela rejeição, mais nunca ela quis saber que morre em 29 de setembro desse ano, finalmente casado com
de amar e resolveu criar, sozinha, o filho do na sua casa do Cosme Velho. Conforme Capitu, Bentinho começa a
suspeitar de que ela teve um
casamento precocemente interrompido pela lembra a crítica e biógrafa Lucia Miguel relacionamento extraconjugal
viuvez. Numa demonstração clara de falta de Pereira, na carta, ele diz com todas as com Escobar. Desse
profundidade moral e psicológica, Félix, o ex- letras: “Meu querido amigo, hoje à tarde modo, a obra, de caráter
antirromântico, apresenta, de
celso doutor, conclui, numa imagem anacrôni- reli uma página da biografia de Flaubert;
forma irônica, uma crítica à
ca, que não iria para o claustro, como aconte- achei a mesma solidão e tristeza e até o burguesia carioca do século
cia com os heróis desenganados no romance mesmo mal, como sabe o outro”. Solidão 19, de forma a mostrar a vida
tradicional. Estamos em 1872, lembremo-nos e tristeza de Flaubert; solidão e tristeza como ela é, sem retoques.
disso; a revolução realista corria solta na Eu- de Machado; e solidão e tristeza de Lívia:
ropa, enquanto, por aqui, isso era ainda flor
prestes a abrir-se. Observemos que, nesse as- “No tempo em que os mosteiros
9 PROLEPSE
Em narratologia, é o termo
pecto pelo menos, Machado de Assis já grita a andavam nos romances — como utilizado para referir uma
sua diferença em relação ao Romantismo lo- refúgio dos heróis, pelo menos —, a das formas de anacronia, por
cal, por que, entretanto, optou, ainda que for- viúva acabaria os seus dias no claustro. meio das quais o narrador
pode alterar/distorcer
malmente. Já é um autor moderno, ou um mo- A solidão da cela seria o remate natural a ordem temporal dos
derno que nasce e vai crescendo aos poucos. da vida e […] lá a deixariam sozinha e acontecimentos (analepse/
Numa conversa com Viana, irmão de Lívia, quieta, aprendendo a amar a Deus e a flashback e prolepse). A
prolepse consiste na alteração
o qual Félix, com os seus botões, nomeia sem- esquecer os homens.”
da ordem sequencial dos
pre de “parasita”, misto de oportunista e adu- acontecimentos, antecipando
lador para se dar bem na vida — a meu ver a A crítica feita aos desfechos român- alguns que ainda não
protoforma menos digna de José Dias de Dom ticos — época dos mosteiros de Eurico, o tenham ocorrido ou fazendo
simplesmente um sumário
Casmurro —, chega-se à seguinte conclusão, presbítero, por exemplo — não invalida, de uma situação que virá a
pelas palavras do parasita: contudo, o destino melancólico e quase ocorrer.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 23


LITERATURA BRASILEIRA / Estreia machadiana
LUZIR DA
MODERNIDADE
EMMA BOVARY 10 caricaturesco de Lívia, no final da história
Personagens claramente esquizoides são
Protagonista de Madame contada por esse narrador mais afeito à
Bovary, de Gustave desse jeito mesmo. Machado de Assis pa-
objetividade e ao transtorno moderno do
Flaubert. Personagem rece certo disso. Eis, pois, que ele estreia
que abalou a muitos em que a uma suposta configuração român- no romance com uma lista de lembretes
pleno século 19. Na obra, tica. E, como tal, o protagonista, afetado e uma mise en place que lhe poderá dar
ela quase não fala, mas pelos maus sucessos, surpreende o leitor, contornos futuros, seja para excluir e
sente profundamente
cada momento de sua que, ainda mal ambientado na moderni- corrigir depois os excessos, com a prática
história. Emma Bovary dade, talvez se espante com os depoimen- continuada da escrita, seja para conser-
chamou a atenção dos tos cínicos de Félix, cuja filiação romântica var alguns traços que viesse a considerar
psicanalistas e nela foi justos. Não é fortuito que, no prefácio,
é apenas um ardil:
inspirado o bovarismo,
chamou a si próprio de “operário” e ao
um tema que parece
retrógado, mas explica “Félix confessou ingenuamente a si livro de “ensaio” e “esboço”. É nesse por-
muito do contemporâneo. menor classificatório que Machado, já
próprio que o desenlace de seus amores,
se prevenindo, propõe ao leitor ser lido
por mais que o mortificasse outrora, foi
como um autor que se inicia no ofício,
ainda assim a solução mais razoável. O
mas que, assim mesmo, já tem consciên-
amor do médico teve dúvidas póstumas.” cia do seu riscado. Daí ser natural que ele
aceite que digam que o romance é medí-
Félix, que teve uma crise de arrepen- ocre, formalmente medíocre, parecendo
dimento por ter dado ouvidos à carta in- composição de teatro de marionetes, que
11 fame — “Demais, uma carta anônima!”, agem seguradas pelo cordão de quem as
lembrou-lhe na ocasião Meneses, com- manieta. A esse dado Jean-Michel Massa
GUSTAVE FLAUBERT acrescentou: “os personagens, bonecos
(1821-1880) pungido e indignado com a reação ima-
Principal representante do tura de Félix — e que pareceu sincero ao bem lubrificados, agem da maneira que
Realismo francês. Marcou querer restabelecer o amor fraturado com deles se espera”. Por sua vez, o tal Ro-
a literatura francesa pela mantismo que dizem os críticos ter visto
profundidade de suas Lívia, que, esgotada, preferiu não seguir
nas páginas de Ressurreição não chega
análises psicológicas, pelo em frente com esse amor, termina confes-
seu senso de realidade,
aos pés do mais insosso José de Alencar
sando-se de si para si que carregará para
pela sua lucidez sobre o dos mocinhos e das mocinhas, muito
sempre “dúvidas póstumas”. Ou seja: mes- menos dos seus modelos europeus.
comportamento social e
pela força de seu estilo mo depois de todo o sofrimento advindo Acompanhando a fala da rainha Gertru-
em grandes romances. do rompimento com Lívia, o nosso queri- de, considero bom dizer, com ela, que
não estou vendo em Ressurreição nada
de legitimamente romântico, sendo antes
“… esse romance de Machado de o seu avesso, até de mau gosto, pode-se
dizer assim, embora tais críticos, prova-
Assis nem é o que se pode chamar velmente de raiz hamletiana, insistam
verdadeiramente de romântico em dizer que viram rastros românticos
na novelística de juventude de Machado,
(só se for, caso se admita, no a começar por esse curioso livro de 1872.
E, aproveitando o que afirmou Sócrates
mau sentido, repito, pelo viés acerca dos que têm vista menos pene-
do caricaturesco, numa possível trante (e eu, entre os discípulos), coloco-
-me como Gláucon à procura desses ras-
leitura, aliás, dessa obra); nem tros, cansando-me dessa busca, porque o
discurso do narrador e as falas das per-
é ainda moderno, se não a sua sonagens de Ressurreição mais lembram,
antessala, mas — sem dúvidas pela sua frieza e pelo seu artificialismo,
pelo seu decoro e impassibilidade exa-
póstumas — aspira à modernidade, gerados, as situações aristocráticas fil-
tradas do discurso do Ancien Régime, no
cujos fumos o jovem Machado de tempo dos nobres que ainda não tinham
Assis espalha aqui e ali pela obra” percebido que viriam por ali, a caminho,

24 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


quase a galope, a Revolução Francesa e
a Revolução Industrial.
O resultado é que esse romance de Ma-
chado de Assis nem é o que se pode cha- do Félix voltou ao ponto de partida. A dor
mar verdadeiramente de romântico (só 12 CASTILHO
moral daquela hora não o amadureceu, Antonio Feliciano
se for, caso se admita, no mau sentido,
não o consertou (pau que nasce torto mor- de Castilho e José
repito, pelo viés do caricaturesco, numa Feliciano Castilho,
re torto, diz o ditado). A dúvida a respeito
possível leitura, aliás, dessa obra); nem é irmãos, ambos amigos
ainda moderno, se não a sua antessala, da fidelidade de Lívia persistiu, mesmo de Machado de Assis.
mas — sem dúvidas póstumas — aspira depois de reconhecer que poderia estar Ambos eram poetas.
à modernidade, cujos fumos o jovem totalmente equivocado e confuso por cau-
Machado de Assis espalha aqui e ali pela sa da carta maldita, e até encontrou uma 13 MÁRIO COCHRANE
obra. Um sinal disso é a desarticulação razão para tanto. Incorrigível, Félix aceita, DE ALENCAR
entre o que se diz e o que se revela no placidamente, como sinal de sua cínica
(1872-1925)
Advogado, poeta,
transcurso dos fatos narrados: o título, autojustificação (o inferno são os outros, jornalista, contista e
Ressurreição, é um embuste, um dese- como quer SARTRE14), que poderá ter agido romancista brasileiro,
quilíbrio total planejado: só ressuscita o até com justiça: filho do escritor José
que ou quem já morreu. De saída, o amor de Alencar.
já está excluído dessa equação, pois
“A veracidade da carta que impedira o
não havia amor por parte de Félix, mas 14 JEAN-PAUL
casamento, com o andar dos anos, não só CHARLES
orgulho e pretensão. Num dos momen-
tos narrativos de exaustão sentimental, lhe pareceu possível, mas até provável.” AYMARD SARTRE
(1905-1980)
Lívia propõe a Félix que sejam apenas Filósofo, escritor
amigos: “Fiquemos amigos, disse ela. A Como é autocomplacente esse Félix, e crítico francês,
amizade lhe fará esquecer o amor”. Pois não? Afinal, lá se vão dez anos, como disse conhecido como
bem, como sabemos todos, não ficou foi o narrador na entrada do livro. Bentinho representante do
existencialismo.
nada: nem a amizade nem o amor. É o também era esse sujeito que se autocom-
Acreditava que os
romance da negação de tudo. Ressurrei- pensa e reconcilia intimamente, apesar de intelectuais têm de
ção de nada nesse contexto negativo. ter dito que “um homem consola-se mais desempenhar um papel
Ressurreição é, pois, um título descabido ou menos das pessoas que perde; mas ativo na sociedade. Foi
de acordo com a lógica dos aconteci- um artista militante e
falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. Re- apoiou causas políticas
mentos narrados, mas moderno no que
tórica vazia? É o que parece, pois entre o de esquerda com a sua
confunde e desestabiliza. vida e a sua obra.
primeiro capítulo de Dom Casmurro e o
Não há, assim, a menor possibilidade
para qualquer ressurreição: de que, último, “a suma das sumas”, Bentinho se
REFERÊNCIAS
aliás, nem se sabe, já que “o romance é mostra entre anulado em si mesmo e por BIBLIOGRÁFICAS
secular” e não dá esperanças a nada nem si mesmo, mas também — imaginem só! ASSIS, Machado de. Ressurreição.
In: ASSIS, Machado de. Obra
a ninguém. Conforme se lê na penúltima — apaziguado, quando se despede do lei- completa. Rio de Janeiro: Nova
página do livro, “os heróis que precisam tor como quem não sofreu nada: “Vamos à Aguilar S.A., 1997. v. 1. p. 115-195.

de solidão são obrigados a buscá-la no História dos subúrbios”. Escrever suas me- MASSA, Jean-Michel. A juventude
de Machado de Assis: 1839-1870:
meio do tumulto” — é a única saída en- mórias, pelo visto, lhe fez um bem danado. ensaio de biografia intelectual.
contrada por esse autor, ainda de vista Do mesmo modo, Félix: começa numa
Trad. de Marco Aurélio de Moura
Matos. 2. ed. rev. São Paulo:
mais fraca do que penetrante. Não ocor- manhã deslumbrante, um tanto interro- Editora Unesp, 2009.
re refrigério possível, nem solução idea- gativo e reflexivo, e termina com a mes- PEREIRA, Lucia Miguel. Machado
de Assis: estudo crítico e
lista alguma surge no horizonte. O jeito é
ma sensação que Bentinho teve ao cabo: biográfico. 6. ed. Brasília: Senado
enfrentar a multidão e as ruas, como faz Federal; Conselho Editorial, 2019.
a de que, se houve dúvidas atrozes no (Edições do Senado Federal,
o poeta da cidade pensado por Baudelai-
re e o narrador de Ressurreição promete, percurso até ali, estas se amainaram. Ele v. 236).

símbolo do tumulto da vida moderna esteve, sim, certo o tempo todo, não lhe
SOBRE O AUTOR
que o século trouxe — este “século, que é cabendo, pois, àquela altura, remoer cul- ROBERTO SARMENTO
a negação de tudo”, como declara o mes- pas ou remorsos, porque, num caso, tal- LIMA é doutor em Estudos
Literários e Professor Titular
mo Félix no capítulo III, a pretexto de vez chegue a escrever, lépido e fagueiro, da Universidade Federal de
Alagoas. Autor do livro O
falar da valsa e da quadrilha nos salões a prometida História dos subúrbios, en- Narrador ou o Pai Fracassado:
das famílias ricas. Só por esse luzir mo- quanto, no outro, se deu o esquecimento Revisão Crítica e Modernidade
em Vidas Secas, publicado
derno, que atende pela rubrica negação da memória das ilusões. O negócio, então, em 2015 pela OmniScriptum/
de tudo, é que o primeiro romance de é ir em frente; quem morreu morreu, ora, Novas Edições Acadêmicas,
em Saarbrücken, Alemanha.
Machado de Assis deve ser lembrado. ora! Simples assim. (sarmentorob@uol.com.br)

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 25


LINGUA VIVA / Neologismo

A FACE SOCIAL
DA LÍNGUA
De que modo as
escolhas linguísticas dos
falantes apontam para
Por Abrahão Costa de Freitas
um processo dialógico e
dinâmico tendo em vista
a comunicação?
OTO.COM
05 / ISTOCKPH
© MASTER13

26 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


C
omo instrumento de interação
verbal, a língua é um SISTEMA “Como atividade
EM FUNÇÃO1 que só existe para discursiva e cognitiva,
promover a comunicação en-
tre as pessoas. Nesse sentido, as escolhas
o uso da língua
linguísticas de qualquer falante não são enquanto sistema
um ato isolado e solitário, mas um pro-
cesso dialógico e dinâmico cujo principal
simbólico permite não
SISTEMA EM
objetivo é a comunicação. apenas que as pessoas
FUNÇÃO
1
Essa concepção de língua como ativi- tenham acesso à
Concepção segundo
a qual a língua não é
dade interativa considera os atos da fala
e da escrita eventos de interação social
informação, mas
um produto pronto e
acabado, mas um sistema que só ganham sentido em função da também que sejam
que se modifica e se
transforma à medida que
língua em uso.
Sob essa perspectiva, todo ato de in-
capazes de produzir
os falantes o utilizam.
teração verbal é também um ato de inte- cultura e compartilhar
ATIVIDADE 2
ração social que mobiliza uma complexa diferentes visões
DISCURSIVA
rede de saberes históricos, culturais e lin-
guísticos que nos possibilita falar sobre o
de mundo,
Atividade de
interação entre mundo ou nomear a realidade. democratizando o
interlocutores que
toma como base os
Visto que a língua não é um sistema acesso aos saberes
fechado e imutável, ela pode sofrer diver-
gêneros textuais da
escrita e da oralidade. sas alterações e ganhar diferentes nuan-
culturais e linguísticos
ces, dependendo das escolhas discursivas necessários para o
ATIVIDADE
COGNITIVA
3 de seus falantes.
Tal qual ATIVIDADE DISCURSIVA2 e COGNI-
exercício da cidadania”
A capacidade de TIVA3, o uso da língua enquanto sistema
perceber, raciocinar
e armazenar as simbólico permite não apenas que as pes-
informações captadas soas tenham acesso à informação, mas tâncias públicas e privadas de nossa realidade
pelos sentidos. também que sejam capazes de produzir social, são produtos de um processo discursi-
cultura e compartilhar diferentes visões vo sempre em construção.
de mundo, democratizando o acesso aos Vivo e inacabado como a própria língua,
saberes culturais e linguísticos necessá- o fenômeno de criação de neologismo se ma-
rios para o exercício da cidadania. nifesta por uma multiplicidade de práticas
Essa democratização social e cultural orais e discursivas que privilegiam o uso inte-
da linguagem permite que os fenômenos rativo da língua e as intenções comunicativas
linguísticos envolvidos na constituição dos interlocutores envolvidos nesse processo.
© FFLCH.USP

do léxico e da gramática se tornem cada Vinculado à realidade social na qual está


4 vez mais acessíveis aos usuários da lín- inserida, a criação de neologismos é feita a
IEDA MARIA ALVES gua, ampliando sua capacidade de intera- partir de mecanismos que fazem parte do
Linguista brasileira gir e cooperar com o outro. Dominando próprio sistema linguístico e pode envolver
conhecida por suas
pesquisas sobre as habilidades e competências necessá- desde a criação arbitrária de sons até a mo-
neologia, lexicologia, rias para comunicação verbal, qualquer dificação de sentido de uma determinada pa-
lexicografia e usuário da língua pode se transformar lavra ou expressão (Ver box Outras Palavras).
terminologia. É
em um descobridor de neologismos. Como exercício de interação verbal vin-
professora titular
da Faculdade de Os fenômenos de interação verbal e culado à realidade social e às necessidades
Filosofia, Letras e social envolvidos na criação de novas pa- culturais dos falantes, o processo de criação
Ciências Humanas da lavras, termos e expressões expõem uma de novas palavras também pode ser feito pela
Universidade
de São Paulo. realidade que contradiz qualquer concep- incorporação de estrangeirismos ou de em-
ção estática da língua. Presentes nas ins- préstimos de outras línguas.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 27


LINGUA VIVA / Neologismo

“A criação, o reconhecimento
e a aceitabilidade de um OUTRAS PALAVRAS
neologismo envolvem aspectos O poema canção Outras palavras, de Caetano
históricos e culturais diversos. Veloso, é um exemplo de como a apropriação
As práticas linguísticas e as dos mecanismos próprios do sistema linguís-
tico da língua portuguesa pode contribuir
relações sociais vigentes à para a modificação de sentido de uma palavra
época em que foram criados alterando tanto a sua sonoridade quanto o
seu significado em um determinado contexto
são determinantes para sua e enunciação.
incorporação ou não ao léxico” Nos cinco versos abaixo transcritos, a palavra
“deslinda-se” ganha uma força que amplia não
apenas o seu significado, mas também as pos-
sibilidades de ampliação de suas definições
Cumprindo funções relacionadas ao uso
SOCIEDADE 5 para além do contexto em que é empregada.
MULTIMIDIÁTICA social da língua, esse processo é uma expe-
Sociedade histórica riência humana que faculta a cada falante “Nada dessa cica de palavra triste
e socialmente aquilo que IEDA MARIA ALVES4 chama de “direi- em mim na boca
construída e
constituída a partir to à criatividade léxica”. Travo, trava mãe e papai, alma buena,
dos recursos da Não podemos nos esquecer de que é dicha louca
multimídia. falando, ouvindo, lendo e escrevendo que Neca desse sono de nunca jamais
atribuímos um sentido às nossas experiên- nem never more
cias e aos nossos relacionamentos sociais. A Sim, dizer que sim pra Cilu,
CONTEXTO DE 6
organização simbólica que fazemos da reali- pra Dedé, pra Dadi e Dó
ENUNCIAÇÃO Crista do desejo o destino deslinda-se
Contexto no qual dade também passa pelos usos que fazemos
em belez”
se dá o processo da língua. Sob essa perspectiva, nunca é de-
de enunciação, ou mais lembrar o quanto a SOCIEDADE MULTIMI-
o ato individual A sonoridade obtida pela sequência dos
de utilização DIÁTICA5 na qual estamos inseridos intervém
versos a seguir produz efeitos que não se
da língua pelo em nossos processos de interação verbal, resumem apenas à aliteração, palavras como
falante. exigindo uma compreensão cada vez mais “ciumortevida”, “Lambetelho”, “orgasmaravalha-
ampla da realidade. -me”, “logum” e “homenina” envolvem e sedu-
As transformações de natureza política, zem tanto pelo timbre e melodia quanto pelos
econômica, técnica e científica impostas significados que podem assumir, dependendo
pela contemporaneidade também atingem do repertório cultural do leitor/ouvinte – uma
o léxico e a semântica, ressignificando os prova de que a criação de neologismo pode
usos que fazemos da língua. ser muito mais do que uma demonstração de
Nesse sentido, é importante ter claro que virtuosismo linguístico. “Palávoras”, por exem-
ela é um produto cultural histórica e social- plo, revela uma explosão de possibilidades
mente situado e que seus usos e suas aplica- de leituras também presente em “alphaluz” e
ções obedecem aos interesses e objetivos do
“sexonhei”, um verdadeiro orgasmo de hipóte-
ses e possibilidades.
falante. Cada situação comunicativa é um
processo interativo que pode seguir por di-
Parafins, gatins, alphaluz,
versos caminhos, modificando o uso que fa-
sexonhei da guerrapaz
zemos das palavras, seus sons e significados. Ouraxé, palávoras, driz, okê, cris, espacial
Projeitinho, imanso, ciumortevida, vivavid
NAS TRILHAS DO NEOLOGISMO Lambetelho, frúturo, orgasmaravalha-me
As relações estabelecidas entre língua Logun
e realidade social são fortemente influen- Homenina nel paraís de felicidadania:
ciadas pelo CONTEXTO DE ENUNCIAÇÃO6 e pela Outras palavras

28 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


intencionalidade do falante. Sob essa pers- quanto na oralidade. À medida que a realidade
pectiva, a criação de neologismos é resultado social se modifica e se renova, as necessidades
de uma necessidade de nomeação de novos expressivas do falante também se modificam,

SUR LE FRANÇAIS EN USAGE AU QUÉBEC (CRIFUQ)


© CENTRE DE RECHERCHE INTERUNIVERSITAIRE
artefatos culturais ou de acontecimentos so- estimulando novas manifestações e atos de
ciais relevantes. criatividade linguística.
Sob essa perspectiva, os elos entre língua, Como ato individual e produtivo, o proces-
sociedade e cultura são importantíssimos so de criação de novas palavras reflete o pensa-
para a compreensão de como se dá o processo mento e o espírito da coletividade, ampliando
de criação de novas palavras tanto na escrita nossa capacidade de expressão e organização
de ideias. A incorporação do novo por meio da
7
linguagem só se torna possível quando atende
às necessidades expressivas da coletividade. JEAN-CLAUDE
Nesse sentido, é importante refletir sobre BOULANGER
EXERCÍCIO DE o que diz o linguista JEAN-CLAUDE BOULANGER7,
Linguista,
lexicógrafo e
METALINGUAGEM quando afirma que o neologismo é “um pro-
cesso prático de criação lexical, por meio do
professor canadense
que lecionou na
NEOLOGISMO Universidade Laval,
recurso consciente ou inconsciente aos me- em Quebec.
Beijo pouco, falo menos ainda. canismos de criatividade lexical habituais em
Mas invento palavras
uma língua”.
Que traduzem a ternura mais funda
Por mais que as inovações da neologia se-
E mais cotidiana.
jam contribuições individuais, elas só se legi-
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo: timam quando incorporadas aos usos cotidia-
nos da língua. É o que ocorre com os neologis- REFERÊNCIAS
Teadoro, Teodora. BIBLIOGRÁFICAS
mos criados no âmbito da arte e da literatura
ALVES, Ieda Maria. Neologismo:
BANDEIRA, Manuel. Estrela (Ver box Exercício de Metalinguagem). criação lexical. São Paulo: Ática,
2007.
da Vida Inteira. Rio de Janeiro: A criação, o reconhecimento e a aceitabi-
ANTUNES, Irandé. Língua, texto e
José Olímpio, 1970. lidade de um neologismo envolvem aspectos ensino: outra escola possível. 2.
ed. São Paulo: Parábola Editorial,
históricos e culturais diversos. As práticas lin- 2009.
O poema acima, de Manuel Bandeira, guísticas e as relações sociais vigentes à época ANTUNES, Irandé. Território das
é um exercício de metalinguagem que em que foram criados são determinantes para palavras: estudo do léxico em
sala de aula. São Paulo: Parábola
amplia as possibilidades de ressignifi-
sua incorporação ou não ao léxico. Editorial, 2012.
cação da língua para além da própria
Como resultado do caráter polissêmico e BOULANGER, Jean-Claude.
metalinguagem. Néologie et terminologie. Néologie
plurissignificativo da língua em situações es- en Marche, v. 4, p. 9-116, 1979.
O verbo “teadorar”, inventado pelo poe-
ta, não apenas cria uma nova palavra, pecíficas de uso, a criação de neologismos está BOULANGER, Jean-Claude.
L’évolution du concept de
mas também dá um novo sentido à intimamente ligada às práticas culturais, his- NEOLOGIE de la linguistique
aux industries de la langue. In:
transitividade verbal. Ao afirmar que o tóricas e sociais de uma determinada comuni- SCHAETZEN, C. de. Terminologie
verbo “teadorar” é intransitivo, o poeta dade de falantes e reflete aspectos importan- anachronique. Paris: Conseil
Internacional de la Langue
sugere que a “adoração” que ele tem tes da vida em sociedade dessas comunidade. Française, 1989. p. 193-211.
por Teodora não transita para o objeto Assim, à medida que a sociedade vai mu- CARVALHO, Nelly Medeiros de. A
dessa adoração e que o amor não é dando, novas palavras são incorporadas ao
criação neológica. Revista Trama,
Cascavel, PR, v. 2, n. 4. p. 191-
correspondido. léxico para descrever aspectos políticos, reli- 203, 2006.
Um jogo de significados que, mais do giosos, artísticos e científicos relevantes para GUILBERT, Louis. La créativité
lexicale. Paris: Larousse, 1975.
que uma brincadeira, é um indicativo
tal sociedade. 285 p.
de como as escolhas linguísticas do fa-
Sob uma perspectiva sociolinguística, o
lante nunca são um ato isolado e soli-
processo de criação de neologismo é uma ma- SOBRE O AUTOR
tário, mas se inserem em contextos de ABRAHÃO COSTA DE FREITAS
enunciação diversos e podem ganhar nifestação linguística produzida em um con- é professor da rede municipal
novos sentidos a partir do momento texto comunitário específico, tendo em vista a de ensino, formado em
Letras, com especialização
em que se estabelecem nos eventos de renovação do léxico e a recriação da língua em em Educomunicação pela
interação social e linguística da comu- seus aspectos semânticos, morfológicos, orto- Universidade de São Paulo e em
Jornalismo Internacional pela
nidade à qual pertence o falante. gráficos e fonológicos. Pontifícia Universidade Católica.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 29


Por Mara Magaña

Da natureza
das fortes
Menalton Braff cria simbiose
entre protagonista feminina
e a terra árida onde habita,
em prodigiosa narrativa

O
que faz um livro para merecer es- próximo, os desejos, as lutas, as inquie- No caso da história ambientada no Vale
tar à nossa cabeceira? Todos nós, tações. Ou com os personagens que habi- do Rio dos Sinos – ele, o próprio rincão,
leitores empedernidos, elegemos tam minha casa, vindos diretos da trilogia também protagonista com sua aridez –,
aquelas leituras que, de alguma maneira, O TEMPO E O VENTO5, de Erico Verissimo: temos a terra afastada dos centros comer-
irão nos acompanhar pela vida afora. Vez RODRIGO CAMBARÁ6, BIBIANA TERRA7 e eu ciais, inóspita, pontuando o destino de
ou outra um novo livro surge para engros- nos esbarramos nas noites insones. Florinda e Nicanor.
sar essa lista e, consequentemente, estar Pois bem: personagens que saem das A força da narrativa de Braff reside aí:
sempre por perto. É o caso de Além do Rio páginas onde estão contidos para exis- na primeira parte, a figura de Nicanor é
dos Sinos, de Menalton Braff, vencedor do tirem no mundo de um leitor, de vários a que assoma, construída com cinzel de
Prêmio Biblioteca Nacional 2020. leitores, de milhares de leitores, preci- escultor. Vemos o rapaz, completamente
Uma obra pode provocar múltiplas sam ter o toque genial do escritor para sozinho após a morte do pai, com a me-
leituras, múltiplas visões, a depender de que sejam reais, não apenas pareçam, mória desvanecendo aos poucos, os ros-
quando é lida. É evidente que a primeira ainda que seja em um mundo paralelo tos familiares sumindo, mãe, irmãos, que
leitura que fiz de Dom Casmurro é diferen- muito particular. também se foram. O quase garoto, em-
te da que faço hoje. Ou de AS MENINAS1, brutecido como o local, precisa fazer algo
de Lygia Fagundes Telles, na qual, na DIRETO DO MORRO DO CAIPORA por si, para não se tornar uma das pedras
estreia aos meus olhos, o envolvimento Além do Rio dos Sinos cumpre essa do lugar. Seu desejo é vender o que lhe
com as trajetórias das protagonistas LIA2, missão e, sei, vez ou outra vou relê-lo. coube como herança e, por isso, segue
LORENA3 e ANA CLARA4 me era muito Sempre faço isso quando o livro me pega. para um vilarejo, onde pretende se encon-

30 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Cabeceira

trar com um investidor. O negócio nunca vai “secando”, o corpo exibindo racha- che político em que o País mergulha:
chega ao fim, mas a decisão de se pôr duras, a pele áspera, como o Morro do a história se desenvolve desde pouco
em marcha muda o rumo da sua vida. Caipora onde vive, por gosto e pressão antes da Segunda Guerra à ditadura. São
Conhece um rapaz boa-praça, Jesualdo, do marido. as outras pedras do caminho, do Brasil e
camarada de fala fácil e riso largo, que o Florinda, a traidora, a pecaminosa, do morro esquecido por Deus, das gen-
leva para conhecer sua família. Ele tem vai crescendo em praticamente silêncio
tes que se costuma esconder embaixo
duas irmãs, Marialva, por quem Nicanor na trama. Outro ponto forte da narrativa
do tapete. Como os personagens desse
se apaixona, e Florinda. Mais não digo. braffiana. É dos avessos que se faz esse
livro. O País pega em armas, o presi-
romance, das entrelinhas, dos não ditos,
SIMBIOSE TERRA-MULHER do confinamento. dente se mata, mas as notícias chegam
Nesta nova leitura (cada vez que re- É importante ressaltar como o autor arrastadas, destituídas de sua importân-
lemos algo, é uma nova leitura), queria concebe e dá voz à mulher que, aos pou- cia no Vale do Rio dos Sinos. O tempo do
tirar a limpo se, realmente, a história é cos, vai engolindo o enredo. Não se trata calendário não ressoa naquele morro.
de Florinda, e não de Nicanor, ou dos do velho chavão “conhecedor da alma Florinda floresce justamente quando
dois. Num sentido primeiro, sim, são feminina”. Porque, em Florinda, a alma o País fenece. Toma em suas mãos o
as agruras de ambos que se misturam feminina vai dando espaço à alma da comando da própria vida quando as
à terra, ao embate morro versus várzea. terra, aos senões do desencanto, até à mulheres, de capitais longínquas, mar-
Mas é mais, muito mais do que isso. própria desmaternidade, às pedras que,
cham para um deus autoritário, matador,
Nessa trama com tons clássicos – a parecem, escutam mais Florinda que os
militarizado.
traição é um componente caro da lite- próprios viventes. O subir e descer morro
Florinda, finda a leitura, se recusou
ratura grega a Shakespeare, chegando torna-se a via possível para o encontro
de personagens e leitores. a ir embora, e está por aqui, na sala, na
aos dias atuais –, é em especial sobre
a simbiose entre Florinda, a que passa cozinha… Acho até que a vi tirando um
a perna na irmã Marinalva, e a terra, no MAIS PEDRAS NO CAMINHO dedo de prosa com Bibiana, que tem
caso a várzea, que assoma ao longo das Outra analogia que observo na obra cadeira cativa em minha casa. Já ouço o
páginas. A mulher, antes viçosa e fértil, estupenda de Braff é o também desman- balanço de duas delas.

HYPERLINKS
1 AS MENINAS 3 LORENA de quem gostava, chamado no Brasil, que se moldava
Lygia Fagundes Telles, com A segunda protagonista Max, usuário de drogas. entre a colônia, o império e
esse romance, ganhador morava no mesmo a república.
5 O TEMPO E O VENTO
do Prêmio Jabuti de pensionato, porém era de
Escrito ao longo de 13 anos, 6 RODRIGO CAMBARÁ
1974, apresenta diversos família rica, ou seja, seu
a trilogia de Erico Verisssimo Talvez o mais icônico dos
focos narrativos para quarto era o mais equipado.
foi assim apresentada
contar a trajetória de três Estudava Direito, gostava personagens da literatura
aos leitores: O Continente
pensionistas: Lia, Lorena e de música clássica e lia Che gaúcha. O Capitão Rodrigo
(1949), O Retrato (1951) e O
Ana Clara. Obra corajosa, Guevara. Sempre atuava representa o gaúcho
Arquipélago (1962). Os três
lançada em 1973, em plena como apoio financeiro das por excelência, que está
livros percorrem um período
ditadura, que descreve uma outras duas amigas. Era disposto a entrar em
de 200 anos e combinam
sessão de tortura. apaixonada por Marcus, pai qualquer briga, contanto
elementos do romance
de cinco filhos e casado, que acredite que haja algum
2 LIA histórico, da jornada épica
e vivia em ilusões de motivo.
Uma entre as três e da crônica, iluminando
concretizar seu romance.
protagonistas de As o caminho da família Terra
7 BIBIANA TERRA
Meninas, vivia em um 4 ANA CLARA Cambará. Ficção amparada
Neta de Ana Terra, mulher do
pensionato religioso Dentre o trio protagonista, em fatos e personagens
capitão Rodrigo Cambará.
enquanto cursava Letras era a mais bonita e reais, a saga traz episódios
e pretendia ser escritora. também mais frágil. Vivia determinantes para a Como a avó, Bibiana é REFERÊNCIA
Era militante política e seu no pensionato, cursava formação da identidade mulher generosa, sólida, BIBLIOGRÁFICA
codinome era Rosa. Tinha Psicologia, era modelo e cultural e geográfica do sofrida. Uma das grandes BRAFF, Menalton. Além do
um namorado e um amante, noiva de um homem rico e Rio Grande do Sul e para a criações femininas de Erico Rio dos Sinos. São Paulo:
ambos militantes. distante. Tinha um amante projeção política do estado Verissimo. Editora Reformatório, 2020.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 31


CAPA / Categoria Gramatical

Essa classe de palavras costuma


causar calafrios, tanto para quem
ensina quanto para quem aprende.
Mas o que se deve, de fato,
ressaltar e o que esquecer quando
se fala dela nas salas de aulas?
por Fábio Roberto Ferreira Barreto
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32 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


O
verbo “REVER” enseja reflexões in-
teressantes e urgentes sobre a cate-
goria gramatical mais importante da
língua, bem como sobre o ensino de
português em todo o território brasileiro.
Composto do prefixo “re” e do verbo “ver”, o
termo é um PALÍNDROMO1, que é “frase ou palavra
que se pode ler, indiferentemente, da esquerda
para a direita ou vice-versa”, como ensina Houaiss.
Tamanhas são as possibilidades semânticas
desse palíndromo, que AUGUSTO DE CAMPOS2 fez
dele um transgressor poema: , cujos sentidos
transitam entre as concepções de arte do autor e
as interpretações acerca da poética pelo leitor.
Rever é, em sua acepção etimológica, ver outra
vez. Mas, ultrapassando a leitura morfológica do
termo, o verbo em questão significa muito mais que
um exemplo de formação de palavras do português.
Uma vez que nenhuma experiência humana
nova é fielmente idêntica à primeira (ou, conforme
o caso, às anteriores), rever constitui-se como uma
maneira singular de ver o já visto; em outras pala-
vras, senão nova, ao menos, com renovado olhar.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 33


CAPA / Categoria Gramatical

SEM rede municipal de São Paulo,


PRECONCEITOS das quais resultam o livro
supracitado.
“É comum os alunos escreve- Segundo elas: “quando [os
rem busca por buscar, vende educandos] escrevem espon-
no lugar de vender e, assim, taneamente as formas da 3.a
sucessivamente, porque o pessoa do plural do pretérito
“Rever o verbo, na som final do infinitivo não perfeito, como comeraM, de
gramática e nas é pronunciado”, explicam as
pesquisadoras Kleiman e
formas da 3.a pessoa do plu-
ral do futuro, como correrÃO”.
metodologias de Sepulveda em seu Oficina de Além desses exemplos,
relacionados a verbo e re-
ensino de língua gramática.
A questão pode ser tratada gularidade (“uma regra que
portuguesa, é, sob o prisma do preconceito
linguístico ou o do reflexivo
se aplica a várias outras”)
de escrita, vale a pena lem-
também, um ato docente: ou se recrimina os
educandos, por desvios e
brar outros dois listados
pelo professor Artur Gomes
peculiar. Após a convenções básicas, ou se de Morais, no seu funda-
introdução dos aproveita o ensejo para fazer
com que os alunos entendam
mental Ortografia ensinar e
aprender:
estudos linguísticos o porquê de uma grafia em
vez de outra, ensinando-
- “CantoU, bebeU, partiU e
todas as formas da terceira
– com distintas -os a escrever com mais pessoa do singular do passa-
abordagens – entre proficiência.
São as mesmas autoras que
do (perfeito do indicativo) se
escrevem com U final” (grifos
nós (no País), as tocam em outra questão
bastante comum nas salas
nossos).
- “Cantasse, bebesse, dormis-
percepções sobre de aulas – a partir de dis- se e todas as flexões do sub-
gramática se cussões com professores da juntivo terminam com SS”.

alteraram”

HERÁCLITO3, filósofo grego, não esqueça- cia (mesmo os/as que tinham bagagem leitora),
mos, é quem primeiro nos explica a questão: durante o ensino médio.
“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo Rever o verbo, na gramática e nas metodo-
rio, pois quando nele se entra novamente não logias de ensino de língua portuguesa é, tam-
se encontra as mesmas águas, e o próprio ser bém, um ato peculiar. Após a introdução dos
já se modificou…”. estudos linguísticos – com distintas aborda-
Em se tratando de objetos do conheci- gens – entre nós (no país), as percepções sobre
mento, como obras literárias, entretanto, a gramática se alteraram.
perspectiva do rever tem uma peculiaridade: Os livros atinentes a essa categoria
as transformações estão apenas nas pessoas gramatical, desde 1959, estão atrelados à
(que mudam), não nos livros (cujos registros Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB),
tipográficos permanecem inalterados). mas, de lá para cá, as concepções de gramática
ÍTALO CALVINO4, em Por que ler os clássicos – li- e de ensino-aprendizagem tornaram a ques-
vro obrigatório nas faculdades de Letras de todo tão mais complexa ainda.
o País –, afirma que “toda releitura de um clássi- Rever os (ou ao menos alguns dos) concei-
co é uma leitura de descoberta como a primeira”. tos acerca de verbo, tal qual foram embasados
Reler Dom Casmurro, em uma fase madu- na Gramática Tradicional (GT), efetivamente
ra da vida, decerto levará o leitor a apreensões provocará reflexões e sentimentos, em 2022,
distintas daquelas que se teve na adolescên- outros que não aqueles que se teria outrora.

34 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


O ÚTIL E PRECISO
A NGB: UM MAL NECESSÁRIO
Vamos ao que importa: estudar ou não gra- OU UM DESNECESSÁRIO MAL?
mática na escola? Eis uma questão que não A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) é ob-
precisa ser formulada, tampouco respondida: é jeto de discussões desde a sua formulação; isto é,
imperativo que se apresente gramática aos estu- gerou discussões acaloradas precedentes à publi-
dantes da educação básica. cação da Portaria nº 36, de 28 de janeiro de 1959.
Sem dúvida, “o que me preocupa profunda- No ano anterior à promulgação da NGB, Candido
mente é a maneira de ensinar a língua materna” Jucá (Filho), um dos membros da Comissão encar-
regada de elaborar a Nomenclatura Gramatical
– compartilhando aqui da mesma opinião do
Brasileira, publicou o livro 132 restrições ao
professor CELSO PEDRO LUFT5, em Língua e liberda-
anteprojeto de simplificação e unificação da
de, nos anos de 1980.
Nomenclatura Gramatical Brasileira.
Aliás, a discussão sobre o que, quando e como Mas as controvérsias não pararam aí. Nos últimos
se deve ofertar os tópicos de gramática não é 60 anos, dado o impacto da NGB na educação
nova. JOÃO DE BARROS6, autor da segunda gramá- brasileira, não foram poucas as críticas por que
tica de língua portuguesa, em 1540, afirmava que passou o documento oficial.
se devia ir “de leve a grave e de pouco mais”. No artigo Nomenclatura Gramatical Brasileira
No que tange ao verbo, portanto, essa classe (NGB) na esteira da história das ideias linguísticas:
gramatical inevitavelmente será apresentada a continuum/descontinuum histórico, Alexandre J. da
estudantes de todos os anos escolares. Os textos Silva, doutor em Língua Portuguesa pela PUC-SP,
da tipologia do narrar, por exemplo, estão pre- apresenta reflexões interessantes.
Ademais, em seu trabalho, Alexandre revela ci-
sentes em todos os anos escolares.
tações de vozes dissonantes como a de Marcos
Embora seja importante demonstrar que o
Bagno, uma das maiores referências sobre Língua
verbo é expressivo recurso para a narração de
Portuguesa na atualidade: “No que diz respeito aos
fatos, não se deve realizar um trabalho meta- estudos linguísticos, a nomenclatura gramatical,
linguístico, mas, exclusivamente, EPILINGUÍSTICO7 no meu entender, não deveria estar sujeita a (sic)
sobre essa classe gramatical com os educandos regulamentação oficial, sobretudo quando esta
dos anos iniciais. se inspira (como a NGB) na tradição greco-latina
Nos anos finais (e também no ensino médio), de estudos gramaticais, que tem mais de dois mil
ainda que se possa – “de leve”, aos poucos – cons- anos de idade. Todos sabemos que os nomes e
truir conceitos sobre o verbo, é recomendável se definições oferecidos pela tradição gramatical são
ater aos contextos de enunciação para enrique- confusos, contraditórios e às vezes francamente
cer o processo de ensino-aprendizagem. errados, numa perspectiva moderna”.
Tão somente para corroborar a reflexão de Bagno,
basta citar duas questões atinentes aos conceitos
de sujeito e predicado (tão ensinados, quase sem-
pre não compreendidos).
“… estudar ou não A primeira se refere à classificação para sujeito
gramática na escola? e predicado: embora sejam apresentados pela GT
como “termos essenciais das orações”, também,
Eis uma questão pela mesma GT, se explica que haja “orações sem
sujeito” (só com verbo, objeto desta discussão). É
que não precisa ser ou não é “indispensável”?
formulada, tampouco A segunda questão contraditória reside no pró-
prio conceito de sujeito (e, embora não passe
respondida: é pelo verbo, enriquece ainda mais a discussão). As
pesquisadoras Kleiman e Sepulveda, em Oficina
imperativo que se de gramática: metalinguagem para principiantes,
apresente gramática questionam o conceito da Gramática Tradicional.
Segundo elas, “se o sujeito for de quem se declara
aos estudantes da alguma coisa, então na frase ‘vi um cara armado
na porta do banco’, o sujeito seria ‘um cara armado’
educação básica” porque é dele que se está falando.”

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 35


CAPA / Categoria Gramatical

“Assim como se faz no ensino de línguas


estrangeiras, sobretudo línguas modernas
ocidentais, priorize o verbo (a ‘alma’, o
‘princípio’) nos planejamentos; sempre
atrelado aos usos sociais da língua (os textos)”
O verbo – como tudo que diz respeito à após outras cinco classes (substantivo, artigo,
norma gramatical – é imprescindível à com- adjetivo, numeral, pronome) – de dez, no total;
preensão e à produção textuais; suas ques- as outras são advérbio, preposição, conjunção e
tões conceituais, entretanto, não são. É pre- interjeição. Os compêndios de gramática mais
ciso sensibilidade para o que se deve e o que tradicionais e, na esteira, os livros didáticos se-
não se deve fazer em sala de aula. guem tal sequência.
Como ensinam ANGELA KLEIMAN8 e CIDA Bagno, em sua obra Gramática Pedagógica,
SEPULVEDA9, em Oficina de gramática: Meta- comenta que a GT “vai iniciar o desdobramen-
linguagem para principiantes (publicação to de sua doutrina pela palavra que ‘designa os
voltada às práticas de ensino do ensino fun- seres em geral’, pelas palavras que represen-
damental II): “o que não é defendido por ne- tam a substância das coisas”.
nhum linguista é a concepção prescritiva, ou Em contrapartida, o mesmo estudioso, na
normativa” (Ver box Sem Preconceitos). mesma Gramática pedagógica, destaca que as
teorias linguísticas contemporâneas iniciam
EM SEU DEVIDO LUGAR o estudo pelo verbo. Para ressaltar a relevân-
Se nos ativermos às questões etimológi- cia dessa classe gramatical, em sua exposição,
cas, o verbo advém do latim: “verbum, que sig- Bagno lembra que a GT “fala de ‘orações sem
nifica, antes de mais nada, ‘palavra’”, explica sujeito’, mas nunca de ‘orações sem verbo’”.
o professor ADRIANO DA GAMA KURY10, em Para Imbuída do mesmo espírito, a professo-
falar e escrever melhor o português. ra da UNESP, uma das mais proeminentes
Pormenorizando a questão, MARCOS pesquisadoras do Brasil, MARIA HELENA MOURA
BAGNO11, na sua Gramática pedagógica do por- NEVES12, em seu clássico Gramática de usos do
tuguês brasileiro, expõe que os latinos utiliza- português, inicia seu livro pelo verbo, deixando
ram o termo “verbum para traduzir a palavra o estudo sobre o substantivo para a sequência.
grego logos com o sentido de ‘palavra divina’”! Assim como se faz no ensino de línguas
Por isso, conforme nos explana Bagno, estrangeiras, sobretudo línguas modernas oci-
as primeiras palavras do evangelho de João, dentais, priorize o verbo (a “alma”, o “princípio”)
na Bíblia, são traduzidas por São Jerônimo nos planejamentos; sempre atrelado aos usos
como “In principio erat verbum”. sociais da língua (os textos).
Palavra das palavras – ou “a alma da frase”,
nos dizeres de Kury –, como uma curiosidade, UMA QUESTÃO DE TEMPO
vale ressaltar que o verbo deixa um resquício Os compêndios tradicionais de gramáti-
latino na língua portuguesa dos dias de hoje: ca e, por conseguinte, muitos livros didáticos
verbete (“verbo+ete” ou a pequena palavra). definiram (ou ainda definem?) o verbo como
Do Míni Aurélio consta, em sua primeira palavra que indica “ação, estado e fenômeno
acepção, que verbete é como “nota”, “aponta- da natureza”.
mento”; em sua segunda, como “palavra ou O que particulariza o verbo, em relação às de-
expressão dum dicionário ou enciclopédia”. mais classes gramaticais, porém, é “a referência
Quanto às questões pedagógicas, como ca- à indicação de TEMPO” (em caixa alta mesmo),
tegoria gramatical, o verbo é listado pela NGB, como explica Kury, em Para falar e escrever…

36 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Mesmo um gramático mais tradicionalista
como ROCHA LIMA13, em sua Gramática normati-
UM ESTUDO SOBRE O PRESENTE va da língua portuguesa, já partia desse pressu-
posto, principiando a abordagem dessa classe
Os tempos verbais denotam os momentos em que se gramatical com a seguinte definição: “o verbo
dão os acontecimentos (passado-presente-futuro). expressa um fato, um acontecimento: o que se
Com sugestão didática, a linha do tempo abaixo passa com os seres, ou em torno dos seres”.
pode tornar mais concreta a ideia de tempos verbais. Aliás, a professora MAGDA SOARES14, referên-
cia nos campos da linguística e da alfabetiza-
ção, em um livro didático de sua autoria, en-
PRETÉRITO PRETÉRITO PRETÉRITO FUTURO DO PRESENTE sina estudantes do ensino fundamental que
MAIS-QUE- IMPERFEITO PERFEITO PRETÉRITO “verbo é o que está acontecendo”.
-PERFEITO
“Sextou”: acontecimento e função
O presente do indicativo, no seu uso mais recorrente, expri- Conceber o verbo como acontecimento é o
me o que acontece no momento em que se fala. Há situa- que levou o brasileiro a transformar a palavra
ções, entretanto, em que outras questões são mobilizadas. sexta em verbo: sextou! Sexta, que pode ser
No jornalismo, por exemplo, a publicação de notícias e um numeral ordinal, em alguns contexto, é
reportagens, a despeito de concernir a eventos passados palavra que, a partir da ideia de ordenamen-
(iniciados e concluídos geralmente), emprega o presente
to, designa um dos dias (o de número seis) da
em vez do pretérito perfeito. Veja o exemplo: “Repórter da
semana – em palavra composta –, sexta-feira.
ESPN sofre assédio durante cobertura de jogo do Flamengo
Por ser associado ao encerramento da se-
no Maracanã” foi uma manchete postada no sítio eletrônico
do Lance (publicação especializada em esportes). mana útil (das obrigações cronometradas) e,
O uso do verbo “sofre” (presente, em vez de “sofreu”, preté- por conseguinte, do início dos dias de descan-
rito) se deve ao interesse de tornar a matéria jornalística so (das atividades livres), a sexta-feira repre-
mais próxima cronologicamente do leitor, evidenciando o senta – mais do que um dia a ser designado
fato já ocorrido como uma novidade (isto é, já aconteceu, – um acontecimento (ou acontecimentos), daí
mas é como se estivesse acontecendo agora), para desper- o neologismo: sextou, sextei, sextar, sextando!
tar, ainda mais, o interesse do leitor. (Ver box Sem Preconceitos).
Kury dedica algumas páginas para tratar a questão
em seu Para falar e escrever melhor…, levando-nos a
refletir acerca dessa peculiaridade do tempo verbal, de
TEXTO E CONTEXTO
Em vez de partir de um conceito sobre a
acordo com a situação comunicativa.
língua, como objeto sepultado de que se fala,
é necessário partir da reflexão acerca da lín-
• PRESENTE HISTÓRICO [QUE] em sua terra” ou “A mentira gua, como objeto vivo por meio do qual se
É UM PASSADO EM FORMA tem pernas curtas”.
comunica.
DE PRESENTE: “uma forma
• PRESENTE PELO FUTURO O verbo nessa perspectiva não o é senão
de reviver, dar vivacidade”.
DO INDICATIVO: “Obrigado em seu uso, isto é, a partir da função que exer-
• O HÁBITO, A REPETIÇÃO, A pelo livro; amanhã devolvo”. ce no contexto de enunciação. Por isso, com
REGULARIDADE: “Aqui, se base em dois gêneros textuais de curtíssima
venta um pouco, a poeira • PRESENTE PELO FUTURO
extensão – o “bordão” e o “provérbio” –, vou fa-
se levanta e entra em nos- DO SUBJUNTIVO: “Se você
zer breve abordagem.
sos pulmões”. dá as costas começa a
criticá-lo…”
• O QUE SE REALIZA SEMPRE, Bordão
AS VERDADES PERMANEN- • SUBSTITUI O IMPERATIVO, “Receba”. Segundo o dicionário Houaiss,
TES: “A água se compõe de PARA ABRANDAR-LHE O bordão é “palavra, expressão ou frase repeti-
oxigênio e hidrogênio”. TOM AUTORITÁRIO; MUITAS da por um personagem ou apresentador para
VEZES EM FORMA INTER- obter um efeito cômico ou emocional”. Como
• EM PROVÉRBIOS E AFORIS- ROGATIVA: “O Senhor me
exemplo, para iniciar a discussão, podemos
MOS: “Ninguém é profeta empresta os fósforos?”
pensar em Luva de Pedreiro.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 37


CAPA / Categoria Gramatical

Tal sugestão didática é efi- Um fenômeno das redes sociais, Iran de


TEMPO E ciente, sobretudo em casos Santana Alves, conhecido popularmente como
PESSOA de palavras que exercem
diferentes funções. Na
Luva de Pedreiro, ficou famoso pelas perfor-
mances futebolísticas compartilhadas em re-
Uma estratégia para o estu- manchete “Desabamento des sociais, encerradas com o bordão “receba”.
dante perceber qual palavra em galpão mata ao menos
funciona como verbo em A única palavra que compõe seu bordão é
5 em Itapecerica da Serra”
um enunciado é lhe solicitar um verbo. Neves, em Como as palavras se or-
(Folha de São Paulo, 20 set.
que faça o teste da conjuga- 2022), a palavra em negrito ganizam em classes, explica que a “forma” e a
ção. Se pode ser conjugado, é verbo. “distribuição”, muitas vezes, são suficientes
é verbo. Repetindo-se o mesmo para classificar os termos.
Kleiman e Sepulveda lem- procedimento, o educando “Receba”, no bordão supracitado, é facilmen-
bram que “o verbo segue a verificará que “mata”, nesse te reconhecido como verbo. Além de expressar
pessoa que o pratica”. Em caso, além de perpassar um acontecimento (uma ação, se se quiser), “re-
um exemplo, extraído do li- uma noção de “tempo”, ceba” apresenta tempo (presente), modo (impe-
vro Oficina de gramática, as (mata) atrela-se a uma pes- rativo), pessoa (terceira), número (singular).
autoras relatam uma prática soa do discurso: a terceira “Receba”, também, é injuntivo. Luva de
de ensino-aprendizagem do singular (“desabamento” Pedreiro, ao usar tal bordão, espera que o in-
com educandos do ensino ou “ele”).
fundamental. ternauta ganhe como um presente o conteúdo
Em outra manchete, tam-
Dirigindo-se aos estudantes, de seu vídeo postado: sua habilidade para exe-
bém da Folha (24 maio
elas orientam: “vocês pegam 2002), a mesma palavra cutar jogadas de futebol, seu espírito de supe-
a palavra e fazem flexão de aparece: “Mata Atlântica ração, sua simpatia etc.
substantivo e de verbo… tem crescimento histórico
Assim vou testar a palavra de desmatamento”. Nesse
boneca […]”. Na sequência, enunciado, todavia, o termo
executam a comanda: “Eu não pode ser conjugado
boneco. Ela boneca. Nós
bonecamos. Isso existe?”
(sem alterar o sentido);
“tem” é o verbo.
O QUE NÃO FAZER
NA ESCOLA
“Se conselho fosse bom não se dava, se
vendia”, ensina a sabedoria popular por
meio desse conhecidíssimo provérbio. Uma
“Conceber o verbo como vez que este texto se arriscou, a partir de
quem entende sobre o assunto, a tratar de
acontecimento é o que levou verbo, não custa aqui reproduzir algumas
o brasileiro a transformar dicas sobre o que não fazer na escola:
- Solicitar cópias de conjugações comple-
a palavra sexta em verbo: tas de um ou outro verbo (Marcos Bagno
fala em “denunciar quem faz isso”, pois só
sextou! Sexta, que pode “gasta papel e tinta e [dá] dor nos dedos”.
ser um numeral ordinal, em - Abandonar a conjugação “clássica” (nas
pessoas “tu” e “vós”, as quais devem ser
alguns contextos é palavra situadas aos estudantes nos poucos con-
textos de enunciação em que circulam).
que, a partir da ideia de - Evitar meticulosidade nas didáticas com
ordenamento, designa um regências, as quais devem se restringir a
usos nos textos (as orientações para corre-
dos dias (o de número seis) tores das redações do Enem, por exemplo,
há muitos anos rechaçam apontamento de
da semana – em palavra perda de nota por causa de regência em
composta –, sexta-feira” desuso na norma culta).

38 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Provérbio tificar os dois termos que funcionam como REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
A primeira acepção para provérbio no di- verbo, que, no caso, são “conta” e “aumenta”.
BAGNO, Marcos. Gramática
cionário Houaiss é “frase curta, geralmente A palavra “conto”, porém, é que deman- pedagógica do português brasileiro.
de origem popular, frequentemente com rit- da a reflexão com os estudantes sobre não São Paulo: Parábola Editorial, 2011.
BECHARA, Evanildo. Moderna
mo e rima, rica em imagens, que sintetiza um se comportar como verbo no enunciado. gramática portuguesa. Rio de
conceito a respeito da realidade ou uma regra A primeira pessoa do presente/indicativo Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os
social ou moral”. também assume a mesma escrita. clássicos? São Paulo: Companhia
“Quem conta um conto/ aumenta um Nessa situação especificamente não é das Letras, 1993.
FERREIRA, Aurélio Buarque de
ponto” é um provérbio cujo propósito é aler- possível encontrar marcas de tempo e de Holanda. Míni Aurélio: O dicionário
tar que a versão de uma determinada história pessoa (ver box Tempo e Pessoa). da língua portuguesa. Curitiba:
Positivo, 2004.
passa (passou) por alterações ao gosto, desejo Sem verbosidades, somente com come-
HOUAISS, A. Dicionário da língua
e pretensões de quem (re)conta(ou). dimentos. Efetivamente, o assunto não po- portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
De acordo com o contexto de enunciação, deria esgotar em tão exíguo espaço: há mui-
KLEIMAN, Angela B.; SEPULVEDA,
pode indicar reprovação a quem modifica o tos autores renomados e compromissados Cida. Oficina de gramática:
Metalinguagem para principiantes.
conteúdo de uma mensagem para se benefi- que abordaram e vêm abordando o verbo. A Campinas: Pontes Editores, 2014.
ciar e/ou prejudicar outrem; pode, todavia, su- proposta era rever conceitos fundamentais KURY, Adriano da Gama. Para falar
gerir (ou instigar) que exista labor criativo da e práticas pedagógicas atreladas a essa clas- e escrever melhor o português. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
parte de quem usa a imaginação. se gramatical, aprimorando-se competên- LEITE, Marli Quadros. O nascimento
Para além de todas as interessantes dis- cias docentes e, ao mesmo tempo, evitando- da gramática portuguesa. São
Paulo: Paulistana/Humanitas, 2007.
cussões semânticas do provérbio, especifica- -se repetir estratégias descabidas (Ver box O LIMA, Rocha. Gramática normativa
mente, pode-se provocar os estudantes a iden- Que Não Fazer Na Escola). da língua portuguesa. 49. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2011.
LUFT, Celso Pedro. Língua e
liberdade. São Paulo: Ática, 1985.
MORAIS, Artur Gomes. Ortografia:
ensinar e aprender. 4. ed. São
Paulo: Editora Ática, 2003.
HYPERLINKS
NEVES, Maria Helena Moura.
Gramática de usos do português.
1 PALÍNDROMO seus pais eram cientistas contexto de uso, isto é, em momento. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
Além dos mais conhecidos, italianos que passavam situações reais de interação 12 MARIA HELENA DE NEVES, Maria Helena Moura. O
como “ASA” e – o maior uma curta temporada no comunicativa. MOURA NEVES legado grego na terminologia
em nosso idioma – país para depois retornar 8 ANGELA DEL CARMEN Linguista e gramática gramatical brasileira. Alfa, Revista
“Socorram-me subi no à Itália, pouco tempo após BUSTOS ROMERO DE brasileira conhecida por Linguística, São José do Rio Preto,
ônibus em Marrocos”, há o seu nascimento. Sua KLEIMAN seus trabalhos relacionados v. 55, n. 2, p. 641-654, dez. 2011.
um número considerável literatura é considerada
Linguista conhecida por à língua em uso, Disponível em: https://www.scielo.
sincera, delicada e
de palíndromos na Língua seus trabalhos sobre especialmente a gramática br/j/alfa/a/7JLKcyQfgyhHWtMvv
extremamente ágil.
Portuguesa; o trabalho com leitura e letramento. É funcional do português e FMmGLF/?lang=pt. Acesso em: 9
essa forma particular da 5 CELSO PEDRO LUFT doutora pela Universidade set. 2022.
suas relações com o texto.
língua é bastante produtivo. (1921-1995) de Illinois e professora Também faz pesquisas PORTAL DA LÍNGUA PORTUGUESA.
2 AUGUSTO DE CAMPOS Foi um dos importantes da Universidade Estadual sobre a história e o ensino Nomenclatura Gramatical Brasileira
gramáticos do século 20. de Campinas, em que de gramática. (NGB). Disponível em: http://
Poeta concreto, um dos
coordenou a implantação www.portaldalinguaportuguesa.
maiores nomes da literatura 6 JOÃO DE BARROS do Departamento de 13 CARLOS HENRIQUE DA
mundial. org/?action=ngbras. Acesso em: 8
(1496-1570) Linguística Aplicada do ROCHA LIMA (1915-1991)
set. 2022.
3 HERÁCLITO Instituto de Estudos da Conhecido como Professor
Chamado o Grande ou o SILVA, Alexandre J. da.
(540 A.C.-470 A.C.) Linguagem. Rocha Lima, foi um
Tito Lívio português, é Nomenclatura Gramatical Brasileira
Heraclito ou Heráclito de geralmente considerado o 9 CIDA SEPULVEDA professor, gramático, (NGB) na esteira da história das
Éfeso foi um filósofo pré- primeiro grande historiador filólogo, ensaísta e linguista ideias linguísticas: continuum/
Graduada em Letras e brasileiro, autor de
-socrático considerado o português e pioneiro professora da rede pública descontinuum histórico. Verbum,
“Pai da dialética”. Recebeu da gramática da língua inúmeras obras, entre elas, Revista, v. 10, n. 3, p. 112-145,
de São Paulo. Gramática Normativa da
a alcunha de “Obscuro” portuguesa, tendo escrito a dez. 2021. Disponível em: https://
principalmente em razão segunda obra a normatizar 10 ADRIANO DA GAMA Língua Portuguesa. revistas.pucsp.br/index.php/
da obra a ele atribuída por a língua, tal como falada em KURY
14 MAGDA BECKER SOARES verbum/article/view/56529/38536.
Diógenes Laércio, Sobre seu tempo. Gramático cuja produção, Acesso em: 9 set. 2022.
a Natureza, em estilo Professora titular emérita
7 EPILINGUÍSTICO a despeito de atrelar à
obscuro, próximo ao das NGB, tem reflexões muito da Faculdade de Educação
sentenças oraculares. Classificação usada produtivas sobre a língua. da UFMG. Pesquisadora do
em didática da língua Centro de Alfabetização,
4 ÍTALO CALVINO materna, em bibliografia 11 MARCOS BAGNO Leitura e Escrita (Ceale) da
(1923-1985) Faculdade de Educação da
de autores brasileiros, Linguista renomado, uma SOBRE O AUTOR
Um dos mais importantes que refere um tipo de das mais proeminentes UFMG. Graduada em Letras,
doutora e livre-docente em FÁBIO ROBERTO FERREIRA
escritores italianos do atividade conducente à autoridades sobre Língua
BARRETO é professor da
século 20. Nascido em Cuba, reflexão sobre a língua em Portuguesa do Brasil neste Educação.
rede municipal de ensino e
mestre em Literatura pela
Universidade de São Paulo.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 39


HOMENAGEM Antonio Arnoni Prado

UM ADEUS
Professor titular do Departamento de
Teoria da Literatura da Unicamp, crítico
literário notável, autor de livros e artigos
de penetrante percepção da literatura e da
realidade social, despediu-se em setembro
Por Roberto Sarmento Lima

“S
e só me faltassem os outros, vá; cepção da literatura e da realidade social, que
um homem consola-se mais ou admiravelmente sempre se entrelaçam na sua
menos das pessoas que perde; escrita de insights poderosos, Arnoni resolveu
mas falto eu mesmo, e esta la- nos deixar no segundo domingo de setembro
cuna é tudo.” Essa frase, extraída do segundo deste ano, ano de tantas comemorações públi-
capítulo de Dom Casmurro, do velho Macha- cas — dentre as quais se destaca o centenário
do de Assis, é inspiradora; e, fazendo-se as de- da Semana de Arte Moderna, por exemplo.
vidas transferências, pode servir a várias oca- Partiu num domingo meio frio, 11 de setembro
siões. Inspira-me agora, neste momento em (que data!), neste fim de inverno brasileiro de
que pessoalmente perco uma pessoa querida tantas contradições: chuva e sol. Diziam meus
(o Brasil das letras, inclusive, também perde), avós que, quando chovia e fazia sol ao mesmo
embora aquilo que foi dito por Bento San- tempo, as raposas estavam se casando. Muito
tiago, no livro, falando do livro, não se ajuste pequeno ainda, eu achava interessante a ima-
bem, como a mão e a luva, ao comentário de gem. Cantante e buliçosa, com alguma coisa,
hoje. Mas vou-me esforçar, nunca é demais porém, de triste! Fim e começo: restos do in-
tentar tirar do texto machadiano alguma li- verno, início da primavera.
ção, ainda que deslocada do seu contexto de Antonio Arnoni Prado foi-se, silenciosa e
origem, ainda que fora da sintonia da obra educadamente, como é do seu feitio, sem dar
literária a que recorro, quase como epígrafe. na vista tanto assim, sem alardes, nesse inters-
A pessoa querida de que quero falar é tício de estações, em meio a conflitos políticos
o professor Antonio Arnoni Prado, o Arno- que endoidecem a toda a gente, tenham ou não
ni, como eu o chamava e muitos também, razão, segundo possamos julgar, nas suas pre-
creio, por aí, num flagrante de intimidade ferências por este ou aquele candidato que de-
respeitosa e amiga. Professor titular do De- verá nos governar a partir de 2023 (“Pão, pães,
partamento de Teoria da Literatura da Uni- questão de opiniães”, como disse o outro). Arno-
camp, desde 1979, crítico literário notável, ni, um intelectual de esquerda — aquela posi-
autor de livros e artigos de penetrante per- ção de esquerda igualmente educada, típica dos

40 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


“Por seu empenho crítico e percepção vulpina apurada, Arnoni
nos ensina também a ser críticos responsáveis, mal se podendo
separar o estudioso do homem, que no fim são um coisa só”

gentlemen, haurida certamente no convívio do profissionais nessa situação de destaque. Ar-


seu mestre, ANTONIO CANDIDO1, que nos deixou noni, ao contrário, foi um simples no traba-
em 2017 e a respeito do qual escrevi para a Co- lho, nos afetos e no trato interpessoal, seja no

© DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG


nhecimento Prático, naquele mesmo instante, seu contato direto com um professor emé-
uma matéria que buscava delineá-lo para fixar rito, reconhecido nacionalmente, seja com o
o tempo, fixá-lo no tempo que passa. funcionário que lhe abre a porta para entrar
no edifício (eu mesmo fui testemunha disso).
UM HOMEM SIMPLES Profundo na compreensão da literatura e do
Do mesmo jeito que antes, vim aqui ao Brasil, sem tirar nem pôr. Sol e chuva, calor e
computador, dois dias depois do ocorrido, pres- cortesia. Casamento da raposa.
1
tar a mesma homenagem, agora ao discípulo Foi professor visitante em Nova York,
de Candido. Homenagem que é, antes de tudo, México, Berlim, Roma; foi professor nessas ANTONIO CANDIDO
por contiguidade, à Educação, à Literatura e à mesmas condições em outras universidades DE MELLO E SOUZA
(1918-2017)
História, à Política e à Poesia em seu sentido brasileiras, que também precisaram dele Sociólogo, crítico literário
mais lato. Esse homem que nos deixou, aos 79 e da sua contribuição… Em 1989 e em 1990, e professor universitário
anos, foi meu orientador de doutorado, com ajudou a fortalecer a área dos estudos literá- brasileiro. Estudioso da
literatura brasileira e
quem mantive conversas produtivas e diver- rios, com a sua participação efetiva e cons- estrangeira, é autor de
tidas (porque a ciência foi feita, sim, para ins- tante, no então nascente programa de pós- uma obra crítica extensa,
truir, prevenir, educar e fazer rir e chorar tam- -graduação em letras e linguística da Uni- respeitada nas principais
universidades do Brasil.
bém). Foi orientador de tantos outros pós-gra- versidade Federal de Alagoas. Deixou aqui,
duandos esse paulistano cujas características por onde caminhou, marcos indeléveis: sua
mais relevantes sempre foram a cordialidade, lembrança, seus vestígios são sempre co-
a simpatia, a generosidade. De algum modo, mentados em termos bastante positivos.
eu, como colaborador da revista Conhecimen- Depois, em visitas esparsas, nos anos sub-
to Prático, já lhe havia feito uma reverência: sequentes, era convidado para participar de
na edição de número 76, de abril/maio de 2019, bancas de mestrado e doutorado, o que o fa-
compus o ensaio “Passagens da crítica”, estu- zia retornar a Maceió, com o entusiasmo de
dando o comportamento analítico de Arnoni sempre, algo que o avanço da idade e uma
Prado a propósito de uma análise que ele fez doença não lograram apagar.
acerca de um romance de Lima Barreto, autor Daí eu dizer, com Bentinho, que, neste
que sempre chamou a sua atenção. momento em que ele falta, falto eu, que me
Por seu empenho crítico e percepção vulpi- vejo sem o amigo das palavras gentis, mas
SOBRE O AUTOR
na apurada, Arnoni nos ensina também a ser firmes e certeiras. E esta lacuna é tudo. Os ROBERTO SARMENTO
críticos responsáveis, mal se podendo separar o livros que Antonio Arnoni Prado escreveu e LIMA é doutor em Estudos
Literários e Professor Titular
estudioso do homem, que no fim são uma coisa que aí estão — e a memória da sua passagem da Universidade Federal de
Alagoas. Autor do livro O
só. Ensinou a todos nós que ocupar um papel entre nós — não farão esquecer sua perma- Narrador ou o Pai Fracassado:
de importância na crítica brasileira e no ensi- nência, a despeito da inexorabilidade do tem- Revisão Crítica e Modernidade
em Vidas Secas, publicado
no universitário brasileiro (e internacional), na po e da sua partida, tal como a casa do Enge- em 2015 pela OmniScriptum/
área da literatura, não é motivo para a soberba nho Novo, que foi construída de acordo com Novas Edições Acadêmicas,
em Saarbrücken, Alemanha.
ou indelicadezas que às vezes acometem alguns a feição da antiga casa de Mata-Cavalos. (sarmentorob@uol.com.br)

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 41


DIRETRIZES / Negritude

FOLHAS
NEGRAS:
A NOVA
ESTAÇÃO
Pretos e pretas estão revolucionando a literatura
por Fábio Roberto Ferreira Barreto

brasileira, apresentando uma face até há pouco


tempo desconhecida, mostrando que o mundo não
pode mais ser visto apenas pelo viés eurocêntrico

N
ão é fácil ser preta ou preto no Para a escritora e geógrafa Cristiane Al-

© DIVULGAÇÃO
Brasil, não se enganem. É mais ves, que vem colocando a boca no trombone
difícil ainda, dificílimo, na ver- na literatura, independentemente de ser ne-
1
dade, ser uma autora preta ou gra ou qualquer outra divisão que inventem,
um autor preto no Brasil. Mas o preto não é não há meio termo para seu povo: “A morte é
CADERNOS NEGROS
Idealizado em 1978,
mais apenas a cor utilizada nas tipografias a sentença de nascimento para o povo preto”. por jovens estudantes
dos livros de literatura brasileira; aliás, faz É esse sentimento que aborda em seus livros, negros, para possibilitar
um bom tempo já. Só não enxerga quem assim como o fez, antes, Maria Carolina de Je- a democratização da
palavra no País. Trata-
tem problemas de visão! Também enegre- sus e o faz, atualmente, Conceição Evaristo, e -se de uma das mais
ceram suas narrativas e suas poéticas. que causaram grande espanto, a primeira por importantes iniciativas
“O surgimento da personagem, do autor ser uma favelada, a segunda por ter rompido brasileiras – senão a mais
relevante – para garantir
e do leitor negros trouxe para a literatura o casulo e ter-se tornado doutora em Litera- a autores negros um meio
brasileira questões atinentes à sua própria tura pela Universidade Federal Fluminense. de publicação. Ainda se
formação”, escreve Cuti, sobre quem fala- Todas grandes escritoras que, no entanto, são constitui como meios
pelos quais não apenas
remos mais adiante, em Literatura Negro- citadas ocasionalmente, ou nos CADERNOS NE-
surgem autores negros,
-Brasileira, uma das obras fundamentais da GROS1, importantíssima publicação que abriu mas também se renova a
crítica literária do País. as portas para muito preto ou preta da escrita. literatura no País.

42 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Um dos maiores problemas que as auto- mente, também recomendariam, entre ou- 2 GRADA KILOMBA
ras negras e os autores negros enfrentam é a tros, a Conceição e a Carolina, a quem soli- Escritora, psicóloga,
divulgação. Sabe bem disso o jornalista, escri- citasse uma indicação de escritores negros. teórica e artista
interdisciplinar
tor e crítico literário Tom Farias, que, por mais No entanto, além dessas potentes es-
portuguesa
de 30 anos, foi a única voz negra na imprensa critoras, cujas obras viraram páginas da li- reconhecida pelo seu
brasileira a falar sobre autores negros. O autor teratura brasileira, rompendo barreiras de trabalho, que tem
de Carolina – uma biografia e Escritos Negros: autoria, inserindo temas urgentes e, ainda, como foco o exame
da memória, trauma,
crítica e jornalismo brasileiro é contundente: (re)elaborando estilos de escrever, quais gênero, racismo e
“Não temos ainda a consciência de consu- outros são tão relevantes quanto elas? pós-colonialismo
mirmos autores negros. Nós nunca estamos Nesta efêmera matéria, pretendemos e está traduzido
em várias línguas,
na lista dos mais vendidos. Por exemplo: há apresentar ao leitor alguns outros nomes publicado e encenado
um endeusamento muito grande de autoras proeminentes da literatura negra brasilei- internacionalmente.
estrangeiras, como GRADA KILOMBA2, ANGELA DA- ra, detendo-nos mais pausadamente em
VIS3, uma série delas, muito importantes nesse um(a) ou outro(a) autor(a).
processo, mas nós temos a mesma força lite- Dois avisos: I) trata-se de texto de dois 3 ANGELA
rária, o mesmo ímpeto de criação no Brasil. apaixonados por literatura, interessados YVONNE DAVIS
Professora e filósofa
Nós falamos, mas ficamos nisso. Você elogia a em auxiliar (quiçá provocar) outros leito- socialista estadunidense
Conceição, mas não compra a Conceição”. res; II) (a partir do aviso I) não pretende que alcançou notoriedade
EDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA4, na intro- incorrer em equívoco semelhante ao de mundial na década de
1970 como integrante
dução de Um tigre na floresta de signos, ao Bloom: não se quer arvorar no que é para do Partido Comunista
abordar a produção literária contemporânea ser lido ou não (além destes, há muitos ou- dos Estados Unidos, dos
do País, escreve sobre a “necessidade de gerar tros autores relevantes). Panteras Negras, por sua
militância pelos direitos
novas competências de compreensão para as
das mulheres e contra
mudanças estéticas e sociais”. ENEGRECENDO A LITERATURA I a discriminação social
Em outras palavras, Tom, Cuti e Edimilson Vamos começar falando dos pioneiros, e racial nos Estados
se juntam a todos que – com o mínimo de coe- aqueles desbravadores que, muitas vezes, Unidos, referência entre
os marxistas e por ser
rência e honestidade intelectual – reconhecem tiveram de lutar muito para se imporem personagem de um dos
que o mundo não pode mais ser visto (ou se ou mesmo se disfarçarem entre os de pele mais polêmicos e famosos
ver) pelo viés eurocêntrico (branco e patriarcal). clara (ver box A cor do autor no Brasil). julgamentos criminais da
recente história dos EUA.
O movimento de (re)leitura do mundo
passa – de modo especial – pelas artes. O in- MACHADO DE ASSIS • Considerado
teresse crescente pela literatura negra, no por muitos o maior escritor brasileiro, da- 4 EDIMILSON DE
© ALVAREZ / ISTOCKPHOTO.COM

Brasil, decorre da urgência de entender o País mos o pontapé inicial por meio dele, já que, ALMEIDA PEREIRA
como nunca se fez antes. até há pouco tempo, quase não se falava de Poeta, ficcionista,
ensaísta, professor e
Conceição Evaristo e Maria Carolina de sua negritude, fato atestado inclusive pelo
pesquisador da cultura
Jesus são duas das autoras negras mais men- jornal francês Le Monde, que afirmou, com e da religiosidade afro-
cionadas pelo Brasil afora na atualidade. Uma todas as letras, em artigo publicado em -brasileiras. Vencedor
rápida busca (digitando “literatura negra”) no junho de 2020, intitulado A Redescoberta do prêmio São Paulo de
Literatura de 2021 com
Google apresentará diversos resultados nos do Brasil das Grandes Figuras Negras que Front. Uma referência
quais o nome de ambas é destaque. Uma bi- Foram Branqueadas: “Hoje muitos nem sa- segura para quem
bliotecária ou uma atendente de livraria, certa- bem que o maior escritor do país é negro”. estiver à procura de
autores e autoras negras
ou de sínteses a respeito
de suas obras e links
“(…) o preto não é mais apenas a cor utilizada para seus textos, é
fundamental consultar
nas tipografias dos livros de literatura o portal Literafro – O
Portal da Literatura Afro-
brasileira; aliás, faz um bom tempo já. Só não -Brasileira, vinculado
à Faculdade de Letras
enxerga quem tem problemas de visão! Também da UFMG (Universidade
Federal de Minas Gerais),
enegreceram suas narrativas e suas poéticas” coordenada por ele.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 43


DIRETRIZES / Literatura Negra e Periférica

© TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL


O autor de Dom Casmurro, Memórias Póstu- tidos. Úrsula foi lançado em 1859 e, para lá de
mas de Brás Cubas e tantos outros era filho de espantos pela cor e pelo gênero, Maria Firmina
uma lavadeira açoriana branca e de um mesti- escandalizava ao colocar seus personagens, es-
ço pintor de paredes cuja mãe era escrava. Na cravos e mulheres, em geral, donos de suas pró-
foto mais clássica de Machado de Assis, a luz prias histórias, com voz e vontades próprias.
chapada no rosto o embranquece, o nariz afi-
na mais ainda e o cabelo liso engana. Em 1908, ANTÔNIO GONÇALVES TEIXEIRA
na certidão de óbito, um escrivão de Cosme E SOUZA • Nasceu em Cabo Frio, Rio de Ja- 5
Velho acrescentou ao nome do falecido o que neiro, em 1812, e morreu no Rio de Janeiro. Mes- DOMÍCIO
nem era obrigatório: “cor branca”. Casado com tiço de família humilde. Poeta, romancista, te- PROENÇA FILHO
uma portuguesa culta, foi muito detratado por atrólogo, novelista, dedicou-se ao romance no Professor e
pesquisador em
não ter levantado a bandeira abolicionista e início do Romantismo, tinha preocupação na-
língua portuguesa e
por suas personagens femininas não serem cionalista que se desenvolveria com Joaquim literatura brasileira.
do morro. O professor Eduardo de Assis Duar- Manoel de Macedo, José de Alencar e outros. É doutor em Letras
te, do Programa de Pós-graduação em Letras: Seu livro O Filho do Pescador é considerado o e livre-docente em
Literatura Brasileira
Estudos Literários, da UFMG, discorda. Seu primeiro romance romântico brasileiro. pela Universidade
livro Machado de Assis afrodescendente traz Federal de Santa
pesquisas realizadas em cinco anos a respeito LUIZ GONZAGA PINTO DA GAMA Catarina e bacharel e
licenciado em Letras
da obra do escritor carioca para escrever uma • Segundo muitos críticos literários, como DO- Neolatinas pela antiga
antologia completa sobre a afrodescendência MÍCIO PROENÇA FILHO5, é com Luiz Gama, nasci- Faculdade Nacional
machadiana, reunindo crônicas, contos, críti- do em 1830, que se faz presente “o negro como de Filosofia da
Universidade do Brasil.
cas de teatro publicadas em jornais, poemas e sujeito” na literatura brasileira. “Quem sou eu”,
trechos de romances sobre o tema. Compõem poema publicado em Primeiras trovas bur-
a obra também detalhadas análises críticas lescas de Getulino, 1859, representa uma nova
dos textos de Machado relativos à questão ét- perspectiva do tratamento do negro na litera-
nica. Segundo Duarte, a opção para falar dos tura brasileira.
temas racistas está em sua fina ironia e na dis-
simulação como “autor-caramujo”, presentes LIMA BARRETO • Tido, por alguns críti-
em suas obras para denunciar a escravidão. cos, como tão importante quanto Machado de
Assis, esse filho de escrava liberta e afilhado de
MARIA FIRMINA DOS REIS • Primeira Visconde de Ouro Preto, senador do Império,
romancista brasileira, nasceu em São Luís do nascido em 1881, escreveu, entre outras obras-
Maranhão, em 1825, filha de mãe branca e pai -primas, Triste Fim de Policarpo Quaresma,
negro, e se inscreveu na história da literatura principal expoente do Pré-Modernismo, e Cla-
brasileira ao publicar Úrsula. Além da relevân- ra dos Anjos. Barreto era ousado, vociferava
cia cronológica de Úrsula, obra inaugural femi- contra o nacionalismo exacerbado e utópico,
nina do nosso Romantismo e, talvez, primeiro uma de suas marcas. A outra era a denúncia
de uma mulher negra em toda a América Lati- social e a pobreza. Alcoólico, foi internado em
na, destaca-se por sua temática revolucionária: hospícios, mas deixou uma marca indelével em 6 ANTONIO CANDIDO
DE MELLO E
abolicionista. O romance feminino brasileiro nossa literatura. Suas frases ainda hoje são ci- SOUZA (1918-2017)
surgiu por meio de uma nota, escondida em tadas. Entre algumas alfinetadas que soltava, Sociólogo, crítico
um canto no jornal A Moderação, de São Luís, escolhemos esta: “Eu, mulato ou negro, como literário e professor
universitário
no Maranhão. A pequena notícia dava conta queiram, estou condenado a ser sempre toma-
brasileiro. Estudioso
da publicação de Úrsula, original brasileiro. do por contínuo”. da literatura brasileira
Mas o que chamava mesmo a atenção era o e estrangeira, é autor
autor da obra, ou melhor, autora: a “Exma. Sra. CRUZ E SOUSA • Outro nome muito es- de uma obra crítica
extensa, respeitada
D. Maria Firmina dos Reis, professora pública quecido, sobre quem ANTONIO CANDIDO6 disse ser nas principais
em Guimarães”. Um espanto em todos os sen- o “único escritor eminente de pura raça negra universidades do Brasil.

44 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


© ARQUIVO PESSOAL
na literatura brasileira, onde são numerosos africanidades. Entre seus 11 livros publicados,
os mestiços”. Com o apelido de Dante Negro há o infantil, Iorí Descobre o Sol, O Sol Desco-
ou Cisne Negro, foi um dos principais repre- bre Iorí, um de entrevistas, A Cor do Sucesso, a
sentantes do Simbolismo no Brasil. Filho de biografia do compositor e escritor Nei Lopes, 7
pais negros alforriados, João da Cruz e Sousa A Legião Negra, A Luz de Luiz – Por uma Terra ZILÁ BERND
nasceu em 1861 e morreu em 1898, com 26 anos, sem Reis e sem Escravos, além de duas obras Professora, orientadora
e pesquisadora na
e teve educação esmerada, já que, à época era didáticas escritas com três outros parceiros. área de Letras e mais
comum na sociedade escravocrata receber o especificamente no
sobrenome de quem o apadrinhasse. Esse no- CUTI (LUIZ SILVA) • Além de ser um dos âmbito das relações
culturais e literárias
tável poeta brasileiro do Simbolismo tem sua poetas mais importantes de sua geração, com interamericanas
escrita imersa no preconceito racial, no espiri- mais de duas dezenas de livros publicados – (Brasil, Quebec,
tualismo, no individualismo e na obsessão pela afora sua participação em antologias –, o au- Antilhas). Seus campos
de interesse abrangem
cor branca. Vale ressaltar, ainda, que, embora tor é crítico literário e um grande difusor de
memória social,
tenha se tornado um homem culto e erudito, literatura. Um dos idealizadores (e mantene- vestígios memoriais e
Cruz e Sousa não deixou de sofrer racismo e dores) da série Cadernos Negros, publicação memória geracional;
de se engajar na causa abolicionista, dedican- indispensável para quem quer se aprofundar temas relativos à
Negritude e questões
do, inclusive, poemas a Castro Alves. em literatura negra. Cuti também é um dos de racismo; literatura
fundadores do QUILOMBHOJE LITERATURA9. brasileira, do Quebec,
FRANCISCO SOLANO TRINDADE do Caribe de língua
francesa, estudadas a
• Para muitos especialistas, como ZILÁ BERND7, partir de abordagens
o multifacetado artista Solano Trindade é o ENEGRECENDO A LITERATURA II comparatistas.
“grande nome da poesia negra brasileira”, a E a roda gira. Há muita boa literatura feita
partir do qual a enunciação poética se “assume por pretos e pretas atualmente. Aqui apenas 8 POETA
negra”. Estreando na literatura em 1944, Solano uma pequena mostra daqueles que vêm ba- Embora a tradição
Trindade tem em Cantares ao meu povo sua talhando por reconhecimento. A opção por gramatical prescreva o
emprego de “poetisa”,
obra mais proeminente. ordem alfabética é intencional.
como feminino para
autoras de poesia, é
STELA DO PATROCÍNIO • Pouco se sabe AKINS KINTÊ • Poeta, contista, músico frequente as mulheres
sobre sua verdadeira história. Nascida em 1941 e roteirista, arte-educador e idealizador do se reportarem a si
próprias como “poetas”.
e falecida em 1992, só há uma certeza: a POETA8 Sarau no Quintal, é um nome de relevância Trata-se de uma
foi interna da Colônia Juliano Moreira, que, do circuito de saraus periféricos paulistanos. postura política, uma
com a implementação de um tratamento psi- Autor de Muzimba, na humildade sem malda- vez que visa a exigir
que se reconheça a
quiátrico mais humano por meio da arte, per- de, Kintê também tem textos publicados nos produção literária
mitiu que muitos artistas fossem descobertos, Cadernos Negros. Vaguei os livros me sujei feminina como tão
dentre eles, Stela. A autora na verdade não com a m… toda é uma de suas produções au- potente e importante
quanto a masculina.
escrevia, mas sim recitava seus poemas em diovisuais.
um fluxo de ideias conscientes, que em geral
falavam da condição da mulher negra e pobre. ALLAN DA ROSA • Artista multifaceta-
Com isso, nos anos 2000, a pesquisadora Vivia- do, a escrita de Allan da Rosa transita entre o
ne Mosé publicou o livro Reino dos Bichos e dos teatro, a poesia e a prosa. Também idealizou o
Animais é o meu nome, que reúne uma série selo Edições Toró (publicando autores negros
dos poemas transcritos de Stela do Patrocínio. e periféricos) e o programa Nas ruas da litera-
tura, na Rádio USP. Autor de obras de relevân-
9 QUILOMBHOJE
LITERATURA
OSWALDO FAUSTINO • Jornalista, ati- cia, como Zumbi assombra quem?, finalista do Faz parte do
vista da causa negra, Faustino é autor, junto Jabuti 2018 na categoria Infantil e Juvenil, e coletivo cultural e
com o escritor Aroldo Macedo, também negro, Da cabula, peça teatral vencedora do Prêmio editora Quilombhoje,
responsável pela
da série infantil Luana. Em suas inúmeras pa- Ruth de Souza, Allan se aventurou em outras publicação da série
lestras sempre trabalha com os temas África e linguagens, como cinema e fotografia. Cadernos Negros.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 45


DIRETRIZES / Literatura Negra e Periférica

CIDINHA DA SILVA – Uma das autoras


A COR DO AUTOR NO BRASIL mais importantes da atualidade, Cidinha da
Silva é editora e escritora. Sua produção é di-
Uma das primeiras discus- aquilo que corresponde ao
versificada: conto, crônica, ensaio, dramaturgia
sões que Cuti faz em seu ideário de branqueamento,
e infantojuvenil. Diversas são as línguas em
Literatura negro-brasileira de assegurar a ilusão de
trata do racismo brasileiro superioridade congênita que Cidinha publicou: português, alemão, ca-
(tido por muitos como o branca”. talão, espanhol, francês, inglês e italiano. Den-
pior do mundo). Segundo No Debate – “Literatura: tre seus livros, destaca-se Um Exu em Nova
ele, “o preconceito racial Narrativas poéticas de York, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional
e o de gênero são fatores liberdade”, promovido pelo (contos 2019).
preponderantes para a ava- Sarau da Cooperifa, em
liação prévia de alguém”. 2018, a escritora Cristiane CRISTIANE ALVES – Ela vem dando o
O racismo de que fala Cuti Sobral relatou que havia que falar. Seu primeiro livro, Nossas Vidas
é corroborado por todos recusado proposta de uma Pretas, mostrou que ela não está a passeio.
os estudos sérios acerca grande editora nacional Suas crônicas, como gosta de dizer, são dilace-
das diferenças de cor de por causa de “preconceito
rantes. Define-se como mulher preta, perifé-
pele. Quanto mais retinta racial e de gênero”.
rica e feminista. Formada em Geografia pela
a pele, menores os ganhos Segundo Sobral, em reu-
salariais, menores as nião solicitada pela editora, Unesp e pós-graduada pela mesma instituição
oportunidades, maiores as ela se sentou à mesa com em Altas Habilidades/Superdotação, veio dos
exclusões, maiores os ho- executivos e mais uma de- grotões periféricos vivendo o que denomina
micídios etc. zena de profissionais que uma vida preta. Muitos escritores e estudiosos
No segmento do livro, o cuidariam de sua carreira. do assunto a estão comparando à Bitita, prin-
racismo não é diferente. Entre os “conselhos” para cipalmente pela realidade que salta de suas
Um estudo da UnB compro- o sucesso estava “alisar o páginas e nos toma de assombro, sem deixar
va que entre 1965 e 2014 cabelo” e usar “maquiagem espaço para dúvidas. Cristiane Alves lançou,
90% das publicações de clareadora”. recentemente, Atrás da Porta.
grandes editoras eram de A despeito de reconhecer a
escritores brancos. potência da escrita negra,
CRISTIANE SOBRAL – Outra artista mul-
Em entrevista ao Correio interessando-se pelos au-
tifacetada, Cristiane Sobral é a primeira atriz
Nagô, Cuti comenta que mentos das vendas (razão
“os editores são agentes maior de sua existência), negra a se formar em interpretação teatral pela
ideológicos e, portanto, o mercado editorial ainda Universidade de Brasília. Além do teatro, é um
no tocante à sua visão de não se despiu dos precon- dos mais importantes nomes da literatura ne-
Brasil, são muito cuidado- ceitos de cor (e de gênero, gra atual, publicando poesia e conto. Os títulos
sos em promover apenas e de classe). de seus livros revelam muito sobre sua potên-
cia como autora negra e periférica, destacando-
-se dois (aqui), ao menos: Não vou mais lavar os
pratos, de 2010, e Só por hoje vou deixar o meu
cabelo em paz, de 2014.
ANA MARIA GONÇALVES – Autora
de umas das obras mais importantes da ELIANE ALVES CRUZ – Quando lançou
história da literatura brasileira, Ana Maria Água de Barrela, a jornalista e escritora não
Gonçalves é engajada em discussões étnico- pensou que o mergulho na história de seus
-raciais, como as que envolvem o racismo antepassados fosse propiciar uma guinada em
de Monteiro Lobato em As caçadas de Pe- sua vida. Um dos fatos mais marcantes, contou
drinho. O livro Um defeito de cor é uma me- ela em entrevista a esta revista, em 2019, foi
taficção de 952 páginas que possibilita com- quando, ao pesquisar sua família, encontrou
preender o Brasil escravocrata pelo olhar do em um jornal do século 19 um anúncio de ven-
negro. Por essa relevante obra, entre outros, da de “peças”, escravos. Um deles era seu avô. O
recebeu o Prêmio Casa de Las Américas de sucesso do primeiro livro foi espetacular e per-
2006 como Melhor Romance do ano. mitiu que ela dedicasse seu tempo ao ofício da

46 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


escrita – Cruz atuava como chefe do Departa- KIUSAM DE OLIVEIRA – Professora 10 SARAU DAS
mento de Imprensa da Confederação Brasilei- universitária, especializada em Psicologia PRETAS
ra de Esportes Aquáticos. O segundo, O Crime da Educação, Kiusam de Oliveira é uma Trata-se de um sarau
artístico-literário
do cais de Valongo, misturava ficção e história. das autoras mais importantes da literatu- protagonizado por
Segundo ela, escolheu o cais de Valongo por ra infantojuvnenil do País. Os livros Omo- Débora Garcia,
ter sido a porta de entrada de muito tráfico de -Oba Histórias de Princesas e O Mundo no Elizandra Souza, Jô
Freitas e Taisson Ziggy,
escravos. Comprometida até a raiz dos cabelos Black Power de Tayó, inclusive com versão artistas com atuação
afros com a causa social, em seu último traba- em HQ, são imprescindíveis publicações da marcante no cenário
lho, Solitária, Eliane Alves Cruz aborda a força autora. Na rede municipal de São Paulo, há cultural periférico
da cidade de São
do trabalho da mulher negra em ambientes do- a AEL12 Kisusam de Oliveira na escola Fran-
Paulo (vale a pena
mésticos. Também escreveu o infantil A copa cisco Rebolo. visitar o site www.
frondosa da árvore. saraudaspretas.com).
MARCELO DARCELO D’SALETE –
ELISA LUCINDA – Artista de múltiplos O autor trabalha o ambiente político den-
talentos, jornalista, atriz, poeta e escritora ven- tro e no entorno dos quilombos. Seus livros
cedora do Prêmio Raça, Elisa também recebeu são em formato de quadrinhos e Marcelo
11 AGENDA
CULTURAL DA
prêmios e homenagens por sua atuação no tea- D’Salete desenha em preto e branco com PERIFERIA
tro e no cinema. É excepcional em – e reconheci- contraste entre luz e sombras. Ganhador Publicação cuja função
da por – performances poéticas, como a do poe- do prêmio Jabuti de Histórias em Quadri- social é oportunizar
a divulgação de
ma “Mulata exportação”. Elisa é autora de Livro nhos, as obras de destaque dele são Angola atividades promovidas
do avesso: pensamento de Edite, entre outros. Janga e Cumbe. por coletivos culturais
das periferias que não
têm suas iniciativas
ELIZANDRA SOUZA – Autora de poesia e VAGNER AMARO – Bibliotecário, edi- veiculadas em guias
de prosa, Elizandra Souza é uma das idealizado- tor (é um dos proprietários da editora Malê, tradicionais da grande
ras do SARAU DAS PRETAS10. Também é jornalista, especializada em literatura negra), escritor, mídia.
tendo atuado na Ação Educativa, como uma das Amaro vem surpreendendo com sua ha-
responsáveis pela AGENDA CULTURAL DA PERIFERIA11. bilidade como contista. Eles, sua estreia
Elizandra é autora de obras como Águas da caba- na ficção, fala da violência, do racismo, do
ça e Quem pode acalmar esse redemoinho de ser machismo, do conservadorismo, da classe
12 AEL
Academia Estudantil
mulher preta, de poesia, bem como de Filha do média, da homofobia, da masculinidade de Letras. É um
fogo: doze contos de amor e cura. tóxica que não deixa as pessoas (homens e projeto da rede
mulheres) viverem suas vidas de modo ple- municipal de ensino
paulistana idealizado
GENI GUIMARÃES – O nome de Geni no e livre. São dez contos, curtos, com lin- por Maria Sueli
Guimarães é bastante lembrado quando se guagem certeira, diálogos cortantes e rit- Fonseca Gonçalves,
fala de romancistas (e romancistas negras). A mo acelerado. Também é autor do infantil conhecida como
Suelizinha (atualmente
cor da ternura é uma novela agraciada com os Mandisa e a Vovó Alegria e organizou a co-
aposentada), na
prêmios Jabuti e Adolfo Aizen. Sua escrita é, letânea Do Índico e do Atlântico, que reúne escola Padre Antônio
sobretudo, autobiográfica. Mas as particulari- autores brasileiros e moçambicanos. Vieira, em 2005, e
dades que giram em torno de seus textos são que, posteriormente,
tornou-se uma
sagazes reflexões sobre as questões dos negros proposta pedagógica
no meio rural branco. de toda a rede.

JÉFERSON TENÓRIO – O escritor Jéferson


Tenório é um dos escritores negros mais desta-
cados dos dias de hoje. É professor da educação
básica e pesquisador – faz doutorado atualmen- REFERÊNCIAS SOBRE O AUTOR
BIBLIOGRÁFICAS FÁBIO ROBERTO FERREIRA BARRETO
te pela PUC-RS. Entre suas obras destacam-se CUTI. Literatura Negro-Brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010. é professor da rede municipal de
O beijo na parede, livro de estreia do autor, e O FARIAS, Tom. Escritos negros: crítica e jornalismo brasileiro. ensino e mestre em literatura pela
Universidade de São Paulo.
Editora Malê: Rio de Janeiro, 2021.
avesso da pele, pelo qual Jéferson recebeu o Ja- Com colaboração de Mara Magaña,
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Um Tigre na Floresta de
buti 2021, como o título de Melhor Romance. Signos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010. jornalista e escritora.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 47


LITERATURA INFANTOJUVENIL / Textualidade

OS NOVOS
“ERA UMA VEZ…”
Fadas e bruxas dividem o lugar com pets,
princesas que soltam pum, memórias
afetivas, contos fantásticos, problemas reais
da vida da gente e seres do sertão nordestino
Por Simone Strelciunas Goh

48 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


“… textualidade
juntamente
com o contexto
(condições
externas
à língua,
tais como
produção,

E
ra uma vez uma Essa história é uma uto-
menina e um recepção e pia pedagógica, todos os
menino, Cibele
e Felipe, Julia e
interpretação) educadores anseiam por ela
e acreditam nela, em suas
Marcelo ou Maria e João. e a interação possibilidades; dessa feita,
Tinham se perdido na flo-
resta, mas encontraram
(relação entre escritoras, escritores pro-
curam criar livros incríveis.
uma casinha cheia de do- o escritor- Mas as editoras e o governo
ces e… espere aí, na casa
morava uma fada-bruxa,
falante e o são como a fada-bruxa, são
eles que podem fazer a má-
porque todo ser encan- leitor-ouvinte) gica para que os livros che-
tado é bruxa e fada. Essa
bruxa-fada, fada-bruxa
proporcionam guem até as crianças.
Essa saga começa na
ajudou as crianças a volta- a compreensão cabeça das escritoras e dos
rem para casa. Lá, ensinou
a mãe e o pai a fazerem
dos sentidos do escritores que, quando en-
contram apoio, conseguem
pães deliciosos. E foi um
sucesso, a vida melhorou,
texto” editar seus textos e divulgá-
-los. Alguns projetos do go-
as crianças voltaram para verno impulsionam tudo
a escola… O mais legal foi a última mágica da isso, no entanto precisamos de mais e mais li-
bruxa-fada, que transformou uma casa ve- vros na porta das alunas e dos alunos, em suas
lha e feia em uma linda biblioteca, colorida casas, para serem lidos em família.
e cheia de livros. Todos os dias, as crianças Após o percurso de escrita, produção e publi-
liam na escola e, quando voltavam para casa, cação, poucos títulos fazem sucesso, ganham a
passavam na biblioteca e pegavam livros mídia, e você sabe de quem é a vez? Vamos apre-
© DJELICS / ISTOCKPHOTO.COM

geniais, não só Maria e João, mas todas as sentar alguns títulos que estão bombando, mas
crianças da vila. As famílias liam com elas, antes, para tornar essa leitura mais significativa,
riam com elas, conversavam sobre as histó- elencaremos elementos importantes para a TEX-
rias e assim viveram felizes para sempre. TUALIDADE1 dos livros infantis e infantojuvenis.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 49


LITERATURA INFANTOJUVENIL / Textualidade

TEXTUALIDADE 1 OS SENTIDOS DO TEXTO


Qualidade de um Cabe lembrar que a linguística textual, a
texto, vem de partir da década de 1970, passa a focar a cha-
tessitura, tecido,
mada textualidade, que seria um modo múlti-
o texto tramado
com qualidade. Há plo de conexão ativado sempre que ocorrem
cinco critérios que eventos comunicativos, premissa dos pes-
podem proporcionar quisadores Beugrande e Dressler, citada por
ao professor ou
estudioso sobre PAULO DE TARSO GALEMBECK2. Tal textualidade
o assunto uma juntamente com o contexto (condições exter-
ferramenta teórica nas à língua, tais como produção, recepção e
sintética e ao mesmo
tempo flexível, interpretação) e a interação (relação entre o
que permita uma escritor-falante e o leitor-ouvinte) proporcio-
abordagem global nam a compreensão dos sentidos do texto.
sobre as obras do
universo infantil.
Citamos aqui os livros de Ilan Brenam, pe-
TEXTUALIDADE
los projetos icônicos: Até as princesas soltam
© FFLCH / USP

pum. Dele, tomemos como exemplo Telefone


SENTIDOS DO TEXTO CONTEXTO
sem fio (ilustrações fantásticas de Renato
Moriconi constroem a narrativa não verbal),
INTERAÇÃO
mas não podemos nos esquecer do grandioso
Ziraldo, no livro Chapeuzinho Amarelo em
parceria com Chico Buarque, quando tam-
Alguns critérios de textualidade podem bém ocorre a mágica da literatura, texto e
2 auxiliar na avaliação dos livros infantis e in- ilustração brilhantes.
PAULO fantojuvenis, são eles:
DE TARSO INTERTEXTUALIDADE: característica
GALEMBECK SITUACIONALIDADE: entendida pelo representada não apenas pela linguística
Doutor em Filologia
e Língua Portuguesa conjunto de fatores que tornam o texto re- textual, mas também pelos estudos discursi-
pela USP, tem levante para uma determinada situação co- vos. Compreende as diversas maneiras pelas
experiência na área municativa. Tal característica se refere à con- quais a produção-recepção de um dado tex-
de linguística, com
textualização da obra pelo usuário, no caso to faz referência a outros. Ocorre o diálogo
ênfase em linguística
aplicada, atuando o leitor-criança-adolescente. O leitor inter- entre eles, que pode se representar de forma
principalmente nos nalizará o livro e o ressignificará de acordo explícita (o texto de abertura faz a referência
seguintes temas: com suas próprias percepções, e assim se dá direta à história de João e Maria) ou implíci-
conversação,
anáfora, interação a chamada situacionalidade. Por exemplo, o ta. Dizemos que o texto de abertura tem in-
verbal, discurso. texto de abertura desta matéria, se lido para tertextualidade com o conto de fadas João e
a criança, pode fazer com que ela pense sobre Maria, da mesma forma que as animações da
família, livros e outros assuntos e situações PIXAR3 trazem elementos em cada uma delas
PIXAR 3
ANIMATION com que ela convive; isso é situar o texto. que remete a outras, por exemplo, em Mons-
STUDIOS tros S.A., sobre o móvel do quarto da Boo,
Também conhecida INFORMATIVIDADE: não é apenas a temos um pequeno peixinho azul (Nemo) =
como Pixar, é um
estúdio americano distribuição de informação, mas o grau de intertexto.
de animação por imprevisibilidade ou redundância contido
computador com no texto. Nas literaturas infantis e infanto- INTENCIONALIDADE: refere-se aos mo-
sede em Emeryville,
juvenis vamos entender informatividade dos como os sujeitos utilizam os textos para
Califórnia, uma
subsidiária da como o inusitado, não apenas pela temática, realizar suas próprias situações comunicativas.
Disney Studios mas por meio das escolhas lexicais, do jogo É a intenção que os livros carregam a partir da
Content de de palavras (metáforas), da oralidade. Quan- perspectiva das escritoras e dos escritores e que
propriedade da
The Walt Disney to mais criativos forem as ilustrações e o tex- se realizam na leitura das crianças. Os contos
Company. to, maior a informatividade. de fadas, em suas premissas dos séculos 18 e 19,

50 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


“Para que um livro mente gostar, isso é a aceitabilidade.
tenha textualidade, Para que um livro tenha textualidade,
não é necessário não é necessário que ele atenda a todos os
critérios. Aceitabilidade é a base, ou seja,
que ele atenda a gostar, mas ela deve ser acompanhada por
todos os critérios. um ou dois fatores para que o livro tenha
significado no percurso das crianças e dos
Aceitabilidade é a adolescentes.

base, ou seja, gostar, O QUE E QUEM ESTÁ BOMBANDO


mas ela deve ser Em Vira e mexe, um pet, escrito pela

acompanhada por professora universitária, poeta e escritora


Divanize Carbonieri, e com ilustrações de
um ou dois fatores Vaneza Prezoto, temos, de primeira, a si-

para que o livro tuacionalidade: afinal, quem não tem um


gato, cachorro, papagaio, cacatua? Se não os
tenha significado tem, ao menos abre um sorriso ao ver esses

no percurso das pets se divertindo. A criança contextualiza


o livro e saboreia as palavras deliciosas, li-
crianças e dos teratura sensível. A ilustração dialoga com
os traços infantis, como se Vanessa tivesse
adolescentes” ao seu lado aquela caixinha de lápis de cor
de 12 cores e de repente… com cores fortes
e uma pintura ingênua se faz arte. Carbo-
nieri apostou na poesia: “É muito instigante
carregavam a intenção ou tinham a intenciona- escrever literatura infantojuvenil, porque a
lidade de ensinar, alertar para os perigos da vida. gente pode explorar mais o aspecto lúdico
Muitas das literaturas infantil e infantojuvenil da escrita. Vira e mexe, um pet e O insight
trazem o pedagógico, mas não só isso, vão além, dos insetos são livros de poesia para crian-
apresentam sensações, situações fictícias e/ou ças que escrevi usando e abusando da po-
baseadas no real, que primam pela sensibilida- tência sonora das palavras. Aliterações,
de do ser infantil, junto com a função estética, assonâncias, semelhanças e diferenças de
trazendo projetos de ilustrações primorosas, di- sons, além de ritmos marcados, compõem
ferentes, e assim a intencionalidade maior seria um universo sonante que se inspira na re-
desenvolver na criança o prazer e o hábito de ler. lação mágica e criativa que a mente infantil
mantém com a língua. Além disso, chamar
ACEITABILIDADE: para a linguística tex- a atenção das crianças para seres aparente-
tual, abrange o conceito de relevância, enten- mente insignificantes, como os insetos e os
dendo que os interlocutores devem concordar gatos, também abre janelas para que a ima-
em aceitar o texto como parceiro. Já a criança ginação delas se descortine na imensidão
ou o adolescente desenvolvem um princípio de das pequenas coisas. Os livros infantoju-
intimidade com o livro. Esses leitores adoram venis têm, portanto, a função de despertar
determinados livros, sem nenhuma justifica- nas pequenas leitoras e leitores a sua pró-
tiva técnica, não trazem intertextos, nem con- pria maneira de poetizar o mundo”, afirma.
textos do entorno do leitor, mas são mágicos Em Era uma vez… algo tão doce, feito
em si. Por exemplo, as histórias acumulativas, histórias, que eu guardava na memória!,
de que os pequenos gostam tanto, ou determi- de Vanessa Aranha Morimoto e Jackson
nados livros teens, que reproduzem de forma Souza, com ilustrações de Paulo R. Masse-
engraçada e dinâmica a vida dos adolescentes, rani, a base são as palavras que resgatam de
mas ficam por aí. Gostar de um livro é simples- forma lúdica nossas memórias e divertem

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 51


LITERATURA INFANTOJUVENIL / Textualidade

os pequenos e grandes leitores. O livro é base- feitas a santo Antônio. Em 2016, a versão
ado em memórias afetivas, feito especialmente americana do livro foi eleita como um dos
para crianças que estão começando a ler. A obra melhores para adolescentes pela Bibliote-
literária é formada por minicontos de quatro li- ca Pública de Nova Iorque e esteve entre os
nhas, inspirados em versos e haikais, indicados finalistas do Los Angeles Times Book Pri-
para o trabalho na educação infantil. No parâ- zes, na categoria Literatura Infantojuvenil.
metro de intencionalidade, os escritores cum- O livro nos apresenta todos os parâme-
prem a função de despertar a sensibilidade tros da textualidade, uma intertextualidade
sobre as coisas simples da vida. Não tem como implícita com os contos fantásticos. Como o
não aceitar, não gostar, é apaixo- personagem lida com essas vo-
nante. Vanessa assina também o de- zes femininas, suas dúvidas, la-
licado Menino Urso. mentações, um inusitado atrás
Já Vida da gente, de Fernando Bo- do outro; informatividade alta.
nassi, reúne crônicas que foram pu- Outro título famoso da autora é
blicadas no suplemento Folhinha, A bailarina fantasma.
do jornal Folha de S.Paulo. O escri- Menalton Braff, prêmio
tor traz como tema a vida, em tex- Jabuti no ano de 2000 com À
tos rápidos como são as crônicas. A Sombra do Cipreste, e prêmio
realidade deve e pode ser discutida Machado de Assis, da Biblioteca
por crianças e adultos. A situacio- Nacional, em 2020, com Além do
nalidade está na superfície desses Rio dos Sinos, também mergu-
textos, uma vez que podemos nos lha nas histórias para crianças
ver nas situações narradas. e adolescentes. Em A esperan-
Socorro Acioli é um nome que vem ça por um fio, Como peixe no
despontando no cenário literário in- aquário e Antes da meia-noite,
fantojuvenil. Nesse seu A cabeça do ao contrário do que ocorre nos
santo, temos, lemos, logo na apre- sombrios contos e romances
sentação: “Pouco antes de morrer, a para adultos de sua autoria, o
mãe de Samuel lhe faz um último final é mais ou menos feliz. Em
pedido: que ele vá encontrar a avó Como peixe no aquário, Rita de
e o pai que nunca conheceu. Mes- Cássia, que era balconista de
mo contrariado, o rapaz cumpre a promessa e uma papelaria, apropria-se do dinheiro da
faz a pé o caminho de Juazeiro do Norte até a venda de três cartuchos de tinta para im-
pequena cidade de Candeia, sofrendo todas as pressora com a expectativa de poder logo
agruras do sol impiedoso do sertão do Ceará. devolver a importância ao caixa.
Ao chegar àquela cidade quase fantasma, ele A vida de Artur, o protagonista de A es-
encontra abrigo num lugar curioso: a cabeça perança por um fio, muda repentinamente © JOSE LARA

oca e gigantesca de uma estátua inacabada de de maneira radical. Seu pai, arrimo de fa-
santo Antônio, que jazia separada do resto do mília, sofre um aneurisma e permanece 4
corpo. Mas as estranhezas não param aí: Sa- em coma por cerca de oito meses. Por isso, GABRIEL JOSÉ
muel começa a escutar uma confusão de vo- sem outra fonte de renda que não fossem GARCÍA MÁRQUEZ
(1927- 2014)
zes femininas apenas quando está dentro da as comissões do pai, que era representante Escritor, jornalista,
cabeça. Assustado, se dá conta de que aquilo comercial de três empresas, Artur e a mãe editor, ativista e político
são as preces que as mulheres fazem ao santo deixam São Paulo e mudam-se para o inte- colombiano. Considerado
um dos autores mais
falando de amor…”. rior, onde podiam contar com o amparo de
importantes do século
A escritora foi selecionada para participar Leonardo, tio de Artur. 20, foi um dos escritores
de uma oficina ministrada por GABRIEL GARCÍA Os problemas de Aline em Antes da mais admirados e
MÁRQUES4, e o romance foi ali desenvolvido. O meia-noite não são tão graves. Tratava-se traduzidos no mundo,
com mais de 40 milhões
texto narra a história de um jovem que desco- de controlar a compulsão por conversas de livros vendidos em
bre possuir o dom de ouvir preces de mulheres com amigos virtuais em chats e no MSN 36 idiomas.

52 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


OUTROS SERES DO SERTÃO
O cordel, reconhecido como patrimônio cultural
imaterial brasileiro, também tem contribuído
largamente para os novos “era uma vez”. A
própria Socorro Acioli, com Ela tem olhos de
céu, uma história toda em versos e imagens
de cordel de Mateus Rios, traz a realidade
da cultura nordestina recheada de sensibili-
dade e magia. A protagonista, Sebastiana, a
dona dos olhos misteriosos, vive um dilema:
ela provoca fenômenos. Dom ou maldição?
Na cidade de Santa Rita do Norte, onde tudo
pode acontecer e nada será como antes,
ninguém sabe mais o que fazer para controlar
a pequena criança. Parece que Acioli conseguiu
cumprir todos os quesitos de textualidade com para evitar nova reprovação escolar. Assim como,
esta pequena obra-prima. segundo Machado de Assis, a personagem Juliana
Em Lampião & Lancelote, Fernando Vilela viaja salva o interesse do romance O primo Basílio (1878),
no tempo e no espaço e promove um encontro de Eça de Queiroz, os assaltantes da agência em
entre o cangaceiro mais popular e perigoso do
que trabalha a mãe de Aline emprestam à narrativa
Brasil e o sagaz cavaleiro da távola Redonda
de Braff a tensão e o interesse que lhe faltam. Fin-
do Rei Arthur. Com maestria, Vilela cria, nesse
do o assalto e libertada a mãe, que ficara refém por
que é um dos livros infantis mais premiados,
um fantástico duelo entre culturas e tradições, algumas horas, Aline pôde fazer para si mesma pro-
de forma poética, combinando e contrastando messa de dedicar-se mais seriamente aos estudos e
linguagens e universos. A rima do cordel aparece até mesmo entender-se com o namorado da mãe.
nas falas e nas descrições dos personagens e se Os romances juvenis do escritor apresentam
mistura à narrativa épica medieval para a via- um cotidiano para lá de real, temos a situaciona-
gem de Lancelote. Nas ilustrações, há referências lidade que será facilmente identificada pelos ado-
como xilogravuras e registros fotográficos para lescentes que viajarão nas palavras rápidas de Me-
o cangaço e pinturas renascentistas e armaduras nalton. É dele também O Fantasma da Segundona,
de época para a Távola Redonda. Vilela é um au- Gambito e Mirinda, para essa faixa etária.
tor que trabalha brilhantemente a textualidade.
Fizemos essas indicações com pequenas per-
Fernanda de Oliveira criou um projeto multimí-
cepções pautadas nos critérios de textualidade, que
dia em Só sei que foi assim. Ela procura apresen-
nos permitem explorar ainda mais os textos. No en-
tar vários detalhes da cultura brasileira, com
histórias para ler, cantar e dançar, e convida as tanto, as teorias são apenas um norte para ratificar
crianças a conhecerem o cancioneiro popular as boas escolhas literárias. Infinitos títulos estão
brasileiro. Em tom de conversa fiada (ou fofoca), disponíveis na rede, nas bibliotecas, nas livrarias e
Fê Liz narra como foram criadas 21 cantigas de nos sebos. E que aquela história contada lá no iní-
roda, entre elas, “Sapo Cururu”, “Fui no Tororó” cio se faça realidade, que nossas crianças e jovens
e “Meu Limão, Meu Limoeiro”. Cada canção é despertem cada vez mais o gosto pelos bons livros
acompanhada de um conto fantástico sobre sua e possam ir além dos sentidos de cada história.
origem, reforçando a cidadania e a autoestima
do brasileiro. Há também vídeos que podem ser
acessados por meio de um QR Code. A obra con-
ta ainda com um dos maiores nomes do cordel e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SOBRE A AUTORA
da arte folclórica, o xilógrafo J. Borges, e o filho BEAUGRANDE, Robert-Alain
SIMONE STRELCIUNAS GOH
GOH. Simone S. Textualidade da é professora universitária
dele, o artista plástico Pablo Borges. O maestro de; DRESSLER, Wolfgang U. literatura infantil. Revista Literatura de língua portuguesa,
Giordano Pagotti é responsável pelos arranjos Introduction to Text Linguistics. conhecimento prático. Edição 70. linguística e literaturas
Editora Escala: São Paulo. nos cursos de formação
London: Longman, 1981.
musicais, com samba, chorinho, forró, frevo, SIMÕES JUNIOR, AS. Menalton de professores, doutora e
GALEMBECK, Paulo de Tarso. A
bossa nova e MPB. Situacionalidade, informa- Braff para jovens. In: Estudos de mestra pela FFLCH-USP em
linguística textual e seus mais literatura e imprensa [on-line]. São Letras, escritora, produtora
tividade, intertextualidade, intencionalidade e recentes avanços. In: http://www. Paulo: Editora UNESP; São Paulo: de conteúdo para Educação
aceitabilidaede: um combo perfeito. filologia.org.br/ixcnlf/5/06.htm. Cultura Acadêmica, 2014, p. 169-183. Básica e Pós-graduação.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 53


DEBATE / Tipologia injuntiva

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EU DIGO,
VOCÊ FAZ!
SERÁ? Quando tratamos de textos de
injunção, se tem algo que não
podemos deixar de observar
é a relação entre sujeito que
“diz o que diz e para quem diz”
Por Cleomar de Souza Lima

54 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


N
ão é novidade afirmar que, quan- 1 JOÃO
do falamos em produção de textos, WANDERLEY
alguns pressupostos precisam ser
GERALDI
Linguista e professor
observados ou contemplados. Entre brasileiro conhecido
eles, o fato de a sua materialização acontecer nas por seus trabalhos
situações sociais do dia a dia, na forma de gêneros sobre ensino de
língua portuguesa e
textuais. Agora, às vezes, como é comum ouvir por análise do discurso. É
aí, “o óbvio precisa ser dito”. E esse princípio vale, professor aposentado
também, para quando lidamos com gêneros que da Universidade
Estadual de Campinas
trazem como tipologia predominante a injuntiva. e professor visitante na
Observar a prática social, num primeiro momento, Universidade do Porto.
pode ser algo até comum, mas com olhar analítico
podemos jogar luz sobre alguns aspectos impor-
tantes que, na maior parte do tempo, não percebe-
mos com a devida atenção quando o assunto é a
produção de textos dessa natureza tipológica.
Nesse sentido, é válido recuperar algumas
considerações apresentadas por JOÃO WANDERLEY
GERALDI1 ao abordar o processo de produção de
textos. Segundo o autor, para produzir um texto
(em qualquer modalidade) é necessário: a) ter o
que dizer; b) ter uma razão para dizer o que se tem
a dizer; c) ter para quem dizer o que se tem a dizer;
d) que o locutor se constitua como tal enquanto
sujeito que diz o que diz para quem diz e se esco-
lham as estratégias para realizar esta produção.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 55


DEBATE / Tipologia injuntiva

© DIVULGAÇÃO
2
A partir disso, vários aspectos poderiam ser cutor numa direção específica, sugerida pelo
JEAN-PAUL
discutidos, mas, nesta rápida reflexão, vamos texto, isto é, a ação objetiva diretamente o BRONCKART
tomar como base a relação em que o sujeito se interlocutor. Já, de acordo com LUIZ CARLOS Professor de Didática de
torna autor de seu dizer (inserido num contexto TRAVAGLIA3, a injunção almeja incitar a reali- Línguas na Faculdade
de Psicologia e
social e histórico) e do processo de escrita de tex- zação de uma ação, um fato, um evento etc.,
Ciências da Educação
tos injuntivos, caracterizado por guiar indivídu- requerendo-a, desejando-a, orientando ou na Universidade de
os para a execução de uma atividade específica não como realizá-la, ou seja, o conteúdo do Genebra. Desenvolveu
ou estabelecer normas para direcionar outras texto diz respeito a algo a ser feito ou como diversos programas
de pesquisa sobre
práticas sociais. Em outras palavras, recuperan- este fazer deve ser realizado. epistemologia das
do o que Geraldi afirma (sem desconsiderar os Ainda de acordo com Travaglia, há dois ciências humanas e
demais aspectos), a ideia é jogar luz sobre o fato aspectos a serem observados. O primeiro: sociais, análise do
discurso, processos de
de o locutor se constituir como tal, isto é, como o pressuposto de que a realização da ação aquisição da linguagem
sujeito que “diz o que diz para quem diz”. orientada, solicitada ou requerida ocorre e didática das línguas.
Para ampliar o escopo dessa discussão, num momento posterior ao da enunciação, Atualmente, reorientou
seus trabalhos para
outros autores trazem contribuições impor- isto é, orienta-se para comportamentos futu-
a problemática
tantes sobre essa relação. De acordo com JEAN- ros. O segundo: a optação (ou não). Nas ma- das relações entre
PAUL BRONCKART2, ao compor um gênero com o nifestações de desejo, por exemplo, o locutor linguagem, ação-
predomínio da tipologia injuntiva, depreende- não tem controle sobre a situação, como na -trabalho e formação.
-se a intenção de querer “fazer agir” o interlo- expressão “Que Deus te ajude”.
Para além desses aspectos apontados, 3 LUIZ CARLOS
ADRIANA LETÍCIA TORRES ROSA4 apresenta um TRAVAGLIA
Linguista brasileiro
agrupamento preliminar dos textos injun-
“Observar a prática tivos, considerando a função sociocomuni-
conhecido por
seus trabalhos em
cativa de cada gênero. A autora agrupa-os
social, num primeiro em três categorias: os textos instrucionais-
linguística textual
e ensino de língua

momento, pode ser -programadores, que têm por finalidade ins-


truir/ensinar alguém a realizar algo (recei-
materna. É professor
titular do Instituto de

algo até comum, tas, guias e manuais de modo geral); os tex-


Letras e Linguística da
Universidade Federal

mas com olhar tos de conselho, que são os que objetivam


aconselhar alguém a fazer algo (horóscopo
de Uberlândia.

analítico podemos e conselhos de saúde, beleza, comportamen- 4 ADRIANA LETÍCIA


jogar luz sobre to etc.); e os textos reguladores-prescritivos,
que visam a obrigar alguém a efetuar algo
TORRES ROSA
Professora titular de
alguns aspectos (ordens, leis, regimentos, regras de jogos).
língua portuguesa da
Universidade Federal
importantes que, BASE INJUNTIVA
de Pernambuco.
Com experiência em
na maior parte Como notamos, os gêneros textuais de
magistério da educação
básica à pós-graduação,
do tempo, não base injuntiva (aqueles em que tal tipolo-
gia é predominante) podem ser utilizados
atua principalmente
nos seguintes temas:
percebemos com com propósitos diversos nas práticas so-
ensino-aprendizagem
e avaliação em língua
a devida atenção ciais. Logo, constituem um conjunto aberto
e não passíveis de classificações definitivas.
portuguesa, com ênfase
em gêneros do discurso
quando o assunto Agora voltemos à provocação inicial: como
e tipos textuais. É líder
do grupo de pesquisa
o locutor se constitui como tal, enquanto
é a produção sujeito que “diz o que diz para quem diz”? E,
“Experimentação
Pedagógica e Formação
de textos dessa ampliando o questionamento, “quais recur-
sos linguísticos esse sujeito encontra a seu
de Professores na
Educação Básica: Núcleo
natureza tipológica” dispor para ocupar esse lugar?”.
de Estudos Literários e
Linguísticos” (CNPq).

56 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Para responder ao segundo questio- transferência de domicílio eleitoral, mas
namento, talvez um dos primeiros recur- temporária. Por exemplo, moro no Rio de
sos em que pensamos sejam os verbos no Janeiro, mas já sei que estarei em Brasília
modo imperativo. Mas é importante pon- no dia da votação. Nessa hipótese, basta
tuar que é comum, em textos injuntivos, informar à Justiça Eleitoral que pretende
orações com verbos modais (dever, preci- votar naquela cidade indicada.
sar), verbos no futuro do presente (poderá,
deverá, será) e no infinitivo (juntar, acres- Modalidades
centar). Além dos verbos, há uma tendên- Segundo o Código Eleitoral (artigo 233-
cia nesses textos do emprego de períodos A) e a Resolução TSE nº 23.669/2021, que
simples e curtos (construções mais exten- também trata do assunto, são duas as
sas tendem a dificultar a compreensão de possibilidades de voto em trânsito:
orientações e comandos) e é comum a utili- – Para quem estiver fora da cidade, mas
zação do pronome “você” (em muitos casos dentro do mesmo estado em que vota,
tal pronome está implícito e concluímos poderá participar das eleições para
tratar-se de “você” pela terminação verbal). os cargos de presidente da República,
Com vista a analisarmos parte dos as- governador, senador, deputado federal,
pectos pontuados até aqui, vamos tomar deputado estadual ou deputado distrital.
como exemplo uma notícia publicada no – Já as eleitoras e os eleitores que
site do Tribunal Superior Eleitoral, em 15 pretendem votar em outro estado
de julho de 2022. Apenas para elucidar me- poderão participar da escolha apenas
lhor o contexto em que essa notícia está para o cargo de presidente da República.
veiculada, ao navegar na primeira página Vale reforçar que não é possível votar em
do site do TSE (órgão máximo da Justiça trânsito fora do Brasil. No entanto, quem
Eleitoral – importante marcar o papel que tem o título de eleitor cadastrado no
o sujeito representará no texto), há várias exterior e estiver em trânsito no território
chamadas de textos e nesse específico há brasileiro poderá, sim, votar na eleição
uma pequena marca com a seguinte escri- para o cargo de presidente da República,
ta: “notícia”. Em outras palavras, há o en- desde que habilitado dentro do prazo.
tendimento por parte do enunciador o gê-
nero ao qual pertence esse texto. Mas apre- Como se habilitar
sento essa problematização em virtude de Se já tiverem a informação com
sabermos de outra tendência: não é regra, antecedência de onde estarão no dia das
mas, em geral, o gênero notícia traz outras eleições, as eleitoras e os eleitores poderão
tipologias predominantes como o relatar procurar qualquer cartório eleitoral para
ou até mesmo o expor. Vamos ao texto: indicar onde pretendem votar. Os pedidos
para voto em trânsito devem ser feitos
Eleições 2022: saiba como pedir em atendimento presencial. Não há a
para votar em trânsito opção de solicitação pela internet.
Os pedidos devem ser feitos em Nesses casos, na hora de indicar onde
atendimento presencial a partir de pretende votar, a escolha vale para
segunda-feira (18) locais diferentes para o primeiro e
segundo turnos, ou para o mesmo
Eleitoras e eleitores que pretendem votar local nos dois turnos. Mas, depois de
em trânsito devem ficar atentos ao prazo, comunicado no cartório, no prazo
que começa na próxima segunda-feira (18), e estipulado (18 de julho a 18 de agosto),
aos procedimentos para fazer a solicitação. não há como mudar depois.
O voto em trânsito é como uma Saiba mais nesse vídeo no canal do TSE.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 57


DEBATE / Tipologia injuntiva

“(…) o uso da injunção na


construção de um texto é
fortemente marcado por
fatores sociais. Aliás, toda MANUAL DE
análise de texto deve INSTRUÇÕES
levar em consideração O texto injuntivo, conhecido também como texto
a sua relação com instrucional, tem como único objetivo explicar e
instruir o leitor sobre o que deve ser feito para a
as condições do seu realização de uma ação, sem levantar questões
contexto comunicativo” que levem a uma argumentação.
A injunção, conforme Travaglia, almeja incitar a
realização de uma situação (ação, fato, fenômeno,
estado, evento etc.), requerendo-a ou desejando-a,
Prazos do voto em trânsito ensinando ou não como realizá-la. A informação
15 de julho diz respeito a algo a ser feito ou como deve ser
Compete aos Tribunais Regionais feito. Fica a cargo do interlocutor executar aquilo
Eleitorais (TREs) designarem até o dia 15 que se solicita ou se define que seja feito, em uma
de julho os locais de votação entre os que ocasião posterior ao momento da enunciação.
já existirem ou criá-los especificamente Está ligada, portanto, a comportamentos futuros.
Pode-se observar, desse modo, que são textos que
para receber eleitoras ou eleitores que
têm um passo a passo que o destinatário deve
desejam votar em trânsito.
seguir, oferecendo instruções e indicações para a
17 de julho
realização da ação ou indicações que auxiliarão o
A relação dos locais onde haverá voto
sujeito no uso correto de algum objeto.
em trânsito deverá ser divulgada nas
Dessa maneira, verifica-se que o texto injuntivo
páginas dos tribunais eleitorais até 17 de tem a função de transmitir a informação usando
julho. A seção eleitoral que se destinar todos os seus métodos voltados para a explicação
exclusivamente a essa modalidade com palavras objetivas e diretas. Na maioria das
deverá conter no mínimo 50 e no vezes, o tempo verbal se encontra no imperativo
máximo 400 eleitoras e eleitores. Até e pretende convencer o leitor de que o que diz
18 de agosto de 2022, os TREs poderão é para ser seguido. Segundo Rosa (2003), os co-
atualizar os locais disponíveis para mandos propostos nos textos injuntivos podem
o voto em trânsito em função da ser obrigatórios ou opcionais. A execução dos
demanda, observando a permanente comandos obrigatórios é imprescindível para
disponibilidade de vagas, atualizando de que o macro-objetivo acional seja atingido. Já os
imediato a relação dos locais. opcionais estão ligados a uma escolha do interlo-
18 de julho cutor do texto, e sua execução não é pré-requisito
De acordo com o calendário eleitoral das para a concretização do macro-objetivo. Em nosso
Eleições 2022, a partir do dia 18 de julho
cotidiano, por exemplo, ao comprarmos algum
equipamento que não sabemos usar, por mais que
até 18 de agosto de 2022, a eleitora ou o
seja algo simples, comumente fazemos uso do
eleitor poderá se habilitar perante a
manual do equipamento para nos guiar. É dessa
Justiça Eleitoral para votar em trânsito,
forma que temos a representação do texto injun-
indicando o local em que pretende votar,
tivo, não apenas no manual de instrução, como
assim como alterar ou cancelar sua também em outros em gêneros textuais, como
habilitação, caso já o tenha requerido. propagandas, receitas culinárias, entre outros.
Fique atento e não perca o prazo!
MM/CM, DM

58 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


MUITO ALÉM DA INFORMAÇÃO “devem ficar atentos ao prazo”. Há, ainda, REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
O primeiro aspecto que chama a aten- orações com verbos modais que indicam
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros
ção são os subtítulos (“Modalidades”, possibilidade, como em “poderá partici- do discurso. In: Estética da
criação verbal. São Paulo:
“Como se habilitar” e “Prazos do voto em par”, “poderão participar”, “poderão pro- Martins Fontes, 1992.
trânsito”), o que já demonstra que a função curar”, “poderão atualizar”, “poderá se BRONCKART, Jean-Paul.
social desse texto é para além de informar, habilitar”. Intencionalmente ou não, essas Atividade de linguagem,
textos e discursos: por
ou seja, é apresentar uma “receita” (permi- ocorrências utilizam o verbo modal “poder”. um interacionismo
sociodiscursivo. Tradução
tam-me a brincadeira, mas é para mostrar Como ficou evidente, o uso da injunção de Anna Rachel Machado e
o quanto a predominância injuntiva é forte na construção de um texto é fortemente Péricles Cunha. São Paulo:
EDUC, 1999.
em determinados gêneros) de como devem marcado por fatores sociais. Aliás, toda a GERALDI, João Wanderley.
proceder aqueles leitores que se enqua- análise de texto deve levar em consideração Portos de passagem. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
dram em tal situação. Aliás, o verbo dever a sua relação com as condições do seu con- ROSA, Adriana Letícia
que acabei de utilizar aqui aparece em cin- texto comunicativo. A escolha dos mecanis- Torres. A sequência injuntiva
passo a passo. 2003. Tese
co ocorrências no texto. O que nos leva a mos linguísticos, do discurso de ordem, de (Mestrado em Linguística)
notar um caráter discursivo de ordem e en- conselho ou de ensinamento está intima- – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2003.
quadrar, conforme apresentado por Rosa, mente relacionada a esse contexto e ao pa- TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Um
no agrupamento de textos reguladores- pel que o autor/locutor ocupa socialmente, estudo textual-discursivo do
verbo no português do Brasil.
-prescritivos (que visam a obrigar alguém o que, de certa forma, autoriza-o a fazer o 1991. Tese (Doutoramento em
Linguística) – Universidade
a efetuar algo). Retomo novamente aqui seu interlocutor agir ou realizar determi- Estadual de Campinas,
o quem “diz o que diz para quem diz”. Seja nada tarefa. Já o leitor reconhece tal papel, Campinas, 1991.

quem foi que escreveu o texto, tal sujeito também, influenciado por tais elementos e TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL. Eleições 2022:
representa o TSE (órgão máximo da Justiça por meio da natureza do gênero textual. saiba como pedir para votar
em trânsito. Brasília. 15 de
Eleitoral), e a escolha dos mecanismos lin- As reflexões aqui propostas reforçam julho de 2022. Disponível
guísticos passa por essa contextualização. aquilo que já sabemos: tendências não são em: https://www.tse.jus.br/
comunicacao/noticias/2022/
Como já era de se esperar, há a presença regras. Sejam elas a de que o gênero notícia Julho/eleicoes-2022-saiba-
como-pedir-para-votar-em-
do imperativo, a começar pelo título da no- tem como tipologia predominante relatar transito-405649. Acesso em:
tícia, “Eleições 2022: saiba como pedir para ou expor; a de que os textos injuntivos fa- 18 jul. 2022.

votar em trânsito”, e ao finalizar o texto no zem uso predominantemente dos verbos


seguinte alerta: “Fique atento e não perca no imperativo etc. A cada situação comuni-
o prazo!”. Como já foi pontuado, há tam- cativa, um dado gênero textual apresenta-
SOBRE O AUTOR
bém orações com verbos modais que in- -se de forma singular, uma vez que é in- CLEOMAR DE SOUZA LIMA
dicam obrigatoriedade. Em muitas dessas fluenciado por esse contexto. E o autor “diz é professor de língua
portuguesa da Rede
ocorrências optou-se pelo uso do verbo “de- o que diz para quem diz” legitimado social- Estadual de Educação
ver”, como nos trechos: “devem ser feitos mente (e por meio da tipologia injuntiva) a e atua como formador
de professores na Rede
em atendimento presencial” (duas vezes) e ordenar, aconselhar ou ensinar. Municipal de Educação.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 59


PONTO DE VISTA / Professores em cena

IMITAÇÃO
DA VIDA
© DISNEY
É
provável que você também tenha presen-
te na memória a imagem da primeira pro- Nos desenhos, nas HQs, nos filmes e nas
fessora, daquela que o ensinou a escrever,
ou até daquela professora brava de lín-
novelas, a figura professoral surge para
gua portuguesa da antiga 5ª série que complicou a criar uma identidade cultural de um dos
nossa vida com análises sintáticas e morfológicas!
No entanto, além dos professores de carne e
profissionais mais lembrados por todos
osso, alguns professores que pertencem ao imagi-
por Márcio Scarpellini Vieira
nário e ao ambiente da “cultura pop” também fo-
ram importantes na minha, e talvez na nossa, cami-
nhada em direção ao quadro negro!
Personagens professores em histórias em qua- professores-personagens motivaram ou mesmo en-
drinhos, desenhos e filmes que ajudaram a cons- sinaram gerações sobre tais aspectos, além de criar
truir a imagem cultural da figura do mestre, da um espectro de autoridade sapiencial a respeito do
identidade deste profissional que, de tão importan- professor (ver box A linguagem como suporte).
te na vida de todos, é presença constante em qual- Quantos de nós gostaríamos de ter encontrado
quer tipo de retrato social. na sala de aula, quando criança, alguém que nos
No papel ou em formatos animados, as artes re- desse conselhos como o Príncipe Adam de HE-MAN1,
tratam a vida, as influências mais importantes, e é o abraço afetuoso da professora Helena de CARROS-
interessante a recorrência da figura de professores SEL2 ou até a excentricidade do Professor Tibúrcio do
nas narrativas de ficção, provando a importância do programa CASTELO RÁ-TIM-BUM3 da TV Cultura de São
profissional da educação na formação do caráter, Paulo? Esse cenário ficcional ajuda a criar um perfil
na formação do indivíduo e no desenvolvimento que, apesar de poder ser estereotipado às vezes, con-
das relações interpessoais e com o mundo exterior. tribuiu indelevelmente para a nosso imaginário em
Proponho aqui uma análise acerca de algumas relação à profissão docente. Bora rememorar?
figuras professorais do universo da cultura popu-
lar, que povoam camadas do nosso imaginário, e na PROFESSORES-PERSONAGENS
verdade compõem universos geracionais de influ- Nesta primeira abordagem sobre alguns profes-
ências na construção das nossas visões de mundo e sores do universo pop, a ideia é observar alguns per-
percepções sobre profissões e cenários sociais. sonagens que “viveram” seus episódios desde os anos
Como já sabemos, professores desenvolvem 1950, perpassando nossas mais tenras lembranças,
nos aprendizes características específicas de co- até os mais contemporâneos de séries que procuram
municação, linguagem, organização, liderança, explorar aspectos psicológicos e comportamentais,
respeito e relacionamento interpessoal. Esses por vezes até mais complexos e obscuros, por se tra-

60 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


tar de personagens e obras destinados ao público linguagem é aquela que é mais bem compreendida.
adulto. Entremos no túnel do tempo. Isso não significa que o professor deva tolher o
No universo dos estúdios Disney, há um pro- acesso do aluno a uma linguagem culta, pelo con-
fessor que estreou nos quadrinhos em 1952 e, na trário. Os fenômenos linguísticos devem ser conhe-
verdade, trabalha mais como inventor e soluciona- cidos e dominados. Devem ser absorvidos pelo estu-
dor de problemas do que como um docente. Estou dante, para que ele possa ter autonomia e recursos a
falando do professor Pardal, que, de tão inventivo, fim de estabelecer comunicações efetivas em quais-
tornou-se alcunha de pessoas criativas que quer situações. Boas soluções são real-
gostam de fazer e criar coisas mirabolantes. mente aquelas mais simples, sempre
Ao atribuir o título de professor ao inven-
tor mais conhecido da cidade de Patópolis,
“Personagens lembrando que o simples não é simpló-
rio. Buscar soluções simples não é tare-
os autores das histórias em quadrinhos re- professores fa pueril. Fazendo uma analogia com
conheceram uma característica imprescin-
dível no perfil docente, que é a de elaborar
em histórias as exatas, um dos maiores desafios de
um cientista ou de um matemático é,
alternativas muitas vezes heterodoxas para
em quadrinhos, ao entender um fenômeno, elaborar a
solucionar situações inéditas, utilizando-se desenhos e fórmula matemática expressa da me-
dos recursos de que dispõe.
A narrativa sobre esse inventivo garnisé
filmes, que nor forma possível, com uma estrutura
direta e reduzida. Por isso, a fórmula E
apresenta também situações em que certas ajudaram a = mc² é tão admirada e bela!
soluções de fato acabam não atingindo os construir a O simples é belo! A linguagem
objetivos desejados, podendo causar algu- efetiva e eficaz é aquela que toca o co-
mas pequenas tragédias cômicas, mas que
imagem cultural ração, e tocar o coração de crianças e
sempre reforçam a grande intencionalidade da figura do adolescentes exige um coração afetivo
que está realmente por trás dos inventos de
Pardal: contribuir e ajudar a todos, nutrindo
mestre, da e propenso a contribuir com a cria-
ção de um futuro melhor aos nossos
bons sentimentos, procurando facilitar a identidade deste pupilos!
vida das pessoas e melhorando o mundo, já profissional Mudando de universo, mas ainda
que nesse ambiente Disney o professor Par-
dal é o maior inventor do mundo!
que, de tão nos quadrinhos, vamos falar de outra
professora. Trata-se da professora sem
Outro ponto interessante, agora em re- importante na nome (até onde pude pesquisar!!!) que
lação à leitura popular a respeito do perfil
desse personagem, podemos encontrar nas
vida de todos, leciona para Charlie Brown e seus ami-
gos nas tirinhas e nos desenhos Sno-
características que são atribuídas às pes- é presença opy, criados por um gênio chamado
soas sobre as quais colocamos o apelido de constante em CHARLES SHULZ4. Segundo relatos dispo-
“professor Pardal”. Às vezes, são pessoas que,
ao invés de proporem uma solução simples,
qualquer tipo de níveis em sua biografia, ele próprio via
a escola tal qual retratou no desenho,
acabam criando uma alternativa complexa e retrato social” um amontoado de palavras e discursos
mirabolante para resolver algo para o qual já sem qualquer nexo com sua realidade,
existe solução. Acabam por criar uma “gam- desprovida de significado, e o intervalo
biarra” para facilitar uma tarefa cotidiana ou era o melhor momento escolar. Bem,
contornar um problema que não é tão gran- até aí, sem qualquer novidade, talvez
de assim, ou que não tem uma recorrência alimentemos esse mesmo tipo de lem-
que justifique o esforço de criar a solução brança de nossa vida escolar.
mirabolante! Lembro-me muito bem de um
A reflexão que trago neste aspecto é evi- episódio de Snoopy que me marcou
dente: no dia a dia docente, por vezes acaba- profundamente. Charlie Brown e seu
mos procurando soluções complexas para amigo Lino travavam profundas con-
situações simples. De vez em quando, bus- versas existenciais, recheadas de filo-
camos explicações belas, bons textos, boas sofia, com alguma tendência estoica.
locuções, sendo que a melhor aula, a melhor Em um desses antológicos momentos,

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 61


PONTO DE VISTA / Professores em cena

Lino apresenta a Charlie Brown a sua visão so-


uma estratégia para demarcar
bre o propósito de ir à escola. O diálogo é mais
ou menos assim: “o propósito de ir à escola é ti-
A LINGUAGEM um falar que não será acessa-
rar boas notas, para podermos entrar no ensino COMO SUPORTE do facilmente pelo grupo de
alunos. Esse falar específico
secundário, e tirarmos boas notas, para irmos à Independentemente da cultu- tem por finalidade representar
uma universidade, e tirarmos boas notas, para ra, do tempo e das tecnologias, saberes distantes, inacessíveis
fazermos uma pós-graduação, e tirarmos boas o professor tem a linguagem ao aluno comum, que deve-
notas, para conseguirmos um bom emprego, falada como principal suporte rá dedicar esforço, tempo e
termos uma família, termos filhos, mandá-los ao seu labor, utilizando-se dela talentos para alcançar a pro-
para a escola, para que eles tirem boas notas, às vezes em concomitância fundidade em que o mestre se
entrem no ensino secundário, tirem boas no- com outras ferramentas, como encontra.
tas…”. Nesse ponto eles seguem caminhando e desenhos, áudios ou estudo de Em outros exemplos chegamos
o som vai esvanecendo, ou seja, um ciclo inter- campo, mas sempre mediadas a encontrar a mesma inten-
minável calcado em resultados quantitativos.
pela oralidade. cionalidade demonstrada em
Nesse sentido, é de se esperar professores que nem sequer
A professora retratada nas tirinhas Snoopy é
que, nas representações fictí- têm sua oralidade restringida a
incompreendida pelos alunos, sua aula não tem
cias, fosse o professor retrata- uma vocalização completamen-
significado, pois sua fala é ininteligível, apesar do com alguma ênfase em seus te incompreensível, como é o
de haver pequenas comunicações e até respos- hábitos, cacoetes ou caracte- caso da professora do desenho
tas. Essa é uma realidade, como já disse, que per- rísticas relacionadas à fala, à SNOOPY6, com sua voz monó-
meia muitas vezes as nossas salas de aula. Nos- postura e à locução. E assim é: tona que causava um sono
sas referências culturais e, por vezes, linguísticas percebemos que alguns perso- incontrolável na menina Paty,
podem estar distantes da realidade dos nossos nagens professores possuem amiga de Charlie Brown.
alunos sem que percebamos que isso está acon- algumas características espe- Perceba a importância da
tecendo. Esse fenômeno pode se dar tanto pelo cíficas quanto à forma de falar linguagem para a construção
fator diferença de idade entre professor e aluno e à linguagem utilizada. Outra do personagem: quer por um
quanto por fatores culturais, e obviamente é a
característica interessante e caráter rebuscado, quer por
recorrente diz respeito ao figu- um caráter incompreensível,
esse quesito que precisamos dedicar atenção
rino, aos trajes utilizados pelo diversos autores retratam o
especial. Conhecer os hábitos culturais, as músi-
personagem. professor por meio de suas
cas, as referências culturais em geral dos nossos Ambas causam o efeito esté- formas orais de comunicação.
alunos é uma obrigação do professor, caso con- tico de distanciar, diferenciar, Para não ficarmos apenas com
trário, pode-se tanto deixar de se fazer entender marcar o professor como exemplos “negativos”, vamos
quanto não expandir e conectar o aprendizado um personagem distinto dos trazer a professora Helena da
àquilo que é significativo ao aluno. demais e dos discentes em novela mexicana Carrossel, que
Bem, continuando nossas referências de especial. constantemente era convidada
infância, não posso deixar de citar o mestre Especificamente quanto à lin- para resolver ou intermediar
Linguiça, quero dizer, professor Girafales! No guagem, é colocada na boca do situações complexas entre
seriado mexicano, a figura do professor é eleva- professor uma fala por vezes alunos ou até entre as famílias
da por meio do ator mais alto, mais culto, mais
rebuscada, necessitando de dos alunos.
explicações, como no caso do Temos, então, caracterizada
bem-vestido e a referência para sanar eventu-
professor Girafales do seriado a linguagem como um dos
ais dilemas na vila do Chaves. O professor Gi-
mexicano CHAVES4 (El Chavo aspectos mais marcantes na
rafales, estrelado pelo já falecido ator Ruben
del Ocho) ou do mestre Yoda construção de um personagem
Aguirre, é tanto um dedicado professor que se
da franquia STAR WARS5, que e, especificamente, de persona-
esforça para ajudar seus alunos a vencerem as faz uso de uma estrutura lin- gens professores. Nesse ponto,
dificuldades de aprendizagem, como sente na guística sujeito-objeto-verbo, ocorre-me quantas vezes como
pele quando os alunos não alcançam a compre- ao invés da estrutura mais aluno imitamos cacofonias ou
ensão de algum conteúdo, chegando a chorar comum nos idiomas modernos outros vícios de linguagem dos
diante de algumas respostas! sujeito-verbo-objeto. nossos professores! Fazíamos
O professor Girafales tem uma autoestima Utilizar-se de uma estrutura listas e bingos durante as
extremamente elevada, atribuindo a si mesmo gramatical, estética ou até de aulas, contando quantos “nés”
uma autoridade que beira a arrogância, apesar um vocabulário rebuscado é seriam ditos pela professora!

62 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


de seu senso de justiça. Por vezes, o pro- tante aspecto da figura do professor. criança quando aprende a falar começa
fessor Girafales procura explicar con- Por fim, nesta primeira abordagem perguntando os porquês, os motivos de
ceitos de formas e linguagens distin- sobre professores de universos ficcio- uma outra questão. Quando essa mes-
tas, trocando palavras por sinônimos, nais, trago a figura do professor Tibúr- ma criança alcança a idade escolar, nós
buscando a compreensão e a apren- cio, estrelado por Marcelo Tas, no pro- a colocamos em uma sala de aula para
dizagem por parte das crianças. Essa grama Rá-Tim-Bum da TV Cultura de que ela passe todos os anos de quase
estratégia é benéfica e extremamente São Paulo entre os anos 1989 e 1992. No duas décadas de vida respondendo
útil em nosso trabalho com crianças decorrer de pequenas esquetes, o pro- perguntas, ao invés de fazê-las. Assim,
e adolescentes. Não é demais lembrar fessor Tibúrcio introduz um assunto mesmo o processo de perguntar deve
que a linguagem, como organismo por meio de alguma pergunta dirigida ser alterado para ensinar os alunos a
vivo, passa por mutações, por transfor- a uma turma invisível de alunos, arti- fazer per si boas perguntas!
mações e por adaptações de significa- fício estrategicamente pensado para Perguntas inteligentes ensejarão
dos, fazendo com que uma palavra que envolver a criança que está assistindo respostas inteligentes. Boas perguntas
para um adulto tenha um significado à série. A partir da resposta, o professor levaram a humanidade a criar e mudar
completamente estabelecido, não seja Tibúrcio explica um conceito ou conhe- o mundo. Quando respondemos ou
assim para uma criança ou para um cimento que normalmente está relacio- induzimos o aluno a responder, fecha-
adolescente, podendo ser até completa- nado a algo muito prático, porém com mos o assunto, muitas vezes impedin-
mente desconhecida por qualquer um um conhecimento teórico envolvido. do ou limitando novas aprendizagens.
desses! O contrário também é possível, Utilizar perguntas diretas para in- Bem, espero que mais que um
podendo haver um neologismo ou até troduzir aprendizagens também é um momento nostálgico você também te-
o significado e a aplicação de um verná- artifício linguístico e até filosófico ex- nha tido bons exemplos de como me-
culo de forma distinta ao que estamos tremamente útil para a prática do en- lhor utilizar a linguagem em sala de
acostumados em uso entre os alunos. sino. Não é possível falar da utilização aula, para que nossos alunos possam
Apropriar-se desses fenômenos lin- de perguntas no processo de ensino- ter mais e melhores experiências de
guísticos é instrumentalizar-se de fer- -aprendizagem sem que sejamos reme- aprendizagem!
ramentas comunicativas para melhor tidos à maiêutica grega. Boas pergun- Nos próximos números continu-
ensinar quaisquer conteúdos. tas, perguntas reflexivas e instigantes aremos explorando professores incrí-
De qualquer forma, o professor Gi- são muito melhores do que grandes e veis, e outros nem tanto, que já foram
rafales pode ser um excelente exemplo decoradas respostas! retratados em séries, desenhos ou na
de um professor respeitável e respeita- Sempre digo que o processo de en- tela grande!
do, que goza da admiração de todos os sino escolar que utilizamos em maior
demais personagens da série. Ser res- medida é desconectado do processo na-
peitado e respeitável é, sim, um impor- tural de conhecimento de mundo. Uma

HYPERLINKS
1 HE-MAN • He-Man é o ela, o ensino caminha lado a canal TV Brasil e na TV paga seu criador percebeu que o REFERÊNCIA
personagem principal da linha lado com o amor. É moderna e pela TV Rá-Tim-Bum. seriado seria destinado ao BIBLIOGRÁFICA
de brinquedos Masters of the ligada nas novas tendências da 4 CHAVES • El Chavo del público de todas as idades, NUNES, Cecília Maria
Universe da Mattel, presente educação. Helena se torna um Ocho (Chaves no Brasil e mesmo se tratando de adultos Fernandes; TEIXEIRA,
em uma série de histórias em referencial para seus alunos. O Xavier em Portugal), ou interpretando crianças. O Inês Assunção de Castro
quadrinhos e várias séries É com ela que eles contam em simplesmente El Chavo, é um elenco principal é composto et al. Telas da docência:
animadas, caracterizados pela todas as circunstâncias que seriado de televisão mexicano por Roberto Gómez Bolaños, Professores, professoras
sua força sobre-humana. Na enfrentam, sejam elas felizes criado, roteirizado, dirigido Carlos Villagrán, Ramón Valdés, e cinema. São Paulo:
maioria das variações, ele é o ou tristes. Estreou em 2012. e estrelado por Roberto Florinda Meza, María Antonieta Autêntica, 2017.
alter ego do Príncipe Adam. 3 PROGRAMA RÁ-TIM-BUM • Gómez Bolaños (conhecido de las Nieves, Edgar Vivar,
Programa infantil produzido como Chespirito), produzido Rubén Aguirre, Angelines
2 CARROSSEL • Carrossel, em 192 episódios pela TV pela Televisa. O roteiro veio Fernández, Horacio Gómez e SOBRE O AUTOR
baseada na telenovela Cultura, estreando na emissora de um esquete escrito por Raúl Padilla.. No Brasil, recebeu MÁRCIO SCARPELLINI
mexicana Carrussel, foi em 5 de fevereiro de 1990 e Bolaños, em que uma criança o título de Chaves e começou VIEIRA é pedagogo,
produzida pelo SBT e escrita sendo exibido até 1994. Criado de oito anos discutia com a ser transmitido pelo SBT em cientista social,
por Íris Abravanel. No início, por Flávio de Souza, teve como um vendedor de balões em 24 de agosto de 1984, sendo palestrante e
dirigida por Del Rangel e roteiristas Cláudia Dalla Verde, um parque (interpretado reprisado inúmeras vezes. administrador de
mais tarde substituído por empresas. Diretor-
Bosco Brasil, Mário Teixeira e por Ramón Valdés). 5 STAR WARS • Franquia do
Reynaldo Boury. A história -executivo do Colégio
Dionísio Jacob. A direção foi de Bolaños deu importância tipo space opera estadunidense
gira em torno de Helena, Ouro Preto e professor
Fernando Meirelles. Os atores ao desenvolvimento dos criada pelo cineasta George
uma jovem professora linda e Universitário.
veteranos Marcelo Tas e Carlos personagens, aos quais foram Lucas, que conta com uma
meiga que leciona ao terceiro Moreno faziam parte do elenco. distribuídas personalidades série de nove filmes de fantasia
ano da Escola Mundial. Para Foi reexibido também pelo distintas. Desde o início, científica e dois spin-offs.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 63


Estante

RESGATE DO INFERNO
Neste ano, em que se comemora o centenário da morte de Lima Barreto,
Uma Temporada no Inferno faz um justo resgate de um dos escritores
mais mal compreendidos da nossa literatura. O personagem do romance
de Henrique Marques Samyn volta para reescrever a história no hospício
onde Lima esteve em dois períodos, na Urca. Foi na segunda internação,
entre o Natal de 1919 e fevereiro de 1920, que ele fez as anotações pu-
blicadas posteriormente como Diário do hospício e que serviram de base
para O cemitério dos vivos, um romance inacabado. “E se alguém fizesse
da tarefa de concluir essa obra a missão de vida? E se a pessoa fosse um

© REPRODUÇÃO
homem que, movido por essa obsessão, chegasse a se internar, seguindo
os passos de Lima? E se esse homem, sendo negro, acabasse preso nas
redes do racismo e da violência manicomial? Esse é o enredo. A narrativa
compila os fragmentos deixados pelo enigmático personagem, dialogando
com os escritos de Lima e incorporando ampla documentação histórica, extraída de relatórios,
textos científicos e periódicos da época”, explica Henrique Marques Samyn. Professor associado
do Instituto de Letras da UERJ, diz que o narrador-protagonista funciona como uma alegoria da
condição do povo negro no Brasil. É o desejo de tornar-se “alguém” que faz com que desenvol-
va a obsessão pelo autor de “Policarpo Quaresma”, ao perceber traços biográficos em comum.

Autor: Henrique Marques Samyn • Páginas: 120 • Editora: Malê

OS FEITOS DE BEOWULF
EM CÉLEBRE POEMA
“Hwæt!” Era gritando essa palavra que J. R. R. Tolkien, o genial autor de
O Senhor dos Anéis, iniciava suas aulas de inglês antigo na Universidade
de Oxford. Os alunos, temerosos, corriam para seus lugares: eles não
sabiam que o professor estava apenas recitando os primeiros versos de
Beowulf, o mais célebre poema da literatura anglo-saxônica, composto
no século 8 e que até hoje entusiasma leitores no mundo inteiro, de
investigadores acadêmicos a fãs de RPG. Ambientado na Escandinávia
© REPRODUÇÃO

dos séculos 5 e 6, em meio a uma natureza mítica, formada por mares,


penhascos, pântanos, cavernas e seres fantásticos saídos das sombras,
e tendo como centro da vida social o grandioso “salão do hidromel”, o
poema narra os feitos do herói que dá nome ao livro, que livra a corte
do rei Hrothgar do temível Grendel, um monstro aterrorizante, e, cin-
quenta anos depois, tem um novo e decisivo confronto, desta vez com um dragão
alado. Esta obra de intensa poesia, em edição bilíngue, repleta de imagens inesque-
cíveis e com ecos da Ilíada, da Eneida, dos Evangelhos, da mitologia nórdica e das
grandes sagas germânicas, capturou a imaginação de vários artistas e escritores
de nosso tempo, entre eles, Jorge Luis Borges, que assina o prefácio deste volume.
Autor: Anônimo • Tradutor: Elton Medeiros • Páginas: 388 • Editora: Parábola

64 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


LIVROS QUE NÃO PODEM FALTAR NA SUA ESTANTE
CONHECIMENTO PRÁTICO LÍNGUA PORTUGUESA E
LITERATURA é uma publicação trimestral da EBR _ Empresa
Brasil de Revistas Ltda. ISSN 2595-6485. A publicação não se
responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados ou por
qualquer conteúdo publicitário e comercial, sendo esse último de
inteira responsabilidade dos anunciantes.

ANO 8 - EDIÇÃO 93

COMBATES DE 22 DIRETORA EDITORIAL


Ethel Santaella

Este livro reúne dezoito textos


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escritos por Oswald de Andrade GRANDES, MÉDIAS E PEQUENAS AGÊNCIAS E DIRETOS
entre 1920 e 1922, publicados no publicidade@escala.com.br

Jornal do Commercio, no Correio REPRESENTANTES Interior de São Paulo: L&M Editoração,


Luciene Dias – Rio de Janeiro: Marca XXI, Carla Torres, Marta
Paulistano e na revista A Rajada, Pimentel – Santa Catarina: Artur Tavares – Regional Brasília:
Solução Publicidade, Beth Araújo.
e uma entrevista publicada na
Gazeta de Notícias – boa parte COMUNICAÇÃO, MARKETING E CIRCULAÇÃO
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GERENTE Paulo Sapata


deles, inédita em livro. É uma
viagem no tempo e mostra o IMPRENSA comunicacao@escala.com.br

que aconteceu pouco antes da


Av. Profª Ida Kolb, 551, Casa Verde, CEP 02518-000, São Paulo, SP
Semana de Arte Moderna, retra- Caixa Postal 16.381, CEP 02515-970, São Paulo, SP
Telefone: (+55) 11 3855-2100
tando com detalhes os combates
travados então pela intelectualidade, provando que o evento FILIADA À IMPRESSÃO E ACABAMENTO
foi um projeto político de uma geração. O estilo afiado do au- OCEANO
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tor permite que se tenha acesso, um século depois, ao caldo Nós temos uma ótima
impressão do futuro
cultural que culminou na Semana de Arte Moderna de 1922.
RESPONSABILIDADE AMBIENTAL Esta revista foi impressa na Grá-
fica Oceano, com emissão zero de fumaça, tratamento de todos os
resíduos químicos e reciclagem de todos os materiais não químicos.
Autor: Oswald de Andrade • Organizadora: Gênese Andrade
Páginas: 74 • Editora: UNESP 2022
REALIZAÇÃO

DIRETOR-GERAL: Angel Fragallo • COORDENA-


DORA-EXECUTIVA: Juliana Klein – Mtb. 48.542
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(11) 2809-5910 ÇÃO: Wellington Zanini • REVISÃO: Adriana

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Reticências Reflexão de Abrahão Costa de Freitas

Galáxia Chartier
Pesquisador francês defende
tese na qual a mobilidade
e a materialidade do
texto podem influir e até
comprometer a tradução

N
o mês de setembro, o produzindo significações diversas
historiador e estudioso para aquilo que esses autores queriam
da leitura, o francês Roger expressar em sua língua de origem.
Chartier, esteve no Brasil Utilizando a metáfora das edições
© MICHAEL WÖGERBAUER

para uma série de conferências que humanas utilizada por Machado


tinham por objetivo divulgar sua nova de Assis em Memórias póstumas
obra, Ler, editar e traduzir, lançada de Brás Cubas, o autor considera a
aqui pela Unesp. edição e a tradução como dois fios
Durante as conferências, Chartier que se entrelaçam para construir a
apresentou as conclusões a que materialidade do texto.
chegou a partir da investigação histó- Partindo de uma rigorosa investiga- preensão de como a literalidade e a
rica da tradução nos séculos 16 e 18. ção do passado, Chartier chega à con- materialidade do texto podem ser com-
Ampliando a noção de tradução para clusão de que a vontade de verdade prometidas pelas sucessivas versões
além da simples transposição do texto presente em diversas obras é falseada em que ele é disponibilizado ao leitor.
de uma língua para outra, o autor apre- por suas sucessivas versões e tradu- A vontade de reescrever o passado
senta diversas versões de um mesmo ções, um fenômeno que na contem- pode comprometer os processos de
texto traduzido de uma língua para poraneidade será, entre outras coisas, tradução e motivar a censura de muitos
outra, esclarecendo como as sucessi- o responsável pela disseminação de discursos tidos como impróprios e
vas versões de um mesmo texto podem factoides e fake news. proibidos. A mobilidade do texto ficaria
modificar o seu sentido original. Sob essa perspectiva, os muitos ato- assim comprometida, bem como os
Sob esse aspecto, a própria edição res e agentes que intervêm no processo seus modos de publicação e edição.
de um texto em sua língua de origem de produção influenciam de maneira Ao discutir a mobilidade e a ma-
pode ser considerada uma espécie de decisiva na circulação dos textos, mo- terialidade do texto presentes nos
tradução à medida que intervém na dificando os processos culturais por atos de traduzir e editar, Chartier abre
materialidade do texto. meio dos quais eles são lidos, compre- um portal para uma dimensão pouco
De acordo com Chartier, as tradu- endidos e apreendidos. considerada no universo da tradução
ções de autores como Shakespeare, A visão que o autor apresenta sobre e propõe novos caminhos para uma
Cervantes, Castiglione e Molière para o registro dos textos em outras linguas atividade com a qual poucos estão
outras línguas criaram novos textos, contribui em muito para a nossa com- familiarizados.

ABRAHÃO COSTA DE FREITAS é professor da rede municipal de ensino, formado em Letras, com especialização em
Educomunicação pela Universidade de São Paulo e em Jornalismo Internacional pela Pontifícia Universidade Católica.

66 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


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